Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:09364/12
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:01/15/2015
Relator:CATARINA JARMELA
Descritores:SEGURANÇA PRIVADA - DL 35/2004 – ANTECEDENTES CRIMINAIS – ARTIGO 30º N.º 4 DA CONSTITUIÇÃO
Sumário:I - Na sequência da interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, foi por este proferido acórdão (n.º 748/2014), em 11.11.2014, no qual foi decidido não julgar inconstitucional a norma constante do art. 8º n.º 1, al. d), conjugada com o n.º 3 do art. 10º, do DL 35/2004, de 21/2, quando interpretada no sentido de que a condenação pela prática de um crime de violência doméstica determina automaticamente o indeferimento do pedido de renovação do cartão profissional de segurança privado.

II – Para o efeito o Tribunal Constitucional entendeu que a não renovação do cartão profissional de segurança privado é reconduzível a uma situação de perda de direitos profissionais, para efeitos do disposto no art. 30º n.º 4, da Constituição, a qual se configura como um efeito automático da condenação por um dos crimes elencados no preceito em crise, decorrendo mecanicamente desta.

III – O Tribunal Constitucional considerou, no entanto, que a solução perspectivada pelo legislador que acaba por retirar da prática de um qualquer crime doloso, cuja moldura penal abstracta seja superior a três anos de prisão, uma conclusão sobre a inaptidão da pessoa para o desempenho da actividade de segurança privada, só ocorre após ter previsto na primeira parte da norma a prática de um crime contra a integridade física, como incompatível com o exercício profissional em causa, pelo que, sendo assim, nesta hipótese existe uma ligação suficientemente forte entre o tipo legal de crime efectivamente preenchido e o tipo de actividade profissional cuja inibição se pretende induzir através da norma sob escrutínio, conexão que afasta a existência de uma desproporção manifesta, obstando à violação do princípio da proibição do excesso e, por conseguinte, do art. 30º n.º 4, da Constituição.

IV – Tendo esse acórdão do Tribunal Constitucional determinado a reformulação da decisão deste TCA em conformidade com o juízo de não inconstitucionalidade dele constante, e uma vez que a única questão suscitada no recurso jurisdicional se resume em determinar se a decisão recorrida enferma de erro ao ter considerado que o art. 8º n.ºs 1, al. d), e 2, do DL 35/2004, de 21/11, não viola a Constituição, concretamente o respectivo art. 30º n.º 4, cumpre negar provimento ao recurso jurisdicional.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO
Joaquim …………… intentou no TAF de Castelo Branco acção administrativa especial contra o Ministério da Administração Interna, indicando como contra-interessada S………….-Serviços e ……………., SA, na qual peticionou a declaração de nulidade, ou, caso assim não se entenda, a anulação do despacho do Director Nacional da Polícia de Segurança Pública, proferido em 21.2.2011, que lhe indeferiu o pedido de renovação do cartão profissional de segurança privado.

Por despacho saneador proferido em 25.2.2012 foi a contra-interessada, e por falta de legitimidade, absolvida da instância.

Por decisão de 31 de Maio de 2012 do referido tribunal foi julgada improcedente a presente acção.

Inconformado, o autor interpôs recurso jurisdicional para este TCA Sul, tendo na alegação apresentada formulado as seguintes conclusões:

(…)”.

O recorrido não apresentou contra-alegações.

A DMMP junto deste TCA Sul emitiu parecer, no qual sustentou a procedência do recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida, substituindo-se a mesma por outra que julgue procedente a presente acção, posicionamento esse que, objecto de contraditório, não mereceu qualquer resposta.

Por acórdão de 5.12.2013 deste TCA foi concedido provimento ao recurso interposto, revogada a sentença recorrida, por erro de julgamento, recusando-se a aplicação do disposto na al. d) do art. 8º, do DL 35/2004, de 21/2, por inconstitucionalidade, decorrente da violação do n.º 4 do art. 30º, da Constituição, e, em consequência, revogado o acto impugnado, de indeferimento do pedido de renovação do cartão profissional de segurança privado.

Inconformado, o Ministério da Administração Interna interpôs recurso jurisdicional para o Tribunal Constitucional.


Por acórdão de 11.11.2014 do Tribunal Constitucional foi decidido:

- Não julgar inconstitucional a norma constante do art. 8º n.º 1, al. d), conjugada com o n.º 3 do art. 10º, do DL 35/2004, de 21/2, quando interpretada no sentido de que a condenação pela prática de um crime de violência doméstica determina automaticamente o indeferimento do pedido de renovação do cartão profissional de segurança profissional;

- Conceder provimento ao recurso, determinando a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade.



II - FUNDAMENTAÇÃO
Quanto à matéria de facto, remete-se para os termos em que foi decidida em 1ª instância, dado que a mesma não foi impugnada [art. 713º n.º 6, do CPC de 1961, ex vi art. 140º, do CPTA].
*
Presente a factualidade dada como assente, cumpre dar cumprimento ao acórdão de 11.11.2014 do Tribunal Constitucional.

O TAF de Castelo Branco, por decisão de 31 de Maio de 2012, decidiu julgar improcedente o pedido de invalidação do despacho do Director Nacional da Polícia de Segurança Pública, proferido em 21.2.2011 – o qual indeferiu o pedido formulado pelo autor, ora recorrente, de renovação do cartão profissional para o exercício de funções de vigilante privado, por não reunir os requisitos previstos na al. d) do n.º 1 do art. 8º, do DL 35/2004, de 21/2, em virtude do averbamento da prática de um crime previsto e punido pelo art. 152º n.º 1, do Cód. Penal (maus tratos do cônjuge), conforme sentença transitada em julgado em 2.4.2009 -, por considerar que o art. 8º n.ºs 1, al. d), e 2, do DL 35/2004, de 21/11, não viola o art. 30º n.º 4, da CRP.

O autor, ora recorrente, inconformado, interpôs recurso jurisdicional para este TCA, no qual a questão suscitada resume-se, em suma, em determinar se essa decisão de 31 de Maio de 2012 enferma de erro ao ter considerado que o art. 8º n.ºs 1, al. d), e 2, do DL 35/2004, de 21/11, não viola a Constituição, concretamente o respectivo art. 30º n.º 4 (cfr. alegações de recurso e respectivas conclusões, supra transcritas).

Por acórdão de 5.12.2013 deste TCA foi concedido provimento ao recurso interposto, sendo recusada a aplicação do disposto na al. d) do n.º 1 do art. 8º, do DL 35/2004, de 21/2, por violação do n.º 4 do art. 30º, da Constituição, com base designadamente na seguinte fundamentação:

«Compulsando a matéria de facto assente extrai-se que tendo sido apresentado pedido de renovação do cartão profissional para o exercício de funções de vigilante privado, veio o mesmo a ser indeferido, com base no fundamento único da inscrição no registo criminal do requerente da condenação na pena de vinte meses de prisão, suspensa pelo mesmo período, pela prática do crime de violência doméstica, por sentença que transitou em julgado em 02/04/2009.

Como resulta da fundamentação que subjaz ao ato impugnado, o pedido de renovação do cartão profissional foi indeferido tendo por base, exclusivamente, o facto de o seu titular ter sido condenado pela prática de um crime, surgindo assim, como efeito automático de tal condenação penal.

(…)

O Recorrente foi condenado, por sentença transitada em julgado, em 02/04/2009, pela prática de um crime de maus tratos do cônjuge ou análogo, previsto e punido pela al. a), do n.º 1, do art.º 152.º do Código Penal, cuja moldura penal vai de um a cinco anos de prisão, na pena de 20 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

Por decisão judicial datada de 09/06/2011, foi declarada extinta a referida pena nos termos do n.º 1, do art.º 57.º do Código Penal e determinada a remessa de boletins ao registo criminal, para efeitos do disposto na alínea a), do n.º 1, do art.º 5.º da Lei n.º 57/98, de 18/08, conforme fls. 141 e 142 dos autos.

Pelo que, como se assinala no parecer do Ministério Público, à data da prolação do ato impugnado, em 21/02/2011, a pena de prisão em questão já se encontrava extinta, não obstante à data de emissão do registo criminal, em 2010, ainda não constasse a extinção da pena.

O que está em causa é saber se o indeferimento automático do pedido de renovação do cartão profissional para o exercício profissional de vigilante por mero efeito da aplicação de uma pena resultante de condenação judicial, viola o disposto no n.º 4, do art.º 30.º da Constituição e, consequentemente, se incorre a sentença recorrida em erro de julgamento ao julgar a acção improcedente.

Questão idêntica já foi submetida ao Tribunal Constitucional, conforme refere o Recorrente na sua alegação de recurso, pelo que, seguir-se-á a sua doutrina quanto à interpretação a dar ao disposto no n.º 4 do art.º 30.º da Constituição, num caso de revogação da licença de um guarda-nocturno, baseada em condenação penal pela prática de crime doloso.

(…)

Consideramos que vale para o caso trazido a juízo a doutrina do citado Acórdão do Tribunal Constitucional, já que também neste caso o requerente viu automaticamente indeferido o seu pedido de renovação do cartão profissional de vigilante, por mero efeito da condenação penal (pela prática de um crime de maus tratos do cônjuge ou análogo, previsto e punido pelo art.º 152.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de vinte meses de prisão, suspensa na sua execução), cuja extinção já havia ocorrido à data da prática do ato administrativo impugnado.

O ato impugnado, sem apreciar o pedido apresentado à luz dos demais requisitos previstos, indeferiu a pretensão requerida unicamente baseada no averbamento da prática de um crime, o que constitui uma violação do disposto no n.º 4, do art.º 30.º da Constituição.

Assim, a norma da alínea b), do art.º 8.º do DL n.º 35/2004, de 21/02, conjugada com o disposto no n.º 3 do art.º 10.º, quando interpretada no sentido de que a condenação pela prática de crime determina automaticamente a falta desse requisito e, em consequência, o indeferimento do pedido de renovação do cartão profissional de segurança privado, consagra uma solução proibida pelo n.º 4, do art.º 30.º da Constituição, em conjugação com o princípio da proporcionalidade, pelo que, enferma de inconstitucionalidade.

Pelo exposto, acolhendo a doutrina do Tribunal Constitucional, será de conceder provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida por erro de julgamento de direito, recusando-se a aplicação do disposto na alínea d), do art.º 8.º do DL n.º 35/2004, de 21/02, por inconstitucionalidade, decorrente da violação do n.º 4 do art. 30.º da Constituição e, em consequência, revoga-se o ato impugnado, de indeferimento do pedido de renovação do cartão profissional de segurança privado.

(…)».

Na sequência da interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, foi por este proferido acórdão (n.º 748/2014), em 11.11.2014, no qual foi decidido nomeadamente não julgar inconstitucional a norma constante do art. 8º n.º 1, al. d), conjugada com o n.º 3 do art. 10º, do DL 35/2004, de 21/2, quando interpretada no sentido de que a condenação pela prática de um crime de violência doméstica determina automaticamente o indeferimento do pedido de renovação do cartão profissional de segurança privado.

Para o efeito escreveu-se nesse acórdão de 11.11.2014 o seguinte:

4. O objeto do presente recurso é integrado pela norma constante do artigo 8.º, n.º 1, alínea d), conjugada com o n.º 3 do artigo 10.º, do Decreto-Lei n.º 35/2004, de 21 de fevereiro, na parte em que nela se prevê que a condenação pela prática dos crimes aí elencados determina automaticamente o indeferimento do pedido de renovação do cartão profissional de segurança privado. A norma em causa tem a seguinte redacção

«(...)


Artigo 8.º

Requisitos e incompatibilidades para o exercício da atividade de segurança privado


1. Os administradores ou gerentes de sociedades que exerçam a atividade de segurança privado devem preencher permanente e cumulativamente os seguintes requisitos:

(...)

d) Não ter sido condenado por sentença transitada em julgado pela prática de crime doloso contra a vida, a integridade física ou a reserva da vida privada, contra o património, de falsificação, contra a segurança das telecomunicações, contra a ordem e tranquilidade públicas, de resistência ou desobediência à autoridade pública, de detenção ilegal de armas, ou por qualquer outro crime doloso punível com pena de prisão superior a três anos, sem prejuízo de reabilitação judicial;

(...)

2. O responsável pelos serviços de autoproteção e o pessoal de vigilância devem preencher permanente e cumulativamente os requisitos previstos nas alíneas a) a d), f) e g), do número anterior.

(...).


Artigo 10.º

Cartão profissional


1. – Para o exercício das suas funções, o pessoal de vigilância deve ser titular de cartão profissional emitido pela Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna, válido por cinco anos e suscetível de renovação por iguais períodos de tempo.

(…)

3. – A renovação do cartão profissional implica (…) a comprovação do requisito previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 8.º.

(…)».

Com pertinência para os presentes autos, esclarece o n.º 5 do artigo 8.º do mesmo diploma legal (o itálico é nosso):

«(...)

5. São requisitos específicos de admissão e permanência na profissão do pessoal de vigilância:

a) Possuir a robustez física e o perfil psicológico necessários para o exercício das suas funções, comprovados por ficha de aptidão, acompanhada de exame psicológico obrigatório, emitida por médico do Trabalho, nos termos da legislação em vigor, ou comprovados por ficha de aptidão ou exame equivalente efetuado noutro Estado-membro da União Europeia.

b) Ter frequentado, com aproveitamento, cursos de formação nos termos estabelecidos no artigo 9.º, ou cursos idênticos ministrados noutro Estado-membro da União Europeia.

(...)»

A aplicação da norma em crise foi rejeitada, pelo tribunal recorrido, com fundamento no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição, preceito que contém uma estatuição com enorme respaldo na jurisprudência deste Tribunal – o princípio da proibição de penas automáticas. Ora, tal proibição, como é consabido, pretende impedir que haja um efeito automático de condenação penal nos direitos civis, profissionais e políticos do arguido. A sua justificação é simultaneamente a de obviar ao efeito estigmatizante e criminógeno das penas e de impedir a violação dos princípios da culpa e da proporcionalidade, que impõem uma ponderação, em concreto, da adequação do efeito em causa à gravidade do ilícito, afastando a possibilidade de penas fixas (cfr. o acórdão n.º 461/2000, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).

Como se lê, em sentido semelhante, no acórdão n.º 284/89 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt):

«(...)

Com tal preceito pretendeu-se proibir que, em resultado de quaisquer condenações penais, se produzissem automaticamente, pura e simplesmente, ope legis, efeitos que envolvessem a perda de direitos civis, profissionais e políticos e pretendeu-se que assim fosse porque, em qualquer caso, essa produção de efeitos, meramente mecanicista, não atenderia afinal aos princípios da culpa, da necessidade e da jurisdicionalidade.

(...)»

A aplicação que deste princípio vem fazendo a jurisprudência constitucional revela algumas concretizações importantes e relevantes para o juízo a emitir nos presentes autos, quer no que toca ao conceito constitucional de “perda de direitos civis, profissionais ou políticos”, quer na densificação do que deve entender-se por “efeitos necessários” das penas.

4.1. Destaca-se, em primeiro lugar, a recondução das situações de demissão, baixa de posto, não promoção, suspensão, cancelamento de inscrição, revogação de licença, e não renovação de licença para o exercício de uma determinada atividade ao conceito de “perda de direitos civis, profissionais ou políticos” constante do n.º 4 do artigo 30.º, da Constituição (cfr. os acórdãos n.ºs 91/84, 255/87, 562/2003, 154/2004 e 25/2011, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).

Ou seja, o fato de em causa estar uma atividade profissional remunerada cujo exercício está dependente da atribuição de uma licença não obsta a que à mesma se aplique a proibição de perda automática de direitos profissionais, visto que esta não se restringe à perda de direitos no contexto de uma determinada carreira profissional, mas abrange, também, os direitos de escolha e de exercício da profissão, assegurados pelo artigo 47.º da Constituição (cfr., neste sentido, o acórdão n.º 25/2011, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). E isto, sublinhe-se, independentemente da questão de saber se, em geral, tal condicionamento administrativo pode ser considerado uma verdadeira restrição ao exercício de profissão, para efeitos de subordinação aos requisitos inscritos no artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição (cfr. o acórdão n.º 154/2004, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).

4.2. Por outro lado, a jurisprudência constitucional vem aceitando a assimilação, proposta por alguma doutrina, entre a proibição dos “efeitos necessários das penas” e a proibição dos “efeitos automáticos ligados à condenação pela prática de certos crimes” (cfr. os acórdãos n.ºs 202/2000 e 154/2004, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt., Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed. revista, 2007, p. 505, e Pedro Caeiro, “Qualificação da sanção de inibição da faculdade de conduzir prevista no artigo 61.º, n.º 2, alínea d), do Código da Estrada”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 1993, p. 565).

Posto isto, um ponto importante na delimitação das situações constitucionalmente vedadas à luz do parâmetro em causa é saber se a fixação de sanções acessórias ou a previsão de certo tipo de efeitos opera mecanicamente, não se conferindo ao juiz do processo ou à entidade administrativa competente para o licenciamento de uma atividade o poder de, em concreto, valorar a relação, estabelecida pelo legislador, entre tais efeitos ou sanções, por um lado, e o desvalor da conduta que as motiva, por outro.

No acórdão n.º 25/2011 (já mencionado), em que o Tribunal foi chamado a apreciar a validade constitucional da norma constante dos artigos 9.º, n.º 1, alínea e), e 25.º do Regulamento Municipal do Licenciamento do Exercício e da Fiscalização da atividade de guarda-noturno, quando interpretada no sentido de que a condenação pela prática de crime doloso determina automaticamente a revogação da licença para o exercício dessa atividade, concluiu-se que (o itálico é nosso):

«(...)

A revogação da licença (...) é um efeito imposto por norma regulamentar, que não deixa qualquer margem de apreciação à entidade administrativa para poder avaliar as circunstâncias do caso concreto e emitir um juízo sobre a idoneidade daquela condenação para fundamentar tal não renovação. Uma vez documentada a condenação por crime doloso e o respetivo trânsito em julgado, nada mais resta à entidade administrativa a não ser determinar a revogação da licença em cumprimento das citadas normas regulamentares.

(...)»

Por sua vez, no acórdão n.º 154/04 (já mencionado), estavam em causa as condições de acesso e de exercício da profissão de motorista de táxi, concretamente a norma que considerava não idóneo para esse exercício aquele que houvesse sido condenado em pena de prisão efetiva igual ou superior a três anos. Avançou o Tribunal, em tal caso, que (o itálico é nosso):

«(...)

A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem vindo a eleger como critério para a aplicação desta norma constitucional [o artigo 30.º, n.º 4] a possibilidade de existência, segundo a previsão legal, de juízos de valoração ou ponderação que podem vir a afastar a automaticidade dos efeitos das penas.

(...)

Não se vê, pois, no caso em análise, onde possa estar a “valoração de uma pena” como requisito para a emissão de certificado de aptidão profissional: não existe previsão de qualquer decisão, sequer administrativa, de apreciação da idoneidade do candidato, funcionando a norma do artigo 4.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 263/98, de 19 de agosto, como um efeito automático de uma pena de prisão efetiva igual ou superior a três anos anteriormente aplicada.

(...)»

Todavia, não são de todo incomuns casos em que o Tribunal Constitucional, seja por perscrutar a não automaticidade do efeito produzido, seja por detetar uma conexão suficientemente relevante entre o crime praticado e a atividade sob licenciamento, proferiu juízo no sentido da não inconstitucionalidade de certos normativos, considerando não haver aí violação do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição (cfr., sem prejuízo do que se dirá infra, os acórdãos n.ºs 363/91 e 522/95, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).

Por exemplo, apreciando a validade constitucional da norma constante do artigo 21.º, n.º 5, da Lei n.º 173/99, de 21 de setembro, que determina a caducidade da carta de caçador sempre que os respetivos titulares sejam condenados por crime de caça, o Tribunal Constitucional justificou o juízo de não inconstitucionalidade invocando os seguintes argumentos:

«(...)

A prática de um crime de caça, independentemente da sua gravidade para efeitos da determinação da respetiva pena, ilide, por si só, a presunção de que se mantêm as condições de passagem da carta, ou seja, de que o agente detém os conhecimentos, a aptidão e a adequação comportamental necessárias ao exercício da caça.

(...)

A circunstância de se tratar de uma infração criminal é suficientemente grave para justificar, na perspetiva do legislador, a reapreciação da situação do agente enquanto titular da carta de caçador, uma vez que tal atividade só pode ser exercida por sujeitos que demonstrem uma específica formação e aptidão, por estar em causa a proteção de valores ambientais com dignidade constitucional.

(...)»

De forma igualmente impressiva, nos acórdãos n.ºs 291/95, 53/97, 149/2001 e 79/09 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), o Tribunal concluiu pela não inconstitucionalidade do artigo 4.º, do Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de abril, na parte em que aí se estatui que à condenação pelo crime de condução sob o efeito de álcool acresce sempre sanção acessória de inibição da faculdade de conduzir. Como se lê no segundo dos arestos mencionados (o itálico é nosso):

«(...)

A circunstância de ter sempre de ser aplicada essa medida [sanção de inibição da faculdade de conduzir] ainda que pelo mínimo da medida legal da pena, desde que seja aplicada a pena principal de prisão ou multa, não implica, ainda assim, neste caso, colisão com a proibição de automaticidade. A adequação da inibição de conduzir a este tipo de ilícitos revela que a medida de inibição de conduzir se configura como uma parte de uma pena compósita, como se de uma pena principal associada à pena de prisão se tratasse, em relação à qual valem os mesmos critérios de graduação previstos para esta última.

Com efeito, a aplicação da inibição de conduzir fundamenta-se, tal como a aplicação da pena de prisão ou multa, na prova da prática do facto típico e ilícito e da respetiva culpa, sem necessidade de se provarem quaisquer factos adicionais.

Atenta a natureza da infração, com a inerente perigosidade decorrente dessa conduta, surge como adequada e proporcional a sanção de inibição de conduzir.

(...)»

O mesmo é dizer, portanto, que, no entender do Tribunal, o artigo 30.º, n.º 4, da Constituição não exclui prontamente previsões sancionatórias rígidas, desde que tais previsões surjam como “razoavelmente proporcionadas” relativamente a todo e qualquer comportamento reconduzível ao tipo legal de crime em causa (cfr., neste sentido, o acórdão n.º 202/2000, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).

5. Seguindo o lastro jurisprudencial sobre o tema, que vem clarificando o sentido da proibição constitucional vertida no n.º 4 do artigo 30.º, da Constituição, não se acompanha o juízo proferido pelo TCAS no sentido da inconstitucionalidade do artigo 8.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 35/2004, de 21 de fevereiro. Vejamos.

5.1. Não restam dúvidas de que a não renovação do cartão profissional de segurança privado é reconduzível a uma situação de perda de direitos profissionais, para efeitos do disposto no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição. Essa não renovação configura-se como um efeito automático da condenação por um dos crimes elencados no preceito em crise, decorrendo mecanicamente desta. O mesmo é dizer que a entidade administrativa competente para decidir da renovação não goza, nesta matéria, de qualquer margem de apreciação no sentido de poder apurar, casuisticamente, da existência de uma conexão entre a condenação na prática de um determinado crime e a perda do direito profissional em causa.

Embora necessária, a falta deste poder casuístico de valoração não é condição suficiente para apurar inequivocamente da inconstitucionalidade do preceito. Determinante é, ainda, que não seja possível antecipar uma ligação abstratamente forte entre o crime praticado e a atividade sob licenciamento, isto é, uma conexão apta a justificar a proporcionalidade do caráter “automático” ou “rígido” do efeito.

5.2. Ora, sendo certo que a solução perspetivada pelo legislador acaba por retirar da prática de um qualquer crime doloso cuja moldura penal abstrata seja superior a três anos de prisão, uma conclusão sobre a inaptidão da pessoa para o desempenho da atividade de segurança privada, só o faz após ter previsto na primeira parte da norma a prática de um crime contra a integridade física, como incompatível com o exercício profissional em causa.

Sendo assim, na presente hipótese, existe uma ligação suficientemente forte entre o tipo legal de crime efetivamente preenchido e o tipo de atividade profissional cuja inibição se pretende induzir através da norma sob escrutínio. Basta pensar na importância e no risco que, num Estado de Direito, inerem à atividade de segurança privada, tendo em conta – sobretudo - os meios técnicos de que, sob certo condicionamento, esta pode beneficiar (cfr. os artigos 13.º, 14.º e 15.º, do Decreto-Lei n.º 35/2004, de 21 de fevereiro).

Acresce que a restrição não perdura indefinidamente, porquanto, como resulta da parte final da al. d) do n.º 1 do artigo 8.º, do Decreto-Lei n.º 35/2004, de 21 de fevereiro, sempre o regime aí previsto não prejudica a hipótese de reabilitação judicial, na medida em que aí se afirma expressamente «…, sem prejuízo da reabilitação judicial».

A conexão enunciada afasta, portanto, a existência de uma desproporção manifesta entre “a via que foi escolhida para a realização do interesse público e a medida de realização desse mesmo interesse (cfr. Maria Lúcia Amaral, A forma da República, reimpressão da 1.ª ed., Coimbra Editora, 2012, p. 189), obstando à violação do princípio da proibição do excesso e, por conseguinte, do direito, liberdade e garantia vertido no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição.

6. Neste sentido, e atendendo especificamente ao crime por cuja prática o recorrente foi condenado, conclui-se que a norma constante do artigo 8.º, n.º 1, alínea d) e artigo 10.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 35/2004, de 21 de fevereiro, não viola o princípio da não automaticidade das penas, consagrado no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição.

(…)” (sublinhados nossos).

Neste acórdão do Tribunal Constitucional também se determinou a reformulação da decisão recorrida (acórdão deste TCA de 5.12.2013) em conformidade com o juízo de não inconstitucionalidade dele constante, o que cumpre efectuar.

Ora, tendo em conta que a única questão suscitada no presente recurso jurisdicional se resume em determinar se a decisão do TAF de Castelo Branco, de 31 de Maio de 2012, enferma de erro ao ter considerado que o art. 8º n.ºs 1, al. d), e 2, do DL 35/2004, de 21/11, não viola a Constituição, concretamente o respectivo art. 30º n.º 4 – erro que não se verifica, face ao juízo de conformidade constitucional constante do acórdão do Tribunal Constitucional acima transcrito -, cumpre negar provimento ao presente recurso jurisdicional.


*
Uma vez que o recorrente ficou vencido no presente recurso jurisdicional deverá suportar as custas (art. 527 n.ºs 1 e 2, do CPC de 2013, ex vi art. 1º, do CPTA).

III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em:

I – Negar provimento ao presente recurso jurisdicional, e, em consequência, confirmar a decisão recorrida de 31 de Maio de 2012, com os fundamentos acima expressos.

II – Condenar o recorrente nas custas relativas ao presente recurso jurisdicional.
III – Registe e notifique.

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Lisboa, 15 de Janeiro de 2015

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(Catarina Jarmela - relatora)

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(Cristina dos Santos)

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(António Vasconcelos)