Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:04272/10
Secção:CT - 2.º JUÍZO
Data do Acordão:05/17/2011
Relator:EUGÉNIO SEQUEIRA
Descritores:IMPUGNAÇÃO JUDICIAL. IRS.
AJUDAS DE CUSTO. FUNDAMENTAÇÃO.
Sumário:Doutrina que dimana da decisão:
1. As ajudas de custo representem uma compensação ou reembolso pelas despesas a que o trabalhador foi obrigado na sequência de deslocações ocasionais e gastos que teve de efectuar ao serviço da sua entidade patronal, inexistindo na sua percepção qualquer correspectividade em relação ao trabalho;
2. Cabe à AT, enquanto fundamentação formal do acto de liquidação, a invocação do preenchimento dos concretos pressupostos legais de que depende o seu direito à liquidação, com elementos claros, suficientes e congruentes, para que possa desconsiderar os elementos declarados pelo sujeito passivo na respectiva declaração de rendimentos, por forma a suportarem o mesmo;
3. Não se encontra devidamente fundamentada a exposição dos factos apresentada pela AT, onde nem sequer individualiza os relativos a esse concreto sujeito passivo, de molde a neles poder estear uma liquidação.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário (2.ª Secção) do Tribunal Central Administrativo Sul:


A. O Relatório.
1. O Exmo Representante da Fazenda Pública (RFP), dizendo-se inconformado com a sentença proferida pela M. Juiz do Tribunal Administrativo de Sintra, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por A..., veio da mesma recorrer para este Tribunal formulando para tanto nas suas alegações as seguintes conclusões e que na íntegra se reproduzem:


I - Como decorre do teor do relatório da inspecção e ainda da alínea f) da matéria de facto considerada provada pela douta sentença, entende a Fazenda Pública que deveria considerar-se provado ainda, por tal ser relevante para apreciação jurídica da situação sub judice, que: "O impugnante recebeu no decurso do ano de 1997 o montante de 1.623.619$00, pago pela sociedade B...- Empresa Portuguesa de Obras Públicas, Lda."
II - E que: "O referido montante foi omitido pelo impugnante da sua declaração de rendimentos para efeitos de IRS."
III - Por outro lado, não ficou provado que: "O montante de 1.623.619$00, omitido pelo impugnante na sua declaração de rendimentos, respeita a ajudas de custo."
IV - No entender da Fazenda Pública a douta sentença padece de erro de julgamento em matéria de direito. Porquanto,
V - As ajudas de custo visam compensar o trabalhador por despesas efectuadas ao serviço e em favor da entidade patronal e que, por razoes de conveniência, foram suportadas por aquele, não tendo carácter remuneratório.
VI - Ora, a Administração Tributária, como consta do relatório que serve de fundamento à liquidação impugnada, entendeu individualizando a situação concreta que o montante de 1.623.619$00 recebido pelo impugnante da sua entidade patronal B...- Empresa Portuguesa de Obras Públicas, Lda, não obstante a qualificação dada por esta de forma a excluí-lo de tributação, na realidade se refere a complementos de vencimento enquadráveis na categoria A, nos termos do n.º 2 do art.º 2 do CIRS, porquanto relativamente aos locais em causa não se justificava aquele pagamento atendendo às condições, especificando quais, disponibilizadas pela entidade patronal.
VII - Sendo certo que, nos termos do artigo 82º n.º 3 do DL n.º 49.408, de 24/11/69 (LCT), "Até prova em contrário, presume-se constituir retribuição toda e qualquer prestação da entidade patronal do trabalhador."
VIII- E não obstante não serem considerados remuneração os montantes pagos como ajudas de custo, estabelece o art. 87° do LCT que terão carácter retribuitivo os abonos que excedam as despesas normais.
IX - Em consonância com este regime, estabelece o art. 2º do CIRS que incide imposto sobre qualquer tipo de rendimentos de trabalho, excluindo as ajudas de custo que não excedam os limites legais.
X - Deste modo, para ficar afastada a incidência do imposto sobra aquele montante, seria necessário que, o mesmo, não só fosse "qualificado" como ajudas de custo pela entidade patronal, como também que preenchesse os requisitos legais indispensáveis a ser considerado como ajuda de custo, de molde a sair do campo de incidência previsto no art. 2º do CIRS.
XI - Prova essa que, nos termos do artigo 74° da LGT, incumbiria ao impugnante, ao qual a fundamentação do acto deu a conhecer as razões que lhe permitiam reagir contra o mesmo, caso com ele não se conformasse.
XII - Uma vez que a inspecção tributária indicou que o montante omitido correspondia efectivamente a remuneração, em virtude de, no que concerne aos locais relativamente aos quais foram efectuados pagamentos pela entidade patronal, esta criou "refeitórios e dormitórios", bem como suportou os encargos com "compra de comida, bebidas, lençóis, camas, higiene e limpeza", como também "o aluguer de apartamento, sua manutenção e pagamento de refeições a pessoal mais especializado".
XIII - Devendo concluir-se, contrariamente ao decidido pela douta sentença recorrida, que a fundamentação do acto é clara, pois permite que se apreendam com precisão os factos e o direito com base nos quais se decidiu, é suficiente, pois possibilita ao seu destinatário um conhecimento concreto da motivação do acto, isto é, as razões de facto e de direito que determinaram a Administração Tributária a actuar como actuou, e é congruente, pois constitui a conclusão lógica e necessária dos motivos invocados como sua justificação.
XIV - Assim encontra-se detalhadamente demonstrado o iter valorativo e cognoscitivo que levou a Administração Fiscal a decidir da forma como decidiu, não podendo deixar de se considerar que se encontra a decisão fundamentada.
XV - Questão diversa, seria o impugnante não concordar com as correcções preconizadas, provando que recebeu essas ajudas de custo por despesas efectivamente efectuadas no interesse da empresa e não a título remuneratório.
XVI - A sentença recorrida, ao assim não entender, apresenta-se ilegal por desconformidade com os preceitos acima assinalados, não merecendo por isso ser confirmada.

Termos em que, com o mui douto suprimento de V. Exas., deverá ser considerado procedente o recurso e revogada a douta sentença recorrida, como é de Direito e Justiça.


Foi admitido o recurso para subir imediatamente, nos próprios autos e no efeito meramente devolutivo.


Também o recorrido veio a apresentar as suas alegações e nestas as respectivas conclusões, as quais igualmente na íntegra se reproduzem:


1) O Recurso interposto pelo ilustre Representante da Fazenda Pública junto do Tribunal "a quo" deve ser rejeitado, uma vez que o RECORRENTE não indicou quais os pontos concretos de facto que considera incorrectamente julgados, em violação do disposto no n.º 2, do Art. 685.º-A CPC;
2) Isto porque nas suas conclusões, e com o merecido respeito, o RECORRENTE alheia-se por momentos dos fundamentos da Decisão recorrida, resultando ser absolutamente impossível extrair das conclusões formuladas qualquer juízo de censura à Sentença recorrida, conducente à sua anulação ou revogação.
3) Por outro lado, e em face da argumentação expendida no recurso pelo RECORRENTE, cumpre dizer que em momento algum - seja em sede de processo gracioso ou em sede de Impugnação -, a Administração Fiscal justificou fundamentadamente as correcções efectuadas ao ora RECORRIDO,
4) Não tendo sequer apresentado qualquer prova efectiva da inexistência das deslocações ou da alegada existência de pagamentos de despesas realizadas pelos trabalhadores deslocados, em especial, no caso concreto do ora RECORRIDO,
5) Não tendo feito prova de que o RECORRIDO tenha almoçado, jantado e pernoitado em refeitórios e/ou dormitórios existentes nas obras da sua Entidade Empregadora no ano de 1997;
6) Sendo certo que era à Administração Fiscal a quem incumbia fazer essa prova, posto que alterou o rendimento declarado pelo RECORRIDO em sede de IRS, no ano de 1997, conforme expressamente é exigido no Art.º 55°, no n.º1, do Art.º 74° e no n.º1, do Art.º 75°, todos da Lei Geral Tributária;
7) O que, não obstante, não a impediu de concluir, tal como agora se conclui em sede recurso, sem ter uma base de facto concreta e suficiente, bem como, séria e credível, de que os valores recebidos pelo RECORRIDO da sua Entidade Empregadora constituíam um complemento de vencimento, não tendo carácter compensatório, violando o dever funcional de instrução que lhe assiste em sede de procedimento tributário;
8) Ao invés, impôs, tal como agora em sede de recurso se impõe, que seja o RECORRIDO a fazer essa prova, imputando-lhe a obrigação de provar que suportou gastos com refeições e estadias, desconsiderando que foi ele que viu a sua situação jurídico-tributária injustificadamente alterada, como se se tratassem de factos constitutivos do seu direito!
9) Também o facto novo de as importâncias atribuídas a título de ajudas de custo revestirem carácter de regularidade e continuidade, nunca foi invocado em primeira instância, não implicando o mesmo que os valores pagos pela Entidade Empregadora tenham deixado de constituir uma compensação por despesas suportadas pelo trabalhador em favor da entidade patronal e que tenham passado a ser um correspectivo da sua prestação de trabalho;
10) Por outro lado, sendo inequívoco que a Administração Fiscal nunca demonstrou a falta de verificação dos pressupostos para a atribuição de quaisquer montantes a título de ajudas de custo ao RECORRIDO (como lhe incumbia para poder alterar o rendimento declarado do IMPUGNANTE), não pode agora o RECORRENTE pretender, sem mais, que ela configure um rendimento de trabalho dependente, tributável em IRS.
11) Caso assim não venha a ser entendido pelo Tribunal ad quem, e considerando que da douta Sentença recorrida resulta expressamente que o Tribunal a quo prejudicou o conhecimento de outras questões invocadas pelo RECORRIDO na p.i., as mesmas venham a ser apreciadas e julgadas.
12) Requer-se, mui respeitosamente e para os devidos efeitos legais, nos termos do disposto no n.º 3, do Art.º 684-A, do CPC que, caso o Tribunal ad quem não possua elementos para apreciar tais questões, mande baixar os autos à primeira instância para que nesta se proceda ao seu julgamento.

NESTES TERMOS E NOS MAIS DO DIREITO APLICÁVEL E SEMPRE COM O MUI DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS, ILUSTRES DESEMBARGADORES, DEVE O RECURSO INTERPOSTO PELO ILUSTRE REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA NÃO MERECER PROVIMENTO, COM AS NECESSÁRIAS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS.
Desta forma, será feita a esperada JUSTIÇA!


O Exmo Representante do Ministério Público (RMP), junto deste Tribunal, no seu parecer, pronuncia-se por ser negado provimento ao recurso, por a sentença recorrida não ser passível da apontada censura formulada pela recorrente, não se encontrando fundamentada as invocadas quantias consideradas pela AT como de ajudas de custo, sendo certo que cabia à ora recorrente o ónus da prova de que tais quantias haviam sido a tal título atribuídas ao ora recorrido.


Foram colhidos os vistos dos Exmos Adjuntos.


B. A fundamentação.
2. A questão decidenda. A única questão a decidir consiste em saber se o acto de liquidação de IRS se encontra fundamentado do ponto de vista formal, não sendo de conhecer de quaisquer outras questões, por prejudicadas, ao responder-se negativamente.


3. A matéria de facto.
Em sede de probatório a M. Juiz do tribunal “a quo” fixou a seguinte factualidade, a qual igualmente na íntegra se reproduz:
a) O ora Impugnante, A..., desempenhou funções na empresa B...­Empresa Portuguesa de Obras Públicas, Lda, no ano de 1997 - Cfr. artigo 1º da petição inicial e informação a fls. 25.
b) Em 27/07/2001, foi elaborada Informação por funcionária da 1ª Direcção de Finanças de Lisboa, relativa ao Impugnante A..., da qual se destaca o seguinte:
(...)
INFORMAÇÃO
Sujeito Passivo: A...
(...)
Através da acção de fiscalização efectuada à contabilidade do sujeito passivo B...- EMPRESA PORTUGUESA DE OBRAS PÚBLICAS, LDA., com o NIPC 501 697 928, aos exercícios de 1996 e 1997, verificou-se que esta procedia ao pagamento a diversos trabalhadores de determinadas importâncias a título de "Ajudas de Custo" e "Subsídios de Alimentação".
Contudo, apurou-se que tais valores eram, na realidade, complementos de vencimento enquadráveis na categoria A, nos termos do n° 2 do artº do CIRS, porque em todos os locais foram criados refeitórios, dormitórios e pagos todos os custos para a manutenção dos mesmos (compra de comida, bebidas, lençóis, camas, higiene e limpeza), como também o aluguer de apartamentos, sua manutenção e pagamento de refeições a pessoal mais especializado.
Nestes termos, em face dos dados disponíveis neste serviço, constatou-se que o sujeito passivo A..., NIF 208 685 812, omitiu aos rendimentos declarados dos anos de 1996 e 1997, os valores de 1.318.037$00 e 1.623.619$00 respectivamente, tendo o contribuinte sido notificado em 24/05/2001 para exercer o direito de audição previsto no art. 60° da L.G.T. (...)"- Cfr. documento a fls. 31 do PAT apenso aos autos, o qual se dá, aqui, por integralmente reproduzido;
c) Em 05/10/2001, na sequência das correcções efectuadas ao rendimento colectável decorrente da Informação referida na alínea antecedente, foi emitida a liquidação oficiosa n° 4323738685, relativa ao Impugnante, da qual resultou o valor a pagar de Esc. 489.910$00 - Cfr. documento a fls. 46 do PAT apenso aos autos;
d) Em 04/11/2001 o Impugnante deduziu Reclamação Graciosa relativa ao acto de liquidação referido na alínea antecedente - Cfr. carimbo aposto a fls. 3 do PAT, apenso aos autos;
e) Em 14/02/2002 foi proferido despacho, pelo Chefe da Repartição de Finanças de Sintra 4, indeferindo a reclamação graciosa referida em d), que antecede - Cfr. documento a fls.67 do PAT apenso aos autos;
f) Constam dos autos Boletins de Itinerário relativos aos meses de Janeiro a Dezembro de 1997, relativos ao Impugnante, nos quais constam discriminados o local da deslocação, a natureza e dia do serviço e o valor da ajuda de custo por dia - Cr. ­documentos a fls, 46 a 69;
h) Em 06/03/2002 deu entrada a presente Impugnação Judicial – Cfr. carimbo aposto no rosto da p.i, a fls, 1.

Nada mais se provou com interesse para a decisão da causa.


4. Para julgar procedente a impugnação judicial deduzida considerou a M. Juiz do Tribunal “a quo”, em síntese, que o acto de liquidação deve comungar dos demais requisitos dos actos administrativos em geral, no que ao dever de fundamentação concerne, devendo conter as razões por que se decidiu em certo sentido e não em um outro, o que no caso a AT não deu cumprimento, desde logo por não ter procedido a uma análise pormenorizada de cada um dos trabalhadores a quem foram atribuídas as importâncias em causa, tendo-se limitado a utilizar fundamentação genérica, que nada pormenoriza, não permitindo reconstituir o itinerário cognoscível e valorativo para proceder à liquidação ora impugnada, citando um acórdão deste Tribunal que no mesmo sentido terá decidido, não tendo conhecido dos restantes três fundamentos da impugnação, por prejudicados.

Para a recorrente Fazenda Pública, de acordo com a matéria das conclusões das alegações do recurso e que delimitam o seu objecto, é contra esta (e outra) fundamentação que se vem a insurgir, por a AT ter individualizado a fundamentação na parte da liquidação do ora recorrido, a qual é clara, suficiente e congruente, permitindo apreender perfeitamente por que teve lugar aquela liquidação e não qualquer uma outra, pelo que a sentença recorrida que em contrário decidiu deve ser revogada.

Vejamos.
Que os actos tributários devam ser fundamentados não discordam, quer a recorrente, quer o recorrido, bem como a M. Juiz do Tribunal “a quo”, ainda que no caso, quanto à fundamentação existente no acto de liquidação impugnado, a unanimidade já não exista, em que a sentença recorrida e o ora recorrido, por um lado, defendem tal não fundamentação, ao passo que a recorrente, vem pugnar pela sua existência.

A exigência legal da fundamentação tem em vista colocar o administrado em condições de conhecer e compreender o "iter" cognoscitivo, valorativo e volitivo do respectivo autor e, consequentemente, de se poder determinar pela aceitação ou pela impugnação do acto.

É sabido que a administração tem o dever de fundamentar os actos administrativos em geral, de modo claro, suficiente e congruente - cfr. os artigos 268.º n.º3 da Constituição, 1.º do Dec.Lei n.º 256-A/77, de 17 de Junho, 124.º e 125.º do Código de Procedimento Administrativo - bem como os actos em matéria tributária que afectem os direitos e interesses dos contribuintes, especialmente daqueles que não pertençam ao tipo de actos "em série" ou "em massa", como hoje acontece, por força daquelas normas e das dos art.ºs 19.º alínea b), 21.º e 82.º do CPT, 77.º da LGT e 60.º do CPPT.

Esta obrigação não tem por objectivo único a "protecção por essa via dos direitos e interesses dos administrados mas inclui, em primeira linha, a garantia de um procedimento decisório correcto" - José Carlos Vieira de Andrade, O Dever da Fundamentação Expressa dos Actos Administrativos, pág. 43. Não se visa, pois, e apenas, que o particular fique ciente das razões por que a Administração decidiu de uma e não de outra maneira; quer-se, também, impor à Administração, por, esta via, uma necessária reflexão e ponderação explícitas das razões e argumentos em confronto, que a fundamentação do acto deve patentear, assim tornando transparente a actividade administrativa.
Daí que não baste dizer, em demonstração do cumprimento do dever de fundamentar, que o administrado reagiu contra o acto administrativo, revelando, com essa reacção, ter atingido o alcance e razões do acto. Por um lado, não é seguro que o administrado não tenha apenas "adivinhado" os fundamentos ocultos do acto administrativo, que dele mesmo, acto, devem transparecer. Por outro lado, o legislador quis que a administração não decidisse imponderadamente, obrigando-a a plasmar na fundamentação as razões da sua opção, de tal modo que a própria administração se aperceba, ao fundamentar, do bem ou mal fundado da sua escolha, a tempo de emendar a mão, se disso for caso, e que o acto se apresente transparente.
Isto para concluir que não é decisivo o argumento, aliás, frequente, de acordo com o qual só o facto de o acto ter sido contenciosamente recorrido, com a decorrente imputação de vícios, já demonstra que ele estava devidamente fundamentado.

A fundamentação consiste em deduzir a resolução tomada das premissas em que assenta, ou em exprimir os motivos por que se resolve de certa maneira e não de outra, in Marcello Caetano, "Manual de Direito Administrativo", Vol. I, pág. 477.

Numa fórmula abrangente será de considerar como fundamentação a exteriorização das razões de facto e de direito, que servem de suporte a uma decisão, esclarecedoras dos necessários e legais pressupostos e da motivação do agente.
Assim "o dever de fundamentação expressa apresenta-se como «um instituto» tendo como centro de referência uma declaração que reúne todas e quaisquer razões que o autor assuma como determinantes da decisão, sejam as que exprimam uma intenção de agir, demonstrando a ocorrência concreta dos pressupostos legais, sejam as que visam explicar o conteúdo escolhido a partir dessa adesão ao fim, manifestando a composição de interesses considerados para adoptar a medida adequada à satisfação do interesse público no caso", obra citada pág. 22.

Concretizando aquela noção de fundamentação diremos que a declaração em que se consubstancia há-de ser necessariamente justificante do acto que suporta, pela enunciação dos pressupostos possíveis e dos motivos coerentes e credíveis aptos à pertinência material do acto; isto é, as razões de facto e de direito invocadas hão-de traduzir-se num discurso que justifique, como possível e credível, o acto.

Nesta medida tal discurso há-de ser claro, congruente ou racional e suficiente por..."conter os elementos bastantes, capazes ou aptos a basear a decisão", ou por outras palavras, "os actos administrativos devem apresentar-se formalmente como disposições conclusivas lógicas de premissas correctamente desenvolvidas e permitir através da exposição sucinta dos factos e das regras jurídicas em que se fundam, que os seus destinatários concretos, pressupostos cidadãos diligentes e cumpridores da lei, façam a reconstituição do itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pela entidade decidente".

Esta, pois, a noção de fundamentação formal, imposta pelo nosso ordenamento jurídico, distinta da fundamentação substancial caracterizada pela exigência da existência dos pressupostos reais e dos motivos concretos aptos a suportarem uma decisão legítima de fundo (cfr. obra citada 231)(1).

A este respeito e finalmente cabe, apenas, referir a possibilidade da fundamentação por remissão, situação em que "quaisquer invocações de factos ou de avaliações só pertencem à fundamentação se forem assumidos pelo decisor ou se este para elas remeter, por força da lei, esses fundamentos são, como as respectivas documentações, «integrados» no acto" (cfr. obra citada, 228).
...

No caso, tendo em conta que a AT desconsiderou certo montante não declarado pelo sujeito passivo e ora recorrido, na respectiva declaração de rendimentos relativa a 1997, a título de vencimento ou remuneração, como apurou junto da sua entidade pagadora e a quem o trabalho fora prestado, que esta havia qualificado como de “ajudas de custo”, importa desde logo revisitar os respectivos conceitos, quer de “ajudas de custo”, quer de “retribuição”, para a partir deles aquilatar se a mesma preencheu os respectivos pressupostos legais que lhe permitiam desconsiderar tais montantes a tal título pagos e integrá-los neste último conceito – o de retribuição.

Ao tempo vigorava o Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho (RJCIT), aprovado pelo art.º 1.º do Dec-Lei n.º 49409, de 24-11-1969, definindo no seu art.º 82.º o conceito de retribuição, só se considera retribuição aquilo a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito como contrapartida do seu trabalho – seu n.º1 – estabelecendo no seu n.º3, uma presunção de retribuição – até prova em contrário, presume-se constituir retribuição toda e qualquer prestação da entidade patronal ao trabalhador – enquanto que as ajudas de custo e outros abonos, se encontram definidos na norma do seu art.º 87.º, pela negativa (relativamente à retribuição), nos seguintes termos:
Não se consideram retribuição as importâncias recebidas a título de ajudas de custo, abonos de viagem, despesas de transporte, abonos de instalação e outras equivalentes, devidas ao trabalhador por deslocações ou novas instalações, feitas em serviço da entidade patronal, salvo quando, sendo tais deslocações frequentes, essas importâncias, na parte que excedam as respectivas despesas normais, tenham sido previstas no contrato ou se devam considerar pelos usos como elemento integrante da remuneração do trabalhador.

Em suma, como tem sido comumente entendido(2), na generalidade da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, as ajudas de custo visam compensar o trabalhador por despesas efectuadas ao serviço da sua entidade patronal, em razão da sua deslocação do seu local habitual de trabalho para outro local e com carácter temporário, afastando, assim, qualquer correspectividade entre a sua percepção e a prestação de trabalho.

E também que, cabe à AT o dever de demonstrar os pressupostos legais (vinculativos) da sua actuação, designadamente se agressiva (positiva e desfavorável), impendendo ao invés, sobre o administrado apresentar prova bastante da ilegitimidade do acto, quando se mostrem verificados esses pressupostos, o que no entanto tem de ser temperado com o princípio da verdade material e, por consequência, com o da oficiosidade da investigação e indagação das provas, quer rege o procedimento tributário.

Desta conjugação resulta que o ónus da prova, nos termos antes referidos, não assume uma natureza formal ou adjectiva, mas antes substantiva ou material de que resulta que, apesar de nenhuma das partes ter uma particular incumbência de provar o que quer que seja, a decisão final não pode, no entanto e pela impossibilidade legal de manutenção de um “non liquet” deixar de desfavorecer a parte que se encontrava onerada com a prova dos necessários e relevantes factos.

Em suma, no caso, do ponto de vista da fundamentação formal, para tal acto de liquidação se encontrar devidamente fundamentado, teria de conter que tal importância atribuída ao ora recorrido, o não fora por algum dos motivos constantes na citada norma do art.º 87.º - despesas efectuadas ao serviço da sua entidade patronal a algum daqueles títulos e que o ora recorrido suportara, sem correspondência entre a sua percepção e a prestação do trabalho - que autorizavam a que a mesma pudesse ser subsumível a tal conceito, o que a fundamentação utilizada, no caso, está longe de esgotar, como se pode ver da referida na matéria da alínea b) do probatório fixado na sentença recorrida(3), já que a criação em todos os locais de refeitórios, de dormitórios e pagos todos os custos para a manutenção dos mesmos (compra de comida, bebidas, lençóis, camas, higiene e limpeza), como também o aluguer de apartamentos, sua manutenção e pagamento de refeições a pessoal mais especializado, não exclui outras possíveis situações de, legalmente, haver lugar a verdadeiras ajudas de custo, para além de, também, não ter sido analisado, concretamente, a situação do ora recorrido, tendo a AT se limitado a utilizar a fundamentação recolhida na empresa pagadora, sem especificar a situação concreta do mesmo ora recorrido, tanto mais que, em tal fundamentação, se faz referência a certa categoria de pessoal existente na empresa, onde nem sequer se refere que o mesmo nela se integrava ou dela se encontrava excluído, o mesmo sendo de dizer que tal acto de liquidação não se encontra fundamentado do ponto de vista formal, não dando a conhecer ao mesmo, de forma clara, congruente e suficiente, as razões da desconsideração de tal verba como de ajudas de custo, enfermando do correspondente vício pela sua falta (art.º 99.º do CPPT), o mesmo sendo de dizer que tal liquidação não se encontra esteado em fundamentos precisos, concretos e suficientes para estribar uma liquidação adicional de IRS, a qual assim não pode deixar de ser anulada, como foi, sendo de negar provimento ao recurso da sentença recorrida que também assim entendeu e decidiu.

Na verdade, nos termos do disposto no art.º 2.º, n.ºs 1 e 3 e alínea e) do CIRS, as importâncias pagas a título de ajudas de custo, não se encontram sujeitas a IRS até ao respectivo limite legal, o qual a AT, no caso, nem sequer invoca que tenha sido ultrapassado, pelo que tal liquidação assim delineada, não se pode, pois, manter.


Improcede assim, toda a matéria das conclusões das alegações do recurso, sendo de lhe negar provimento e de confirmar a sentença recorrida que no mesmo sentido decidiu, não sendo de conhecer de quaisquer outros fundamentos, por prejudicados – art.º 660.º, n.º2, ex vi do art.º 713.º, n.º2, ambos do CPC.


C. DECISÃO.
Nestes termos, acorda-se, em negar provimento ao recurso e em confirmar a decisão recorrida.


Sem custas, face à isenção de que então gozava a recorrente.


Lisboa,17/05/2011

EUGÉNIO SEQUEIRA
ANÍBAL FERRAZ
PEREIRA GAMEIRO





1- Cfr. em sentido semelhante o acórdão do STA de 25.9.1996, recurso n.º 20 396.
2- Cfr. neste sentido o acórdão deste TCAS proferido do recurso n.º 3863/10, e que igualmente teve por relator o do presente
3- E que reproduz a única que pela AT foi invocada para tal fim, como se pode ver de fls 31 do PAT apenso, inexistindo qualquer uma outra.