Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:07088/13
Secção:CT - 2.º JUÍZO
Data do Acordão:02/27/2014
Relator:BENJAMIM BARBOSA
Descritores:ARBITRAGEM TRIBUTÁRIA – PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO – COMPETÊNCIA DO TCA
Sumário:(i). O devido processo legal (due process of law), assenta, por força do art.º 20.º, n.º 1, da CRP, na procura da verdade material, no respeito pelos direitos fundamentais e na protecção da dinâmica social.
(ii). A verdade material não dispensa o contraditório, que inserido no feixe amplo da defesa concretiza verdadeiramente a exteriorização desta.
(iii). O princípio do contraditório tem especial importância no domínio do procedimento e processo tributário, pela natureza das obrigações que lhes subjazem e pela desproporção de meios e de poder que o contribuinte pode opor ao Estado, munido de um poder que claramente exprime a relação de força em que se baseia o seu ius imperii: o poder coercivo de lançar tributos e arrecadar as correspondentes receitas.
(iv). No direito português o princípio do contraditório no âmbito do direito tributário está especificamente consagrado no art.º 9.º, n.º 1, da LGT, que sob a epígrafe “acesso à justiça tributária” prescreve que “é garantido o acesso à justiça tributária para a tutela plena e efectiva de todos os direitos ou interesses legalmente protegidos”.
(v). O acesso à justiça tributária pressupõe um processo equitativo como é imposto pelo art.º 20.º, n.º 4, da CRP, necessariamente justo e em que as partes pleiteiem com igualdade de armas e em que os diferentes argumentos invocados devem ser objecto de contraditório antes de serem considerados.
(vi). O pedido e a causa de pedir possuem uma importância fundamental no sistema processual, fornecendo o primeiro a pretensão do autor que demanda uma certa tutela jurisdicional, enquanto a segunda corporiza as razões de facto que justificam o pedido dessa tutela.
(vii). O âmbito do conhecimento da matéria da causa pelo julgador está limitado pelos princípios do dispositivo e da substanciação. O primeiro faz recair sobre o autor o ónus de formular o pedido e de alegar toda a factualidade imprescindível à afirmação da existência do direito invocado. O segundo impõe a indicação especificada dos factos constitutivos desse mesmo direito, não bastando uma indicação genérica.
(viii). A prova dos factos constitutivos do direito recai sobre aquele que o arroga, enquanto a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos de tal direito recai sobre aquele contra quem a invocação do direito à feita.
(ix). Não viola o princípio do contraditório um acórdão arbitral que assenta a decisão de improcedência da acção arbitral na falta de prova da natureza de uma PME, se essa questão constitui um dos pressupostos necessários ao reconhecimento do direito invocado pelo contribuinte.
(x). Em relação à lei processual do contencioso administrativo o RJAT tem a natureza de lei especial.
(xi). Em obediência ao princípio lex especialis derrogat lex generali, acolhido no art.º 7.º, n.º 3, do Código Civil, o regime impugnatório das decisões dos tribunais arbitrais em matéria tributária prevalece sobre o regime geral de recursos previsto no CPTA e no CPPT, excepto nos aspectos não especificamente regulados.
(xii). O art.º 149.º, n.º 1, do CPTA deve ser interpretado restritivamente, no sentido de apenas ser aplicável aos meios processuais impugnatórios previstos no RJAT que neste não estejam especialmente disciplinados.
(xiii). O TCA é legalmente incompetente para apreciar o mérito da decisão arbitral em matéria tributária, por essa competência - e em moldes muito restritos - pertencer exclusivamente ao Tribunal Constitucional (TC) e ao STA.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL:

1 - Relatório

a) - As partes e o objecto do recurso

...e ..., não se conformando com o acórdão do Tribunal Arbitral que em processo arbitral constituído ao abrigo do disposto no art.º 10.º, n.os 1 e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, negou procedência ao pedido de pronúncia arbitral do acto de liquidação adicional de IRS n ° 2012 5005047043, relativo ao exercício de 2011 e os consequentes actos de liquidação de juros compensatórios n.° 2012 00002087510 e de acerto de contas n.° 2012 00010804195, de que resultou um saldo global a pagar de € 1 709 571,14, vieram interpor impugnação ao abrigo do disposto nos art.os 27.º e 28.º, n.º 1, al. b), do RJAT, tendo rematado as alegações com estas conclusões:
1.ª A questão jurídica submetida pelos Recorrentes ao Tribunal Arbitral foi a da ilegalidade da liquidação por a AT ter considerado ser requisito indispensável da aplicação do regime do artigo 43.°, n.° 3, do Código do IRS a prova da qualidade de pequena empresa da ..., Lda., através da exibição do certificado PME emitido pelo IAPMEI.
2.ª O Tribunal Arbitral, depois de apreciada e decidida essa questão, na qual deu razão aos Recorrentes, decidiu abordar uma outra, a de saber se os Recorrentes demonstraram ou não que a empresa em causa é uma micro empresa ou uma pequena empresa nos termos definidos no anexó ao Decreto-Lei n.° 372/2007, de 6 de Novembro, e, mais concretamente, se se trata de uma entidade que exerce uma actividade económica, acabando por considerar que essa demonstração não foi feita e por, com esse fundamento, negar provimento aos pedidos.
3.ª Esta questão nunca fora previamente suscitada nem discutida nos autos.
4.ª Ao ser proferida sem que previamente fosse concedida aos Recorrentes a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão do preenchimento do eventual requisito do exercício de uma actividade económica pela ..., Lda., a decisão arbitrai constituiu, por isso, uma decisão-surpresa e violou o princípio do contraditório, tal como este surge consagrado no artigo 16.°, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária e no artigo 3.°, n.° 3, do Código de Processo Civil.
5.ª A decisão arbitral deve, assim, ser anulada (artigo 28.°, n.° 1, al. d), do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária) e substituída por outra que reaprecie o mérito da causa, atento o disposto no artigo 149.°, n.° 1, do CPTA.
6.ª Caso se aplicasse a referida norma do artigo 16.°, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária com o sentido de permitir ao Tribunal proferir uma decisão com um fundamento jurídico que não foi previamente discutido pelas partes, então estar-se-á a fazer aplicação da referida norma com um sentido inconstitucional por violação da garantia constitucional de um processo equitativo, na sua dimensão do direito ao contraditório, consagrado no artigo 20.° da Constituição.
7.ª Caso se entenda que a norma do artigo 16.°, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária permite ao Tribunal Arbitrai que julgue improcedente a impugnação com fundamento na não demonstração do exercício efectivo de uma actividade económica pela sociedade cujas quotas foram transferidas sem que tal questão tenha anteriormente sido suscitada e discutida nos autos, então estar-se-á a fazer aplicação da referida norma com um sentido inconstitucional por violação do direito a um processo equitativo consagrado no artigo 20.° da Constituição.
8.ª Dá-se por reproduzido o alegado na petição arbitrai, sendo certo que a sociedade ... Lda, nos anos de 2005, 2006, 2007, 2008, 2009, 2010 e 2011, teve um volume de negócios e um balanço total inferior a € 10.000.000.
9.ª E, nesses mesmos anos, não teve trabalhadores ao seu serviço.
10.ª Pelo que, em todos esses anos, foi uma pequena empresa.
11.ª Razão pela qual a alienação de participações sociais mencionada na petição arbitral deveria ser tributada através do artigo 43°, n.° 3, do Código do IRS.
12.ª E a impugnação da liquidação em causa nos autos deve ser julgada provada e procedente, com as legais consequências.
13.ª Tendo o Tribunal Arbitral, com a sua decisão ora impugnada, violado o disposto no artigo 43° do Código do IRS e o Decreto-Lei n.° 372/2007, de 6 de Novembro, nomeadamente as disposições constantes do respectivo Anexo.
14.ª Caso se entenda que a norma do artigo 43°, n.° 3, do Código do IRS e as normas do Decreto-Lei n.° 372/2007, de 6 de Novembro, nomeadamente as disposições constantes do respectivo Anexo, permitem que uma sociedade comercial que não tenha volume de negócios num determinado ano deva ser considerada como não tendo actividade económica e que não seja considerada como "empresa" para efeitos da aplicação dessas disposições legais, então estar-se-á a fazer aplicação das referidas normas com um sentido inconstitucional por violação:
a. do princípio da universalidade consagrado no artigo 12.° da Constituição ("2. As pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua nature.z.a"), ao aplicar uma menoridade jurídica, desqualificando-a como empresa, a uma sociedade comercial, apenas por não ter tido volume de negócios;
b. do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.° da Constituição, tratando diversamente as sociedades com volume de negócios num determinado ano das sociedades sem volume de negócios num determinado ano, bem como dando tratamento diverso a alienantes de participações sociais em sociedades com volume de negócios abaixo do limite legalmente estabelecido do aludido Anexo mas em que uma tem um volume de negócios inferior a esse limite mas superior a zero e outra tem um volume de negócios também inferior a esse limite mas igual a zero. ("2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual')
c. do princípio da legalidade fiscal consagrado no artigo 103.° da Constituição, nomeadamente do seu número 3 ("3. Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei").
d. do disposto no artigo 104.° da Constituição ("1. O imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar.")
15.ª Caso se entenda que a norma do artigo 43°, n.° 3, do Código do IRS e as normas do Decreto-Lei n.° 372/2007, de 6 de Novembro, nomeadamente as disposições constantes do respectivo Anexo, permitem que o momento a considerar para efeitos da verificação dos requisitos financeiros e de número de trabalhadores para a qualificação como micro e pequena empresa a sociedade comercial não seja o momento da alienação das respectivas participações sociais, mas um momento anterior, nomeadamente o momento do último exercício contabilistico encerrado, então estar-se-á a fazer aplicação das referidas normas com um sentido inconstitucional por violação:
a. do princípio da universalidade consagrado no artigo 12.° da Constituição ("2. As pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza”), ao aplicar uma menoridade jurídica, desqualificando-a como empresa, a uma sociedade comercial, apenas por não ter tido volume de negócios;
b. do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.° da Constituição, tratando diversamente as sociedades com volume de negócios num determinado ano das sociedades sem volume de negócios num determinado ano, bem como dando tratamento diverso a alienantes de participações sociais em sociedades com volume de negócios abaixo do limite legalmente estabelecido do aludido Anexo mas em que uma tem um volume de negócios inferior a esse limite mas superior a zero e outra tem um volume de negócios também inferior a esse limite mas igual a zero. ("2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual')
c. do princípio da legalidade fiscal consagrado no artigo 103.° da Constituição, nomeadamente do seu número 3 ("3. Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei”).
d. do disposto no artigo 104.° da Constituição ("1. O imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar.")

Termina pedindo que o pedido de impugnação seja “julgado provado e procedente, sendo anulada a decisão arbitrai acima identificada (artigo 28.°, n.° 1, al. d), do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária) e substituída por outra que reaprecie o mérito da causa, atento o disposto no artigo 149.°, n.° 1, do CPTA, julgando-se a final pela procedência do pedido arbitrai formulado pelos Recorrentes e pela anulação da liquidação sub judice”.

O Director-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira contra-alegou mas não formulou conclusões.

Neste TCAS o EMMP emitiu parecer no sentido da improcedência da impugnação.

Colhidos os vistos vem o processo à conferência.


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b) As questões essenciais a decidir:
¾ Se existe violação do princípio do contraditório que justifique a anulação da decisão arbitral;
¾ Se nesse caso o TCAS pode substituir-se ao tribunal arbitral, julgando a matéria da causa.

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2 – Fundamentação

a) - De facto

A matéria de facto foi consignada no acórdão impugnado deste modo:
A. Os Requerentes apresentaram a declaração modelo 3 de IRS, para o ano de 2011, declarando apenas rendimentos da categoria A (trabalho dependente), auferidos pelo titular A, ..., sendo a entidade pagadora Coalho Produtos Alimentares, Lda.
B. A autoridade tributária realizou um procedimento inspetivo ao sujeito passivo ..., SA, NIPC ..., tendo sido verificado que, esta empresa, em 09-09-2011, adquiriu a empresa ..., Lda,
C. No dia 9 de setembro de 2011, foi celebrado um contrato de compra e venda de quotas da ..., Lda, por efeito do qual os Requerentes declararam vender à sociedade ..., SA., as quotas de que eram titulares, pelo preço total de USD 10.000.000,00.
D. Foi apurado que os sujeitos passivos, e ora Requerentes, eram titulares de duas quotas de valor nominal de €2.500,00 cada uma, as quais representavam a totalidade do capital da referida sociedade.
E. Do contrato de compra e venda e da ata n.° 23 resulta que as quotas foram transmitidas pelo valor total de USD 10.000.000,00.
F. No decurso ação realizada pela inspeção tributária à ICM constatou-se que os Requerentes não declararam o ganho obtido e, em consequência, foi instaurado um procedimento inspetivo, aos ora Requerentes, para efeitos da correção da situação tributária.
G. Daqui resultou o apuramento do ganho omitido (valor de realização - valor de aquisição atualizado) no montante de €7.114.503,50, o qual foi decidido tributar à taxa especial de 20%, nos termos do artigo 72.°, n.° 4, do CIRS, (€ 7.114.503,50 x 20% = €1.422.900.70).
H. A sociedade ..., Lda., não apresentava, à data da sua transmissão, qualquer volume de negócios.
I. O balanço total da sociedade ..., Lda, era, àquela mesma data inferior a £10.000.000,00.
J. A sociedade, para além dos seus gerentes, não dispunha, à data, de quaisquer trabalhadores.
K. A sociedade ..., Lda, não requereu, por razões alheias aos Requerentes, a certificação eletrónica prevista no Decreto-Lei 11.° 327/2007, de 6 de novembro, por referência ao ano de 2011.
L. Na sequência da alienação da quota relativa à sociedade ..., Lda., os Requerentes não lhe fizeram qualquer referência na sua Declaração Modelo 3 de IRS, entregue em 24 de Abril do ano seguinte (2012), designadamente no respetivo Anexo G.
M. Em resultado da omissão em referência, os serviços inspetivos da Direcção de Finanças de Braga encetaram uma acção inspetiva com vista a promover a pertinente correção aritmética na liquidação de IRS que resultara daquela Declaração Modelo 3.
N. No âmbito dessa acção inspetiva, foram os Requerentes notificados, por oficio datado de 20 de setembro de 2012, ao abrigo dos artigos 60.° da Lei Geral Tributária e 60.° do Regulamento Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária, e em face do projecto de correções do relatório de inspecção relativo ao exercício de 2011, para, querendo, apresentarem o seu direito de audição.
O. Os Requerentes apresentaram, no dia 8 de outubro de 2012, por escrito, o seu direito de audição.
P. Em resposta ao direito de audição, veio a AT, através da Direção de Finanças de Braga, notificar os Requerentes do relatório final das conclusões do processo inspetivo e, mais tarde, dos atos de liquidação adicional de IRS n.° 2012 5005047043, de liquidação de juros compensatórios n.° 2012 00002087510 e de acerto de contas n.° 2012 00010804195.


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Factos dados com não provados
Q. Todos os serviços necessários à prossecução da sua atividade eram assegurados através do recurso à subcontratação.
R. Os requerentes omitiram a mais-valia resultante da alienação da sociedade ..., Lda., por se encontrarem deslocados do território nacional e os respetivos assuntos fiscais estarem entregues a alguém não suficientemente advertido para os efeitos fiscais da operação em crise.

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Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
S. A matéria de facto dada como provada, que é pacificamente reconhecida e aceite pelas partes, assenta na prova documental apresentada, com exceção do referido nos pontos 8 e 10, que foi dado como provado com base nas declarações da testemunha Célia Maria Machado Areias e Cunha, que depôs de forma segura e credível, de modo a não deixar quaisquer dúvidas ao Tribunal.
T. A testemunha em causa, esclareceu que, após 2005, a sociedade ..., Lda., cessou toda a atividade, incluindo para efeitos de IVA, não tendo volume de negócios nem qualquer trabalhador ao seu serviço.
U. O ponto 1 [al. Q] dos factos dados como não provados decorre do depoimento referido, já que, não tendo atividade, necessariamente que a sociedade ..., Lda., não recorria à subcontratação, não tendo, de resto, sido feita qualquer prova nesse sentido.
V. O ponto 2 [al. R] dos factos dados como não provados decorre da inexistência de prova apresentada a seu respeito”

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b) - De Direito

Os impugnantes pretendem que a decisão arbitral seja anulada com base em violação do princípio do contraditório, por ter conhecido de questão que não foi por suscitada, quer no processo arbitral quer no procedimento tributário. Segundo os impugnantes tal questão consiste em saber se os impugnantes demonstraram que a empresa ..., Ld.ª é uma micro ou pequena empresa para efeitos do disposto no Anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de Novembro, tendo o tribunal arbitral concluído pela negativa.

O princípio do contraditório, certamente tão antigo quanto a ideia de Direito, tem especial importância no domínio do procedimento e processo tributário, pela natureza das obrigações que lhes subjazem e pela desproporção de meios e de poder que o contribuinte pode opor ao Estado, munido de um poder que claramente exprime a relação de força em que se baseia o seu ius imperii: o poder de coercivamente lançar tributos e arrecadar as correspondentes receitas.

No direito português o princípio do contraditório no âmbito do direito tributário está consagrado no art.º 9.º, n.º 1, da LGT, que sob a epígrafe “acesso à justiça tributária” prescreve que “é garantido o acesso à justiça tributária para a tutela plena e efectiva de todos os direitos ou interesses legalmente protegidos”.

O acesso à justiça pressupõe um processo equitativo (due process of law), como é imposto pelo art.º 20.º, n.º 4, da CRP. Como a equidade é a medida da justiça e igualdade, o processo equitativo terá necessariamente de ser um processo justo, em que as partes pleiteiem com igualdade de armas e em que os argumentos esgrimidos possam ser debatidos antes de serem acolhidos.

O que coloca o devido processo legal sob o prisma do princípio do contraditório, que por isso está intimamente ligado ao princípio da defesa, princípio que sendo mais que uma mera emanação dos poderes processuais das partes tem por finalidade a obtenção de uma tutela jurisdicional efectiva, na qual a doutrina alemã enquadra o direito à apreciação do argumentário alegado (Anspruch auf rechtliches Gehör), através de um processo dialético que opõe antítese e síntese.

Deste modo o processo justo e legal tem incontornavelmente de ser construído em torno de três grandes princípios: o do acesso à justiça, do contraditório e da proibição de indefesa, que de certo modo são emanação de outros tantos vectores em que se desdobra o sistema de justiça tributária, por força do art.º 20.º, n.º 1, da CRP: a procura da verdade material(1), o respeito pelos direitos fundamentais e a protecção da dinâmica social(2). Ora, a verdade material não dispensa o contraditório, que inserido no feixe amplo da defesa concretiza verdadeiramente a exteriorização desta.

Mas, no caso presente, percorrendo a petição inicial do processo arbitral logo se vê que a argumentação dos impugnantes de que foi violado o princípio do contraditório está claramente votada ao insucesso.

São variadas as referências ao conceito de pequena e micro empresa feitas nessa peça pelos impugnantes, bem como diversas as alusões ao referido Anexo, todas elas com o fito de demonstrar que a referida sociedade se encaixa no conceito nele definido, por remissão operada pelo n.º 3 do art.º 43.º do CIRS.

Como é consabido, o pedido e a pedido e a causa de pedir possuem uma importância fundamental no sistema processual, consubstanciando o primeiro a pretensão processual que demanda uma certa tutela jurisdicional, enquanto a segunda corporiza as razões de facto que justificam o pedido dessa tutela, cuja concessão por banda do julgador está limitada pelo princípio do dispositivo, que postula que o pedido e a causa de pedir - que identificam e definem a amplitude do objecto do processo - dependem da iniciativa do autor, que tem o ónus de alegar toda a factualidade de cuja prova seja possível concluir pela existência do direito invocado, de harmonia com o disposto no art.º 5.º, n.º 1, do CPC, e pelo princípio da substanciação que exige a indicação especificada dos factos constitutivos desse mesmo direito, não bastando portanto uma indicação genérica do direito que se pretende fazer valer. Limitado por estes dois princípios o julgador não pode ultrapassar as pretensões jurisdicionalmente afirmadas pelas partes.

Decorre do disposto no art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil, que a prova dos factos constitutivos do direito recai sobre aquele que o arroga; inversamente, a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos de tal direito recai sobre aquele contra quem a invocação do direito à feita - n.º 2 do mesmo artigo.

No caso em concreto os impugnantes fizeram assentar toda a sua estratégia processual na alegação de que não era necessária qualquer credenciação passada pelo IAPMEI demonstrativa da natureza de PME da sociedade ..., porque não poderia deixar de ser reconhecido que esta era uma pequena ou micro empresa. E daí retiraram a consequência de que a definição da questão tributária era passível de ser feita à luz do Anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007. A título meramente exemplificativo remete-se para os artigos 40, 43, 44, 45, 49, 56, 57 da p.i., como ilustrativos desta asserção.

Ora, como é bom de ver, a afirmação de que a referida empresa tem essa natureza depende de alegação e prova, porque o julgador - seja ele arbitral ou judicial - não tem poderes pitonísicos que lhe permitam saber sem necessidade de demonstração se certo facto é verídico ou não. E sendo esse facto fundamental para dar guarida à pretensão dos impugnantes era sobre estes que recaía o respectivo ónus de alegação e prova.

Não há, por isso, qualquer decisão surpresa nem violação do princípio do contraditório, porque esta questão estava intrinsecamente incluída na petição inicial do processo arbitral. Muito menos há qualquer inconstitucionalidade nesta interpretação, porque efectivamente se constata que não foi conhecida qualquer questão nova que não tivesse sido anteriormente suscitada no processo.

Quanto à segunda questão: pode o Tribunal Central Administrativo conhecer do mérito da causa?

Relembre-mos a argumentação usada a este propósito no acórdão de 2014-01-30, rec. n.º 06952/13, deste TCAS, e subscrito pelos juízes da presente formação:

“O RJAT estabelece duas vias de “ataque” à decisão do tribunal arbitral: o recurso e a impugnação.

O recurso incide sobre o mérito da pretensão deduzida e deve ser dirigido ao Tribunal Constitucional na parte em que recuse a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade ou que aplique norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada (art.º 25.º, n.º 1), ou ao quando esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo (art.º 25.º, n.º 2), recurso este ao qual é aplicável o regime do recurso para uniformização de jurisprudência previsto no art. 152º do CPTA.

Quando o tribunal arbitral seja a última instância, a respectiva decisão é susceptível ainda de reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia (preâmbulo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro).

Por seu lado a impugnação visa, como já se disse, a anulação da decisão arbitral (art.º 27.º, n.º 1), com os fundamentos taxativamente impostos pelo art.º 28.º, n.º 1.

Desta dualidade de vias resulta assim que nem o TCAS pode conhecer do mérito da pretensão, porque nesse caso estaria a invadir a esfera de competência do Tribunal Constitucional e do STA, nem estes últimos podem conhecer dos fundamentos de anulação, porque tal matéria está atribuída ao TCAS.

Mas então, perguntar-se-á, e nos casos em que a decisão arbitral é passível de anulação e o julgamento de mérito foi [também] errado?

A resposta parece-nos que só pode ser uma: a estruturação dos regimes impugnatórios da decisão arbitral em matéria tributária, tal como está prevista no RJAT, impõe que o TCA anule a decisão e devolva o processo ao tribunal arbitral para corrigir o vício; e só da subsequente decisão é que será possível recorrer quanto ao mérito para o Tribunal Constitucional e para o STA. Na verdade, a impugnação prevista no art.º 27.º, n.º 1, do RJAT, funciona como um verdadeiro recurso de cassação(3).

Por isso está vedado ao TCA - e decorre linearmente do disposto no art.º 24.º, n.º 1, do RJAT -, pronunciar-se sobre o mérito da decisão colegial arbitral numa perspectiva de reexame da mesma, tal como sucede nos recursos ordinários previstos no art.º 280.º, n.º 1, do CPPT. De facto, quando o art.º 24.º n.º 1, consagra a vinculação da Administração Tributária à decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de “que não caiba recurso ou impugnação (negrito nosso), e no art.º 25.º, n.º 1 e 2, define os apertados limites do recurso sobre o mérito, está a acolher a regra geral de irrecorribilidade da decisão proferida pelos tribunais arbitrais(4), que de resto constitui o padrão comum na maioria dos ordenamentos jurídicos que acolhem a arbitragem jurisdicional como meio de solução alternativa de litigios.

Não é por isso possível ao TCA decidir, em via de recurso e por substituição, a pretensão deduzida perante o tribunal arbitral, sendo por isso inaplicável o disposto nos art.os 149.º, n.º 1, do CPTA, e 665.º, n.º 1, do CPC (cfr. art.º 29.º, n.º 1, do RJAT)”.

Os impugnantes acrescentam, todavia, que o TCA deve conhecer do mérito nos termos do art.º 149.º, n.º 1, do CPTA.

Em relação à lei processual do contencioso administrativo o RJAT tem a natureza de lei especial. Com efeito, o CPTA destina-se a regular uma generalidade de matérias de contencioso administrativo e é aplicável a todos os casos que aí se discutam, sendo por isso uma lei geral por referência ao RJAT, que enquanto lei especial se aplica unicamente à tramitação de causas de contencioso tributário em processo arbitral e em matérias tributárias concretamente delimitadas. Assim, de acordo com o princípio lex especialis derrogat lex generali, acolhido no art.º 7.º, n.º 3, do CC, o regime impugnatório das decisões dos tribunais arbitrais em matéria administrativa estabelecido pelo RJAT prevalece sobre o regime geral do CPTA e do CPPT, excepto nos aspectos não regulados.

Ora, como acima se demonstrou não é isso que sucede: o legislador do RJAT conformou o sistema de harmonia com a matriz essencial dos processos de natureza arbitral, em que por regra o recurso das decisões está fortemente limitado e o recurso em matéria de facto é praticamente inexistente.

Aliás, a possibilidade de aplicação integral do regime de recursos do contencioso administrativo à impugnação da decisão arbitral em matéria tributária manifestamente frustraria um dos propósitos a que obedeceu a instituição do RJAT: “imprimir uma maior celeridade na resolução de litígios que opõem a administração tributária ao sujeito passivo”, colidindo com a “regra geral da irrecorribilidade da decisão proferida pelos tribunais arbitrais”, que não prejudicando “a possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional, nos casos em que a sentença arbitral recuse a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade ou aplique uma norma cuja constitucionalidade tenha sido suscitada, bem como o recurso para o Supremo Tribunal Administrativo quando a decisão arbitral esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo”, apenas permite que a decisão arbitral seja “anulada pelo Tribunal Central Administrativo com fundamento na não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, na oposição dos fundamentos com a decisão, na pronúncia indevida ou na omissão de pronúncia ou na violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes”(5).

Por conseguinte, o regime geral de recursos do contencioso administrativo só é aplicável nos casos em que o RJAT não regule especificamente o meio impugnatório arbitral, o que não sucede com a definição dos poderes e âmbito de cognição dos tribunais de recurso em matéria substantiva (TC e STA) e em matéria adjectiva (TCA), em que separa de modo nítido a competência de uns e outros. Não é possível assim ao TCA conhecer do mérito da causa, mesmo agasalhado com o disposto no art.º 149.º, n.º 1, do CPTA.

Sumariando, para concluir:
(i). O devido processo legal (due process of law), assenta, por força do art.º 20.º, n.º 1, da CRP, na procura da verdade material, no respeito pelos direitos fundamentais e na protecção da dinâmica social.
(ii). A verdade material não dispensa o contraditório, que inserido no feixe amplo da defesa concretiza verdadeiramente a exteriorização desta.
(iii). O princípio do contraditório tem especial importância no domínio do procedimento e processo tributário, pela natureza das obrigações que lhes subjazem e pela desproporção de meios e de poder que o contribuinte pode opor ao Estado, munido de um poder que claramente exprime a relação de força em que se baseia o seu ius imperii: o poder coercivo de lançar tributos e arrecadar as correspondentes receitas.
(iv). No direito português o princípio do contraditório no âmbito do direito tributário está especificamente consagrado no art.º 9.º, n.º 1, da LGT, que sob a epígrafe “acesso à justiça tributária” prescreve que “é garantido o acesso à justiça tributária para a tutela plena e efectiva de todos os direitos ou interesses legalmente protegidos”.
(v). O acesso à justiça tributária pressupõe um processo equitativo como é imposto pelo art.º 20.º, n.º 4, da CRP, necessariamente justo e em que as partes pleiteiem com igualdade de armas e em que os diferentes argumentos invocados devem ser objecto de contraditório antes de serem considerados.
(vi). O pedido e a causa de pedir possuem uma importância fundamental no sistema processual, fornecendo o primeiro a pretensão do autor que demanda uma certa tutela jurisdicional, enquanto a segunda corporiza as razões de facto que justificam o pedido dessa tutela.
(vii). O âmbito do conhecimento da matéria da causa pelo julgador está limitado pelos princípios do dispositivo e da substanciação. O primeiro faz recair sobre o autor o ónus de formular o pedido e de alegar toda a factualidade imprescindível à afirmação da existência do direito invocado. O segundo impõe a indicação especificada dos factos constitutivos desse mesmo direito, não bastando uma indicação genérica.
(viii). A prova dos factos constitutivos do direito recai sobre aquele que o arroga, enquanto a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos de tal direito recai sobre aquele contra quem a invocação do direito à feita.
(ix). Não viola o princípio do contraditório um acórdão arbitral que assenta a decisão de improcedência da acção arbitral na falta de prova da natureza de uma PME, se essa questão constitui um dos pressupostos necessários ao reconhecimento do direito invocado pelo contribuinte.
(x). Em relação à lei processual do contencioso administrativo o RJAT tem a natureza de lei especial.
(xi). Em obediência ao princípio lex especialis derrogat lex generali, acolhido no art.º 7.º, n.º 3, do CC, o regime impugnatório das decisões dos tribunais arbitrais em matéria tributária prevalece sobre o regime geral de recursos previsto no CPTA e no CPPT, excepto nos aspectos não especificamente regulados.
(xii). O art.º 149.º, n.º 1, do CPTA deve ser interpretado restritivamente, no sentido de apenas ser aplicável aos meios processuais impugnatórios previstos no RJAT que neste não estejam especialmente disciplinados.
(xiii). O TCA é legalmente incompetente para apreciar o mérito da decisão arbitral em matéria tributária, por essa competência - e em moldes muito restritos - pertencer exclusivamente ao Tribunal Constitucional (TC) e ao STA.

Concluindo: a impugnação não pode proceder in tottum.


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3 - Dispositivo:

Em face de todo o exposto acordam em julgar improcedente a impugnação.

Custas pelos impugnantes.

D.n.

Lisboa, 2014-02-27

________________________________________ (Benjamim Barbosa)

____________________________________________ (Anabela Russo)

_____________________________________________ (Aníbal Ferraz)







1- Balizada, essencialmente, pelos princípios da capacidade contributiva e da legalidade do imposto.
2- A protecção da vida em sociedade resulta das finalidade a que alude o art.º 103.º, n.º 1, da CRP: “o sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza”.
3- Sobre a distinção entre cassação e a substituição, cfr. Abrantes Geraldes, Cassação ou substituição? Livre escolha ou determinismo legislativo? 2009, pp. 3 e 4. Documento disponível na web in URL: http://www.trl.mj.pt/PDF/Recursos_%20sub.pdf.
4- Assim, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 230/2013, de 24-04-2013, processo n.º 279/2013.
5- Cfr. preâmbulo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro