Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:478/21.9 BEALM
Secção:CT
Data do Acordão:05/04/2023
Relator:JORGE CORTÊS
Descritores:CONTRIBUIÇÃO EXTRAORDINÁRIA SOBRE O SECTOR ENERGÉTICO. INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL.
PRINCÍPIO DA IGUALDADE.
Sumário:Em conformidade com o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 101/2023 de 16/03/2023, deve ser desaplicada a norma do artigo 2.º/d), do regime da CESE, que estabelece a incidência da CESE em relação às concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural, por violar o princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição).
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: Acórdão
I- Relatório
S........ – Sociedade de distribuição de gás natural, S.A. deduziu impugnação judicial do acto de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra o acto tributário de autoliquidação da contribuição extraordinária sobre o sector energético [CESE], n.º ………..688, referente ao ano de 2018, no valor de €1.279.958,53, e respetivo acto de liquidação de juros de mora n.º ……………023, no valor de € 2.043,87. O Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, por sentença proferida a fls.722 e ss. – Sitaf- datada de 30 de Junho de 2022, julgou a impugnação judicial improcedente e, consequentemente, absolveu a Fazenda Pública dos pedidos formulados.
Inconformada com o assim decidido a sociedade Impugnante apelou para este Tribunal Central Administrativo, tendo com a sua alegação, inserta a fls.798 e ss. –Sitaf- junto cinco pareceres e a final formulado o seguinte quadro conclusivo [que inicia pela letra B)]: “
B. A CESE foi estabelecida com a intenção de constituir uma medida extraordinária (conforme decorre, aliás, da sua própria designação), no âmbito e a propósito da negociação e cumprimento do Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF) acordado entre o Estado português, a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional, que vigorou entre 2011 e 2014 (vulgo “programa da Troika”). Assim sendo, era suposto que a CESE vigorasse por um período transitório e limitado. Porém, desde que foi criada, a medida tem vindo a ser prorrogada anualmente, até ao presente, estando já no nono ano de vigência (quase uma década). O período em causa nos presentes autos, 2018, foi o quinto ano em que a CESE esteve em vigor.
C. Quer agora, em 2022, quer no ano aqui em questão, 2018, estamos a falar de momentos por reporte aos quais foram há muito ultrapassadas as circunstâncias que justificaram a permanência excepcional e transitória da CESE na nossa ordem jurídica. De acordo com a jurisprudência mais recente do Tribunal Constitucional, essas circunstâncias reconduzem-se à situação de emergência financeira que a República Portuguesa atravessou entre o início e meados da década passada. Com efeito, apesar de até ao momento o Tribunal se ter colocado do lado da validade da CESE, não só teve apenas em conta o tributo vigente entre 2014 e 2017 como, das decisões conhecidas, é possível retirar como consequência que, a partir de 2018, a medida deixou de ter justificação constitucional para vigorar (extraordinariamente) no nosso ordenamento.
D. A essa luz, tanto os actuais nove anos de duração da CESE quanto os cinco que ela já levava em 2018 configuram uma situação óbvia de uso excessivo e inconstitucional do poder do Estado, que requer com urgência uma intervenção que o limite – pelo menos, como ultima ratio, uma intervenção judicial. É essa intervenção que se requer a este Tribunal, enquanto garante máximo dos princípios constitucionais em que se baseia a ordem jurídico-política portuguesa.
E. Segundo o Tribunal, a conformidade da CESE com a Constituição mantém-se apenas enquanto ela puder ser considerada uma medida extraordinária, pelo que saber se ela ainda merece ou não essa qualificação é uma questão central, um critério fundamental que deve orientar a apreciação da sua validade ou invalidade. Ora, à luz da jurisprudência, não faz sentido que, no quinto ano de vigência da medida, ainda se possa considerar admissível a permanência da CESE na ordem jurídica. É que não é só a urgência da receita gerada que despareceu (em 2018, Portugal não estava já na situação financeira de há dez anos. Nessa altura, aliás, o Governo inclusivamente celebrava o facto de termos ultrapassado essa situação); desapareceu também a urgência de o tributo existir naquelas condições – condições essas que, lembre-se, este Tribunal aceitou porque eram «de fácil implementação e aplicação para um período de aplicação transitório e certo, onde não se justificaria a implementação de critérios, porventura mais adequados (…), mas muito complexos e com elevados custos de cumprimento, ou seja, totalmente desajustados à urgência do caso pretendido».
F. Pois bem: para o Tribunal (por exemplo, no Acórdão n.º 532/2021), saber se a CESE reveste ou não natureza extraordinária é uma pergunta cuja resposta tem de ser determinada por um “critério conjuntural”, em cada ano de vigência, à luz da “verificação periódica de um certo estado de coisas”.
G. No entanto, esta circunstância de a validade da CESE tem de ser apreciada ano a ano, de acordo com a manutenção ou não do contexto que justificou a sua criação, implica que não nos possamos desviar de alguns princípios essenciais. Em primeiro lugar, sob pena de se abrir a porta à maior arbitrariedade possível, ao configurarem-se as razões que justificam a continuidade do tributo na ordem jurídica, não podemos estar permanentemente a pesquisar razões novas que sustentem, por exemplo, a natureza extraordinária da CESE.
H. É verdade que, potencialmente e em abstracto, em todos anos, até à eternidade, existirão por certo no Estado português circunstâncias (por exemplo, de índole orçamental) que poderão justificar a necessidade de receitas tributárias acrescidas, de natureza extraordinária; todavia, quando nos debruçamos sobre uma determinada medida concreta, para averiguar se ela é (ou ainda permanece) constitucionalmente válida – desde logo à luz da sua eventual natureza extraordinária – , não nos podemos afastar dos motivos que levaram o legislador a criá-la: é que, se optarmos por esse afastamento, estamos a aceitar que pode deixar de haver – ou deixar de ser impossível averiguar – qualquer correspondência entre a razão de ser do tributo e a necessidade de o exigir especificamente aos operadores económicos que são os seus sujeitos passivos.
I. Em vez de estarmos sempre a justificar a CESE com razões novas, ou com razões que, mesmo existindo à data da criação do tributo, não consta dos documentos legislativos ou de qualquer elemento do contexto da sua criação que tenham sido levadas em conta, aquilo a que estamos adstritos é a perguntar se as razões que presidiram à implementação do tributo se mantêm ou não, ou se foram cumpridas com a receita gerada pela medida. Caso contrário, estaremos perante uma medida violadora do princípio da proporcionalidade, por não existir correspondência entre a sua suposta necessidade e os objectivos determinado pelo legislador.
J. Nesse caso, só há duas hipóteses: ou a CESE tem de ser expurgada da ordem jurídica ou as suas regras têm de ser alteradas, com – nas palavras do TC – “a implementação de critérios, porventura mais adequados” à vigência do tributo posterior ao momento extraordinário da sua criação.
K. De resto, diga-se também, em segundo lugar, que não se pode dar justificações para a CESE que alterem a natureza do tributo, a não ser que daí se retirem as devidas consequências, por exemplo e desde logo, considerando que não se trata de uma contribuição financeira, mas sim de um imposto. Lembre-se que a qualificação da CESE como uma contribuição, estabelecida no Acórdão n.º7/2019, tinha por pressuposto que a actividade dos sujeitos passivos dava causa aos problemas que o tributo visava ajudar a resolver e/ou beneficiavam da actuação do Estado na resolução desses problemas. Porém, se a CESE passar a ser justificada sem apelo a essa ideia de bilateralidade, então é porque é um imposto e tem de ser tratada como tal, de acordo com os princípios que conformam a constitucionalidade da criação de impostos.
L. Ora, o único argumento que o TC avança para justificar a validade da CESE até 2017 é o das condições de emergência financeira em que a República Portuguesa se encontrava. Em concreto, o TC justifica a CESE com a situação de rescaldo do PAEF, durante o qual Portugal permanecia num contexto de fragilidade das contas públicas, e a manutenção do procedimento por défice excessivo, previsto no artigo 126º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (relativamente à CESE dos anos de 2015 e 2016, podemos referir as Decisões Sumárias n.ºs 358/2021 e 422/2021 e os Acórdãos n.ºs 436/2021, 437/2021, 438/2021, 513/2021 e 532/2021. Quanto a 2017, podemos citar o Acórdão 736/2021).
M. Antes de mais, analisada a jurisprudência em apreço, o que importa sublinhar é que o TC dá apenas uma justificação para a CESE de 2015, 2016 e 2017 – e essa justificação é a necessidade de consolidação orçamental. Esta circunstância transporta dois significados importantes para o caso vertente.
N. Em primeiro lugar, implica necessariamente que a CESE deve ser considerada como um verdadeiro imposto, na medida em que, se serviu simplesmente para consolidação orçamental, constitui afinal um tributo cobrado para os fins gerais dos impostos, sem qualquer efeito no financiamento de medidas de sustentabilidade do sector energético, seja na redução da dívida tarifária do Sistema Eléctrico Nacional ou em qualquer outra. Assim, é indispensável a medida ser apreciada à luz dos princípios constitucionais que regem a criação de impostos.
O. Aliás, insista-se, a partir de 2018 a CESE perdeu até a ligação à emergência da consolidação orçamental, que nessa altura deixou de se verificar, o que acarreta que deixou de existir qualquer correspectividade especial entre a CESE e uma necessidade do Estado que pudesse justificar, mesmo que temerariamente, a sua vigência extraordinária. Também por este facto se deve concluir, então, que falar hoje da CESE como um tributo bilateral – designadamente uma contribuição especial – é um erro.
P. Com efeito, em segundo lugar, levando em linha de conta a jurisprudência do Tribunal Constitucional, tem de se concluir que a CESE deixou de ser uma medida extraordinária em 2018, pois que nesse ano Portugal não só já tinha há muito deixado para trás o PAEF como havia fechado o procedimento por défice excessivo. Por reporte a 2017, o último ano analisado pelo Tribunal, este já só teve como pressuposto da natureza extraordinária da CESE a existência do procedimento por défice excessivo: se este terminou, terá de se concluir que com ele terminou igualmente a validade transitória e excepcional da CESE. Ao contrário do que sucedeu de 2014 a 2017, em 2018 e nos anos seguintes Portugal já não estava obrigado pela União Europeia à adopção de medidas orçamentais extraordinárias. Em 2018, o ano aqui em causa, o défice foi de 0,5% do PIB, que na altura o Governo celebrou como um «resultado histórico e virtuoso».
Q. Portanto, se a jurisprudência do Tribunal Constitucional é a que é, e se os factos de 2018 são o que são, nada pode justificar a vigência da CESE nesse ano. O Tribunal sinaliza claramente uma aproximação da CESE ao limite do aceitável, já que a razão com a qual o tem identificado a justificação da validade temporária da medida – a emergência financeira de Portugal – não se verifica nos anos seguintes àqueles sobre os quais se debruçou a jurisprudência conhecida. O limite do aceitável, segundo o TC, foi ultrapassado em 2018.
R. É por isso que, precisamente a partir de 2018, o Governo foi dando sinais formais – nas sucessivas leis orçamentais – de que pretende uma revogação faseada da medida. Fê-lo mediante autorizações legislativas, para sinalizar uma alegada vontade do Estado português de, mais tarde ou mais cedo, remover a CESE do ordenamento jurídico. E fê-lo porque teve a noção do risco de constitucionalidade de o não fazer.
S. Porém, ao desaproveitar sistematicamente essas autorizações legislativas, o que o Governo demonstrou é que, em bom rigor, a sua intenção é fazer letra morta da natureza extraordinária da CESE, que deste modo permanece ainda na ordem jurídica basicamente como foi aprovada em 2014.
T. Do exposto resulta que a CESE tem de ser apreciada como aquilo que verdadeiramente é – ou que verdadeiramente era já em 2018: um imposto especial sobre o sector da energia, sem natureza extraordinária.
U. Trata-se, sem dúvida, de uma medida inconstitucional.
V. A inconstitucionalidade decorre, antes de mais, de a CESE ser um imposto cujas bases de tributação subjectiva e objectiva violam o princípio da capacidade contributiva, concretização do princípio da Igualdade (artigo 13º da Constituição), desenvolvido também, no que respeita à base objectiva, pelo princípio da tributação das empresas pelo lucro real (n.º 2 do artigo 104º).
W. Sobre isso, deve começar-se por sublinhar que a Recorrente não exerce qualquer actividade no sector electroprodutor, nem sequer em qualquer outro subsector da electricidade, pelo que em nada contribui para o problema da dívida tarifária do Sistema Eléctrico Nacional (SEN) – que é o principal problema regulatório que o regime da CESE declara pretender resolver –, não beneficiando, pois, de nenhuma forma directa ou especial, da actividade do Estado exercida no âmbito do problema em causa (o mesmo acontecendo com grande parte dos sujeitos passivos do tributo).
X. Não tendo qualquer relação com a dívida tarifária do SEN, a Recorrente não contribuiu ou beneficiou das circunstâncias que geraram esse problema, pelo que não tem também relação com o consequente desequilíbrio orçamental que o Estado português assumiu igualmente como objectivo anular ou atenuar (o mesmo acontecendo, também aqui, com grande parte dos sujeitos passivos da CESE). A Recorrente não é parte da causa de tal desequilíbrio, nem retirará da actuação estadual nesse aspecto qualquer benefício que não seja partilhado, em princípio na mesma medida, por todos os particulares.
Y. Quanto ao financiamento de outras políticas sociais e ambientais do sector energético, em geral, que o legislador também inscreveu formalmente no regime como justificação da CESE, não se conhecem, com um grau mínimo de probabilidade objectiva, qual a natureza, o conteúdo e a importância das mesmas, razão pela qual nunca poderemos dar por demonstrada a sua indispensabilidade e, portanto, que os sujeitos passivos do tributo poderão em princípio, alguma vez, ser efectivos beneficiários de uma ou mais das políticas em causa.
Z. Aliás, mesmo que pudéssemos estabelecer uma ligação entre um benefício decorrente das políticas em questão e a actividade das empresas energéticas que não actuam no sector da produção de electricidade – no qual se gerou o problema da dívida tarifária do SEN e o consequente desequilíbrio orçamental –, sempre essa ligação seria insuficiente para assegurar a legitimidade da CESE, na medida em que aquelas empresas continuariam a suportar um tributo cuja receita (a restante receita) é afecta a um objectivo com o qual nada têm a ver (a redução da dívida tarifária do sector electroprodutor) e a um outro cuja solução beneficia de igual modo, geral e indiscriminadamente, todos os particulares – para além de ser ele próprio, em parte, uma consequência daquela dívida tarifária (a consolidação orçamental).
AA. Em face do exposto, a CESE não cabe no campo dos tributos bilaterais ou sinalagmáticos (taxas ou contribuições financeiras), por não respeitar o princípio da equivalência: os montantes exigidos não o são para o exercício de uma actividade do Estado de que os sujeitos passivos concretamente em causa beneficiem (directa ou indirectamente, efectiva ou presumivelmente, de modo suficientemente distinto da generalidade dos particulares não abrangidos pela incidência do tributo), não sendo sequer possível dizer que a actividade a financiar é originada, específica ou genericamente, pela daqueles sujeitos passivos.
BB. A CESE é, pois, um verdadeiro imposto – um imposto especial sobre alguns operadores de um sector de actividade específico, em razão da sua alegada capacidade contributiva particular.
CC. Posto isto, a CESE é um imposto materialmente inconstitucional, por violação do princípio da capacidade contributiva, subprincípio em que se concretiza no campo dos impostos o princípio constitucional da Igualdade (artigo 13º da Constituição), porque a sua base de incidência subjectiva atinge contribuintes que pouco ou nada têm a ver com os fins declarados da “contribuição” (não são de todo beneficiados com as actividades estaduais que a receita pretende financiar nem deram origem aos problemas que aquela é suposto colmatar) – designadamente todos aqueles que não actuam no âmbito do sector da produção de electricidade, como é caso da ora Recorrente.
DD. Vista como um imposto sobre o rendimento, a CESE viola ainda o princípio da capacidade contributiva por, ao ter como base objectiva o valor dos activos das empresas abrangidas, constituir uma aproximação indirecta ou presumida aos lucros das mesmas – uma aproximação ou presunção fantasiosa, puramente conjecturada do rendimento real, que facilmente conduzirá a resultados arbitrários: com efeito, a CESE permite ao Estado apurar uma colecta sobre lucros ainda que nenhuma capacidade contributiva se revele efectivamente nessa forma, ou uma colecta igual ou superior aos lucros efectivamente obtidos, caso em que representará uma taxa de 100% ou mais de tributação do rendimento e, nessa medida, um imposto confiscatório.
EE. Além disso, a CESE tem um efeito de dupla tributação e sobreposição ao IRC que é inaceitável, acentuado pela decisão do legislador de impedir que aquela seja dedutível em sede do referido imposto, o que define com especial clareza a violência do tributo e a sua inconstitucionalidade, mesmo se considerado como um imposto sobre o património ou uma contribuição financeira, pelo menos por violação do princípio da proporcionalidade.
FF. E, na verdade, a CESE apresenta problemas inultrapassáveis também ao nível do respeito devido pelo princípio da proporcionalidade.
GG. Este princípio é violado, em primeiro lugar, na sua dimensão de idoneidade ou adequação, porque a CESE não é um instrumento tendente a resolver o problema da dívida tarifária do SEN – um dos objectivos legislativamente declarados da medida, ao qual é consignado uma parte importante da respectiva receita: não se trata de uma medida que possa assegurar a eliminação ou sequer uma atenuação séria, estrutural, dessa dívida tarifária (mediante uma alteração das regras vigentes em que assenta a sua existência), mas antes, simplesmente, de uma fonte de receita obtida a fim de o Estado continuar a assegurar o objectivo político central quanto à matéria em causa, ou seja, proteger os consumidores finais de electricidade do esforço de redução da dívida tarifária, impedindo o aumento dos preços em medida pelo menos aproximada à exigida por aquela redução.
HH. Neste sentido, a CESE é uma medida inócua e indiferente, tendo por referência a sua aproximação ao fim visado, e até contraproducente, porque produz o efeito negativo de adiar a resolução dos desequilíbrios do SEN e, assim, prolongar e acentuar o problema.
II. Depois, a CESE viola o princípio da proporcionalidade também porque é consignada em parte ao financiamento de políticas sociais e ambientais no mesmo ano em que, por exemplo e desde logo, foi reduzida a taxa de IRC em dois pontos percentuais, perdendo-se uma receita pública, já existente, que poderia obviamente servir para aquele fim (não está, assim, cumprida a dimensão da necessidade ou exigibilidade em que assenta a regra da proporcionalidade), e ainda porque, apesar de os objectivos declarados do legislador serem importantes, nunca poderão ser considerados como pretextos suficientes para justificar o prejuízo económico e patrimonial que a CESE inflige nos seus sujeitos passivos, ainda para mais de modo tão violador do princípio da igualdade: na incidência, lembre-se, são incluídas entidades – como a Recorrente – que pouco ou nada têm a ver com as causas dos problemas que suscitaram a criação do tributo ou que pouco ou nada beneficiarão, directa e especialmente, com a solução de tais problemas (desrespeita-se, assim, a dimensão da proporcionalidade em sentido estrito ou do equilíbrio).
JJ. Por fim, entende a Recorrente que caberá, nesta sede, invocar a ilegalidade do acto de (auto)liquidação por violação da regra da discriminação orçamental, uma vez que a receita proveniente da CESE não se encontra devida e suficientemente especificada, quer na Lei do Orçamento do Estado respeitante ao ano da CESE aqui em causa – 2018 –, quer, aliás, em qualquer uma das Leis do Orçamento do Estado desde a criação da CESE até à presente data – 2014 a 2021, como se demonstrará.
KK. Vício que, entende a Recorrente, é cominado com nulidade típica ou integral, por se reconduzir à previsão das alíneas k) e l) do artigo 161.º do CPA, como se demonstrará.
LL. Ora, a nulidade é, nos termos do disposto no número 2 do artigo 162.º do CPA e no número 1 do artigo 58.º do CPTA, invocável a todo o tempo, por qualquer interessado, e é suscetível de ser, oficiosamente, conhecida e declarada, termos em que é forçoso concluir pela inexistência de óbice à sua invocação no âmbito do presente Recurso.
MM. Sempre se dirá que as questões de constitucionalidade deverão ser susceptíveis de ser invocadas e conhecidas (ainda que oficiosamente) pelo Tribunal até ao trânsito em julgado dos presentes autos, dada a relevância das normas constitucionais violadas pela CSSB, cf. o Conselheiro Jorge Lopes de Sousa: “(…) até transitar em julgado a decisão final do processo em que se discute a validade do ato, a situação jurídica gerada com a sua prática está instável, pelo que não se podem gerar expectativas dignas de tutela jurídica relativas à validade do ato impugnado e sua manutenção. Por isso, uma vez impugnado o ato, a preclusão do direito de arguir novos vícios não se impõe por razões de segurança jurídica, mas essencialmente por razões de disciplina e economia processuais, para que o processo tenha a tramitação normal prevista na lei, presumivelmente a mais adequada para apreciação dos direitos em litígio. Nestas condições, não havendo prejuízo para a segurança jurídica, é aceitável que se admita a discussão das questões de constitucionalidade durante o processo, mesmo oficiosamente, atenta a relevância jurídica das normas constitucionais.” (cf. Lopes de Sousa, Jorge – Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado – Vol. III, 6ª edição, Áreas Editora, 2011, pp. 445 e 446, nota 4 – sublinhado do Recorrente).
NN. A possibilidade de invocação, em sede de Recurso, de questões de inconstitucionalidade foi, com efeito, reconhecida pelo Supremo Tribunal Administrativo: “I - Em recurso interposto para o STA de decisão proferida pela 1ª instância pode ser alegada a inconstitucionalidade das normas que definem os elementos essenciais do tributo, mesmo que a questão não tenha, antes, sido suscitada, já que se trata de matéria que vem sendo entendida como de conhecimento oficioso.” (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 13 de Dezembro de 2000, proferido no processo n.º 024319, disponível em www.dgsi.pt).
OO. Assim, entende a Recorrente estar em tempo para invocar a nulidade de que padece a autoliquidação de CESE sub judice, por violação de lei e de normas constitucionais, nos termos em que, de seguida, se expõe.
PP. O princípio orçamental da discriminação encontra-se previsto no artigo 8.º da Lei de Enquadramento Orçamental (“LEO”), aprovada pela Lei n.º 91/2001, de 20 de Agosto, e, a partir de 2015, nos artigos 15.º a 17.º da LEO, aprovada pela Lei n.º151/2015, de 11 de Setembro, decorrendo também da própria CRP a imposição da “discriminação das receitas e despesas do Estado, incluindo as dos fundos e serviços autónomos”, conforme se dispõe no artigo 105.º, n.º 1, alínea a), da CRP.
QQ. Dentro do princípio da discriminação orçamental encontramos o subprincípio, ou regra orçamental, da especificação (a par das regras orçamentais da não compensação e da não consignação).
RR. O fundamento da regra da especificação orçamental reside nos requisitos de clareza e maior verdade e, bem assim, numa perspetiva de racionalidade financeira e controlo político (cf. SOUSA FRANCO, A. L.– Finanças Públicas e Direito Financeiro, Volume I e II, Almedina 2007, p. 353).
SS. Esta regra orçamental da especificação integra duas proibições: (i) a proibição, para o Governo, da apresentação de aglomerados de receita e despesa públicas e (ii) a proibição, para a Assembleia da República, de implementação de um sistema de votação global do Orçamento.
TT. Ora, poder-se-á concluir, como faz MARIA D’OLIVEIRA MARTINS, que a regra orçamental da especificação serve o princípio da publicidade do Orçamento, que “implica a obrigação de tornar públicos todos os documentos que se revelem necessários para assegurar a adequada divulgação e transparência do Orçamento do Estado e a sua execução.” (cf. p. 32 do Parecer Jurídico da Professora Doutora Maria D´Oliveira Martins, cit. ANEXO N.º 3).
UU. Acresce que, com vista à corporização do princípio da especificação orçamental, a Constituição e a LEO (esta última, tanto na versão de 2001, como na versão de 2015), preveem a existência de três classificações orçamentais: a económica, a orgânica e a funcional.
VV. Debruçando-nos sobre a classificação económica, que é a que mais releva para os presentes autos, recorde-se, estabelece o artigo 8.º da LEO de 2001 que “As receitas devem ser suficientemente especificadas de acordo com uma classificação económica” (cf. também artigo 17.º da LEO de 2015).
WW. Sucede, porém, que a CESE – tendo em conta a sua relevância orçamental e a sua natureza – não se encontra devidamente orçamentada de acordo com a regra da especificação orçamental.
XX. Embora a receita decorrente da CESE em causa se presuma prevista na Lei do Orçamento do Estado – neste caso, por referência ao ano de 2018 –, a especificação e o desdobramento orçamental desta receita não respeitam o disposto na CRP e na LEO, não se afigurando, à luz do que antecede, suficiente a inscrição global das receitas do FSSSE no Mapa V dos vários Orçamentos do Estado até 2020 e, em 2021, da receita da presumivelmente apenas dentro da categoria de “impostos diretos diversos” do Mapa 5.
YY. Na Lei do Orçamento do Estado para 2014, a CESE não é mencionada, especificamente, nem nos mapas orçamentais, nem nos desenvolvimentos orçamentais sendo que, da consulta do Relatório do Tribunal de Contas n.º3/2015, parece resultar que a CESE terá sido contabilizada, no Mapa I, no Capítulo 0.8 “Outras receitas correntes”.
ZZ. Todavia, tal como resulta do referido Mapa I, não é possível aferir se, realmente, tal contabilização se deu, uma vez que, como se referiu, a receita da CESE não se encontra especificada em nenhum dos mapas anexos à Lei do Orçamento do Estado para 2014.
AAA. A este respeito, no Mapa V da Lei do Orçamento do Estado para 2018, referente às Receitas dos Serviços e Fundos Autónomos, por classificação orgânica, com especificação das receitas globais de cada serviço e fundo, prevê-se, tão-só, a arrecadação pelo FSSSE do montante global de €120.000.000 (cento e vinte milhões de euros).
BBB. Se é certo que, do artigo 3.º, n.º 1, al. a) do Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de Abril, resulta que constitui receita do FSSSE, designadamente, o produto da CESE, assim como outras receitas provenientes de aplicações financeiras, de doações, heranças, entre outras, no aludido Mapa V, as receitas do FSSSE não estão individualizadas, nem suficientemente discriminadas, pois que não se especifica quais os montantes, a título de CESE, que, afinal, se autoriza que sejam cobradas durante o ano e consignados ao FSSSE, em clara violação da CRP (artigo 105.º, n.º 1, alínea a)) e da LEO (artigo 8,º da LEO de 2001 e 17.ºda LEO de 2015).
CCC. De onde se conclui que não está, por isso, discriminado de que é constituído o valor inscrito no Mapa V, de 120 milhões de euros, e desse valor, assumindo que ali está incluída a CESE, qual o que lhe corresponde.
DDD. De facto, considerando os valores arrecadados com a CESE –aproximadamente 665 milhões de euros no período compreendido entre 2014 a 2017 (v.g. http://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063446f764c32 4679595842774f6a63334e7a637664326c75636d56785833426c636d6431626 e52686379395953556c4a4c33442794e4451784c58687061576b744d7931684 c6e426b5a673d3d&fich=pr441-xiii-3-a.pdf&Inline=true) – a mesma deveria ser objeto de suficiente especificação – o que, in casu, não se verifica.
EEE. Ora, só com o cumprimento efetivo das necessidades de individualização decorrentes do princípio da especificação, poderá a Assembleia da República promover o controlo, político e orçamental, devido e exigido pela CRP e pela LEO, razão pela qual existe este princípio.
FFF. Nesta medida, é forçoso concluir que a receita escapou, inevitavelmente, ao crivo parlamentar, razão pela qual a sua não especificação, concreta e individualizada, nos termos da CRP e da LEO, equivale, em termos práticos, à sua não inscrição – e à sua não autorização – no correspondente Mapa da Lei do Orçamento do Estado.
GGG. A este respeito, JOSÉ CASALTA NABAIS vai ainda mais longe, entendendo que “(…) o cumprimento do princípio da especificação obriga não só ao cumprimento das exigências constitucionais, mas também das exigências legais e destas decorre não apenas a necessidade da sua previsão no Orçamento do Estado, mas também a sua correcta especificação. Assim, as receitas da CESE teriam que constar dos Mapas I, ou seja, conjuntamente com as receitas dos serviços integrados, por classificação económica. Mas a verdade é que, apesar de uma análise muito cuidada não encontramos a sua menção na classificação respectiva, isto é, como receita corrente(cf. pág. 9 do Parecer do Professor José Casalta Nabais, cit. ANEXO N.º 5), (sublinhado da Recorrente).
HHH. Por outro lado, esta deficiente inscrição orçamental das receitas da CESE atenta, não apenas contra o princípio da legalidade, por violação da regra orçamental da especificação das receitas, mas gera, também, o incumprimento de outros princípios orçamentais, nomeadamente os princípios da transparência, da unidade e da universalidade.
III. Acresce, ainda, referir que o facto de o recente Acórdão do Tribunal Constitucional n.º7/2019, de 8 de janeiro, ter (pese embora sem força obrigatória geral) qualificado a CESE como uma “contribuição financeira”, e não como uma taxa ou imposto, também não poderá justificar o aligeiramento da especificação orçamental quanto a estas receitas.
JJJ. Em primeiro lugar, porque quer a CRP, quer a LEO referem-se a receitas, sem especificar a sua origem.
KKK. Depois, porque as contribuições financeiras possuem características semelhantes aos impostos, tendo assim sido vistas, quer pelo Tribunal de Contas, que a qualificou, em 2015, na categoria dos “impostos diretos”, quer pelo Estado, que anulou a sua propriedade comutativa (determinante para o Tribunal Constitucional a ter qualificado como contribuição financeira) ao não transferir, em 2014 e em 2015, o produto da receita da CESE para o FSSSE, tendo, assim, servido finalidades públicas gerais.
LLL. Por tudo, verifica-se a violação do princípio da especificação orçamental, com a consequente ocultação desta receita do controlo parlamentar, uma vez que a votação da Assembleia da República, em todos os Orçamentos desde 2014 a 2021, foi efetuada sem o pleno e cabal conhecimento do montante de receita previsto cobrar a título de CESE.
MMM. Razão pela qual, a omissão da referência à CESE nos Orçamentos do Estado para 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2020 e 2021 corresponde a uma manifesta violação da regra orçamental prevista no artigo 8.º da LEO de 2001 (aplicável aos Orçamentos de Estado de 2014 e 2015) e do artigo 17.º da LEO de 2015 (aplicável aos Orçamentos de 2016 a 2021) e, bem assim, à violação do Decreto-Lei n.º 26/2002, na medida em que promove uma deficiente inserção dessa receita no classificador económico e, também, a sua inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 105.º da CRP.
NNN. Acresce referir que esta violação da regra orçamental da especificação põe, também, em crise os outros referidos princípios e regras orçamentais, em especial, aqueles que mais se relacionam com esta, como são os da proibição de compensação e da compensação.
OOO. Ora, como acima já se deixou referido, a violação do princípio da especificação conduz à nulidade dos “créditos orçamentais que possibilitem a existência de dotações para utilização confidencial ou para fundos secretos (…)”, conforme preveem o artigo 8.º n.º 6, da LEO de 2001 e o artigo 17.º, n.º3, da LEO de 2015, o que deverá significar que esses créditos se devem ter por não escritos, reconstituindo-se a ordem jurídica como se a cobrança da CESE nunca tivesse sido prevista.
PPP. Ora, como bem refere MARIA D’OLIVEIRA MARTINS, “implicando as inconstitucionalidades e as ilegalidades detetadas na sua orçamentação a invalidade e a total improdutividade (nulidade absoluta) dos créditos orçamentais relativos à Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético, isso não pode deixar de ter como consequência que os atos de liquidação e cobrança fiquem sem base legal de apoio, por não haver previsão orçamental das mesmas. Sem previsão orçamental, a Autoridade Tributária deixa de ter autorização para cobrança desta receita.” (cf. p. 77 do Parecer Jurídico da Professora Doutora Maria D’Oliveira Martins, cit. ANEXO N.º 3)
QQQ. Por este motivo, o ato de (auto)liquidação da CESE aqui em apreço enferma de um vício gerador de ilegalidade abstrata, porquanto a sua liquidação e cobrança não terão sido devidamente autorizados em conformidade com a CRP e a LEO.
RRR. No que respeita ao desvalor jurídico do acto de autoliquidação em crise, em resultado da violação das regras orçamentais acima descritas, deverá este conduzir-se à nulidade dos "créditos orçamentais que possibilitem a existência de dotações para utilização confidencial ou para fundos secretos (...)", conforme prevêem o artigo 8.° n.° 6, da LEO de 2001 e o artigo 17.°, n.° 3, da LEO de 2015, o que deverá significar que esses créditos se devem ter por não escritos, reconstituindo-se a ordem jurídica como se a cobrança da CSSB nunca tivesse sido prevista.
SSS. Neste sentido, merecem acolhimento as considerações do Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, quando indica que “(…) A falta de inscrição orçamental de receita liquidada sujeita a tal inscrição será um vício do acto tributário gerador da sua ilegalidade abstracta, equiparável aos vícios de inexistência do tributo (…)” (cf. Lopes de Sousa, Jorge – Código de Procedimento e Processo Tributário – Anotado e Comentado, Volume III, 6.ª Edição, p. 451).
TTT. Com efeito, a ilegalidade, in casu, é abstracta pelo facto de a mesma não residir directamente no acto que faz a aplicação da lei ao caso concreto – rectius, acto de liquidação -, mas na lei cuja aplicação é feita (cf. Lopes de Sousa, Jorge, Código de Procedimento e Processo Tributário – Anotado e Comentado, Vol. III, 6ª edição, Áreas Editora, 2011, pp. 443).
UUU. Ora, esta ilegalidade, decorrente da falta de previsão e de especificação das receitas proporcionadas pela CESE resulta, efectivamente, numa ilegalidade grave dos respectivos actos de liquidação e cobrança, a qual, salvo melhor opinião, nunca pode reconduzir-se à mera anulabilidade, devendo materializar-se numa nulidade típica ou integral.
VVV. Com efeito, com a entrada em vigor do Código de Procedimento Administrativo (CPA), publicado em 7 de janeiro de 2015, pelo Decreto-Lei n.º4/2015, o legislador procedeu à anulação da antiga cláusula geral de nulidade do antigo CPA, passando a prever quatro novos casos de nulidade no atual artigo 161.º daquele diploma, de entre os quais a alínea k), onde se dispõe que são nulos “Os atos que criem obrigações pecuniárias não previstas na lei”.
WWW. Assim, de acordo com esta norma, são nulos quaisquer atos que gerem uma obrigação de pagamento não prevista na lei – com desrespeito do princípio da legalidade ou da tipicidade –, garantindo-se, assim, que todas as receitas têm cabimento legal.
XXX. Como explicam FAUSTO DE QUADROS [et al.] (…) dá-se assim “expressão e merecido relevo a uma regra constitucional, nos termos da qual os atos de imposição pela Administração de uma obrigação pecuniária aos particulares, designadamente a liquidação de um tributo (imposto, taxa ou outra contribuição), têm como pressuposto necessário a respetiva base legal impositiva” (cf. Comentários à Revisão do Código de Procedimento Administrativo, Coimbra: Almedina, 2016, p. 324).
YYY. Ora, se um dos fundamentos legais da realização da receita da CESE é o Orçamento de Estado, então não devem gerar-se obrigações pecuniárias por meio de ato administrativo quando um tributo não foi adequadamente orçamentado.
ZZZ. Donde é forçoso concluir-se que as deficiências de orçamentação da CESE, desde a sua criação até à presente data, são tão graves que este tributo deve ter-se, mesmo, por não orçamentado, com a consequente nulidade das respetivas (auto)liquidações, ao abrigo da alínea k) do artigo 161.º do CPA.
AAAA. Considerando as exigências do ónus de suscitação prévia e as particularidades dos vícios de inconstitucionalidade e ilegalidade, os quais aderem, em rigor, a todo o escopo normativo conducente à cobrança do crédito tributário nulo, elucida-nos TIAGO DUARTE que “Deverá, assim, ser suscitada ao Tribunal a quo a inconstitucionalidade da norma que no ano em causa tenha mantido em vigor a CESE, bem como as normas do regime jurídico da CESE (com a redação em vigor nesse ano) que serão aplicadas pelo Tribunal a quo (…). (…) Todas estas normas (na versão em vigor relativamente ao ano a que a impugnação judicial diga respeito) contribuem para a criação da receita não orçamentada e são normas que serão necessariamente aplicadas pelo Tribunal a quo no momento de decidir um litígio em torno da liquidação e cobrança da CESE no contexto de uma impugnação judicial do acto de liquidação da mesma” (cf. cit. DOCUMENTO Nº 4, pp. 23 e 24).
BBBB. Em face do exposto, e atenta a desconformidade da CESE – mormente do disposto nos artigos 228.º, da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro (que institui o Regime jurídico da CESE), 280.º da Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro (que prorroga a vigência da CESE para o ano 2018), 1.º (objeto), 2.º (base de incidência subjetiva), 3.º (base de incidência objetiva), 6.º(determinação da taxa aplicável), 11.º (determinação da consignação da receita ao FSSSE) e 12.º (não dedutibilidade do tributo) do seu regime jurídico – com o disposto no artigo 17.º da LEO e com o artigo 105.º da CRP, é manifestamente ilegal e inconstitucional (indiretamente que seja) o ato de autoliquidação ora impugnado, devendo ser declarado nulo, nos termos da alínea k) do artigo 161.º do CPA, com todas as consequências legais.
CCCC. A Sentença a quo deveria, pois, ter decidido no sentido da desaplicação dos artigos 2.º, 3.º, 4.º, 11.º e 12.º do regime jurídico da CESE, aqueles que concretizam as violações da Constituição arguidas nos autos. Não o tendo feito, incorre em vício de violação de lei, devendo por isso ser revogada.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, com todas as consequências legais, designadamente a anulação da Sentença recorrida.
Mais se requer a V. Exas., nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 651.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC), se dignem admitir a junção aos presentes autos de recurso dos Pareceres da autoria do Prof. Rui Medeiros, do Prof. J. J. Gomes Canotilho, da Prof. Maria d´Oliveira Martins, do Prof. Tiago Pires Duarte e do Prof. José Casalta Nabais, identificados como Anexos n.º 1, n.º 2, n.º 3, n.º 4 e n.º 5, respetivamente.”
X
A Recorrida, FAZENDA PÚBLICA, não contra-alegou.
X
O Digno Magistrado do M. P. junto deste Tribunal notificado para o efeito, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
X
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, considerando que a tal nada obsta.
X
II- Fundamentação
2.1. De Facto.
A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto:”
A) A Impugnante, S........ - SOCIEDADE DE DISTRIBUIÇÃO DE GÁS NATURAL, S.A., é uma sociedade anónima, com sede em território nacional, que integra o setor energético nacional, desenvolvendo a sua atividade no âmbito do «aprovisionamento e distribuição de gás natural e outros gases combustíveis canalizados» (facto não controvertido - cf. artigo 38.º da petição inicial «p.i.» e artigo 2.º da contestação);
B) Em 30.6.2020, a Impugnante apresentou a Declaração Modelo 27, de substituição, referente ao ano de 2018, na qual efetuou a autoliquidação da «Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético» no valor de € 1.279.958,53 (cf. «Declaração Modelo 27» e Documento de Cobrança constantes do PAT, de fls. 660 a 662 dos autos, que se dão por integralmente reproduzidos);
C) Em 30.6.2020, foi emitida, pela Autoridade Tributária e Aduaneira, a liquidação de juros compensatórios n.º ………..023, no valor de €2.043,87 (cf. «Demonstração de Liquidação de Juros CESE» constante do PAT, a fls. 663 dos autos, que se dá por integralmente reproduzida);
D) Em 11.2.2021, a Impugnante apresentou reclamação graciosa contra o ato de autoliquidação da CESE e respetiva liquidação de juros compensatórios, a que se referem as alíneas B) e C) supra, dando origem ao processo de reclamação graciosa n.º …………….463 (cf. documento constante do PAT, de fls. 488 a 663 dos autos, que se dá por integralmente reproduzido);
E) Em 4.3.2021, a Divisão de Justiça Tributária, da Unidade dos Grandes Contribuintes, elaborou a «INFORMAÇÃO N.º 41-AIR2/2021», propondo o indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela Impugnante, de cujo teor se extrai o seguinte:
«INFORMAÇÃO N.º 41-AIR2/2021
Com referência aos presentes autos de procedimento administrativo de reclamação graciosa que correm seus termos junto da Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC), instaurados sob o registo em epígrafe, somos, conforme segue, e ao abrigo da norma inserta no art.º 75.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), atenta a redação conferida pelo artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 6/2013, de 17 de janeiro, ao n.º 4 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de outubro, a informar com correspondência ao “quadro-síntese” infra, para os termos e efeitos de Consideração Superior.
Período
Assunto
Valor(es)
Reclamado(s)
Valor(es)
Proposto(s)
Informação
(Fundamentação)
2020Contribuição Extraordinária Sobre o Setor Energético
1.279.958,53
0,00
Cf. §IV.I.2
Juros de mora
2.043,87
0,00
Cf. §IV.I.2
Indemnização por prestação de garantia indevidaA calcular pela AT
0,00
Cf. §IV.2
Assim:
§ I. DA PARTE RECLAMANTE
1. A Contribuinte SETGAS Soc Distribuição Gás Natural, S.A. (doravante Reclamante), (…) vem, nos termos previstos no art.º 131.º do CPPT, aplicável por força da remissão inscrita no art.º 10.º do Regime legal da CESE, apresentar reclamação graciosa: i) do ato de autoliquidação da CESE Nº 2020 24, de 30/06/2020, referente ao ano de 2018, no valor de € 1.279.958,53, efetuado ao abrigo do disposto no art.º7.º nº 6 do referido Regime legal; ii) da liquidação de juros de mora nº 2020-88023, no valor de € 2.043,87.
(…)
§ IV. DA ANÁLISE DO PEDIDO
9. Compulsado o teor da petição inicial apresentada pela Reclamante, e considerando que nos autos está em causa dirimir se o ato tributário sindicado enferma ou não dos vícios que lhe são apontados, somos então a aferir da bondade dos argumentos nesta sede trazidos ao nosso conhecimento. Isto pari pasu com o itinerário percorrido pela apresentante.
Disto isto,
§ IV.I. Da Contribuição Especial Sobre o Setor Energético
§ IV.I.I. Dos argumentos da Reclamante
10. A Reclamante não se conformando com o ato tributário de autoliquidação em apreço, vem argumentar, em síntese, que o mesmo, praticado em sede de CESE, se encontra inquinado por violação do direito nacional, traduzido na violação de diversos princípios constitucionais, tais como o princípio da capacidade contributiva, o princípio da tributação pelo rendimento real, o princípio da equivalência, o princípio da proporcionalidade, o princípio da igualdade proporcional e o princípio da não consignação.
Por isso,
11. Requer aqui o exposto no ponto 4 da presente informação.
12. É sobre isto, no essencial, que se suporta todo o seu entendimento, o qual, por razões de economia processual, nos inibimos de aqui transcrever, considerando-o aqui reproduzido, com todas as consequências legais.
§ IV.I.I.II. Da apreciação
13. Sem prejuízo de desde já se referir que, consabido, reiterando, não cabe no elenco das atribuições e competências da Administração Tributária aferir da bondade de uma qualquer norma face ao preconizado na nossa Lei Fundamental, ainda assim não poderemos, sem mais, deixar de tecer algumas considerações acerca do assunto que ora nos apraz, a ponto de aqui deixar bem vincado que, na verdade, relativamente ao argumentado pela ora Reclamante não é de conferir valor jurídico suficientemente bastante para resolver a questão em causa; de modo algum, pois não é isso que resulta da lógica dessa novação tributária estabelecida pelo legislador fiscal nacional.
Senão vejamos:
14. Em primeiro lugar, de acordo com os argumentos aqui trazidos ao nosso conhecimento, é-nos sugerido um juízo acerca da bondade das normas legais em questão face à Constituição da República Portuguesa (CRP).
Ora,
15. A subordinação da Administração Tributária à CRP significa, desde logo, em geral, o dever de conformação da atividade administrativa, quer tenha ou não conteúdo normativo, pelas normas constitucionais, procurando conferir a máxima efetividade possível aos direitos fundamentais, significando isto, assim, em especial, nomeadamente, que são nulos e não anuláveis todos os atos administrativos ofensivos do conteúdo essencial dos direitos, liberdades e garantias.
16. Diante desta dimensão do princípio da constitucionalidade imediata impõe-se que a Administração Tributária esteja ab initio vinculada às normas consagradoras no âmbito de direitos, liberdades e garantias.
17. Ao invés do que sucede com os tribunais, que têm constitucionalmente o direito e o dever de fiscalização da constitucionalidade das leis, desaplicando-as, caso estejam em contradição com as normas constitucionais, à Administração Tributária, porém, não é reconhecido este direito de fiscalização prévia, impondo-se antes, como princípio geral, a observância da lei por força do denominado princípio da legalidade.
18. A Administração não é um órgão de fiscalização da constitucionalidade e a submissão desta à lei não visa apenas a proteção dos direitos dos particulares, mas também a defesa e prossecução de interesses públicos. A concessão ao poder administrativo de ilimitados ou vastos poderes para o controlo da constitucionalidade das leis a aplicar levaria a uma anarquia administrativa, invertendo a relação entre a Lei e a Administração, atentando frontalmente contra o principio da divisão dos poderes, tal como está consagrado na CRP.
19. É este o entendimento que, aliás, se encontra maioritariamente firmado, quer na doutrina quer na jurisprudência, no sentido de se recusar, como regra geral, à Administração a competência para desaplicar normas que considere inconstitucionais.
20. É imensa a doutrina acerca desta questão. // (…)
23. Se a nossa Lei Fundamental sublinhadamente aponta no sentido da necessária conformação da atividade administrativa nacional pelos preceitos e princípios constitucionais e se são nulos, e não anuláveis (por conseguinte, não sanáveis), os atos administrativos ofensivos de direitos, liberdades e garantias, têm de ser os tribunais a decidir sobre essa conformação; e têm de ser os tribunais administrativos, e não os próprios órgãos da Administração dita ativa, a apreciar e a decidir acerca de não aplicar leis inconstitucionais e a declarar a nulidade ou a anular atos administrativos inconstitucionais.
(…)
28. É de referir também o recente Acórdão n.º 7/2019, do Tribunal Constitucional (TC), de 08 de janeiro de 2019, proferido no âmbito de um caso concreto –Processo n.º 141/16 - que decidiu não julgar inconstitucionais as normas ínsitas nos art.ºs 2.º, 3.º, 4.º, 11.º e 12.º que modelam o Regime Jurídico da CESE.
29. Fazendo a ponte entre estas considerações e o caso concreto ora em análise, parece-nos então de concluir que uma qualquer nossa análise acerca desta questão, tal como nos é suscitada, fica desde logo prejudicada.
30. Deste modo, através de uma adequada ponderação dos interesses em causa, e atendendo que a própria Administração Tributária se limitou a fazer a interpretação das normas aplicáveis aos factos, sempre sobre o espetro do princípio da legalidade, somos de parecer que, em nossa opinião, face ao que até aqui foi dito não subsistem razões atendíveis para os termos e efeitos de anulação do ato tributário da CESE ora colocado em crise pela Reclamante.
§ IV.2. Da indemnização por garantia indevida
32. A Reclamante peticiona, em caso de deferimento do pedido deduzido quanto à anulação da autoliquidação da CESE, que lhe seja atribuída a indemnização prevista nos artigos 171.º do CPPT e 53.º da LGT.
33. Na medida em que peticionado não merece acolhimento, fica, deste modo, prejudicada a análise da peticionada indemnização.
§ V. DA CONCLUSÃO
Em conformidade com o anteriormente exposto, somos de propor que o pedido formulado nos autos seja indeferido, de acordo com o teor do “quadro-síntese” desde logo melhor identificado no introito desta nossa informação, com todas as consequências legais.
(…)» (cf. «INFORMAÇÃO N.º 41-AIR2/2021» junta como doc. 2 da p.i. de fls. 138 a 147
dos autos, constando, igualmente, do PAT de fls. 669 a 678 dos autos, que se dá por integralmente reproduzida);
F) Em 6.5.2021, a Divisão de Justiça Tributária, da Unidade dos Grandes Contribuintes, elaborou «INFORMAÇÃO N.º 94-AIR2-2021» no sentido de converter o projeto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa em decisão definitiva (cf. «Informação» junta como doc. 3 da p.i. a fls. 149 e 156 dos autos, constando, igualmente, do PAT a fls. 683 a 692 dos autos, que se dá por integralmente reproduzida);
G) Em 6.5.2021, o Chefe de Divisão de Justiça Tributária, da Unidade dos Grandes Contribuintes, exarou despacho de concordância com a «INFORMAÇÃO» referida na alínea anterior, indeferindo o pedido formulado no procedimento de reclamação graciosa n.º …………….463 (cf. despacho exarado na «Informação» junta como doc. 3 da p.i. a fls. 149 dos autos, constando, igualmente, do PAT a fls. 683 dos autos, que se dá por integralmente reproduzido);
H) Em 6.5.2021, o Diretor do Serviço Central emitiu o ofício n.º 185, dirigido ao Mandatário da Impugnante, por via do qual comunica a decisão de indeferimento da reclamação graciosa a que se refere a alínea anterior (cf. ofício junto como doc. 3 da p.i. a fls. 148 dos autos, constando, igualmente, do PAT a fls. 693 dos autos, que se dá por integralmente reproduzido);
I) A Autoridade Tributária e Aduaneira instaurou contra a Impugnante os processos de execução fiscal n.º ……………515 e n.º …………….252 para cobrança coerciva da «Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético», referente ao ano de 2018, no montante de € 1.279.958,53, acrescido de juros de mora e custas (cf. «Informação» constante do PAT a fls. 479 dos autos, que se dá por integralmente reproduzida);
J) A Impugnante prestou garantia no âmbito dos processos de execução fiscal identificados na alínea anterior, no valor de € 1.624.892,33 e de € 2.710,99, respetivamente (cf. «Informação» constante do PAT a fls. 479 dos autos, que se dá por integralmente reproduzida);
K) Em 31.8.2021, a petição inicial dos autos deu entrada no Tribunal (cf. «comprovativo de entrega» de fls. 1 a 3 dos autos).”
X
“Não se provaram outros factos com relevo para a decisão da causa.”
X
A convicção do Tribunal quanto à decisão da matéria de facto assentou na análise da prova documental produzida, designadamente nos documentos juntos pela Impugnante e nos documentos constantes do PAT, que não foram impugnados, bem como nas informações oficiais que constam dos autos, nas conforme referido a propósito de cada alínea do probatório”
X
2.2. De Direito.
2.2.1. A presente intenção recursória centra-se sobre os alegados vícios da sentença seguintes:
i) Erro de julgamento, porquanto a contribuição extraordinária sobre o sector energético é um imposto, o qual viola o princípio constitucional da capacidade contributiva.
ii) Erro de julgamento, porquanto a contribuição extraordinária sobre o sector energético é um tributo que viola o princípio da proporcionalidade.
iii) Erro de julgamento, porquanto a contribuição extraordinária sobre o sector energético é um tributo que viola a regra da discriminação orçamental das receitas.
A sentença julgou improcedente a impugnação, mantendo na ordem jurídica a autoliquidação da Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético, relativa a 2018. Por um lado, ponderou que, «[r]econduzindo-se a CESE à categoria jurídica de contribuição financeira, fica prejudicada a análise dos argumentos invocados, pela Impugnante, com vista a pugnar pela inconstitucionalidade material das normas em que se sustenta o tributo, por violação dos princípios constitucionais da capacidade contributiva, enquanto concretização do princípio da igualdade e do princípio da tributação das empresas pelo lucro real, porquanto respeitantes à qualificação daquele tributo como um imposto»; por outro lado, no que respeita à inconstitucionalidade material do tributo enquanto contribuição financeira, assinalou que estão em causa a violação dos princípios seguintes: «a) O princípio da equivalência, enquanto subprincípio do princípio da igualdade aplicável aos tributos paracomutativos (cf. artigos 233.º a 248.º e 367.º a 369.º e da p.i.); b) O princípio da proporcionalidade, por consubstanciar uma restrição do direito de propriedade (cf. artigos 370.º a 394.º da p.i.); c) O princípio da não consignação de receitas a determinadas despesas (cf. artigos 453.º a 457.º da p.i.)». Afastou a alegada ofensa dos princípios em referência, considerando que «[a] CESE configura, assim, a contrapartida de uma prestação administrativa – o financiamento de mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do setor energético - presumivelmente provocada ou aproveitada por um determinado grupo homogéneo de sujeitos passivos - os operadores setor energético nacional. // É, pois, possível presumir que os operadores económicos dos subsetores que integram o setor energético nacional beneficiam das políticas do setor energético de cariz social e ambiental e das medidas relacionadas com a eficiência energética, porque dirigidas ao respetivo setor que integram. // Destarte, ainda que não se possa concluir que o tributo visa compensar uma prestação efetivamente provocada ou aproveitada pelos sujeitos passivos, forçoso será concluir que o mesmo visa compensar uma prestação administrativa presumivelmente provocada ou aproveitada pelos sujeitos passivos, na medida em que assenta em prestações cuja provocação ou aproveitamento se podem dizer seguros quando referidos a um grupo e prováveis quando referidos aos sujeitos que o integram. //Ora, como supra se referiu, enquanto os impostos estão dissociados de qualquer prestação administrativa ou propósito compensatório (tributos unilaterais), as taxas visam compensar prestações efetivamente provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo (tributos comutativos) e as contribuições visam compensar prestações presumivelmente provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo (tributos paracomutativos).»
2.2.2. A recorrente coloca sob censura o veredicto que fez vencimento na instância, imputando-lhe os erros de julgamento descritos nos pontos (i) e (ii) supra.
Apreciação.
Está em causa autoliquidação da contribuição extraordinária sobre o sector energético, referente ao ano de 2018. A contribuição extraordinária sobre o Sector Energético foi criada pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro (1). Nos termos do artigo 1.º, n.º 2, do respectivo regime (2) [regime da CESE], «[a] contribuição tem por objetivo financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do setor energético, através da constituição de um fundo que visa contribuir para a redução da dívida tarifária e para o financiamento de políticas sociais e ambientais do setor energético». «São sujeitos passivos da contribuição extraordinária sobre o setor energético as pessoas singulares ou coletivas que integram o setor energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de janeiro de 2015, se encontrem numa das seguintes situações: (…) // Sejam concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural, nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de julho, alterado pelos Decretos-Leis n.os 65/2008, de 9 de abril, 66/2010, de 11 de junho, e 231/2012, de 26 de outubro» [artigo 2.º/ d), do regime da CESE].
Tendo por base o regime jurídico descrito, a jurisprudência fiscal e constitucional não acolheu a tese da inconstitucionalidade material do tributo em causa, considerando que o mesmo configura uma contribuição financeira.
Assim, por exemplo, no Acórdão do STA, de 18/05/2022, P. 0994/20.0BEPRT [CESE 2019], escreveu-se o seguinte:
«(…) deve referir-se desde já que o entendimento segundo a qual o CESE é uma contribuição financeira e as normas que modelam o respetivo regime jurídico não violam os princípios da capacidade contributiva, da tributação pelo rendimento real, da proporcionalidade, da igualdade na repartição dos encargos públicos e da proteção da confiança, segurança jurídica e não retroatividade da lei fiscal, foi reafirmado em diversos outros acórdãos deste tribunal (acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 16/09/2020, de 16/12/2020, de 23/06/2021, de 13/07/2021, de 8/09/2021, de 6/10/2021, de 10/11/2021, de 2/02/2022, processos n.ºs 0387/17.6BEMDL, 0415/16.1BEVIS 0314/18.3BEVIS, 03037/16.4BELRS, 0545/19.9BEPRT e 01587/18.7BEPRT, 01676/19.0BEPRT, 01471/17.1BEPRT, 0810/18.2BESNT). No sentido da não inconstitucionalidade do artigo 12.º do Regime Jurídico da CESE e do artigo 23.º, n.º 1, alínea q), do Código do IRC se pronunciaram, entretanto, os acórdãos do Tribunal Constitucional de 7 de junho de 2021, de 24 de junho de 2021, de 9 de julho de 2021, e de 22 de Setembro de 2021 (n.ºs 395/2021, 463/2021 e 465/2021, 506/2021 e 732/2021). No sentido da não inconstitucionalidade das normas dos artigos 2.º, 3.º, 4.º, 11.º e 12.º do regime jurídico da Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético, nas redações de 2014 e de 2016, se pronunciaram, entretanto, os acórdãos do Tribunal Constitucional de 22 de Setembro de 2021 (n.ºs 735/2021 e 736/2021).
A respeito da necessidade de reequacionar e de preponderar a conformidade do tributo com os princípios da proporcionalidade e da igualdade com referência a anos posteriores àqueles em que foram considerados na jurisprudência citada pelo tribunal de recurso, por estar em causa «um tributo extraordinário» e o julgamento de não inconstitucionalidade não ser transponível para exercícios posteriores, ponderou o Supremo Tribunal Administrativo, nos acórdãos de 8/09/2021 e de 6/10/2021, já acima citados «que a fundamentação expendida no acórdão do TC n.º 395/2021, para o qual remete o acórdão do TC n.º 506/2021 (o último de que temos registo sobre a apreciação da conformidade constitucional da CESE), não faz depender expressamente a conformidade das normas que instituem a CESE de especiais características orçamentais ou financeiras do exercício fiscal em que a respectiva exigibilidade se inscreve, ou seja, não associa o carácter extraordinário deste tributo a uma expressa temporalidade ou circunstância. Em segundo lugar, porque a fundamentação do aresto aponta até em sentido contrário, seja quando afirma que pode ser justificada “(…) a subsistência de algumas medidas extraordinárias, mesmo após o mais rigoroso período de contenção orçamental. Assim, por exemplo, a propósito da derrama estadual, concluiu o Tribunal (v. o Acórdão n.º 430/2016, II, 10.2) (…)”, seja quando remete para liberdade de conformação do legislador a possibilidade de agravar ou desagravar a carga fiscal, ao firmar que “(…) da Constituição não se retira qualquer elenco taxativo de razões justificativas da desconsideração de custos no apuramento do lucro tributável. Exige-se, apenas, como este Tribunal tem afirmado, que estas hipóteses revistam um caráter excecional, objetivo, racionalmente fundado e genericamente aplicável aos rendimentos visados (cf., v.g., os Acórdãos n.º 142/2004, n.º 5, e 48/2020, n.º 6) (…)” e que “(…) a norma que constitui o objeto do presente recurso, tendo embora por efeito um real agravamento da carga fiscal e tributária suportada pelos sujeitos passivos da CESE, parece pressupor – o que não se mostra manifestamente irrazoável – que o sector energético, pelas características da atividade que desenvolve, se mostra especialmente capaz de suportar, não só o encargo da CESE, como o imposto liquidado sobre o lucro tributável apurado sem a concorrência desse custo (…)”». Tendo concluído que «desta jurisprudência mais recente do Tribunal Constitucional não resulta que a excepcionalidade da CESE esteja associada a limites temporais ou circunstanciais expressos ou que a razoabilidade na exigibilidade do tributo, no âmbito da margem de livre conformação do legislador, se afigure afastada por algum dos princípios fundamentais indicados pela Recorrente».(3)
Por seu turno, no Acórdão do STA, de 07/12/2022, P. 0339/20.9BEMDL [CESE 2019], sumariou-se o seguinte: «As normas que modelam o regime jurídico da “Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético” não violam os princípios da capacidade contributiva e da tributação pelo rendimento real, da proporcionalidade, da igualdade na repartição dos encargos públicos, da protecção da confiança, segurança jurídica e não retroactividade da lei fiscal, nem o princípio da especificação orçamental». (4)
Em face da jurisprudência fiscal assente, impor-se-ia negar provimento ao recurso interposto e confirmar a sentença recorrida, a qual manteve na ordem jurídica a autoliquidação questionada. Sem embargo, no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 101/2023 de 16/03/2023, consignou-se que, «a partir de 2018, o legislador reduziu os objetivos a que a CESE se dirige em termos tais, que deixou de ser possível afirmar que as concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural podem ser consideradas responsáveis pela sua concretização, e muito menos presumíveis causadoras ou beneficiárias das prestações públicas que ao FSSSE incumbe providenciar. Resta, pois, concluir que a norma que integra o objeto do presente recurso viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição». Como aí se consigna,
«(…) não há motivo algum para fazer correr por conta das empresas concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural encargos associados à redução da dívida tarifária do setor elétrico. Nem há razão nenhuma para supor que a prevenção dos riscos associados à instabilidade tarifária no setor elétrico aproveita em especial medida aos operadores dos demais subsetores − não se podendo admitir como contraprova a suposição de que um tal benefício advém, como que obliquamente, da circunstância de boa parte das empresas credoras da dívida tarifária serem grandes consumidoras de gás natural. Acresce que o regime não define critérios que imponham que uma parte relevante da receita da CESE se mantenha afeta ao financiamento de medidas tendentes a favorecer os interesses de todos os operadores económicos incluídos no seu âmbito de incidência subjetiva (e não isentos). Pelo contrário, na prática, é confiada ao Governo a possibilidade de, em função dos «objetivos que se revelem mais prementes», afetar toda a receit da CESE à redução da dívida tarifária do setor elétrico – ou seja, ao financiamento de prestações públicas de que os operadores do setor do gás natural não podem, como se viu, presumir-se causadores ou beneficiários. // Por fim, ainda que um terço da receita da CESE tivesse sido consignado ao «financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética», a circunstância de as tarefas que o tributo se destina a financiar não terem sido objeto de densificação mínima, não permite sequer apreender se e em que medida cada um dos subsetores em causa é visado pelas medidas a adotar pelo FSSSE. De facto, mesmo em tais condições – estritamente hipotéticas −, não se poderia presumir que um terço da receita da CESE tivesse sido destinado a medidas de que seriam especiais beneficiários os operadores do subsetor do gás natural, de modo a garantir um certo equilíbrio na participação pelos subgrupos de operadores dos benefícios presumivelmente proporcionados pelo FSSSE».
Pelo que o Alto Tribunal decidiu «[j]ulgar inconstitucional, por violação do artigo 13.º da Constituição, o artigo 2.º, alínea d), do regime jurídico da CESE (aprovado pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, cuja vigência foi prorrogada para o ano de 2018 pela Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro), na parte em que determina que o tributo incide sobre o valor dos elementos do ativo a que se refere o n.º 1 do artigo 3.º do mesmo regime, da titularidade das pessoas coletivas que integram o setor energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de janeiro de 2018, sejam concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural (nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de julho, na sua redação atual)».
A decisão de inconstitucionalidade da norma em causa refere-se à CESE de 2018, tal como a que está em causa nos autos, pelo que este TCAS não se afastar-se da orientação fixada pelo Tribunal Constitucional (artigo 8.º/3, do Código Civil). Recorde-se que tal decisão tem força de caso julgado no processo quanto à questão de inconstitucionalidade (artigo 80.º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional – LOTC (5)), podendo a norma desaplicada vir a ser eliminada da ordem jurídica com força obrigatória geral (artigos 281.º/3, da CRP e 82.º da LOTC). «Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados» (artigo 204.º da CRP). Pelo que aderindo à fundamentação do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 101/2023 de 16/03/2023, decide-se desaplicar a norma do artigo 2.º/d), do regime da CESE, ao caso em exame, o que determina a ilegalidade da autoliquidação em apreço, dado que a mesma foi emitida sem norma legal de habilitação que a sustente, com a consequente nulidade do acto tributário (artigo 161.º, alínea k), do CPA).
Ao julgar em sentido discrepante, a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento, pelo que deve ser substituída por decisão que julgue procedente a impugnação, com a consequente declaração de nulidade do acto tributário questionado.
No que respeita aos pedidos ressarcitórios, formulados na petição inicial, cumpre referir o seguinte.
«São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido (artigo 43.º, n.º 1, da LGT). «O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida» (artigo 53.º, n.º 1, da LGT). «O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo» (artigo 53.º, n.º 2, da LGT).
No caso, do probatório resultam os elementos seguintes:
i) A Autoridade Tributária e Aduaneira instaurou contra a Impugnante os processos de execução fiscal n.º …………….515 e n.º ……………….252 para cobrança coerciva da «Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético», referente ao ano de 2018, no montante de € 1.279.958,53, acrescido de juros de mora e custas (alínea I).
ii) A Impugnante prestou garantia no âmbito dos processos de execução fiscal identificados na alínea anterior, no valor de € 1.624.892,33 e de € 2.710,99, respetivamente (alínea J).
No entanto, os autos não contemplam a existência das despesas incorridas pela impugnante com a prestação de garantia, nem o tipo e a data da prestação da mesma. O mesmo é válido em relação ao pagamento do tributo. Pelo que, sem prejuízo do direito da impugnante ao ressarcimento dos prejuízos incorridos pela prestação de garantia indevida (artigo 53.º da LGT), bem como à restituição do que tiver sido eventualmente pago, acrescido dos juros indemnizatórios (artigo 43.º da LGT), pedidos, cuja instrução e eventual deferimento pode ter lugar em posterior execução do julgado anulatório, impõe-se, para já, confirmar a decisão de improcedência dos mesmos.
Fica prejudicado o conhecimento das demais conclusões de recurso.
Termos em que se julgam procedentes as presentes conclusões de recurso.
Dispositivo
Face ao exposto, acordam, em conferência, os juízes da secção de contencioso tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e declarar a nulidade do acto tributário impugnado, mantendo a sentença quanto ao mais.
Custas pela recorrida, sem prejuízo da dispensa de taxa de justiça, dado não ter contra-alegado.
Registe.
Notifique.
(Jorge Cortês - Relator)


(1ª. Adjunta- Patrícia Manuel Pires)



(2º. Adjunto – Vital Lopes)

(1) Com alterações posteriores.
(2) Mantido em vigor, em 2018, pelo preceito do artigo 280.º da Lei n.º 114/2017, de 29/12.
(3)Acórdão do STA, de 18/05/2022, P. 0994/20.0BEPRT
(4) Acórdão do STA, de 07-12-2022, P. 0339/20.9BEMDL.
(5) Aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15/11, com alterações posteriores.