Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:55/13.8BECTB
Secção:CT
Data do Acordão:02/10/2022
Relator:ANA CRISTINA CARVALHO
Descritores:NULIDADE DO ACTO
CONTEÚDO ESSENCIAL DE UM DIREITO FUNDAMENTAL
CADUCIDADE DO DIREITO DE ACÇÃO
Sumário:I – Em regra, os vícios que afectem os actos administrativos tributários são susceptíveis de determinar a sua anulabilidade;

II – A violação do “conteúdo essencial de um direito fundamental” só gera a nulidade do acto administrativo tributário tornando-o impugnável a todo o tempo, quando, em consequência deste, seja afectado o mínimo sem o qual esse direito não pode subsistir enquanto tal.

Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 1ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul

I – Relatório

M..., F...e M..., inconformados com a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, que julgou procedente a excepção de caducidade do direito de acção e, em consequência, absolvo a Fazenda Pública do pedido na acção de impugnação judicial deduzida contra o despacho de indeferimento tácito do pedido de revisão da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), do ano de 2008, no valor de € 127 450,23., vieram interpor o presente recurso formulando, para o efeito, as seguintes conclusões:

« 1.- Na Petição Inicial da acção/impugnação, o Impugnante argumenta, alega e carreia prova que impõem a conclusão pela nulidade da liquidação em causa e, em consequência, do acto impugnado;

2.- O Impugnante utilizou o meio legítimo e processualmente correcto para pôr em crise a decisão da Administração e fê-lo tempestivamente, quer, como devia ter sido entendido, de acordo com o disposto pelo Art. 102º, nº 3 do CPPT, ou, nos termos das disposições concertadas do Art. 102º, nº 1 do referido diploma legal e do Art. 57º, nº 1 da LGT, com a redacção em vigor no momento do início do processo de liquidação, em 2008 e até mesmo, por mera cautela, com a redacção em vigor no ano de 2012, tendo em conta o despacho, impossível de negligenciar, do Director de Finanças de Portalegre, de 25 de Outubro de 2012!

3. – Assim não decidindo, o Juiz “a quo” acabou por violar a citadas disposições legais, com todas as consequências daí provenientes.

Termos em e no mais de direito que V. Exas, doutamente, suprirão, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue procedente o pedido, com todas as legais consequências, ou no mínimo, ordenando-se o prosseguimento dos Autos para avaliação da prova oferecida, fazendo-se e uma vez mais a tão necessária como esperada,

JUSTIÇA!»


Notificada da admissão do recurso jurisdicional, a recorrida não contra-alegou.


O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal Central, emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.

Com dispensa dos vistos legais, vem o processo submetido à conferência desta primeira Subsecção do Contencioso Tributário para decisão.

II – Delimitação do objecto do recurso

O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Assim, considerando o teor das conclusões apresentadas, importa apreciar e decidir se a sentença recorrida efectuou errada apreciação dos factos e se incorreu em erro de julgamento de direito ao ter julgado verificada a caducidade do direito de acção. Para a apreciação de tal questão torna-se necessário apreciar se o fundamento da impugnação foi o da nulidade do acto fundado na violação de princípios constitucionais, caso em que pode ser deduzida a todo o tempo, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário ou a mera anulabilidade, caso em que está sujeita ao cumprimento dos prazos previstos no referido artigo.



*

III – FUNDAMENTAÇÃO

III. 1 – Fundamentação de facto


A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:

« 1. Em 04.01.2012 o chefe de Equipa dos Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Portalegre elaborou o seguinte parecer, sob o relatório elaborado no âmbito da inspecção tributária realizada a J...e M...: “Confirmo o teor do presente relatório, propondo o encerramento da OI e o arquivamento do processo, na medida em que o S.P., através da apresentação das declarações de substituição, periódicas de IVA e de rendimentos Mod. 3, para o exercício de 2008, procedeu à regularização das omissões e inexactidões encontradas durante a análise das peças contabilísticas. Deste modo, da análise dos elementos juntos ao processo não foram identificadas outras irregularidades, pelo que da acção, propriamente dita, não subsistem outros actos tributários desfavoráveis ao contribuinte (…)” - cfr. parecer de fls. 1 do processo administrativo apensado aos autos.

2. Em 05.01.2012 o Chefe da Divisão, em substituição, dos Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Portalegre exarou o seguinte despacho sob o parecer identificado no ponto anterior do probatório e o relatório de inspecção tributária “Concordo. Encontrando-se regularizada a situação, arquive-se.” - cfr. despacho de fls. 1 do processo administrativo apensado aos autos.

3. Em 13.04.2012 J...apresentou, no Serviço de Finanças de Monforte, um pedido de revisão da liquidação de IRS do ano de 2008 - cfr. pedido de revisão de fls. 1 a 4 do processo apensado aos autos.

4. Em 25.10.2012 foi emitido o seguinte parecer sob informação elaborada no âmbito do procedimento de revisão: “Concordo com a informação prestada, pelo que sou de parecer de que o pedido deverá ser remetido à entidade competente para decisão. Todavia, superiormente, melhor se decidirá.” - cfr. parecer de fls. não numeradas do processo apensado.

5. Em 25.10.2012 o Director de Finanças de Portalegre exarou o seguinte despacho sob o parecer e informação identificados no ponto anterior do probatório: “Concordo. À consideração superior.” - cfr. fls. não numeradas do processo apensado.

6. Em 15.01.2013 a petição inicial dos presentes autos foi remetida, por correio postal registado, para o Serviço de Finanças de Monforte - cfr. envelope com selo do registo postal de fls. 17 do processo físico.»

Consta ainda da mesma sentença o seguinte:

«Não existem quaisquer outros factos com relevo que importe fixar como não provados.

A convicção do tribunal quanto à matéria de facto provada assentou na análise do processo administrativo apensado aos autos, tudo conforme discriminado supra no probatório.»

III. 2 – Fundamentação de direito


Sabendo-se que são as conclusões que delimitam o objecto do recurso, será sobre as questões ali alegadas que se centrará a apreciação do recurso.

No essencial, invocam os recorrentes que na petição inicial foi alegado que a «liquidação em causa e, em consequência, do acto impugnado» padeciam de nulidade, tendo carreado prova que impõem essa conclusão, e assim sendo a acção podia ser instaurada a todo o tempo.

Vejamos o que sobre a questão se nos oferece dizer.

Antes de mais, impõe-se salientar que não basta que o autor formule um pedido de declaração de nulidade do acto impugnado para que o direito de acção possa ser exercido a todo o tempo. Independentemente da falta de razão dos recorrentes quanto à questão semântica, sempre de dirá que o juiz está limitado pelos factos alegados pelas partes, no entanto, não está limitado pelas alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação do direito, impondo-se-lhe proceder à qualificação jurídica dos factos, conforme resulta do disposto no artigo 5.º, n.º 3 do CPC.

Em regra, os vícios que afectem os actos administrativos tributários são susceptíveis de determinar a sua anulabilidade. Nos termos do disposto nos artigos 133.º n.ºs 1 e 2 alínea d) e 135.º do Código de Procedimento Administrativo, na redacção em vigor à data dos factos, são nulos os actos a que falte qualquer dos elementos essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade, nomeadamente os actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental.

Na petição inicial foi formulado o seguinte pedido: «deve a presente impugnação ser admitida e julgada procedente, por provada, anulando-se a liquidação efectuada e, consequentemente a dívida exequenda e acréscimos, tudo com as demais consequências legais».

O então impugnante invocou como causa de pedir que sempre exerceu a actividade de agricultor/empresário agrícola, fez cessar a respectiva actividade em nome individual com o intuito de constituir uma sociedade com a sua mulher, transferindo todo o activo para aquela sociedade. Alegou ainda que a técnica oficial de contas, sem lhe dar conhecimento adoptou o procedimento de emissão de uma factura relativa aos bens do imobilizado e existências à data, atribuindo um valor unitário elevadíssimo aos animais envolvidos e de forma indiscriminada, em vez de os valorizar pela diferença entre o valor da aquisição e as reintegrações e amortizações legais e sem que tenha havido qualquer valor efectivo de transmissão, qualquer contraprestação. Donde concluiu que a liquidação, cuja revisão pediu, «está incorrectamente influenciada pelo “valor” atribuído às existências e pelas mais-valias fiscais apuradas no imobilizado», valores que impugna.

Imputa à liquidação a violação do princípio da legalidade, da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos, da igualdade e da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade, da colaboração da administração com os particulares, da participação e da decisão, bem como da tributação pelo lucro real e da verdade material.

Mais invocou na aludida petição inicial que apesar da razão de facto e de direito que lhe assiste não foi proferida decisão sobre o pedido de revisão, o que faz presumir o indeferimento tácito do mesmo.

Ora, desde já se adianta que, em face da causa de pedir invocada na petição inicial é insustentável defender a nulidade do acto impugnado.

Com efeito, a proceder qualquer um dos vícios do acto invocados na petição inicial, a consequência jurídica sempre seria a da anulabilidade do acto.

Neste sentido tem decido o STA, de forma reiterada, v.g. o Acórdão datado de 28/05/2008 proferido no processo n.º 0176/08: «IV - Apenas os actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental são nulos.

V - O acto tributário que infringe norma ou princípio constitucional, porque ferido de vício de violação de lei, não é nulo mas meramente anulável, não sendo, por isso, impugnável a todo o tempo, mas apenas no prazo de 90 dias, contados do termo do prazo para pagamento voluntário.»

Também no processo n.º 0611/11 o STA se pronunciou no mesmo sentido, por Acórdão de 06/06/2012: «A jurisprudência dominante deste Supremo Tribunal Administrativo vem sustentando que nem todos os actos que ferem princípios constitucionais são nulos, mas apenas aqueles que contendem com o núcleo duro de princípios fundamentais (v., entre outros, os acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA de 16.12.2010, recurso 396/10 e de 22/6/05, no recurso n.º 1259/04, da secção de Contencioso Tributário de 23.11.2005, recurso 612/05, e de 28.01.2004, recurso 1709/03, e ainda os acórdãos da secção de Contencioso Administrativo de 30.1.2011, recurso 673/10 e de 19.04.2007, recurso 809/06, todos in www.dgsi.pt ).»

Como se afirma neste último aresto, não é fácil a tarefa de discernir as situações em que ocorre a ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental das situações em que essa ofensa é meramente lateral ou indirecta do mesmo direito.

No entanto, sempre se dirá que o conteúdo essencial será violado sempre que esteja em causa a caracterização do núcleo de valores que na Constituição se visou consagrar como o direito fundamental em causa, «a violação do “conteúdo essencial de um direito fundamental” só gera a nulidade do acto administrativo e, consequentemente, a possibilidade da sua impugnação a todo o tempo, quando, em consequência do acto administrativo em causa, seja afectado o mínimo sem o qual esse direito não pode subsistir enquanto tal (cfr., o ac. do TCAN de 8.01.2016, proc. n.º 1665/10)» (cf. Acórdão deste TCAS proferido no processo n.º 2278/19.7BELSB em 21/01/2021).

Citando o Senhor Conselheiro Jorge Lopes de Sousa (in CPPT anotado, Áreas Editora, 6ª Edição, volume II, pág 330): «A liquidação ilegal de qualquer imposto acarreta uma ofensa do direito de propriedade, que é um dos direitos fundamentais. ( 2 ) Porém, nem todas as liquidações ilegais se podem considerar feridas de nulidade, já que a lei expressamente prevê para elas a sanção da anulabilidade, como se depreende do facto de prever um prazo para a sua impugnação (art. 102.° deste Código).

Não é qualquer ofensa de um direito fundamental que a alínea d) do n.° 2 do art. 133.° do CPA, mas apenas as ofensas do seu conteúdo essencial.

Uma ofensa deste tipo só ocorrerá quando perante ela o direito fundamental afectado fique sem expressão prática apreciável, o que não é o caso de uma liquidação ilegal, que apenas atinge limitadamente o direito de propriedade dos seus destinatários.

Por outro lado, entre as violações possíveis de direitos por normas tributárias, a sanção mais grave da nulidade, por razões de proporcionalidade, terá de ser reservada para os actos que representam mais graves violações dos direitos tributários.»

Donde se conclui que a petição inicial não poderia ser apresentada a todo o tempo como defendem os recorrentes.

Nos termos do disposto no artigo 57.º, n.º 1 e 3 da LGT, o procedimento tributário deve ser concluído no prazo de 4 meses, prazo que é contínuo, contando-se nos termos do disposto no artigo 279.º do CCivil, por força do estatuído no artigo 20.º, n.º 1 do CPPT. O incumprimento de tal prazo faz presumir o seu indeferimento para efeitos do exercício da tutela administrativa ou judicial, conforme decorre do n.º 5 da citada disposição legal.

O pedido de revisão da liquidação de IRS relativa ao ano de 2008 foi apresentado em 13/04/2012, conforme resulta do ponto 3 da matéria de facto provada, pelo que, em 14/08/2012 formou-se a presunção de indeferimento do pedido.

Os recorrentes dispunham do prazo de 90 dias para impugnar tal acto, conforme dispunha o artigo 102.º, n.º 1, alínea d) do CPPT na redacção então vigente.

Como supra se referiu, a contagem do prazo obedece ao disposto no artigo 279.º do CCivil, por força do disposto no artigo 20.º, n.º 1 do CPPT, o que significa que o prazo de impugnação judicial teve o seu termo inicial em 15/8/2012 e o seu termo final em 12/11/2012.

Tendo presente que a petição inicial foi apresentada em 15/01/2013, conforme resulta do ponto 6 do probatório, nessa data, já havia caducado o direito de impugnação judicial, tal como se decidiu em primeira instância, julgamento que é de confirmar, impondo-se julgar improcedente o recurso, ao que se provirá na parte do dispositivo deste acórdão.


IV – CONCLUSÕES

I – Em regra, os vícios que afectem os actos administrativos tributários são susceptíveis de determinar a sua anulabilidade;

II – A violação do “conteúdo essencial de um direito fundamental” só gera a nulidade do acto administrativo tributário tornando-o impugnável a todo o tempo, quando, em consequência deste, seja afectado o mínimo sem o qual esse direito não pode subsistir enquanto tal.


V – DECISÃO

Termos em que, acordam os juízes que integram a 1ª Subsecção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo em negar provimento ao recurso e em confirmar a sentença recorrida.


Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 10 de Fevereiro de 2022.



Ana Cristina Carvalho – Relatora

Lurdes Toscano – 1ª Adjunta

Maria Cardoso – 2ª Adjunta