Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:13644/16
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:05/04/2017
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:ILHA DA CULATRA,
PROGRAMA POLIS LITORAL,
DOMÍNIO PÚBLICO
Sumário:I – No contexto dos litígios relativos à demolição das construções erguidas, sob a égide do Decreto-Lei nº 92/2008, em sede do projeto de Intervenção e Requalificação da Culatra, a primeira questão a resolver é saber se o solo respetivo está ou não numa ilha, no sentido próprio do termo.

II – Se o solo não estiver numa ilha, mas sim num depósito de areias (leito do mar sobrelevado - domínio público do Estado), tal solo não é suscetível de posse privada ou de usucapião.

III – Se o solo (que pode ser terra, rocha, areia, etc.) não estiver numa ilha, não há verdadeiro litígio no âmbito de uma discussão do direito de propriedade, que justifique suspender a instância da ação administrativa interposta contra a decisão de demolição adotada pela entidade pública “Polis Litoral Ria Formosa - Sociedade para a Requalificação e Valorização da Ria Formosa S.A.”.

IV - A legislação que rege a empresa “Polis Litoral Ria Formosa” não prevê a “única habitação” ilegal como um obstáculo jurídico absoluto às demolições.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

MARIA …………………, JAIME ……………… e OUTROS intentaram no Tribunal Administrativo de Círculo de Loulé ação administrativa especial contra

- POLIS LITORAL RIA FORMOSA - Sociedade para a Requalificação e Valorização da Ria Formosa S.A., NUIPC 508683424, com sede no Chalet João Lúcio - Pinheiros de Marim, 8700-225 Olhão,

e ainda, enquanto Contra-interessados (embora formule pedidos dirigidos individualmente a estes), contra:

- Ministério das Finanças, com sede na Avenida Infante D. Henrique, n.° 1, 1149-009 Lisboa;

- Ministério do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia, com sede na Rua de O Século, n.° 51, 1200-433 Lisboa,

- Município de Faro, com sede no Largo da Sé, 8004-001 Faro.

O pedido compósito formulado foi o seguinte:

1º- Declaração da nulidade ou anulação dos atos administrativos impugnados (o pedido principal),

2º- (apesar de não terem invocado que pediram a delimitação legalmente prevista – cf. artigo 17º da Lei nº 54/2005) Condenação do contrainteressado Ministério do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia a proceder à delimitação da margem dominial da Ilha da Culatra, junto ao Núcleo dos Hangares, por forma a estabelecer quais os exatos limites dessa margem e assim confirmar que nenhuma das casas dos ora Autores se localiza no domínio público hídrico (este pedido, apenas relativo à margem, é feito no pressuposto de que a Culatra é mesmo uma ilha e não parte derivada do leito arenoso do mar),

3º- Condenação da Ré Polis Litoral Ria Formosa, S.A. e das entidades contrainteressadas a reconhecerem o direito de propriedade de cada um dos Autores sobre as suas casas e sobre os terrenos em que estas estão implantadas, incluindo os respetivos logradouros (aqui, os AA pressupõem que não há que discutir leitos, por a Culatra ser mesmo uma ilha, e afirmam que a maioria das casas a demolir não está dentro da alegada margem do mar dessa suposta ilha),

4º- Condenação da Ré Polis Litoral Ria Formosa, S.A. e das entidades contrainteressadas a reconhecerem a legalidade urbanística dessas construções.

Após os articulados, o Tribunal Administrativo de Círculo emitiu em 15-03-2016 um despacho, em que decidiu suspender a instância, ao abrigo do artigo 15º/1 do CPTA, por causa do 3º pedido cit., que não caberia aos tribunais administrativos julgar. Invocou para tal apenas o artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

*

Inconformada com tal decisão, a ré PÓLIS interpôs o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto do despacho de 15/03/2016 (a fls. 744 do Sitaf) que decidiu decretar a suspensão da instância ao abrigo do artigo 15º, nº1 do CPTA.

2. No caso, o Tribunal “a quo” decretou oficiosamente a suspensão da instância, sem antes ter convidado ambas as partes a se pronunciarem sobre essa sua intenção, como era obrigatório por força do elementar princípio do contraditório.

3. O que configura a omissão de uma formalidade essencial que a lei prevê, na tramitação típica do processo, em clara violação do princípio do contraditório, nos termos do artigo 3º, nº3 do CPC ex vi artigo 1º do CPTA, configurando uma nulidade secundária, aqui arguida para todos os efeitos legais - artigos 195º, nº1 e 199º, nº1 do CPC, ex vi artigo 1º do CPTA.

4. Em segundo lugar, o Tribunal “a quo” também se absteve de proferir, previamente, o necessário despacho saneador, para conhecer e resolver as questões prévias suscitadas na contestação, que obstam ao conhecimento do objeto do processo, como se impunha face ao disposto nos arts. 87º, nº1 e 88º, nº1 do CPTA, o que também configura uma nulidade secundária, aqui arguida para todos os efeitos legais – arts. 195º, nº1 e 199º, nº1 do CPC, ex vi 1º do CPTA.

5. Em face das questões prévias suscitadas na contestação, impunha-se, desde logo, ter sido proferido o competente despacho saneador, e aí ter sido decretada a absolvição da instância, pelo menos em relação aos 2º a 4º pedidos, e nunca a suspensão da instância, com aquela juridicamente incompatível.

6. No caso sub judice, não se verificam os pressupostos normativos para a extensão da competência dos tribunais administrativos por via da aplicação do artigo 15º, nº1 do CPTA, desde logo, porque, ao contrário do que está implícito no despacho recorrido, a questão da aquisição do direito de propriedade, por via de usucapião, não surge no desenho da lide apenas de forma indireta, como mera questão prejudicial, mas é uma verdadeira questão principal, integrada no objeto imediato da lide, como fundamento de pedido principal e autónomo de condenação da Ré, com vista à obtenção de caso julgado material.

7. Salvo o devido respeito, o despacho recorrido sofre de erro de julgamento, por errada interpretação e aplicação do artigo 15º, nºs 1 e 3 do CPTA, na medida em que a questão da propriedade ou posse não foi desenhada na lide apenas incidentalmente como uma mera questão prejudicial no contexto da análise da validade do ato impugnado (1º pedido), mas surge verdadeiramente como uma questão principal, integrada no objeto imediato da lide, como fundamento do pedido principal de condenação da Ré e contra-interessados «a reconhecerem o direito de propriedade de cada um dos Autores sobre as suas casas e os terrenos em que estão implantadas, incluindo os logradouros” (3º pedido).

8. No caso, o que se verifica é uma cumulação ilegal de pedidos por violação das regras da competência em razão da matéria, determinante da imediata absolvição da instância, nos termos do artigo 5º, nº2 do CPTA, que se considera violado pelo despacho recorrido.

9. Porque a questão principal a conhecer nesta ação (condenação da R. no Reconhecimento do direito de propriedade) e que constitui o objeto imediato do processo, foge totalmente a matéria substancialmente administrativa – como aliás reconhece o despacho recorrido –, funcionará, aqui, a competência residual dos Tribunais comuns - arts. 212º, n.º 3, da Constituição, artigo 1º, nº1, e 4º, nº1, al.ª a) do ETAF e o artigo 144º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013, de 26 de agosto), art. 15º, nº1 da Lei nº 54/2005, de 15/11 (na redação dada pela Lei n.º 34/2014 de 19/06) e artigo 10º, nºs 3, “a contrario”, do Decreto-Lei nº353/2007.

10. Do mesmo modo, o pedido de condenação dos contra-interessados a procederem à delimitação das margens dominiais em conformidade com o disposto no Decreto-Lei nº 353/2007, de 26/10 (2º pedido), também não cabe na competência dos tribunais administrativos, uma vez que a delimitação é sempre da esfera administrativa (e nunca judicial), nos termos do artigo 17º da Lei nº 54/2005 (Lei da Água), regulamentado pelo Dec.-Lei nº353/2007, de 26/10, e pela Portaria n.º 931/2010, de 20/09, pelo que o despacho recorrido também violou, nesta parte, o disposto no artigo 5º, nº2 do CPTA, determinante da absolvição da instância.

11. O problema da extensão da competência dos tribunais administrativos a matéria de competência dos tribunais comuns está resolvido apenas quanto a questões prejudiciais que surgem como incidente prejudicial de uma causa, o que manifestamente não é o caso “sub judice”, face à cumulação de pedidos formulados a título principal e dirigidos à obtenção de um caso julgado material.

12. Sem conceder, o Tribunal “a quo” também não poderá absolver da instância o pedido principal sobre a questão da propriedade (3º pedido), mas mesmo assim dela conhecer, apenas a título prejudicial, no contexto da análise da invalidade do ato impugnado (1º pedido), porque não é isso que foi pedido: é que a formulação de uma cumulação de pedidos principais, aspirando à condenação de alguém (neste caso à condenação da Ré) e, por isso mesmo, à obtenção de um caso julgado material, exclui a recondução à facti species do artigo 15º, nº1 e 3 do CPTA, que tem efeitos restritos à causa (caso julgado formal).

13. Além disso, deverá reconhecer-se que a absolvição da instância do pedido principal sobre a questão da propriedade (3º pedido) faz caso julgado formal (tem força obrigatória dentro do processo e o tribunal “a quo” não mais poderá dela conhecer – art. 620º, nº1 do CPC), pelo que a absolvição da instância é lógica e juridicamente incompatível com a suspensão da instância até que o tribunal cível competente se pronuncie sobre a mesmíssima questão.

14. Sofre de erro de julgamento o convite formulado aos AA para, no prazo de 2 (dois) meses a contar da notificação desse despacho, virem comunicar a propositura da competente ação, na medida em que a entrada pelos AA de uma ação no tribunal cível com o mesmo pedido (sobre a questão da propriedade) conduziria a litispendência, em violação do artigo 89º, nº1, al.ª i) do CPTA.

15. Finalmente, o despacho recorrido sofre de erro de julgamento, porque a suspensão da instância por ele decretada se traduz num ato inútil, proibido por força do artigo 130º do C.P.C., manifesto desperdício de atividade judicial: é que a questão da propriedade ou posse suscitada pelos AA é inglória e ab initio fadada ao insucesso, uma vez que, mesmo no desenho da lide perspetivado pelos AA, eles próprios consideram que a existência (ou não) do invocado direito depende, em qualquer caso, da prévia fixação dos “exatos limites das margens dominiais” (art. 58º da P.I.), a realizar através de uma prévia “delimitação” (art. 60º da P.I.), ou seja, através de um prévio procedimento administrativo (e nunca judicial), nos termos do DL nº353/2007, de 26/10, e da Portaria n.º 931/2010, de 20/09, o qual, todavia, nunca foi alegado, nem requerido pelos AA, o que também revela a manifesta falta de interesse em agir invocada.

16. Ao não ter julgado de acordo com as antecedentes conclusões, o douto despacho recorrido violou as sobrecitadas disposições legais

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O recorrido coautor Jaime ………….. contra-alegou:

1. Não se verificam as nulidades processuais invocadas pela recorrente.

2. Nem tão pouco a douta decisão em crise enferma dos erros de julgamento que lhe são assacados pela recorrente.

3. Tendo o douto despacho em crise feito correta aplicação do Direito, mais concretamente do art.º 15.º do CPTA.

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O digno magistrado do M.P. junto deste tribunal foi notificado para se pronunciar em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no n.º 2 do artigo 9.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, como previsto no nº 1 do art. 146º.

Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

*

Delimitação do objeto do recurso - questões a apreciar:

Cabe, ainda, sublinhar que os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido e respetivos fundamentos, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso (cfr. artigos 144º/2 e 146/4 do CPTA, 5º, 608º/2, 635º/4/5, e 639º do CPC/2013, “ex vi” artigos 1º e 140º do CPTA), alegação que apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas.

Por outro lado, nos termos do artigo 149.º do CPTA, o tribunal “ad quem”, em sede de recurso de apelação, não se limita a cassar a decisão judicial recorrida, porquanto, ainda que a revogue ou declare nula, deve decidir o objeto da causa apresentada ao tribunal “a quo”, conhecendo de facto e de direito, reunidos que se mostrem no caso os pressupostos e condições legalmente exigidos.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

Está provado o seguinte:

1.

Damos aqui por reproduzidos os articulados.

2.

O despacho recorrido contém o seguinte:

“A Entidade Demandada alega, no que desde logo, releva, que a questão principal ou central dos presentes autos, passa por saber se os Autores são, ou não, os proprietários dos terrenos onde as casas estão – ou estavam no caso de, entretanto, terem sido demolidas – erigidas. A competência para apreciar esta questão não cabe aos Tribunais administrativos pois não vem prevista no artº 4º do ETAF, cabendo assim, aos Tribunais comuns. Nestes termos, por força do nº 1 do artº 15º do CPTA, suspendo a presente instância. Devem os Autores no prazo de 2 (dois) meses a contar da notificação deste despacho, vir comunicar a propositura da competente ação, sob pena de não o fazendo, o processo prosseguir nos termos do nº 3 do artº 15º do CPTA. Notifique.”

*

Ora, o presente recurso de apelação coloca as seguintes questões (supostamente contra o despacho recorrido):

- Nulidade processual, por violação do princípio do contraditório (artigos 3º/3, 195º/1 e 199º/1 do Código de Processo Civil);

- Nulidade processual, por omissão da prolação do despacho saneador;

- Erro quanto ao pedido nº 3, pois que se trata de um pedido cumulado, e não de questão incidental, pelo que não se aplica o artigo 15º do CPTA;

- (embora o despacho recorrido nada tendo dito sobre o pedido nº 2) Ilegalidade e inutilidade do pedido nº 2;

- O convite feito no despacho ao abrigo do nº 2 do artigo 15º do CPTA é ilegal, pois admite a litispendência quanto ao pedido nº 3;

- Inutilidade e ou falta de interesse em agir no pedido nº 2.

*

Vejamos.

A)

Quanto às duas alegadas nulidades processuais, cits., o meio adequado para as atacar é a reclamação para o tribunal que as cometeu, sendo que estas em concreto se tratam de omissões na tramitação processual (cf. artigo 199º do Código de Processo Civil).

Pelo que delas não podemos aqui conhecer em sede de recurso.

Poderíamos, sim, conhecer, com este recurso contra o despacho emitido (que suspendeu a instância ao abrigo do artigo 15º/1 do CPTA), de um eventual despacho que incidisse sobre tal reclamação se se verificasse o condicionalismo previsto no artigo 199º/1 do Código de Processo Civil.

B)

Por outro lado, como o despacho recorrido não se pronunciou sobre o pedido nº 2, o recurso não pode, pelo menos diretamente, versar sobre alegadas ilegalidades cometidas a propósito do cit. pedido nº 2.

Pelo que não podemos aqui conhecer das questões concretas aqui levantadas a propósito de tal pedido relativo à delimitação, mas não apreciadas no despacho recorrido.

Resta-nos, assim, a errada aplicação do artigo 15º do CPTA ao pedido nº 3, cit.

C)

A petição inicial contém 4 pedidos:

1º- invalidação dos atos administrativos que decidiram a demolição das construções dos AA, como é próprio de uma ação administrativa especial de impugnação de atos administrativos;

2º- condenação dos RR a fazerem a delimitação a que se reporta o artigo 17º da Lei nº 54/2005 (1 - A delimitação do domínio público hídrico é o procedimento administrativo pelo qual são fixados os limites dos leitos e das margens dominiais confinantes com terrenos de outra natureza. 2 - A delimitação a que se refere o número anterior compete ao Estado, que a ela procede oficiosamente, quando necessário, ou a requerimento dos interessados. 3 - As comissões de delimitação são constituídas por iniciativa dos membros do Governo responsáveis pelas áreas do ambiente, da agricultura e do mar, no âmbito das respetivas competências, e integram representantes dos ministérios com atribuições em matéria de defesa nacional, agricultura e, no caso do domínio público marítimo, mar, bem como representantes das administrações portuárias e dos municípios afetados e, ainda, representantes dos proprietários dos terrenos confinantes com os leitos ou margens dominiais a delimitar. 4 - Sempre que às comissões de delimitação se depararem questões de índole jurídica que não estejam em condições de decidir por si, podem os respetivos presidentes requerer a colaboração ou solicitar o parecer do delegado do procurador da República da comarca onde se situem os terrenos a delimitar. 5 - O procedimento de delimitação do domínio público hídrico, bem como a composição e funcionamento das comissões de delimitação são estabelecidos em diploma próprio. 6 - A delimitação, uma vez homologada por resolução do Conselho de Ministros, é publicada no Diário da República. 7 - A delimitação a que se proceder por via administrativa não preclude a competência dos tribunais comuns para decidir da propriedade ou posse dos leitos e margens ou suas parcelas. 8 - Se, porém, o interessado pretender arguir o ato de delimitação de quaisquer vícios próprios deste que se não traduzam numa questão de propriedade ou posse, deve instaurar a respetiva ação especial de anulação) e a Lei nº 353/2007;

3º- reconhecimento do direito de propriedade privada dos AA sobre as construções e seu solo respetivo, por via de usucapião de uma “porção de terra rodeada pelo mar” (trata-se, em rigor, de um pressuposto do 1º pedido, ao contrário do que entende a Pólis);

4º- reconhecimento da legalidade das ditas construções (trata-se de um pedido não autónomo, pois é apresentado na petição inicial como fundamento do 1º pedido e consequência do 3º pedido).

Ora, independentemente daquilo que o saneador venha a decidir, é fácil de ver que o 2º pedido ignora que os AA podem requerer à entidade administrativa competente a referida delimitação. E que esta só será da iniciativa pública se o Estado tiver dúvidas, o que, aqui, manifestamente não ocorre.

Já o 3º pedido (que pressupõe que a Culatra é mesmo uma ilha e não um depósito de areias do mar) surge como questão prévia em sentido lato ou como questão incidental relativamente ao pedido principal nº 1, cit. E daí ser-lhe aplicável, em abstrato, o artigo 15º/1 do CPTA (Quando o conhecimento do objeto da ação dependa, no todo ou em parte, da decisão de uma ou mais questões da competência de tribunal pertencente a outra jurisdição, pode o juiz sobrestar na decisão até que o tribunal competente se pronuncie). Bem como o nº 2 de tal artigo 15º, em que o Tribunal Administrativo de Círculo se baseou para fazer o convite que a recorrente considera ilegal, por implicar uma litispendência.

Ora quanto a este último aspeto, dizemos desde já que a recorrente não tem razão. No pressuposto hipotético de que o artigo 15º/1 foi bem aplicado, o artigo 15º/2 também o foi, não fazendo sentido falar-se em admissão de litispendência, porque aí o Tribunal Administrativo de Círculo já se considerou sem competência para julgar tal pedido/questão nº 3, pedido e questão cível que o Tribunal Administrativo de Círculo considerou ter de ficar resolvida antes de prosseguir para a apreciação dos demais pedidos.

Finalmente, o 4º pedido, na verdade, não é um pedido com autonomia. Pelo que já dissemos.

Sublinhe-se, ainda, que a petição inicial não afirma que os AA são donos de margens ou de leitos. Afirma que são donos de uma verdadeira ilha, ou de partes de uma verdadeira ilha, cujas margens não querem para si. A Pólis responde que não existe ali qualquer ilha, mas sim apenas um leito do mar português.

D)

O ponto de partida da causa de pedir, a provar, é o seguinte: as casas dos AA, que foram mandadas demolir, situam-se numa verdadeira ilha (= porção de terra emersa rodeada de água, originada por fragmentos destacados da massa continental, constituída por rochas de tipo continental, por porções emersas da crosta oceânica ou por acumulações de fragmentos calcários de coral consolidados) e não num areal, não sobre areias ou leito do mar. Assim, como ilha do Estado português, tal território não seria margem ou leito do mar, pelo que poderia ser adquirido por usucapião pelos AA.

Portanto, este era e é o 1º ponto de facto essencial, a demonstrar neste processo. E não noutro. Não se trata de delimitar terra privada de leitos do mar. não se trata, ainda, de reivindicar a propriedade privada de leito do mar. Os AA afirmam que são co-donos da ilha da Culatra.

E qualquer tribunal português pode apurar o que é uma ilha e o que não é uma ilha, para efeitos de causa de pedir de uma ação.

Assim, resulta dos articulados uma 1ª questão controvertida, passada despercebida: a ilha da Culatra é uma verdadeira ilha (domínio privado) ou é um depósito de areias criado ao longo do tempo (domínio público presumido, que os AA não questionam como tal, isto é, se fosse depósito de areias; o que é lógico, já que afirmam que é mesmo uma ilha)?

Os AA, portanto, afirmam que a Culatra é uma ilha em sentido próprio. A Pólis afirma que não é uma ilha (= porção de terra emersa rodeada de água, originada por fragmentos destacados da massa continental, constituída por rochas de tipo continental, por porções emersas da crosta oceânica ou por acumulações de fragmentos calcários de coral consolidados).

Assim, se os AA não demonstrarem aqui, como alegam na petição inicial, que a Culatra é uma ilha real, juridicamente falando, e não um depósito de areias consolidado ou não (tese dos atos administrativos impugnados), já não poderão prosseguir para a questão consequente que nos traz a este recurso e à utilidade da aplicação do artigo 15º do CPTA: a questão da dominialidade pública ou privada do solo da chamada ilha da Culatra.

Se a Culatra não for uma ilha em sentido próprio, mas “apenas” areia e ilha-barreira, ela já não poderia ser – nunca - do alegado domínio privado do Estado, alegadamente perdido por este através de usucapião.

Assim, temos desde já, uma 1ª conclusão: antes da questão que fez surgir o despacho recorrido e este recurso, faltava e falta ficar provada nos autos uma das duas teses constantes dos articulados sobre a Culatra: (i) ilha real, juridicamente falando, ou (ii) “ilha-barreira” formada por depósitos de areias ao longo do tempo.

Logo, por isso, o processo deveria prosseguir; fosse para desde logo esclarecer tal questão, fosse também para um integral despacho saneador.

Houve, assim, precipitação na aplicação do artigo 15º/1 do CPTA.

E)

Se os AA não demonstrarem no presente processo que se trata mesmo de uma ilha, já não se discutirá mais nada de essencial, porque a (vaga e) ilegal apropriação privada – base do alegado usucapião da ilha-barreira - estaria confessada na petição inicial, assim afetando negativamente o pedido de simples apreciação referente à propriedade privada da ilha-barreira ou do essencial do seu espaço (pedido da competência jurisdicional dos tribunais judiciais cíveis).

Ora, a chamada ilha da Culatra, onde se insere o chamado Núcleo dos Hangares, pode ser considerada, como se sabe e se refere nos articulados, como sendo constituída meramente por depósitos de areias do mar português.

Não seria, assim, uma ilha, uma porção de terra (e não terreno) rodeada por água, isto é, uma “porção de terra emersa rodeada de água, originada por fragmentos destacados da massa continental, constituída por rochas de tipo continental, por porções emersas da crosta oceânica ou por acumulações de fragmentos calcários de coral consolidados”.

Logo, não teria margem (faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas) ou leito do mar (terreno coberto pelas águas quando não influenciadas por cheias extraordinárias, inundações ou tempestades. No leito compreendem-se os mouchões, lodeiros e areais nele formados por deposição aluvial).

A petição inicial não põe em dúvida quaisquer margens da suposta ilha (50 metros), onde aliás as casas dos AA não se situariam.

Invoca apenas que a Culatra, onde as construções estão, é uma ilha (não sendo, assim, leito do mar) e que as casas a demolir e seus solos (de areia?) são hoje propriedade privada, devido a usucapião da cit. ilha, não estando as casas e seus logradouros nas margens dessa ilha em sentido próprio, segundo os AA.

Note-se que “compete aos tribunais comuns decidir sobre a propriedade ou posse de parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, cabendo ao Ministério Público, quando esteja em causa a defesa de interesses coletivos públicos subjacentes à titularidade dos recursos dominiais, contestar as respetivas ações, agindo em nome próprio; e que quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis deve provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868; e ainda que, na falta de documentos suscetíveis de comprovar a propriedade nos termos do número anterior, deve ser provado que, antes das datas ali referidas, os terrenos estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa” (artigo 15º da Lei nº 54/2005).

Ora, só está em causa, para os AA, o centro ou núcleo da “ilha” (ilha em sentido próprio, para os AA), e não as suas supostas “margens” (caso haja mesmo uma ilha real e “a se”, isto é, caso houvesse terra com rocha rodeada por mar). Neste caso, sim, o solo sob as casas a demolir não seria nem margem, nem leito do mar; estaria, portanto, fora do domínio público marítimo (águas costeiras e territoriais; águas interiores sujeitas à influência das marés, nos rios, lagos e lagoas; leito das águas costeiras e territoriais e das águas interiores sujeitas à influência das marés; fundos marinhos contíguos da plataforma continental, abrangendo toda a zona económica exclusiva; margens das águas costeiras e das águas interiores sujeitas à influência das marés); isto é, estaria acessível ao comércio jurídico, v.g., à posse privada para usucapião.

Mas, como já vimos, a Culatra pode bem não ser uma ilha do ponto de vista jurídico-geológico; como tal, obviamente, não teria margens (tema irrelevante na petição inicial) e seria leito do mar. Ela confundir-se-ia, como resulta da tese da Pólis e das leis que esta executa, com o leito do mar português, sendo uma mera barreira resultante de depósitos de areias. Isto quereria dizer que a base primeira de onde partem os AA cairia logo por terra.

E caberá aos AA, que não pediram a delimitação administrativa a que se refere a Lei nº 54/2005 e a Lei nº 353/2007, a alegação (que fazem) e o ónus da prova da existência de uma verdadeira ilha no local chamado de Culatra. Só nesse pressuposto essencial é que releva um suposto domínio privado do Estado, invocado na petição inicial; isso para depois prosseguir – logicamente - para a alegada usucapião desse domínio privado; e depois para o pedido nº 3 como questão cível incidental ou pressuposta do 1º pedido.

Só no caso oposto, isto é, de que não há ali uma ilha (no sentido verdadeiro já definido supra), de que o solo em causa corresponde a depósitos de areias no meio do mar, é que, em sede cível prévia, caberá aos AA elidirem a presunção de dominialidade pública que a lei (Lei nº 54/2005) prevê para os depósitos de areias junto ao mar ou no meio do mar português, como resulta dos artigos 342º e 343º do Código Civil.

Mas antes, não se provando que a Culatra era uma verdadeira ilha em 1975/1980, sendo, portanto, insuscetível de usucapião resultante de posse por 30 anos, dada a presumida dominialidade pública dos leitos, o cit. 3º pedido perderá toda a relevância processual, sendo pura perda de tempo suspender este processo administrativo por causa de uma, por enquanto, fantasiosa ou hipotética questão cível.

Portanto: se a Culatra não for uma ilha em sentido jurídico e geológico, mas aquilo que a Pólis afirma que a Culatra é, então, e considerando ainda que os AA apenas sustentam que a Culatra não é leito, mas sim ilha, então será manifesto que não havia nem há nada para delimitar e que não havia nem há que discutir (aqui, incidentalmente; nos tribunais judiciais, a título principal) a propriedade (legalmente presumida) desse leito do mar de constituição areal; afinal, estar-se-á fora do âmbito dos cits. artigos 15º/1 e 17º da Lei nº 54/2005, porque a discórdia inicial existente entre as partes não é sobre a propriedade privada de margens ou leitos reconhecidos como tal pelas partes, mas sim sobre se o local em causa é ou não

(i) um leito do mar sobrelevado (domínio público do Estado) ou

(ii) uma ilha em sentido jurídico-geológico (domínio privado do Estado, segundo os AA, e portanto usucapivel).

E, se for um leito do mar, a maioria das ilegalidades apontadas aos atos administrativas cairá, automaticamente, por terra.

Em síntese, só terá utilidade processual ponderar a suspensão (não obrigatória) desta instância ao abrigo do artigo 15º do CPTA, por causa daquele 3º pedido, se ficar claro nestes autos o 1º pressuposto de tudo: que a Culatra é terra (com rocha, pedra ou consolidação calcária de coral) rodeada por água, e não leito do mar por ser uma formação resultante de um depósito de areias ao longo do tempo.

Nestes termos se conclui que o despacho recorrido, ao decidir suspender este processo, é um ato processual ilegal, porque sem fundamento nos termos concretos deste litígio, o qual assenta sobretudo na natureza jurídico-geológica da Culatra. O despacho, talvez induzido em erro pela petição inicial (onde se confunde “terreno” e solo com “ilha ou terra emersa rodeada por mar”), deu já por certo um pressuposto indemonstrado e controvertido para fazer parar os autos: tal pressuposto foi o de que a Culatra é aquilo que os AA afirmam e que não é aquilo que a Pólis (e aparentemente a regulamentação administrativa) afirma.

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III. DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os juizes deste Tribunal Central Administrativo Sul em, concedendo provimento ao recurso, julgá-lo procedente e revogar o despacho recorrido.

Custas a cargo do contraalegante.

Lisboa, 04-05-2017

(Paulo Pereira Gouveia - relator)

(Nuno Coutinho)

(J. Gomes Correia)