Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2925/04.5BELSB
Secção:CT
Data do Acordão:09/30/2020
Relator:BENJAMIM BARBOSA
Descritores:CLÁUSULA GERAL ANTI-ABUSO
STEP TRANSACTION DOCTRINE
CASO JULGADO
Sumário:i. A Cláusula Geral Anti-abuso (CGAA) prevista no artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária visa, principalmente, desconsiderar os efeitos fiscais resultantes de operações sem fundamento económico, artificialmente construídas com propósitos essenciais de elisão fiscal.
ii. Na versão do artigo 63.º do CPPT aplicável à data dos factos, a CGAA só podia ser aplicada depois de autorizada, em procedimento próprio enxertado no procedimento de informação e fiscalização, pelo dirigente máximo da administração fiscal ou pelo funcionário a quem aquele tivesse delegado essa competência, sendo o acto de autorização passível de impugnação contenciosa.
iii. Na falta ou improcedência de impugnação contenciosa de tal acto este firmava-se na ordem jurídica como caso resolvido ou decidido.
iv. A impugnação contenciosa do acto de autorização da CGAA, por vícios próprios deste acto, não impede a posterior impugnação dos vícios que respeitem à sua concreta aplicação, a ser efectivada em procedimento distinto e autónomo do procedimento de autorização e do procedimento de informação e fiscalização, isto é, no procedimento de liquidação.
v. As informações, pareceres e relatório exarados no procedimento de informação e fiscalização, onde se enxerta um procedimento de aplicação da CGAA, podem comportar três sentidos ou finalidades e ter aplicação em dois procedimentos distintos: no procedimento de autorização, (1) consubstanciam a fundamentação da proposta para autorização da aplicação da CGAA e (2) servem como fundamentação própria do acto autorizador, caso haja concordância do decisor com os mesmos; no procedimento de liquidação, (3) constituem a fundamentação própria, por remissão implícita, dos actos de liquidação.
vi. Assim, ainda que exista uma coincidência gramatical entre a fundamentação de cada um dos referidos actos e proposta, não se verifica uma coincidência jurídica, tendo cada acto a sua fundamentação própria, sendo por isso a fundamentação do acto autorizador da aplicação da CGAA juridicamente distinta da fundamentação dos actos de liquidação subsequentes, os quais são praticados em procedimento igualmente distinto do procedimento do acto autorizador e com destinatários diferentes: o destinatário directo do acto de autorização é a própria administração, enquanto os actos de liquidação têm por destinatário directo o sujeito passivo.
vii. Para efeitos do acto de autorização da CGAA, a enunciação dos elementos que demonstram a falta de substância económica do negócio depende de um juízo perfunctório e abstracto, que não se confunde com a prova dessa falta de substância económica.
viii. O acto autorizador não é lesivo nem definitivo no sentido de estabelecer a posição definitiva da Administração. No entanto, consolidado na ordem jurídica, os vícios próprios desse acto, mas só esses, não podem voltar a ser reapreciados ou ser objecto de posterior impugnação.
ix. A inimpugnabilidade de tais vícios não significa, porém, que os vícios de outros actos tributários praticados em procedimento distinto, concretamente no procedimento de liquidação, não possam ser arguidos e apreciados.
x. Assim, na impugnação da liquidação consequente às correcções efectuadas ao abrigo da CGAA o contribuinte não está impedido de suscitar a sua concreta ilegalidade, o que pode redundar na impugnação dos elementos concretamente considerados na aplicação da norma anti-abuso, ainda que estes, de forma indiciária, tenham sido conhecidos no despacho autorizador da mesma.
xi. Não existe relação de prejudicialidade entre o objecto de uma acção administrativa em que se impugna o acto que autoriza a aplicação da CGAA e o objecto da impugnação judicial das liquidações subsequentes. Tal relação de prejudicialidade só existirá, parcialmente, se o acto autorizador for novamente sindicado na impugnação judicial, como sucede no presente caso.
xii. O âmbito do caso julgado está objectivamente limitado pela relação silogística que se estabelece entre a decisão concreta e os factos que lhe servem de suporte e pela fundamentação que se correlaciona directamente com essa decisão.
xiii. Inexiste qualquer autoridade do caso julgado formado por acórdão proferido numa acção administrativa relativa à impugnação do acto de autorização da CGAA e a posterior impugnação judicial das liquidações subsequentes. Qualquer fundamentação do primeiro, referente à prova da falta da substância económica do negócio, é pura e simplesmente irrelevante para efeitos de caso julgado em impugnação judicial posterior, apenas relevando a parte da fundamentação relativa à justificação da aplicação futura da CGAA, tanto mais que as fundamentações do acto autorizador e das liquidações, podendo ser gramaticalmente coincidentes, juridicamente não constituem uma só e única fundamentação.
xiv. Estender a autoridade do caso julgado formado em acção administrativa de impugnação contenciosa do acto que autoriza a aplicação da CGAA ao processo de impugnação judicial das liquidações subsequentes, impedindo a concreta impugnação destas, viola o disposto nos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da CRP, e constitui uma violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva, visto que priva a contribuinte do direito à sindicância de um acto tributário, que a lei fundamental e normas de direito ordinário manifestamente lhe reconhecem.
xv. As anti-abuse judicial doctrines são produto da jurisprudência dos países da common law, mormente da jurisprudência norte-americana. Nestes países o ordenamento jurídico atribui aos precedentes judiciais a força de padrão normativo a ser usado em casos semelhantes, os quais, à semelhança dos antigos Assentos, constituem verdadeiros princípios jurídicos vinculativos para os tribunais inferiores.
xvi. Uma dessas doutrinas, a step transaction doctrine (denominada no Reino Unido como composite transaction doctrine), postula que uma série de transações concebidas e executadas como partes de um plano unitário, com o único ou principal propósito de alcançar um determinado resultado fiscal, serão vistas como um todo independentemente do efeito produzido ser a imposição ou a isenção de impostos.
xvii. Não é conforme à step transaction doctrine considerar a sua aplicação numa operação económica que se desenrola em várias etapas, relevando para esse efeito apenas a última etapa, com fundamento no alegado propósito elisivo da mesma, e irrelevando as etapas anteriores com fundamento na sua licitude e pertinência.
xviii. Em regra o regime jurídico das Sociedades Gestoras de Participações Sociais (SGPS) impede a este tipo de sociedade conceder créditos. Assim, face ao regime jurídico que lhe era aplicável, a recorrente não podia conceder directamente os empréstimos efectuados à maioria das sociedades que deles beneficiaram no caso sub judice. Não se verifica, assim, a premissa de que partir a AT para justificar a aplicação da CGAA.
xix. Em regra, as sociedades comerciais têm por finalidade o lucro, o que não sucede com as SGPS, que têm uma gestão essencialmente orientada para o lucro das sociedades que lhe estão subordinadas, embora o lucro não esteja completamente arredado dos propósitos da sua actividade.
xx. A quase totalidade dos juros recebidos pela sociedade mutuante, em função dos contratos de mútuo que celebrou, por imposição legal e contabilística converteram-se em lucro, dada a quase inexistência de custos de produção ou manutenção da referida sociedade.
xxi. Se não existir disposição contratual ou deliberação tomada por maioria de três quartos dos votos correspondentes ao capital social em assembleia geral para o efeito convocada, de sinal contrário, o lucro das sociedades comerciais destina-se, nos termos do artigo 294.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais (CSC), a ser distribuído, em primeira linha, pelos respectivos sócios.
xxii. O sócio adquire o direito ao lucro convertido em dividendo quando a deliberação social tomada nos termos do artigo 31.º do CSC determina a sua distribuição.
xxiii. O destino a dar ao lucro resultante dos empréstimos efectuados pela sociedade mutuante era irrelevante para efeitos fiscais, por força do regime fiscal que lhe era aplicável, por estar sedeada na Zona Franca da Madeira.
xxiv. É artificial e viola o princípio da boa-fé a conduta da administração fiscal que, para poder aplicar a CGAA, apenas atribui ao acto de distribuição de dividendos um propósito elisivo, irrelevando as etapas anteriores para o mesmo efeito.
xxv. Tal situação, bem como a convocação da step transaction doctrine visaram ultrapassar o obstáculo que se colocava à aplicação da CGAA, que o ordenamento jurídico nacional desconhecia à data em que a etapas iniciais da operação foram desenvolvidas.
xxvi. A análise objectiva e razoável da factualidade, numa perspectiva de aplicação dos testes prévios que a jurisprudência norte-americana utiliza como condição de aplicação da step transaction doctrine, o teste da interdependência (mutual interdependence test), o teste do resultado final (end result test) e o teste do compromisso obrigatório (the binding commitment test), não consentiam a aplicação da step transaction doctrine.
xxvii. Na jurisprudência norte-americana a aplicação da step transaction doctrine só se justifica se existir, como único ou principal propósito, a obtenção de uma vantagem fiscal.
xxviii. Na União Europeia é aceitável a conduta visando a obtenção de um regime fiscal mais favorável desde que o propósito fiscal não seja único ou determinante.
xxix. Os deveres legais gerais que impendem sobre os administradores e gerentes de sociedades permitem a adopção de estratégias de gestão com finalidade de obtenção de economias fiscais nas transacções económicas, desde que essas estratégias não visem exclusivamente a obtenção de vantagens fiscais.
xxx. A mera obtenção de uma vantagem fiscal, decorrente de um benefício fiscal, numa operação económica que não seja conduzida de forma artificiosa ou fraudulenta, não configura uma situação que mereça ser corrigida por meio da aplicação da CGAA.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL:

1 - Relatório

1.1. As partes

R….., S.A., não se conformando com a sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou “procedente a exceção dilatória de caso julgado” e absolveu a recorrida Fazenda Pública da instância “quanto ao pedido de revogação do despacho do Director-geral dos Impostos de 16/08/2004, que autorizou a aplicação da disposição antiabuso” e, no mais, julgou improcedente a impugnação judicial, veio interpor recurso jurisdicional.


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1.2. O objecto do recurso

1.2.1. Alegações

Nas suas alegações a recorrente concluiu como segue:
1.ª Constitui objecto do presente recurso a sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, no âmbito do processo n.º 2925/04.5BELSB, a qual julgou improcedente a impugnação judicial apresentada pelo então Impugnante, ora Recorrente, contra os actos de liquidação n.º ….., n.º …..e n.º …..e o antecedente acto administrativo (despacho) que autorizou a aplicação da disposição anti-abuso, nos termos do disposto no artigo 63.° do CPPT e determinou a correcção da matéria tributável de IRC, relativa aos exercícios de 2000, 2001 e 2002, no montante total de € 65.824.547,20.
1.ª São cinco os vícios assacados à sentença recorrida, que consubstanciam os fundamentos do presente recurso: Violação do disposto no artigo 63.°, n.º 10 do CPPT; Violação do princípio do acesso ao Direito e da tutela jurisdicional efectiva, do princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança, da proibição da indefesa e do direito a um recurso efectivo; Erro de julgamento sobre os efeitos e alcance do caso julgado (violação do disposto no artigo 498.° do CPC); Erro de julgamento na alegada verificação da exceção e, finalmente Erro de julgamento por força da identidade da questão em apreciação com a interposição de providências cautelares e com a estrutura do processo-crime.
2.ª De acordo com a redacção do n.º 10, do artigo 63.° do CPPT à data dos factos em apreço, disposição entretanto revogada pela Lei n.º 64/-B/2011, de 30.12, a decisão do dirigente máximo do serviço ou funcionário em quem ele tiver delegado essa competência, que autoriza aplicação das disposições anti-abuso é “passível de recurso contencioso autónomo” (sublinhado da Recorrente).
3.ª Significa isto que, em face da letra da lei aplicável aos factos em causa, tal decisão era passível de recurso contencioso autónomo, isto é, a mesma podia ser destacada, para efeitos processuais, dos actos proferidos posteriormente a sua prolação.
1.ª Entende a Recorrente que a possibilidade de recurso contencioso, consagrada naquela norma não foi prevista pelo legislador com o objectivo de retirar efeito útil à impugnação dos actos de liquidação mas, outrossim, de assegurar o direito contestação da decisão de aplicação da clausula anti-abuso, de forma autónoma, sem prejuízo do, também autónomo, direito de impugnação das correcções e actos de liquidação subsequentes.
2.ª Consequência natural, de resto, do facto de o procedimento previsto na norma em questão se basear em meros indícios e suposições, quanto a prática e adopção de comportamentos fiscalmente condenáveis por parte do contribuinte, com vista a atingir determinados fins e benefícios ilícitos.
3.ª Porquanto, como esclarece uma vez mais o CONSELHEIRO JORGE LOPES DE SOUSA (..) os efeitos do acto do dirigente máximo do serviço consistem em permitir sem impor, a entidade que dirige o procedimento que faca aplicação da disposição Anti-abuso e, por isso, não resulta dele a definição da posição definitiva da Administração perante o contribuinte':
4.ª Ou seja, no âmbito da Acção Administrativa Especial deduzida contra tal decisão apenas irá ser apreciada a legalidade da mesma na parte em que permite, sem impor, “a entidade que dirige o procedimento que faca aplicação da disposição anti-abuso'.
5.ª Ora, pelo contrário, do entendimento subscrito pelo Tribunal Recorrido resulta, implicitamente, que o despacho que autoriza a aplicação das normas anti-abuso tem eficácia material e definitiva, sendo, por si só, um acto lesivo para o interessado, razão pela qual o mesmo entendeu que a decisão proferida no âmbito da Acção Administrativa Especial teve força de caso julgado material.
6.ª Termos em que a Recorrente considera que a sentença recorrida fez errada interpretação e aplicação da norma constante do n.º 10, do artigo 63.° do CPPT.
7.ª Em decorrência do vicio acima invocado, é manifesto que a interpretação e aplicação que o Tribunal Recorrido faz do artigo 63.° do CPPT - no sentido de que não pode ser sindicada a validade/legalidade de um acto de liquidação, em sede de impugnação judicial, quando tenha sido proferida, em sede de Acão Administrativa Especial, decisão que julgou admissível a aplicação da clausula anti-abuso - é susceptível) de violar, desde logo, o princípio do acesso ao Direito e da tutela jurisdicional efectiva, previsto no artigo 20.° da Constituição da Republica Portuguesa (CRP), bem como, o principio da segurança e certeza jurídicas, consagrado no artigo 2.° do mesmo diploma legal.
8.ª A valer o entendimento subscrito pelo Tribunal Recorrido, os actos de liquidação em causa firmar-se-iam na ordem jurídica sem que o contribuinte, o ora Recorrente, pudesse apontar-lhes qualquer vício e, nessa medida, discutir a sua legalidade. Nem que a mesma consubstanciasse, apenas e só, a ilegalidade decorrente da inadmissibilidade, também legal, de aplicação das normas anti-abuso.
9.ª E a verdade é que a fixação da matéria colectável, do montante de imposto a pagar/reembolsar e respectivos fundamentos - e, no caso concreto, o apuramento dos montantes dos prejuízos fiscais que a Recorrente poderia utilizar nos anos em causa - não resultam do despacho de aplicação da clausula geral anti-abuso.
10.ª Ora, se a norma constante do n.º 10, do artigo 63.° do CPPT pudesse ser interpretada no sentido que Ilhe confere a sentença recorrida, ou seja, no sentido de impedir ao contribuinte a sindicância de um acto administrativo perante a instância judicial, sempre seria um preceito inconstitucional, por violação do já citado artigo 20.° da CRP.
11.ª Para além disso, tal entendimento coloca, inequivocamente, o ora Recorrente numa situação de indefesa e de míngua quanto aos meios de reacção a que tem legalmente direito nesta situação, em desrespeito pelo disposto nos artigos 268.°, n.º 4 e 20.°, da CRP.
12.ª Com efeito e segundo GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, tal situação consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os tribunais judiciais junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito à violação do direito à tutela efectiva, sob o ponto de vista da limitação do direito, verificar-se-á, sobretudo, quando a não observância das normas processuais ou de princípios gerais do processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, dai resultando prejuízos efectivos Para os seus interesses”[1].
13.ª Como resulta do acima explanado, ao decidir-se como no caso vertente, colocou-se o ora Recorrente na posição de poder ver-lhe imputada uma responsabilidade tributária sem que o mesmo tenha a possibilidade de contestar o acto em que essa mesma responsabilidade se consolidou, através do expediente legal previsto para o efeito, qual seja e neste caso, a impugnação judicial contra os actos de liquidação de IRC de que foi notificado.
14.ª Para além disso, tal entendimento enferma de violação do princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança, na medida em que os contribuintes têm que ter a garantia de que um determinado acto administrativo poderá, salvo qualquer impedimento com efectivo fundamento legal, ser sindicado perante uma instância judicial.
15.ª Com efeito e tal como se entendeu, a titulo meramente exemplificativo, no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 13/11/2007, proferido no processo n.º 0164/04, aqueles princípios assumem-se como “princípios classificadores do Estado de Direito Democrático, e que implicam um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas a que esta imanente uma dela de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado':
16.ª O que não ocorre no caso sub judice, pois a interpretação que o Tribunal Recorrido faz do disposto no artigo 63.° do CPPT, retira ao contribuinte a possibilidade de ver o seu direito à anulação de um acto de liquidação, ilegal, ser exercido no âmbito de um processo judicial.
17.ª Por fim e no seguimento do acima exposto, o entendimento subjacente a sentença recorrida é susceptível de violar o direito a um recurso efectivo, consagrado no artigo 13.° da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (assinada em Roma, a 04/11/1950), o qual constitui uma manifestação fundamental do direito de defesa.
18.ª Nos termos da referida norma, “Qualquer pessoa cujos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção que tiverem sido violados têm o recurso perante uma instância nacional, mesmo quando a violação tiver sido cometida por pessoas que actuem no exercício das suas funções
19.ª Não se trata de qualquer violação desse direito, mas aquelas em que esteja a ser coarctado, sem fundamento legal que o justifique, colocando o interessado/contribuinte, numa situação de impossibilidade de contestação de um acto que Ilhe é lesivo.
20.ª Situação que, pelos motivos acima invocados, se verifica na situação vertente, na medida em que a interpretação que foi feita pelo Tribunal Recorrido do artigo 63.° do CPPT nega a Recorrente o legitimo direito a uma tutela jurisdicional enquanto contestação, autónoma, das correcções a matéria colectável e dos actos de liquidação.
21.ª Diga-se ainda que o Tribunal Recorrido não validou a qualificação/distinção jurídica, pacificamente aceite na doutrina, entre caso julgado formal e caso julgado material. O primeiro confere eficácia meramente interna a decisão e o segundo eficácia inter partes, isto e, fora do processo em que a mesma seja proferida.
22.ª Se tivesse tido em consideração a aludida distinção/qualificação jurídica, facilmente concluiria que a decisão que foi proferida na Acção Administrativa Especial, deduzida contra a decisão que ordenou a aplicação da cláusula anti-abuso, teve efeito de caso julgado formal, ou seja, exclusiva eficácia no próprio processo. Pelo que nunca poderia afectar a normal tramitação da impugnação judicial deduzida contra os actos de liquidação em causa.
23.ª Mas para se atingir tal conclusão seria sempre necessário confrontar o objecto e a natureza daquelas duas acções.
24.ª Assim, enquanto na Acção Administrativa Especial a questão a decidir tinha, apenas e só, a ver com a admissibilidade de aplicação das normas anti-abuso e a verificação dos indícios invocados pela Administração Tributária, a luz do disposto no artigo 63.° do CPPT, na Impugnação Judicial, foi carreada para os autos a discussão da legalidade daquela decisão e a sua susceptibilidade para, em concreto, determinar as correcções efectuadas, bem como a própria legalidade das correcções e dos actos de liquidação consequentes.
25.ª Ora, poderemos afirmar que o Tribunal Recorrido apreciou, em concreto e de forma autónoma, as correcções que originaram a emissão dos actos de liquidação impugnados?
26.ª Que confirmou que tais correcções coincidiam em absoluto com os fundamentos/indícios que estiveram na base da aplicação da cláusula anti-abuso, isto e, que as mesmas não tiveram caracter inovador (ou parcialmente inovador)?
27.ª Que confirmou que os pressupostos de liquidação do imposto se verificavam no caso concreto, nomeadamente, quanta ao apuramento do devedor e a determinação do montante apurado?
Parece-nos que não.
28.ª Pelo que e em adesão à melhor doutrina nesta matéria, só pode concluir-se que a decisão que autoriza a aplicação das normas anti-abuso não é materialmente definitiva, pelo que a eficácia da decisão judicial, transitada em julgado, que sobre a mesma foi proferida, apenas poderia ter força de caso julgado formal (no próprio processo).
29.ª Acresce, por esse motivo e tal como igualmente já se aludiu, que não existe uma verdadeira relação de prejudicialidade entre as duas acções em causa, na medida em que são ambas processualmente destacáveis e incidem sobre questões distintas. A segunda acção não tem que depender necessariamente da primeira.
30.ª Donde resulta uma evidente violação do disposto no artigo 498.° do Código de Processo Civil  (CPC).
31.ª Determina o n.º 1 daquela norma que, para efeitos da apreciação da existência de caso julgado, deve considerar-se que se repete uma causa “quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e a causa de pedir”.
32.ª Sendo que, nos termos do n.º 3 da mesma norma, verifica-se a identidade de pedido “quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico:
33.ª O que manifestamente não e o caso, independentemente das construções lógicas que o Tribunal Recorrido tente fazer a este propósito.
34.ª Vejamos, agora, a questão do erro de julgamento no que respeita a alegada verificação da excepção dilatória.
35.ª O Tribunal a quo entendeu que a decisão proferida na acção administrativa especial projectava a sua autoridade de caso julgado sobre a impugnação judicial ora em crise e, por essa razão, julgou verificada a excepção dilatória de caso julgado e no mais improcedente a impugnação.
36.ª Conforme ficou dito no presente recurso e já demonstrado, no caso sub judice não se pode considerar verificada a referida excepção.
37.ª Já quanto ao efeito preclusivo do caso julgado, o mesmo constitui uma excepção peremptória inominada que, impedindo o efeito jurídico dos factos invocados pelo Autor, determina a absolvição total ou parcial da Ré do pedido (artigo 493.º, n.º 3, do CPC).
38.ª Assim sendo, impõe-se concluir que, se o Tribunal a quo entendia que os efeitos da decisão proferida na acção administrativa especial se projectavam sobre o pedido deduzido na impugnação judicial, então deveria ter julgado verificada a aludida Excepção peremptória e, em conformidade, absolvido a entidade demandada do pedido e não da instância.
39.ª A questão não seria, pois, em bom rigor, de improcedência da impugnação.
40.ª Pese embora entenda não se verificar a referida excepção (dilatória ou peremptória), a ora Recorrente pretende, com o que vem exposto, esclarecer que a verificação da excepção peremptória do caso julgado se funda sempre no efeito preclusivo da decisão de mérito.
41.ª Ora, só poderá sustentar-se tal efeito preclusivo, se for possível afirmar que o mérito da questão submetida a apreciação na segunda acção (impugnação judicial) foi já objecto de apreciação na primeira acção (acção administrativa especial), o que conforme já foi referido não ocorreu.
42.ª No caso em apreço, a acção administrativa especial não se pronunciou, ao menos em termos definitivos, sobre o mérito da “principal” questão suscitada na impugnação judicial: a não verificação dos concretos factos que permitiriam a subsunção na norma contida no n.º 2, do artigo 38.º da LGT.
43.ª Sucede que, o Tribunal a quo, decerto influenciado pela circunstância de existir uma sobreposição aparente e meramente parcial dos pedidos deduzidos na acção Administrativa especial e na impugnação judicial, tomou a procedência do pedido deduzido na primeira como pressuposto ou condição de procedência do pedido deduzido na segunda, sem cuidar de saber se a aludida questão “principal” havia sido, efectivamente, objecto de apreciação em tal acção administrativa especial.
44.ª Por fim, o Tribunal Recorrido, incorre num outro erro de julgamento, qual seja, acerca da equiparação da natureza do caso julgado produzido no procedimento previsto no artigo 63.° do CPPT e o caso julgado constituído em situações relativas a outras figuras ou procedimentos jurídicos, tais como, as providências cautelares e o processo-crime.
45.ª Assim e em primeiro lugar, verificam-se semelhanças com o procedimento de interposição de uma providência cautelar.
46.ª Isto porque, a semelhança do que sucede com o dispositivo legal previsto no artigo 63.° do CPPT, a providência cautelar baseia-se em meras probabilidades e indícios, acerca da existência de um determinado direito, constituindo uma antecipação de uma decisão de mérito e, por esse motivo, não é susceptível de produzir efeito de caso julgado material.
47.ª Do mesmo modo, a estrutura processual do dispositivo legal previsto no referido artigo 63.° do CPPT não pode deixar de ser equiparada, para efeitos de apreciação do alcance do caso julgado, ao próprio processo-crime.
48.ª Isto porque, o processo-crime pressupõe uma primeira fase, de natureza meramente indiciária, qual seja, a do inquérito e da própria instrução, em que apenas estão em causa presunções quanto a prática do crime e, uma segunda fase, de natureza mais efectiva e condenatória, a do julgamento, em que se vai definir a existência e o quantum da responsabilidade criminal ou, simplesmente, absolver o arguido.
49.ª De facto, só nesta última fase, a do julgamento, é que é efectivamente avaliada a responsabilidade criminal do arguido, uma vez que, ate lá, existem meros indícios da prática do facto e da imputação subjectiva do tipo do crime ao arguido, em respeito, alias, do princípio da presunção da inocência.
50.ª No caso do dispositivo legal previsto no artigo 63.° do CPPT passa-se algo semelhante, nomeadamente, porquanto a acção que é intentada contra a decisão de aplicação da cláusula anti-abuso destina-se, unicamente, a avaliar da verificação dos respectivos pressupostos formais legais e da consistência dos indícios invocados pela Administração Tributária, ficando a decisão quanto a legalidade de todo o procedimento e, sobretudo, dos actos de liquidação emitidos na sequência da mesma, reservada para a acção deduzida contra estes últimos.
51.ª De todo o exposto a Recorrente entender ter demonstrado que a sentença recorrida padece de inúmeros vícios, que deverão determinar a sua anulação, o que desde já se requer.

Termos em que deverá ser julgado procedente, por provado, o recurso apresentado pela ora recorrente, por falta de fundamento legal, anulada a sentença ora corrida e, em consequência, anulados os actos de liquidação então impugnados, tal como peticionado


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1.2.2. Contra-alegações

A Fazenda Pública não apresentou contra-alegações.


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1.3. Parecer do M.º P.º

A Exm.ª Magistrada do Ministério Público (EMMP) junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.


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1.4. Questões a decidir
a. Apurar se se verifica a excepção de caso julgado e da autoridade do caso julgado.
b. Em caso de não se verificarem totalmente, avaliar a legalidade da aplicação da CGAA e das correcções efectuadas à matéria tributável.

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2 - Fundamentação

2.1 De facto

2.1.1. Factos provados

A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:
1. Nos anos de 2000, 2001, e 2002, a impugnante era sujeito passivo de IRC no regime geral, fazendo parte integrante do grupo empresarial liderado pela empresa “J….., SGPS, S.A.” e consistindo a atividade daquela na gestão de participações sociais no setor da distribuição alimentar em Portugal e na Polónia (fls. 218/256 do processo administrativo tributário apenso).
2. Em cumprimento das ordens de Serviço ….., ….., e ….., a impugnante foi sujeita a ação inspetiva aos exercícios de 2000, 2001 e 2002, com início no dia 26/11/2003, para os exercícios de 2000 e 2001, e no dia 05/03/2004, para o exercício de 2002 (fls. 218/256 do PAT apenso).
3. Esta acção culminou com a elaboração do relatório constante de fls. 218/256 do PAT apenso, datado de 21/07/2004 e cujo teor aqui se da por integralmente reproduzido juntamente com os respetivos anexos, onde se apurou designadamente o seguinte:
a. que o capital social da impugnante era detido, a data de 31/12/2002, na percentagem de 84% pela sociedade “S….., Lda.” e na percentagem de 15,9% pela sociedade “J….., SGPS, S.A.”, sendo que a referida sociedade “S…..” era detida na percentagem de 96% pela sociedade “J….., SGPS, S.A.” (anexo I do relatório);
b. que a impugnante detinha a percentagem de 89% do capital social da sociedade “P….., Lda.”, sendo os restantes 11% detidos pela sociedade “J….., SGPS, S.A.” (anexos I e II do relatório);
c. que a citada “P….., Lda.” é uma empresa sedeada na Zona Franca da Madeira, sendo isenta de IRC e tendo como objeto social a atividade de prestação de serviços nas áreas contabilística e económica, elaboração de estudos econ6micos e de analise, consultoria nas referidas áreas, gestão da carteira de títulos próprios e compra de imoveis para revenda (anexo II do relatório);
d. que em 21/12/1995 a impugnante transferiu o montante de € 13.356.760,21 para a sociedade “P…..”, a título de prestações suplementares de capital, montante este que, em 27/12/1995, a “P…..” transferiu a favor da empresa “E….. — Holding BV', sociedade não residente sedeada na Holanda (Roterdão), cujo capital social foi detido, a partir de 14/12/1998, em 99,99% pela impugnante (anexo V do relatório);
e. que a sociedade “E…..” foi incorporada em 14/12/1998 na empresa “T…..”, sociedade também sedeada na Holanda e que a detida em 99,99% pela impugnante, tendo esta assumido a responsabilidade dos empréstimos contraídos anteriormente pela “E…..” junto da sociedade “P….., Lda.” (anexos I e V do relatório);
f. que no decurso do exercício do ano de 1996, a impugnante, através de 18 atos específicos, transferiu o montante global de € 21.169.583,30 para a “P…..”, a título de prestações suplementares de capital, tendo, igualmente no decurso do exercício do ano de 1996, a “P…..” transferido o supra referido montante global de € 21.169.583,30 para a “E…..”;
g. que no decurso de exercício do ano de 1997 a impugnante, através de 20 transferências bancarias, transferiu o montante global de € 48.412.835,82 para a “P…..”, a título de prestações suplementares de capital, tendo, igualmente no decurso de exercício do ano de 1997, a “P…..” transferido o supra referido montante global de € 48.412.835,82 para a “E…..”;
h. que a empresa “H….., Lda.” é sedeada na Zona Franca da Madeira, e isenta de IRC, sendo detida a 100% pela “J….., SGPS, S.A.” (anexo I do relatório);
i. que no âmbito de um contrato de mutuo previamente celebrado com a sociedade “T…..’, a empresa “H…..” efetuou a esta vários empréstimos no ano de 1997, totalizando no dia 13/08/1997 o valor de € 110.238.146,82, acrescido de juros no montante de € 5.371.345,71;
j. que no dia 13/08/1997, mediante celebração de contrato de cedência de posição contratual, a empresa “H…..” cedeu a “P…..” todos os direitos e obrigações decorrentes do contrato de mútuo inicial celebrado com a “T…..', passando a referida “P…..” a ser credora da sociedade “T…..' relativamente aos empréstimos mutuados pela “H…..”;
k. que no dia 14/08/1997, a impugnante transferiu para a “P…..” o montante de € 115.611.376,58, a título de prestação suplementar de capital, montante que a “P…..” transferiu, na mesma data, para a “H…..”;
l. que, com data valor de 30/9/1997, a impugnante transferiu o montante de € 199.519.158,83, a favor da “P…..”, a titulo de prestação suplementar de capital, montante que na mesma data esta mutuou a sociedade “M…..”, empresa sedeada nas Channel Islands e regida pelas leis de Jersey, sendo considerada não residente, tudo na sequencia da celebração de um contrato de empréstimo obrigacionista por um período de 10 anos, com vencimento de juros a taxa anual de 6,442%, de que resultaram para a “P…..” os seguintes proveitos:
- exercício de 2000 - € 12.888.237,98;
- exercício de 2001 - € 12.853.024,22;
- exercício de 2002 - € 12.853.024,22 (anexo X do relatório);
m. que no exercício do ano de 2000 a impugnante efetuou 11 transferências de capital no montante global de € 73.923.344,74 para a “P…..”, a título de prestações suplementares de capital, tendo a “P…..”, nas mesmas datas, efetuado transferências a favor da sociedade “T…..” no montante de € 73.908.840,20;
n. que no decurso dos exercícios de 2001 e 2002 se verifica a existência de movimentos de reembolso dos capitais mutuados, com origem na “T…..' para a “P…..”, e desta para a impugnante, nas mesmas datas e em iguais montantes;
o. que os empréstimos concedidos pela “P…..”, diretamente, ou indiretamente pela via da empresa “H…..”, a “E…..” e a “T…..”, renderam juros a primeira nos seguintes exercícios e montantes:
- exercício de 2000 - € 13.088.349,41;
- exercício de 2001 - € 13.050.313,26;
- exercício de 2002 - € 6.594.906,17 (anexo VIII do relatório);
p. que os dividendos gerados pela “P…..”, em resultado dos juros obtidos com os empréstimos concedidos, são regularmente distribuídos aos sócios, na percentagem de 11% para a sociedade “J….., SGPS, S.A.” e de 89% para a impugnante, sem tributação, atenta a isenção de IRC de que beneficia a “P…..”;
q. que a utilização da sociedade “P…..” na celebração destes contratos teve um único, claro e inequívoco objetivo que consistiu na eliminação da carga fiscal sobre os respetivos juros, a qual se traduziu, na esfera da impugnante, numa redução significativa da base coletável a tributar, ou mais concretamente e nos três exercícios em questão), no aumento do prejuízo fiscal a reportar;
r. mais concretamente, a receção dos acréscimos patrimoniais enquanto dividendos dedutíveis ao abrigo do artigo 46.° do CIRC, em vez de juros suscetíveis de tributação em sede de lucro tributável da impugnante, nos termos do artigo 20.°, n.º 1, al. c), do CIRC;
s. assim, relativamente ao exercício do ano de 2000, a impugnante deduziu os dividendos provenientes da “P…..” no montante de € 19.681.464,67, assim contribuindo tal montante para agravar o prejuízo fiscal que se cifrou no montante de € 30.206.484,29;
t. já no que respeita ao exercício do ano de 2001, a impugnante deduziu os dividendos provenientes da “P…..” no montante de € 23.021.772,53 e apresentou um prejuízo fiscal no montante de € 44.812.349,43;
u. por último, no que se refere ao ano fiscal de 2002, a impugnante deduziu os dividendos provenientes da “P…..” no montante de € 23.121.310,00 e apresentou um prejuízo fiscal no montante de € 38.282.326,80;
v. que a única atividade registada contabilisticamente pela empresa “P…..” consiste na aplicação das prestações suplementares que recebe da impugnante, não possuindo quaisquer meios físicos para a prossecução do seu objeto social de prestação de serviços nas áreas contabilística e económica, da elaboração de estudos económicos e de análise, da consultoria nas referidas áreas, da gestão da carteira de títulos próprios, e da compra de imoveis para revenda, nem registando quaisquer custos com despesas de pessoal afeto a empresa (anexo XI do relatório);
w. que os gerentes da “P…..” constam dos quadros de outras empresas do grupo “J…..”, sendo remunerados pela “J…..” ou pela “J….., SGPS, S.A.”, empresa que detém 84% da A. e 89% da “P…..” (anexo I do relatório) (fls. 218/324 do PAT apenso).
4. No dia 13/07/2004, a impugnante exerceu o direito de audição prévia quanto ao projeto do referido relatório (Docs. 3 e 4 da petição inicial e fls. 273/292 do PAT apenso).
5. No dia 16/08/2004, o Diretor-Geral dos Impostos autorizou a aplicação da cláusula geral anti-abuso prevista no artigo 38.°, n.º 2, da Lei Geral Tributária, ao resultado tributável em sede de IRC dos exercícios de 2000, 2001 e 2002, declarado pela impugnante, para tanto ordenando se procedesse as correcções técnicas necessárias e consequentes liquidações, tudo com base no relatório identificado no ponto 3. e em parecer do Centro de Estudos Fiscais, datado do dia 03/08/2004 (Doc. 1 da PI e PAT apenso).
6. No dia 02/09/2004, a impugnante foi notificada do despacho identificado no ponto E (art. 1.° da PI).
7. No dia 02/12/2004, a impugnante apresentou acção administrativa especial, dando origem ao processo n.º 2926/04.3BELSB do Tribunal Tributário de Lisboa, visando impugnar a decisão do Diretor-Geral dos Impostos, datada de 16/03/2004, peticionando a sua revogação, nos termos que constam de fls. 280/316, cujo teor aqui se de por integralmente reproduzido (fls. 280/316).
8. No dia 30/10/2009, no âmbito da referida ação administrativa especial, foi proferida sentença, que a julgou totalmente improcedente, nos termos que constam de fls. 456/470, cujo teor aqui se de por integralmente reproduzido (fls. 456/470).
I. No dia 15/02/2011, no âmbito da referida acção administrativa especial, foi proferido acórdão pelo Tribunal Central Administrativo Sul, transitado em julgado no dia 23/03/2011, nos termos que constam de fls. 471/515, cujo teor aqui se da por integralmente reproduzido, confirmando a sentença referenciada no ponto anterior (fls. 456/470 e 574).
9. No dia 27/12/2004, a administração tributária emitiu a demonstração da liquidação de IRC do ano de 2000, com o n.º ….., contendo a compensação n.º 2….., que apurou um valor a reembolsar de € 1.597.879,68, nos termos que constam de fls. 235 e 238, cujo teor aqui se da por integralmente reproduzido (fls. 235 e 238).
10. No dia 21/07/2005, a administração tributária emitiu a demonstração da liquidação de IRC do ano de 2001, com o n.º ….., contendo a compensação n.º ….., que apurou um valor a reembolsar de € 6.983,17, nos termos que constam de fls. 236 e 239, cujo teor aqui se da por integralmente reproduzido (fls. 236 e 239).
11. No dia 25/07/2005, a administração tributária emitiu a demonstração da liquidação de IRC do ano de 2002, com o n.º ….., contendo a compensação n.º ….., que apurou um valor a reembolsar de € 64.617,38, nos termos que constam de fls. 237 e 240, cujo teor aqui se da por integralmente reproduzido (fls. 237 e 240).

*
2.1.2. Quanto aos factos não provados a sentença diz o seguinte:
Não se provaram quaisquer outros factos, com relevância para a decisão da causa.
*
2.1.3. A motivação da matéria de facto, constante da sentença, é a seguinte:
A decisão da matéria de facto efetuou-se com base no exame dos documentos e informações oficiais, não impugnados, que dos autos constam, tudo conforme referido a propósito de cada uma das alíneas do probatório.
*
2.1.4. Factos a aditar
Com interesse para a decisão a proferir aditam-se, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, os seguintes factos:
12. Por carta registada de 31-08-2004, a recorrente foi notificada, “nos termos do art° 36° do Código de Procedimento e de Processo Tributário e do art.° 77° da Lei Geral Tributária, do Relatório n° ….., elaborado para os efeitos previstos no n° 7 do artigo 63° do Código de Procedimento e de Processo Tributário, e do teor do despacho que sobre ele recaiu, que se anexa como parte integrante da presente notificação.
Na sequência do referido despacho foram efectuadas correcções meramente aritméticas à matéria tributável e/ou ao imposto, sem recurso a métodos indirectos, com reflexos na declaração de consolidação, cujos fundamentos constam do Relatório n° ….., que se anexa, como parte integrante da presente notificação, sendo V.a(s) Ex.a(s), a breve prazo, notificado(s) da liquidação pelos serviços da DGCI. Desta notificação constará indicação dos prazos e meios de defesa contra a liquidação.
A autorização, a que se refere o n° 7 do artigo 63° do Código de Procedimento e de Processo Tributário, é passível de recurso contencioso autónomo, nos termos do n° 10 do mesmo artigo.
Junta relatório e anexos, num total de 133 folhas.”
13. O relatório …..está datado de 21 de Julho de 2004.
14. Na mesma data o coordenador da equipa da DSPIT exarou o seguinte parecer:
1. Confirmo as conclusões constantes do ponto 4 do presente relatório, bem como a proposta efectuada no ponto 6 do mesmo.
2. O procedimento de inspecção relativamente aos exercícios em análise encontra-se prorrogado, nos termos do artigo 36 n° 3 do RCPIT, até 26 de Novembro de 2004 (segunda prorrogação de três meses) para os exercícios de 2000 e 2001, e até 5 de Dezembro de 2004 (primeira prorrogação de três meses) relativamente ao exercício de 2002. Neste sentido, e tendo em consideração o conteúdo do presente relatório, optou-se por não se concluir nenhum dos procedimentos em questão, com a entrega das correspondentes notas de diligências, em virtude de poder ser necessário algum esclarecimento adicional, na sequência da proposta ora efectuada, constante do ponto 6 do relatório em anexo.
Em consequência as restantes correcções de natureza técnica, decorrentes dos procedimentos de inspecção em curso, aguardarão o Despacho de S. Exa. o Senhor Director Geral relativamente à proposta constante do presente relatório.
A consideração superior”.
15. Em 28-07-2004 o Director de Serviços do DSPIT emitiu o seguinte parecer, em folha autónoma:
1. Confirmo as propostas de tributação contidas no presente relatório, por Confirmo as propostas de tributação contidas no presente relatório, por aplicação da disposição anti-abuso prevista no n.° 2 do art.° 38.° da Lei Geral Tributária, depois de demonstrado que fica, inequivocamente, a utilização artificiosa de uma entidade alheia a qualquer finalidade económica e com fim puro e único de elisão fiscal transformando, ao longo dos anos (2000 a 2002), actos jurídicos que seriam sujeitos a tributação — juros - noutros isentos de tributação — dividendos.
2. Submete-se o presente relatório à consideração superior, por força do disposto no n.° 7 do art.° 63.° do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
16. Em 28-07-2004 o Subdirector-Geral exarou, no Relatório ….., o seguinte despacho: “À consideração do Senhor Director-Geral para efeitos do n.º 7 do art.º 63.º do C.P.P.T.”
17. Na mesma data o Director-Geral dos Impostos proferiu o seguinte despacho: “Ao CEF”
18. Em 03-08-2004 foi elaborado um parecer por um jurista do Centro de Estudos Fiscais, fotocopiado a fls. 158 e ss. dos autos (e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido), tendo por assunto:
Transformação de proveitos relativos a juros obtidos em proveitos inerentes a lucros distribuídos por empresa participada instalada na Zona Franca da Madeira.
Aplicação da norma anti-abuso nos termos dos arts. 38°, n° 2 da LGT e 63° do CPPT. R….. SGPS, SA.
19. Em 04-08-2004 a Directora do CEF exarou, no parecer referido no ponto anterior, o seguinte despacho: “Concordo com o presente parecer. À consideração superior” (fls. 158 dos autos)
20. Em 16-08-2004 o Director-Geral dos Impostos proferiu, no referido parecer, o seguinte despacho: “Ver despacho em processo …..de D.S.P.I.T.” (fls. 158 dos autos)
21. Na mesma data o Director-Geral dos Impostos proferiu o seguinte despacho no Relatório …..: “Autorizo a aplicação das normas anti-abuso, com os fundamentos constantes do relatório …...
À DSPIT para efeitos de notificação ao sujeito passivo da presente decisão.
Proceda-se à liquidação
22. Consta do relatório referido em 12. supra, além do mais o seguinte:
“1.3.2. R….. S.G.P.S. S.A.
Adiante designada por R….., é um sujeito passivo de IRC, com sede na Rua …..e com o NIPC …... Esta empresa tem como actividade a gestão de participações sociais no sector da distribuição alimentar em Portugal e na Polónia sendo o seu capital detido, à data de 31 de Dezembro de 2002, em 84% pela sociedade S….., Lda. e em 15,9% pela sociedade J…... Por sua vez, a S….., Lda. é detida em 96% pela J….., pelo que daqui resulta que a R….. é detida, directa ou indirectamente, na quase totalidade pela J…... Relativamente a participações de capital, a R….. detém, entre outras participações, 89% do capital da P….., Lda., desde a data da sua constituição (8 de Maio de 1995), conforme se comprova através de certidão da conservatória de registo comercial, em anexo 2;
(…)
3.2 Os actos que a Administração Fiscal classifica como inseridos no n° 2 do artigo 38° da Lei Geral Tributária, não têm como propósito a poupança fiscal, mas sim uma actuação contra os fins essenciais do ordenamento jurídico-tributário. O que se pretende neste caso é combater a elisão fiscal, concretizada em actos jurídicos formalmente lícitos. De facto os dividendos distribuídos pela P….. à R….., constituem a prática de um acto com a intenção de obter rendimentos isentos de tributação, através de um acto jurídico formalmente lícito, que de outra forma, mais concretamente sob a forma de juros obtidos, estariam sujeitos a incidência tributária
Efectivamente, a R….. ao transformar os juros do capital que aplica, em dividendos distribuídos por uma empresa sua participada isenta de IRC, produz um efeito de fuga ao imposto, pois este seria exigido se a empresa tivesse optado por uma aplicação directa, com resultados económicos equivalentes. No caso em concreto, a R….. obtém rendimentos sob a forma jurídica de dividendos, quando na realidade os mesmos consistem pura e simplesmente em juros resultantes das diversas aplicações financeiras entretanto efectuadas.
A utilização da P….. nestas operações financeiras não constitui qualquer mais-valia, incorporando este conceito qualquer vantagem negocial que a sua intervenção poderia acarretar para qualquer das partes intervenientes, numa clara alusão de que a sua utilização teve como única e principal finalidade um aproveitamento abusivo das formas legais com o intuito de obter rendimentos, que sem o uso de tais formas, ficariam sujeitos a tributação.
3.3 A utilização da P….. na celebração destes contractos teve um único, claro e inequívoco objectivo: a eliminação da carga fiscal sobre os respectivos juros, traduzida, na esfera da R….., numa redução significativa da base tributável a tributar, ou mais concretamente e nos três exercícios em questão, o aumento de prejuízo fiscal a reportar.
Com efeito, ao abrigo da informação vinculativa do n° 1 do artigo 46° do CIRC a R….., relativamente ao exercício de 2000, deduziu os dividendos provenientes da P….. no montante de €19.681.464,67 contribuindo este valor para agravar o prejuízo fiscal desse exercício que se cifrou em €30.206.484,29. No exercício de 2001 a quantia deduzida pela R….. relativamente aos dividendos recebidos da P….. foi de €23.021.772,53, sendo que o prejuízo fiscal ascendeu a €44.812.349,43. No que respeita ao exercício de 2002 o valor deduzido pela R….., em matéria de dividendos da P….., foi de €23.121.310,00, contribuindo este valor para agravar o prejuízo fiscal desse exercício que foi de €38.282.326,80”.
(…)
3.5. Convirá nesta fase, enfatizar e deixar bastante claro, que não é a constituição da P….., enquanto empresa, que a Administração Fiscal coloca em causa, mas tão-somente os juros que ela regista na sua contabilidade como sendo seus quando na realidade pertencem na totalidade à R….., que os incorpora nos seus proveitos sob a forma de dividendos. Acresce que a R….. por si só poderia desenvolver os negócios, pois quer os meios financeiros, quer os meios humanos quer ainda os meios estruturais são sua pertença ou das entidades que a controlam (J…..). Nesse sentido, o acto jurídico colocado em questão pela Administração Fiscal, encontra-se relacionado com o recebimento de dividendos por parte da R….., que deveriam contudo, face aos elementos provados no presente relatório, consubstanciar-se como recebimentos de juros. Face a esta situação, a R….. procedeu, indevidamente, à dedução do referido proveito (dividendo), por força da aplicação de um normativo legal (artigo 46° do CIRC), não concorrendo as importâncias recebidas para a formação do Resultado Fiscal, quando de facto deveriam concorrer.
23. As conclusões do Relatório têm o seguinte teor:
“4. Conclusões
4.1. Perante os factos descritos exaustivamente nos parágrafos anteriores, e atendendo, nomeadamente, a que:
a) A P….. não possui qualquer tipo de estrutura física, própria ou arrendada;
b) A P….. não contratou ou subcontratou pessoal para realizar tarefas próprias e subjacentes a qualquer dos negócios constantes do objecto social da empresa;
c) Os seus gerentes foram e/ou são funcionários do grupo J…..;
d) Eram os gerentes que detinham o Know-how para a celebração dos contratos de empréstimo, pois quando os mesmos foram celebrados, os gerentes da P….. que os assinaram, desempenhavam nas referidas datas, funções como quadros superiores do Grupo J…..;
e) Foram emitidas ordens de transferência ao Citibank, por administradores da J….. e na qualidade destes cargos, para que fossem efectuadas movimentações de capital, quer da conta da R….. para a conta da P….., quer dessa conta da P….. para a uma conta da T…..;
f) Os proveitos gerados na esfera da P….., não têm como finalidade incrementar a estrutura económico-financeira da empresa, dado que os mesmos são transferidos para os sócios, R….. e J….., sob a forma de dividendos distribuídos;
Facilmente se conclui que os contratos que a P….. celebrou poderiam ter sido perfeitamente celebrados pela R….., não acarretando esse cenário qualquer desvantagem para a R….. que não fosse a tributação em sede de IRC dos juros que necessariamente iria receber. Neste contexto, não pode a R….. invocar qualquer outra razão, seja ela de natureza financeira, comercial ou outra, que não seja a fiscal, para a utilização da P….. como intermediária nestas operações de aplicação de capital.
Claramente fica comprovado que a intervenção da P….., na aplicação de capital por parte da R….. em empresas não residentes, é completamente desnecessária, e que, a R….., utilizou para o efeito, uma empresa, sua participada na Zona Franca da Madeira, para desse facto isentar de imposto, proveitos que contabilizados devidamente e tratados sob a forma jurídica normal, na esfera da R….., seriam tributados em sede de IRC.
4.2.   De referir, novamente, que a Administração Fiscal não coloca em causa a utilidade ou necessidade de os contratos terem sido celebrados, ou tão pouco os meios postos em prática para a sua realização. O que a Administração Fiscal não aceita é a manipulação da forma jurídica de que foram alvo os rendimentos provenientes da aplicação de capitais por parte da R….., quando esta os classifica na sua esfera como dividendos e não como juros.
Os rendimentos que contribuíram para a formação dos lucros distribuídos pela P….. à R….. em 2000, 2001 e 2002, respeitam a juros obtidos com a concessão de empréstimos, pelo que os mesmos deveriam constituir proveitos financeiros da R….., ficando como tal sujeitos ao regime geral de tributação em IRC.
Os factos acima expostos, consubstanciam que os montantes atribuídos a título de lucros distribuídos pela P….. à R….. correspondem à remuneração da aplicação de capital por parte da R….., com a obrigatoriedade de os proveitos subsequentes serem tributados em sede de IRC, na sua esfera, nomeadamente nos termos da alínea c) do n.° 1 do artigo 20.° do CIRC.
4.3.   No sentido de sustentar a legalidade da dedução a que os dividendos provenientes da P….. estão sujeitos na esfera da R….., para efeitos de determinação do Resultado Fiscal, esta empresa requereu, junto da Administração Fiscal, uma informação vinculativa com o objectivo de esclarecer a norma do artigo 46° do CIRC, nomeadamente no que à isenção objectiva, parcial e temporária, a que a P….. se encontra sujeita, por força do normativo constante do artigo 33° do EBF. Em resposta, elaborada pela DSIRC, informou-se a empresa (ponto 7 da informação), que “... verificados que estejam todos os requisitos legalmente exigidos, nada obsta a que a dedução a que se refere o artigo 46 do Código de IRC aproveite à entidade requerente, relativamente aos dividendos que vier a receber da sua participada P….., Lda.”. Esta informação é no entanto irrelevante para o caso em apreciação, pois comprovado que está que os rendimentos recebidos pela R….. não consubstanciam a natureza jurídica de dividendos mas sim de juros, a serem contabilizados como tal na sociedade, facto esse que se insere fora do contexto da informação vinculativa. Ora, dado que estamos perante rendimentos que não se configuram como dividendos não estão verificados todos os requisitos exigidos pelo artigo 46° do CIRC.
4.4.   No âmbito do procedimento adoptado pelo sujeito passivo, descrito nos pontos anteriores, foi deduzido indevidamente no quadro 07 da declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC, e relativamente aos dividendos distribuídos pela P….., os seguintes valores por exercício:
2000 - €19.681.464,67;
2001 - €23.021.772,53;
2002 - €23.121.310,00.
4.5. De referir por último que os factos analisados e geradores da presente informação, vão continuar a produzir efeitos nos exercícios seguintes na medida em que, e apesar do envio de capital a título de prestações suplementares de capital ter cessado em 2001, o contrato que a P….. celebrou com a M….. termina em Setembro de 2007 e o saldo da conta ….. “I…..” apresenta, à data de 31 de Dezembro de 2002, um saldo no montante de €58.067.794,10. Os rendimentos que advêm destes empréstimos continuaram, nos exercícios seguintes, a ser interpretados pela R….. como dividendos e não como deveriam ser, como juros, continuando por essa via a ficar indevidamente isentos de tributação.
4.6. Os relatos anteriormente apresentados permitem enquadrar os actos no estatuído no número 2 do artigo 38.° da Lei Geral Tributária4, uma vez que se encontram preenchidos os requisitos de aplicação da cláusula geral anti-abuso, consubstanciados em diversos elementos, que no entender de Gustavo Lopes Courinha5, são quatro:
a forma utilizada — elemento meio;
a vantagem fiscal e a equivalência económica obtidas — elemento resultado;
a motivação do contribuinte — elemento intelectual;
a reprovação normativo-sistemática da vantagem obtida — elemento normativo.
Senão vejamos,
O elemento meio encontra-se previsto nos factos descritos, uma vez que a opção escolhida pelo contribuinte, recebimento de dividendos em vez de juros, teve como objecto a obtenção de uma vantagem fiscal. De facto, ao distorcer a operação, tal como se demonstrou durante o presente relatório, através da utilização artificiosa de uma empresa (P…..) na referida operação, e através do consequente tratamento, indevido, dos proveitos inerentes à operação como dividendos, a R….., consegue anular a carga fiscal a que a operação em causa, em condições normais estaria sujeita. Estes factos encontram-se exaustivamente apresentados ao longo do presente relatório.
O elemento resultado encontra-se presente quando “...se comprove a característica especial da equivalência de resultados não fiscais, a que não corresponde uma equivalente oneração tributária”, verificando-se tal equivalência quando os actos praticados possam ser substituídos nos efeitos pelos actos normais tributados. Ora tal sucede no caso presente, conforme foi demonstrado nos pontos 3.4.3, 3.4.4, 3.4.5, 3.4.6 e 3.4.7, a R….. poderia realizar a operação sem a P….., obtendo os mesmos rendimentos económicos.
O elemento intelectual, ou seja, a necessidade de que “... as escolhas e formas adoptadas pelo contribuinte sejam fiscalmente dirigidas, e que aquele (resultado fiscal) prevaleça sobre este (resultado não fiscal)”, encontra-se demonstrada ao longo do relatório, em que ficou evidenciado que o contribuinte atribuiu às formas adoptadas um predominante fim fiscal - ver pontos 3.2 e 3.3 - em que se provou que, os dividendos recebidos na esfera da R….. se consubstanciam de facto como remuneração do capital aplicado por esta empresa, e consequentemente como juros, conforme se constata pelos anexos 5 e 11.
O elemento normativo, ou seja a existência de “...uma reprovação de um certo resultado obtido ou pretendido, quando confrontado com a intenção ou espírito da lei, do Código do Imposto em causa...”. Tal reprovação existe, pois com estas operações, o sujeito passivo procura evitar que sejam tributadas situações que a lei fiscal visa tributar, como é o caso dos juros. Acresce que o sujeito passivo procura beneficiar de uma vantagem fiscal de dedução dos rendimentos obtidos resultantes de dividendos, não estando seguramente no espírito do legislador a utilização deste mecanismo em situações criadas com intuito de utilizar abusivamente este normativo, facto conseguido, tal como se demonstra presente relatório, através da transformação de juros em dividendos.
Verificados que estão os requisitos para a aplicação do n.° 2 do artigo 38.° da LGT, resulta da aplicação do mesmo, a ineficácia para efeitos tributários do recebimento de dividendos e a necessidade de tributar as operações de acordo com as normas aplicáveis ao recebimento de juros. Tal consubstancia-se na desconsideração da dedução prevista no artigo 46.° do CIRC e na tributação dos juros com base no artigo 20°, n° 1, alínea c) do CIRC, nos seguintes valores por exercício:
2000 - €19.681.464,67;
2001 - €23.021.772,53;
2002 - €23.121.310,00.
24. Consta do mesmo relatório a seguinte
“6. Proposta
Dada a ocorrência dos pressupostos fácticos e jurídicos de que depende a autorização para a aplicação do disposto na cláusula anti-abuso prevista no artigo 38.° n.° 2 da LGT, de forma a serem efectivadas as correcções técnicas ao resultado tributável de IRC dos exercícios de 2000, 2001 e 2002 pelos montantes e de acordo com os fundamentos expostos no presente relatório, se propõe que aquela autorização seja concedida nos termos do preceituado no artigo 63.° n.° 7 do CPPT, tendo para o efeito sido elaborado o presente relatório, contendo os elementos referidos no n.º 9 do normativo anteriormente citado, que se propõe seja remetido ao S. Exa. O Senhor Director Geral para sua apreciação”
Lisboa, 21 de Julho de 2004
*

2.2. De Direito

2.2.1 Notas introdutórias

A sentença recorrida debruça-se sobre um caso de aplicação da cláusula geral anti-abuso (CGAA), considerando em síntese que a sua aplicação não pode ser sindicada, por força da extensão do princípio do caso julgado resultante da decisão que recaiu sobre o pedido de impugnação do despacho que autorizou a sua aplicação, e também porque se verificam no caso concreto os pressupostos da sua aplicação, o que conduz à improcedência da impugnação.

Mas no que concerne à extensão do caso julgado adverte que este apenas incide sobre o “pedido de revogação do despacho do Diretor-Geral dos Impostos que determinou a aplicação da disposição anti-abuso”, sendo o mais abrangido pela relação de prejudicialidade existente entre o objecto do anterior processo e o objecto do presente.

Com efeito, o pedido formulado na p.i. pela recorrente consiste em solicitar a revogação do despacho que autorizou a aplicação de disposições anti-abuso, determinando a correção da matéria tributável de IRC, por referência aos exercícios de 2000, 2001 e 2002, mas também a declaração de ilegalidade das referidas correções e a anulação das respectivas liquidações.

Antes de entrarmos na problemática que o recurso suscita, é importante que se faça um breve enquadramento histórico e doutrinal sobre as razões que justificaram a criação de CGAA em vários ordenamentos jurídicos, incluindo o português.

Com as crescentes necessidades de financiamento do Estado-Providência o modelo de tributação do Estado Liberal deixou de fazer sentido. As necessidades financeiras do primeiro, caracterizado por uma generosa política proactiva de distribuição de benefícios sociais, implicou o alargamento da base tributável e o incremento da taxação, vectores essenciais à obtenção de receitas fiscais que suportassem o custo das políticas sociais.

Mas o alargamento da base tributável tem um efeito pernicioso. Como é demonstrado em variados estudos, o aumento da tributação desencadeia uma típica reacção de stress fiscal face ao que alguns contribuintes consideram ser a ultrapassagem do nível de tributação aceitável e a transformação do imposto em esbulho, justificando comportamentos fiscais de obtenção do ponto de equilíbrio, através da assimilação da sobrecarga fiscal e de acomodação da mesma por meio de expedientes de redução efectiva da colecta e, por vezes, de ganho fiscal[2].

É que o aumento da tributação para além desse ponto de equilíbrio ou tax morale[3], que representa a fasquia tributária a partir da qual desaparece a motivação subjectiva intrínseca que leva cada indivíduo a aceitar livremente o pagamento dos impostos que lhe são exigidos, provoca uma situação de custo psicológico nos contribuintes, potencialmente doloroso, que se acentua à medida que a carga fiscal aumenta, até atingir o apogeu que representa o fim do Estado de direito fiscal e a sua transformação em Estado de não direito fiscal ou Estado confiscador[4], em que o fim do princípio da capacidade contributiva significa a transferência coerciva da riqueza individual ou empresarial para o Estado.

Por isso, nem sempre ao aumento da base tributável corresponde o aumento da receita, asserção que Arthur Laffer comprovou através da “curva” com o seu nome. Na verdade, quanto maior é a tributação maior é a tendência para a erosão da base tributável através da fraude e evasão fiscais[5], o que “constitui um grave risco à receita, à soberania e à equidade fiscais[6].

Mas a erosão da base tributável nem sempre corresponde a comportamentos ilícitos dos contribuintes. Como salienta Freitas Pereira, “é inerente à racionalidade económica a minimização dos impostos a suportar[7], pelo que a economia ou redução dos encargos tributários passou a ser um objectivo economicamente válido e uma ferramenta de governance de generalizada aceitação. Por isso o TJUE tem afirmado que os objectivos exclusivamente fiscais são comercialmente válidos e que objectivos diversos, de natureza económica e também fiscal, são aceitáveis[8].

Como referiu o Juiz norte-americano Learned Hand, “ninguém, seja rico ou pobre, tem o dever público de pagar mais imposto do que aquele que lhe é exigido por lei[9], já que este é uma exacção forçada e não uma contribuição voluntária (“o preço que pagamos pela civilização”[10]). Donde se entender que “o sentido da lei é permitir que os contribuintes usem da sua sagacidade na redução dos impostos, indo até à linha limite que a lei define embora não lhes seja lícito ultrapassá-la[11].

Daí que no início do século passado tenha prevalecido a teoria que defendia a impossibilidade de limitação do planeamento fiscal dos contribuintes caso não existissem instrumentos jurídicos que impusessem tal limitação, constituindo o caso Mitropa julgado pelo Reichsfinanzhof um marco na formulação desta teoria, de tal sorte que influenciou Enno Becker na criação do Código Tributário alemão, onde se consagrou o método da análise económica (ökonomischebetrachtungsweise), na interpretação e aplicação das normas tributárias.

Todavia, a erosão da base tributável por efeito do planeamento fiscal agressivo, seja ele lícito ou ilícito, tem consequências graves para os Estados, na medida em que provoca uma acentuada diminuição na capacidade de arrecadação de receita. Consequentemente, cedo se tornou evidente a necessidade de criação de instrumentos jurídicos que mitigassem as consequências desse fenómeno.

Um desses instrumentos são as CGAA[12], frequentemente tidas como de criação jurisprudencial com origem nos EUA, o que não corresponde inteiramente à verdade, já que há notícias de criação de verdadeiras CGAA em momentos anteriores e noutras latitudes, por via legislativa. Contudo, é verdade que foram sendo aperfeiçoadas pelos tribunais norte-americanos a partir da década de 30 do século passado, através das chamadas anti-abuse judicial doctrines (doutrinas judiciais anti-abuso), que se reconduzem, essencialmente, à “assignment of income doctrine”, “step transaction doctrine e, desdobrando-se nas business purpose, sub­stance over form e sham transaction doctrine, a “economic substance doctrine”, codificada em 30 de Março de 2010 através da Section 1409 do Health Care and Education Reconciliation Act que aditou a subsection 7701(o) ao Internal Revenue Code.

Quaisquer que sejas as suas origens, as CGAA visam, primordialmente, desconsiderar “os efeitos fiscais resultantes de esquemas artificiais levados a cabo sem razões económicas e com objectivos essencialmente de elisão fiscal” (for tax avoidance purposes)[13].

As CGAA não passam, portanto, de um instrumento que garante o cumprimento do princípio da igualdade na repartição da carga tributária e na prossecução da satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas, que entre nós é imposto pelo artigo 103.º, n.º 1, da CRP.

Di Pietro define estas cláusulas como uma “solução de natureza legislativa” no combate ao fenómeno da elisão, concedendo uma competência exclusiva à Administração tendo em vista o objectivo de fortalecer a segurança jurídica[14].

De facto, face à dinâmica e complexidade actuais das relações económicas e ao fenómeno da globalização, tem de se reconhecer a impossibilidade de a lei prever todas as hipóteses de incidência. Todavia, tal não significa que se deva deixar ao livre sabor da subjectividade dos aplicadores da lei e julgadores actuar na ausência de CGAA, o que impõe também, por imposição do princípio da legalidade fiscal, apanágio do Estado de Direito democrático, e do princípio da reserva de lei, que estejam perfeitamente definidas as situações tributárias que podem ser subsumidas à CGAA, bem como o procedimento de aplicação desta.

Daí que o legislador português tenha, através do artigo 51.º, n.º 7, da Lei n.° 87-B/98, de 31 de Dezembro, inscrito no CPT uma norma geral anti-abuso (artigo 32.º-A), que mais tarde transitou para o artigo 38.º, n.º 2, da LGT, com a seguinte redacção:

São ineficazes os actos ou negócios jurídicos quando se demonstra que foram realizados com o único ou principal objectivo de redução ou eliminação dos impostos que seriam devidos em virtude de actos ou negócios jurídicos de resultado económico equivalente, caso em que a tributação recai sobre estes últimos”.

Pela lei n.º 30-G/2000, essa redacção foi alterada, passando a constar:
São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas”.

A redacção actual foi introduzida pela Lei n.º 32/2019, de 3 de Maio.


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2.2.2. O procedimento legal de autorização e a aplicação da CGAA

Uma norma do tipo CGAA, de cariz manifestamente intrusivo na esfera da iniciativa e autonomia privadas, não podia ser editada sem estar rodeada de especiais cuidados na sua aplicação.

Assim, foi previsto um procedimento especial de aplicação de normas anti-abuso no artigo 63.º do CPPT.

A versão inicial veio a ser alterada pelas Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, e pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro.

Mas, atendendo à data dos factos a que respeita o presente recurso a redacção relevante para a sua apreciação é a originária[15] (e que será aquela que se considerará para efeitos deste acórdão, se nada for referido em contrário).

Decorre do artigo 63.º do CPPT, que a aplicação de normas anti-abuso só pode ser concretizada depois da audição do contribuinte (n.º 4), que pode apresentar as provas que considere pertinentes (n.º 6), e precedida da autorização pelo dirigente máximo do serviço ou pelo funcionário em quem ele tiver delegado essa competência (n.º 7).

Estas garantias estabelecidas no artigo 63.º do CPPT visam acautelar os efeitos da aplicação de uma norma de natureza excepcional, que colide frontalmente com os princípios da iniciativa e autonomia privadas.

De harmonia com o n.º 9 do artigo 63.º, o projecto e a decisão de aplicação da CGAA pressupõem um dever especial de fundamentação, contendo necessariamente:

a) A descrição do negócio jurídico celebrado ou do acto jurídico realizado e da sua verdadeira substância económica;

b) A indicação dos elementos que demonstrem que a celebração do negócio ou prática do acto tiveram como fim único ou determinante evitar a tributação que seria devida em caso de negócio ou acto de substância económica equivalente;

c) A descrição dos negócios ou actos de substância económica equivalente aos efectivamente celebrados ou praticados e das normas de incidência que se lhes aplicam.

O despacho autorizador é “passível” de impugnação autónoma, nos termos do n.º 10 do referido artigo, pelo que se for impugnado só após decisão judicial que o confirme é que a aplicação da CGAA poderá ser concretizada.

Caso a CGAA seja autorizada, sem prévia impugnação, ou esta seja julgada improcedente, fica o contribuinte impedido de sindicar os fundamentos de aplicação concreta da mesma na sequência do acto tributário praticado ao seu abrigo?

Esta pergunta e a correspondente resposta são cruciais para se perceber o sentido decisório a dar à questão de saber se o caso julgado formado no processo 2926/04.3BELSB estende a sua autoridade, numa perspectiva de excepção ou por efeito de uma relação de prejudicialidade, ao presente processo.


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2.2.3. O procedimento de aplicação da CGAA

Como decorre do acima exposto, a aplicação da norma anti-abuso comporta, dois momentos distintos: um procedimento prévio de autorização, enxertado no procedimento relativo às acções preparatórias de informação e fiscalização tributária [cfr. artigo 54.º, n.º1, al. a), da LGT], e a sua aplicação no procedimento de liquidação de tributos [cfr. artigo 54.º, n.º 1, al. b), da LGT]

O procedimento de autorização é composto pelo relatório, informações e pareceres dos serviços tendentes a demonstrar a existência dos elementos que, indiciariamente, justificam a aplicação da CGAA, e pelo despacho que sobre aquelas recair, que pode ou não autorizar a aplicação da CGAA.

Se autorizar a sua aplicação, a mesma será concretizada já no procedimento subsequente, isto é, no procedimento de liquidação.

Caso o despacho autorizador não seja sindicado judicialmente ou, sendo-o, a sua impugnação seja considerada improcedente, o mesmo consolida-se na ordem jurídica como caso resolvido ou decidido.

No caso da autorização do chefe máximo do serviço ou da entidade em quem este tenha delegado os seus poderes vier a ser impugnada judicialmente a apreciação jurisdicional incidirá apenas sobre os vícios que eventualmente sejam imputados ao despacho autorizador, pelo que o conhecimento de tais vícios tem como limite o âmbito do procedimento de informação e fiscalização tributária.

 Não pode, logicamente, abranger vícios procedimentais da fase subsequente de liquidação, ou seja, não pode abranger eventuais vícios que eventualmente inquinem actos que só podem ser praticados num momento posterior. Dito de outro modo, a apreciação jurisdicional não pode antecipar a sindicância dos fundamentos contingentes que (porque referidos a um momento futuro) poderão ser convocados para a aplicação concreta da CGAA no procedimento de liquidação.

Se não for autorizada a aplicação da CGAA, o subprocedimento de autorização finda sem que se projectem quaisquer efeitos para o procedimento seguinte, de liquidação.

No caso contrário, abre-se uma nova etapa, de aplicação concreta da CGAA.

Claramente o que ocorreu no caso sub judice.

De facto, o despacho do Director-Geral dos Impostos, de 16-09-2004, que autoriza a aplicação da CGAA, é elucidativo do iter percorrido até se chegar à aplicação. O referido despacho é do seguinte teor:

Autorizo a aplicação das normas anti-abuso, com os fundamentos constantes do relatório …...

À DSIPIT para efeitos de notificação ao sujeito passivo da presente decisão.

Proceda-se à liquidação” (negrito nosso).

O referido despacho foi sindicado na AAE do processo 2926/04.3BELSB. Como a pretensão jurisdicional deduzida na referida AAE foi considerada improcedente, segue-se que o despacho do DGI de 16-08-2004 se firmou na ordem jurídica como caso decidido ou resolvido, não podendo voltar a ser questionado.

É sabido que a jurisprudência, com fundamento nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 54.º da LGT estabelece uma nítida separação conceitual e jurídica entre os procedimentos de informação e fiscalização tributária e o procedimento de liquidação de tributos. E assim é porque essa foi a vontade inequívoca do legislador da LGT, não obstante existir, de um ponto de vista prático, uma fronteira muito ténue entre ambos.

Essa separação conceitual e legal entre acto de autorização da aplicação da CGAA e o ou os actos tributários subsequentes, praticados ao abrigo daquela, deve implicar também, em nossa opinião, uma separação de ordem prática, devendo a informação/proposta para a aplicação da CGAA ser procedimentalmente distinta do relatório final[16].

Como se sabe, são frequentes os actos que comungam de uma idêntica fundamentação, apesar de praticados em procedimentos subjectivamente distintos, designadamente quando se referem a diversos sujeitos passivos abrangidos por circunstâncias de facto semelhantes. Nestes casos não há notícia de que a doutrina ou a jurisprudência considerem existir, apenas por mero efeito da igualdade de fundamentação, identidade de objecto processual nas impugnações que venham a ser deduzidas em relação a cada acto praticado no respectivo procedimento.

E em relação aos casos em que são praticados dois actos, em procedimentos distintos mas interdependentes, em relação ao mesmo sujeito passivo e, formalmente, com a mesma fundamentação, como sucedeu in casu?

Vejamos.

É maioritária, senão mesmo consensual, a opinião de que o relatório do procedimento de fiscalização, devidamente notificado ao contribuinte, contém em si mesmo a fundamentação das liquidações subsequentes[17]. Trata-se de uma fundamentação por implícita remissão, permitida pelos n.º 1 e 2 do artigo 77.º da Lei Geral Tributária.

Mas, no caso sub judice, o relatório, as informações e pareceres do procedimento de fiscalização e do procedimento de autorização de aplicação da CGAA serviram também propor a aplicação da CGAA e para a fundamentação do acto autorizador, por concordância com os mesmos.

Por conseguinte, os ditos relatório, pareceres e informações, comportam três sentidos ou finalidades: (i) num sentido consubstanciam a fundamentação da proposta para autorização da aplicação da CGAA; (ii) noutro sentido servem como fundamentação própria deste acto (praticado no respectivo procedimento), por concordância do decisor com os mesmos; (iii) por fim, como fundamentação própria dos actos de liquidação (praticados no respectivo procedimento), por remissão implícita.

Esta constatação conduz a uma conclusão: ainda que a fundamentação seja única de um ponto de vista formal, de um ponto de vista jurídico é distinta para cada procedimento. Isto é, embora haja uma coincidência gramatical, não se verifica uma coincidência jurídica.

Portanto, não se pode afirmar que existe uma relação de identidade absoluta entre a fundamentação que justifica a autorização da aplicação da CGAA e a fundamentação da sua aplicação, ainda que entre uma e outra existe a tal coincidência gramatical de que se falou porque, de um ponto de vista jurídico, não se pode falar de uma só fundamentação, se cada uma delas se reporta a actos que são praticados em momentos diferentes e em procedimentos distintos, em que nem sequer o destinatário directo é o mesmo.

Com efeito, o destinatário directo do acto de autorização é a própria administração[18], enquanto o acto de liquidação tem por destinatário directo o sujeito passivo.

Isto é, numa perspectiva estritamente jurídica o acto de autorização da aplicação da CGAA, praticado no respectivo procedimento, tem a sua fundamentação própria; por seu turno, o acto de aplicação da CGAA, praticado no procedimento subsequente de liquidação, tem também a sua própria fundamentação, ainda que entre esta e aquela exista a tal coincidência gramatical de que se falou.

Postas as coisas nestes termos logo se vê que é errónea, salvo o devido respeito, a tese de que uma vez consolidado na ordem jurídica o acto que autoriza a aplicação da CGAA já não é possível sindicar os fundamentos da concreta aplicação desta no procedimento de liquidação.

O que não é possível sindicar, novamente, são os vícios próprios do despacho de autorização, incluindo a respectiva fundamentação; mas nada impede a impugnação da fundamentação do acto de liquidação com fundamento em vícios próprios da aplicação da CGAA, ainda que entre essa fundamentação e a do acto autorizador haja, de um ponto de vista gramatical, semelhança ou identidade.

Carece por isso de plausibilidade afirmar-se, como fez a sentença recorrida, que a autorização da aplicação da CGAA determina, fatal e inexoravelmente, o destino das liquidações subsequentes.

Dito de outro modo, a apreciação da legalidade do acto que autoriza a aplicação da CGAA esgota-se no próprio acto, pese embora tal acto deva raciocinar, nos termos da al. b) do n.º 9 do artigo 63.º do CPPT, num juízo perfunctório sobre a existência dos elementos que demonstrem que a celebração do negócio ou prática do acto tiveram como fim único ou determinante evitar a tributação que seria devida em caso de negócio ou acto de substância económica equivalente, situação que envolve algum grau de prognose.

Mas, importa realçar, enunciar os elementos que demonstram a falta de substância económica do negócio não é o mesmo que provar essa falta de substância económica.

Por conseguinte, defender que o despacho de autorização impede a impugnação de actos posteriores que com aquele se relacionem significa frustrar a tutela jurisdicional efectiva, obliterando os direitos de defesa do contribuinte, constitucionalmente consagrados nos artigos 20.º, n.º 1, 1.ª parte, e 268.º, n.º 4, da CRP, e objecto de consagração na lei ordinária (artigo 9.º, n.º 1, da LGT).

Mas não só.

Os pressupostos concretos de aplicação das normas anti-abuso podem ser sindicados em momento posterior ao da prolação do despacho autorizador porque, como já se referiu, a fundamentação deste destina-se apenas a elencar os elementos que indiciam e justificam a aplicação da norma anti-abuso, aos quais se refere o n.º 9 do artigo 63.º do CPPT.

Mas a convocação desses elementos é necessariamente feita segundo um juízo de abstracção, que pode vir a não ter total tradução nas correcções à matéria tributável decorrentes da aplicação da norma anti-abuso.

Isto é, o despacho autorizador deve ser construído sobre uma base meramente indiciária, ao passo que o resultado final da aplicação da norma anti-abuso advém da realidade que a Administração considerou provada.

Por conseguinte, na impugnação da liquidação consequente às correcções efectuadas ao abrigo da norma anti-abuso o contribuinte não está impedido de suscitar a sua concreta ilegalidade, o que pode redundar na impugnação dos elementos concretamente considerados na aplicação da norma anti-abuso, ainda que estes, de forma indiciária, tenham sido conhecidos no despacho autorizador da mesma.

E é assim porque, doutra banda, o acto autorizador não é lesivo da esfera patrimonial do contribuinte, ao contrário do resultado concreto da aplicação da norma anti-abuso, designadamente quando se traduz numa afectação dos direitos patrimoniais do contribuinte, em que a lesividade avulta de forma manifesta.

E também porque, como sublinha a doutrina, do acto autorizador não resulta (nem poderia resultar!) a posição definitiva da Administração. Escreve a este respeito Jorge Lopes de Sousa:

“Com efeito, em si mesmo, o acto de autorização não é horizontal nem materialmente definitivo pois não é o acto final do procedimento nem é o acto que define a posição jurídica da administração tributária perante o contribuinte.

Também não é um acto lesivo, pois não tem reflexos directos na esfera jurídica dos interessados.

A autorização para praticar um acto, só por si, não define qualquer situação jurídica, nem tem qualquer reflexo na esfera jurídica do particular a que o acto se reporta, o que leva à sua qualificação como acto interno, não materialmente definitivo.

Na verdade, os efeitos do acto do dirigente máximo do serviço consistem a permitir, sem impor, à entidade que dirige o procedimento que faça aplicação da disposição anti-abuso e, por isso, não resulta dele a definição da posição definitiva da Administração perante o contribuinte”[19].

Donde, como sublinha este autor, os vícios próprios do acto autorizador não poderem ser objecto da posterior impugnação.

E que vícios são esses?

São os que a doutrina assinala como sendo determinantes da invalidade de um acto administrativo[20], isto é, o erro sobre os pressupostos de direito, o erro sobre os pressupostos de facto, a incompetência e o vício de forma[21]. O vício de forma reconduz-se essencialmente à falta ou deficiência de fundamentação e à preterição de formalidades legais.

Uma vez consolidado na ordem jurídica, seja por falta de oportuna impugnação, seja por que esta foi considerada improcedente, os vícios do acto não podem voltar a ser reapreciados.

Por outro lado, a consequência do acto autorizador da aplicação da CGAA ser distinto do acto tributário subsequente, mas ter natureza de acto interlocutório e destacável, conduz também à conclusão de que a sua definitividade não preclude a possibilidade de serem questionados, a propósito da impugnação do acto final de liquidação, os fundamentos da aplicação da CGAA.

Com efeito, é sabido que no direito tributário vigora o princípio da impugnação unitária (artigo 54.º do CPPT), segundo o qual só é impugnável o acto final do procedimento, embora com possibilidade de sindicância de todas as ilegalidades praticadas anteriormente.

Exceptuam-se os actos interlocutórios destacáveis, imediatamente lesivos, bem como aqueles para os quais existe disposição expressa que preveja a impugnação autónoma.

No caso dos actos lesivos destacáveis, a interpretação do artigo 54.º do CPPT feita no Acórdão do Tribunal Constitucional de 29-09-2015 (acórdão n.º 410/2015) é de que não é imposto ao interessado o ónus de os impugnar, nada impedindo que sejam invocados vícios daqueles na impugnação judicial das decisões finais de liquidação, sob pena de violação do princípio da tutela judicial efetiva e do princípio da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP.

No caso dos actos com disposição legal expressa, que Jorge Lopes de Sousa entende consagrar um ónus de impugnação[22], a doutrina coincide no entendimento de que apenas os vícios próprios de tais actos destacáveis são insusceptíveis de impugnação posterior. Mas, sublinha-se, trata-se apenas dos vícios próprios do acto e não de quaisquer outros elementos que nele sejam considerados.

Nesta linha de entendimento e estabelecendo uma fronteira nítida entre os vícios relativos à fundamentação e à própria fundamentação, concluiu-se que no caso do acto autorizador da aplicação da CGAA impugnado nos termos do artigo 63.º, n.º 10, do CPPT, o que fica coberto pela sua consolidação na ordem jurídica são os vícios próprios do acto e não os elementos que demonstram a bondade de aplicação daquela.


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Em resumo e para concluir, nesta parte:

Os vícios do despacho praticado no procedimento de autorização da aplicação da CGAA e que concedeu essa autorização, como ocorreu no caso concreto, não podem ser novamente apreciados, porque o mesmo se firmou na ordem jurídica como caso decidido ou resolvido.

Tem por isso razão a sentença recorrida quando afirma a impossibilidade de revogar esse acto na presente impugnação, por força da excepção do caso julgado que se formou com a decisão proferida na AAE n.º 2926/04.3BELSB e o presente processo. E também porque, acrescenta-se, por força da natureza de caso decidido ou resolvido que o despacho autorizador encerra.

Mas impugnabilidade de tais vícios não significa que os vícios de outros actos tributários praticados em procedimento distinto, concretamente no procedimento de liquidação, não possam ser apreciados.


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2.2.4. Do caso julgado, da relação de prejudicialidade do caso julgado e do  caso julgado material.

O segmento decisório da sentença é o seguinte:

a. julgo procedente a exceção dilatória de caso julgado e absolvo a entidade demandada da instância quanto ao pedido de revogação do despacho do Diretor-Geral dos Impostos de 16/08/2004, que autorizou a aplicação da disposição anti-abuso;

b. no mais, julgo improcedente por não provada a presente impugnação judicial.

A decisão proferida na alínea b) assenta, essencialmente, na fundamentação da sentença e do acórdão proferidos no processo n.º 2926/04.3BELSB, a que a sentença entendeu dever obediência em homenagem ao princípio da autoridade do caso julgado, por existir uma relação de prejudicialidade entre o objecto desse processo e o objecto do presente.

É sabido que o caso julgado se forma quando há identidade de sujeitos processuais, de causa de pedir e pedido (artigo 581.º do CPC). No caso presente, não existe essa identidade: se é verdade que há identidade de sujeitos, já não é exacto que a causa de pedir e o pedido da AAE onde se debateu o despacho autorizador da CGAA e do presente processo sejam os mesmos.

No que concerne àquela, se de um lado temos como facto nuclear da AAE o despacho do Director-Geral que autorizou a aplicação da CGA e os vícios que lhe são próprios, na presente acção a causa de pedir radica na ilegalidade de tal despacho (daí o pedido da sua revogação), mas também a ilegalidade das correcções operadas pela AT. Quanto ao pedido, também não há total similitude. Basta pensar que num processo se pretende a erradicação de um acto administrativo em matéria tributária e no outro a mesma coisa mas também a declaração de ilegalidade das correcções efectuadas ao seu abrigo.

Quanto à eventual relação de prejudicialidade entre a AAE e o presente processo, a mesma não é integral. É que uma “relação de prejudicialidade entre objectos processuais verifica-se quando a apreciação de um objecto (que é prejudicial) constitui um pressuposto ou condição de julgamento de um outro objecto (que é o dependente)”[23].

Não é o que se verifica entre a AAE e o presente processo. O objecto do processo n.º 2926/04.3BELSB só parcialmente coincide com o objecto do presente processo. E só nessa medida é que há uma relação de prejudicialidade. No mais é inexistente. Coincide na medida em que naquele processo se pediu a erradicação da ordem jurídica do despacho autorizador da aplicação da CGAA e no presente processo se pede (também) a mesma coisa.

Mas – e foi esse o raciocínio seguido pela sentença – não será de atendar aos efeitos do caso julgado, ou melhor, à autoridade do caso julgado formado pelo acórdão anterior e pela sentença sobre a qual este recaiu quanto à questão da alegada ilegalidade das correcções?

Em nosso entender, a resposta terá de ser negativa, por várias ordens de razões.

Em primeiro lugar, se se entender que a fundamentação da sentença e do acórdão proferidos na AAE abrange a prova da falta de substância económica das operações económicas  em causa, então constata-se que os referidos arestos foram além do âmbito da questão que neles foi colocada, que se continha nos pressupostos de legalidade do acto autorizador da CGAA, que como decorre da al. b) do n.º 9 do artigo 63.º do CPPT, apenas deveria demonstrar os elementos dessa falta em abstracto, não a prova da sua falta em concreto.

O que significaria que a sentença e o acórdão teriam extravasado o âmbito da questão que lhes foi posta, situação essa que, constituindo uma nulidade [cfr. artigo 668.º, n.º 1, al. d), do CPC, na redacção então vigente], retiraria qualquer autoridade de caso julgado à respectiva fundamentação e consequentemente não impediria que a aplicação concreta da CGAA fosse sindicada a pretexto da impugnação das consequentes correcções.

Acresce que da fundamentação de facto do acórdão (que nessa parte reproduz a sentença), constam dois alegados “factos” que, salvo o devido respeito, não passam, quando muito, de conclusões em matéria de facto: deu-se como provado que “a utilização da sociedade “P…..” na celebração destes contratos teve um único, claro e inequívoco objectivo que consistiu na eliminação da carga fiscal sobre os respectivos juros, a qual se traduziu, na esfera da A., numa redução significativa da base colectável a tributar, ou mais concretamente e nos três exercícios em questão, no aumento do prejuízo fiscal a reportar” [al. r) da matéria de facto] e que “mais concretamente, a recepção dos acréscimos patrimoniais enquanto dividendos dedutíveis ao abrigo do art°.46, do C.I.R.C., em vez de juros susceptíveis de tributação em sede de lucro tributável da A. nos termos do art°. 20, n°.1, al. c), do C.I.R.C.” [al. s) da matéria de facto].”

Não descrevendo a realidade de uma forma nua e crua[24], não é possível qualificar como factos estes meros juízos de valor com significado normativo que ao fim e ao cabo correspondem à resposta jurídica que o tribunal devia ter dado a partir de factos concretos e não de meras conclusões. Indo mais longe, trata-se de verdadeira fundamentação de direito deslocada do seu devido lugar, que em qualquer caso não está apoiada em factos que demonstrem a veracidade das referidas asserções, sem os quais o raciocínio silogístico da decisão se mostra viciado.

Porém, se, como entendemos, não se trata de um excesso de pronúncia em relação a tal questão, mas de mera argumentação na defesa da bondade da fundamentação do acto autorizador da CGAA quanto à demonstração dos ditos elementos, então nada impede que se sindique a concreta aplicação desta e a concreta falta, ou não, da substância económica do negócio subjacente.

A favor desta posição pode argumentar-se, em reforço de todo o que supra se expendeu, que indicação dos elementos demonstradores da falta de substância do negócio não se confunde com a prova da falta de substância económica do negócio. O legislador do CPPT, ao editar o artigo 63.º, e ao prever a possibilidade de “recurso contencioso” do acto autorizador não desconhecia que não podia retirar ao contribuinte o direito, com cobertura constitucional, de sindicar o acto tributário que viesse a ser praticado ao abrigo da CGAA, sob pena de cair numa inconstitucionalidade gritante.

Por isso, sob pena de se entender que a referida norma padece de inconstitucionalidade por violação do artigo 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da CRP, a sua interpretação só pode ser feita no sentido de que o acto autorizador se basta e se contém na mera referência aos elementos que demonstrem abstractamente a falta de substância económica do negócio, não à prova da falta desta em concreto.

Por outro lado, embora aderindo à corrente que defende que o caso julgado abrange a decisão e os respectivos fundamentos, entendemos que o seu âmbito está objectivamente limitado pela relação silogística que se estabelece entre aquela e os factos que lhe servem de suporte[25]. Isto é, não é toda a fundamentação que releva para efeitos de caso julgado mas apenas aquela que se correlaciona directamente com a decisão concreta.

O que, no caso em apreço, determina que qualquer fundamentação que eventualmente se referisse à prova da falta de substância económica do negócio ser pura e simplesmente irrelevante para aferir da amplitude do caso julgado, visto que a decisão proferida no processo anterior apenas julgou acertada essa fundamentação para efeitos de aplicação futura da CGAA.

Para além disso e como já se salientou, a fundamentação do despacho autorizador da aplicação da CGAA e a fundamentação da aplicação concreta desta embora sendo gramaticalmente coincidentes não representam - de um ponto de vista estritamente jurídico - uma só e única fundamentação, porque dizem respeito a actos diversos praticados em procedimentos distintos, legitimando a recorrente a questionar as correcções com base na alegada errada fundamentação que lhe é própria.

Por todas estas razões entende-se, em contramão com a sentença recorrida, que não existe qualquer situação de autoridade de caso julgado que seja vinculante e deva ser seguida no presente processo, em relação ao conhecimento dos alegados vícios das correcções/liquidações.

Esta conclusão dispensaria averiguar os argumentos de inconstitucionalidade esgrimidos pela recorrente: contudo, não pode deixar de se reconhecer que estender a autoridade do caso julgado formado no processo n.º 2926/04.3BELSB, a toda a causa de pedir e pedido formulados na p.i. do presente processo, representa uma infracção constitucional, por ofensa ao disposto nos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da CRP, e uma violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva, visto que priva a contribuinte recorrente do direito à sindicância de um acto tributário, que a lei fundamental e normas de direito processual ordinário manifestamente lhe reconhecem.

Em conclusão, a sentença deve ser revogada na parte em que, por considerar existir um dever obediência à autoridade do caso julgado formado no processo n.º 2926/04.3BELSB, considerou improcedente a impugnação por mera aplicação da fundamentação das decisões proferidas nesse processo.


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2.2.5.  Da legalidade das correcções

2.2.5.1. Questões a conhecer

Importa, então, conhecer da legalidade das correcções efectuadas com fundamento na aplicação da CGAA.

Mas antes de se entrar concretamente nessa tarefa impõe-se delimitar o âmbito das questões que podem ser conhecidas.

Na sua petição inicial a recorrente suscitou as seguintes questões:
a.  “Não se verificaram os pressupostos de aplicação da cláusula geral anti-abuso, previstos no artigo 38 n.º 2 da LGT, pelo que as correcções decorrentes da aplicação da referida cláusula são ilegais, pelo que desde já se requer a sua anulação” (artigo 190.º da p.i., com negrito nosso)
b. Ainda que por mera hipótese académica, estivessem preenchidos os pressupostos de aplicação da cláusula geral anti-abuso, previstos no artigo 38.º, n.º 2 da LGT, o direito da Administração Fiscal de instaurar o procedimento anti-abuso, caducou, pelo seu não exercício, no prazo previsto no artigo 63.º, n.º 3 do CPPT, termos em que é ilegal o despacho que autorizou a aplicação da norma, e, consequentemente estão as correcções impugnadas feridas de ilegalidade (artigo 191.º da p.i.).
c. A Administração Fiscal não fez prova dos requisitos impostos pelo artigo 38.º, n.º 2 da LGT, designadamente não logrou provar que i) foram celebrados actos ou negócios jurídicos; ii) que estes foram essencial ou principalmente dirigidos ao fim fiscal referido; iii) os resultados fiscais obtidos; iv) foram utilizados meios artificiosos ou fraudulentos; v) houve abuso de formas jurídicas; vi) a via usual, não artificiosa ou fraudatória, atento o caso concreto, não foi a utilizada (artigo 192.º da p.i.).
d. Do exposto, de acordo com o disposto no artigo 74.º da LGT, não foi apresentada a prova por aquele sobre quem impendia esse ónus - a Administração Fiscal - pelo que as correcções impugnadas deverão ser anuladas, o que desde já se requer (artigo 193.º da p.i.).
e. No processo de aplicação da clausula anti-abuso, nomeadamente no decurso do processo de inspecção, a Administração Fiscal violou o dever de boa-fé, o que determina a ilegalidade do relatório n.º …..e, consequentemente do despacho que autorizou a aplicação da disposição anti-abuso constante do artigo 38.º, n.º 2 da LGT (artigo 194.º da p.i.).
f. A interpretação da norma do artigo 38.º, n.º 2 da LGT deve ser feita em conformidade com a CRP, sob pena de ser declarada a inconstitucionalidade da primeira, por violação do disposto no artigo 103.º da CRP (principio da tipicidade dos impostos) (artigo 195.º da p.i.).
g. As liberdades negocial e de gestão não podem ser postergadas pela aplicação da disposição anti-abuso, prevista no artigo 38.º, n.º 2 da LGT, sob pena da inconstitucionalidade e ilegalidade da própria norma, por via de uma interpretação errada (artigo 196.º da p.i.)

Salta à vista que as questões a. e b., relacionadas com a legalidade ou vícios próprios do despacho que autorizou a aplicação da CGAA não podem voltar a ser reapreciadas, [mesmo que não tivessem sido objecto da acção administrativa especial (AAE) impugnatória], uma vez que a autorização de aplicação se consolidou na ordem jurídica.

Mas as demais questões, ou seja, as relacionadas com a(s) ilegalidade(s) das correcções não estão, como já foi demonstrado, cobertas pelo âmbito do despacho autorizador e, consequentemente, abrangidas pelos efeitos do caso julgado formado na AAE.

De facto, dizer-se que tal despacho determina fatalmente o sentido dos actos tributários posteriores e que, por isso, estes não podem ser apreciados, salvo o devido respeito constitui uma interpretação manifestamente inconstitucional à luz dos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da CRP.


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2.2.5.2. Dos pressupostos da aplicação da step transaction doctrine

Dito isto, importa entrar então, concretamente, na apreciação da legalidade das correcções efectuadas e respectivas liquidações.

Decorre do relatório …..e do parecer do CEF de 03-08-2004 que o emprego da CGAA se justificou por aplicação da step transaction doctrine.

A aplicação das anti-abuse judicial doctrines em países da civil law, como o nosso, suscita problemas interpretativos e de conformidade aos princípios que regem o Direito tributário, designadamente em sede de proibição da analogia[26].

Produto da jurisprudência da common law, onde as decisões judiciais podem ter força de precedente obrigatório (stare decisis), que Castanheira Neves define como um “padrão normativo casuístico em decisões análogas ou para casos de aplicação analógica”[27] e que constitui, à semelhança dos antigos Assentos, verdadeiro princípio jurídico vinculativo para os tribunais inferiores, a aplicação das anti-abuse judicial doctrines em países da civil law pode representar o perigo de aplicação de verdadeiro direito estrangeiro[28].

Admite-se, porém, que a step transaction doctrine foi aplicada no caso concreto como critério interpretativo para determinação da aplicabilidade ou não da CGAA. Não como verdadeira rule of law.

A step transaction doctrine postula que “uma série de transações concebidas e executadas como partes de um plano unitário para alcançar um resultado pretendido... serão vistas como um todo independentemente de o efeito disso ser a imposição ou a isenção de impostos.[29] 

Ora, não pode deixar de se assinalar desde já a estranheza do raciocínio seguido pela Administração, segundo o qual se justifica olhar para o conjunto de operações numa lógica step by step mas, paradoxalmente, não é todo o complexo de operações que é abusivo mas apenas a operação final [cfr. supra, 2.1.23.f)].

Na verdade, a administração fiscal partiu da seguinte premissa, expressamente afirmada no relatório: a recorrente podia atingir o mesmo resultado económico (que não o resultado fiscal) através da concessão de empréstimos directos às sociedades M….., E….. Holding B.V., B….., e à H….., Lda.

Com base nesta premissa extrai a conclusão de que a licitude das etapas anteriores à distribuição de dividendos é inquestionável, as quais não estão em causa, pois só a conversão do lucro da P….. em dividendos merece censura jurídica, visto que a distribuição destes beneficia a recorrente, dada a isenção fiscal de que goza por a P….. estar situada na ZFM.

Salvo o devido respeito, esta premissa e o juízo que a envolve não são acertados, como se passará a demonstrar.

Vejamos, em primeiro lugar, se é verdade que a recorrente podia efectuar por si mesma empréstimos às referidas sociedades.

Como decorre do probatório, a recorrente é uma sociedade gestora de participações sociais (SGPS), focando a sua actividade no sector da distribuição alimentar em Portugal e na Polónia.

O regime jurídico das SGPS (consagrado pelo Decreto-Lei n.º 495/88, de 30 de Dezembro, que aqui se considera na redacção vigente até 1999), estabelece que “As sociedades gestoras de participações sociais, adiante designadas abreviadamente por SGPS, têm por único objecto contratual a gestão de participações sociais noutras sociedades, como forma indirecta de exercício de actividades económicas” (artigo 1.º, n.º 1, do referido diploma legal, com negrito nosso).

Às SGPS está expressamente vedado conceder créditos, com excepção das sociedades que sejam por elas dominadas nos termos do artigo 486.º do Código das Sociedades Comerciais ou a sociedades em que detenham participações previstas no n.º 2 do artigo 1.º e nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 3.º, sem prejuízo do disposto no número 2 [al. c), do n.º 1 do artigo 5.º do referido diploma legal].

O n.º 2 do artigo 5.º do diploma estabelece que “Para efeitos da alínea c) do número anterior, a concessão de crédito pela SGPS a sociedades em que detenham participações aí mencionadas, mas que não sejam por ela dominadas, só será permitida até ao montante do valor da participação constante do último balanço aprovado, salvo se o crédito for concedido através de contratos de suprimento”.

O relatório não refere qualquer participação directa da R….. no capital da “M…..” nem na “H…..”. Refere uma participação de 80% no capital da “E…..” até 1998 e a totalidade do capital da “T…..”, mas apenas a partir do mesmo ano.

Não é referido, no relatório, o capital de cada uma destas sociedades.

Como quer que seja, face ao regime jurídico que lhe era aplicável, é patente que a recorrente não podia conceder directamente os empréstimos efectuados pela P….. a três destas sociedades (M….., H….. e T…..). Unicamente a E….. poderia beneficiar dos mesmos e mesmo assim apenas em montante muito inferior ao que foi realizado.

Esta conclusão demonstra a inconsistência da premissa acima referida e retira qualquer sustentáculo à ideia de que as operações de entrega de prestações suplementares à P….. fossem exclusiva ou principalmente determinadas pelo objectivo de conseguir uma vantagem fiscal. De facto, com os constrangimentos legais a utilização da P….. mostra-se essencial para assegurar a concretização dos mútuos de elevado montante.

A circunstância da referida premissa invocada pela AT não se verificar elimina, consequentemente, o principal suporte invocado pela administração no raciocínio que seguiu quanto à aplicação da CGAA, conclusão que conduz, inexoravelmente, à constatação de que a aplicação desta é ilegal.

Admitamos, porém, a benefício de raciocínio e para melhor vincar a incongruência da argumentação da administração fiscal que assim não é.

Seguindo tal raciocínio tem de admitir-se – e assim é, de facto - que as prestações suplementares de capital foram efectuadas pela recorrente à P….. para a dotar de capitais suficientes para realizar os contratos de mútuo onerosos que posteriormente contratou com as demais sociedades, anteriormente referidas.

Os juros de tais mútuos entraram na esfera jurídica da P…... Como esta não tinha custos de produção ou manutenção ou os mesmos eram irrisórios, a quase totalidade do montante recebido a título de juros converteu-se, quer por força das normas contabilísticas, quer por definição legal, em lucro.

O lucro é um conceito imanente ao conceito de sociedade comercial (cfr. artigo 980.º do Código Civil). Como a generalidade da doutrina e da jurisprudência defendem, tipicamente uma sociedade comercial tem por finalidade o lucro, que mede a sua capacidade, como resulta do artigo 6.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais (CSC).

É essa finalidade que está na base de certos constrangimentos que recaem sobre as sociedades comerciais, designadamente a proibição de assumir a prestação de garantias reais ou pessoais em favor outras sociedades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo (cfr. artigo 6.º, n.º 3, do CSC). Com efeito não faria sentido que tendo a sociedade comercial como propósito essencial da sua existência a obtenção do lucro, tal propósito fosse desvirtuado em razão de ser chamada a honrar as garantias prestadas a terceiros. Qualquer desvio a esta proibição acarreta a nulidade dos actos jurídicos praticados, nos termos do artigo 294.º do Código Civil.

Contudo, há sociedades comerciais que não têm por objectivo primordial o lucro. É o caso, por exemplo, da recorrente, que sendo uma SGPS tem uma gestão essencialmente orientada para o lucro das sociedades que lhe estão subordinadas[30]. O que não quer dizer que o lucro esteja completamente arredado dos propósitos da sua actividade.

Olhando para o artigo 294.º, n.º 1, do CSC facilmente se alcança que o lucro das sociedades comerciais se destina a ser, em primeira linha, distribuído pelos respectivos sócios. É o chamado lucro subjectivo, por contraposição ao lucro objectivo, isto é, o lucro da própria sociedade.

No entanto, como a referida norma tem natureza supletiva, visto que pode ser afastada por uma disposição contratual ou por deliberação tomada por maioria de três quartos dos votos correspondentes ao capital social em assembleia geral para o efeito convocada, poderia pensar-se que os sócios não têm direito aos lucros.

Mas não é bem assim. A doutrina entende que o direito ao lucro se forma aquando da deliberação social que, nos termos do artigo 31.º do CSC, determina a sua distribuição; é neste momento que o sócio adquire o direito ao lucro convertido em dividendo, passando tal direito a integrar a sua esfera jurídica[31]. Contudo, o direito ao lucro, embora com limitações, como decorre dos artigos 217.º, n.º 1, e 294.º, n.º 1, do CSC, não deixa de ser um direito inerente à condição de sócio, como o demonstra a tutela conferida ao sócio minoritário perante situações abusivas perpetradas pelos sócios maioritários[32].

Noutros quadrantes, como sucede por exemplo nos EUA, vai-se mais longe, reconhecendo-se ao sócio minoritário o direito de pedir judicialmente a dissolução da sociedade quando ocorra uma situação de frustração dos seus interesses por efeito de deliberações impostas pelos sócios maioritários[33], incluindo a privação da sua quota-parte nos lucros. É que, como refere Douglas K. Moll[34] “o recebimento de um dividendo é talvez o método mais básico pelo qual um sócio obtém o retorno do seu investimento numa empresa”.

Na definição legal o lucro “consiste na diferença entre os valores do património líquido no fim e no início do período de tributação, com as correcções estabelecidas neste Código” (artigo 3.º, n.º 2, do CIRC).

Numa perspectiva contabilística a variação do valor do património da empresa, resultante da diferença entre os proveitos/rendimentos e os custos/gastos (nomenclatura POC/SNC, respectivamente), dá origem ao resultado: lucro se for positivo, prejuízo se for negativo.

O lucro calcula-se segundo princípios e critérios contabilísticos, devendo ser reflectido no balanço anual e demonstrado na conta de resultados (cfr. Plano Oficial de Contabilidade, aprovado pelo DL nº 410/89, de 21 de Novembro, aplicável à data dos factos).

Consequentemente, a P….. não podia deixar de reconhecer como lucro o proveito obtido com os juros recebidos dos contratos de mútuo que celebrou[35].

Deste modo, fosse qual fosse o destino a dar a esse lucro em assembleia-geral da P….., isto é, quer os sócios desta deliberassem manter o lucro na esfera jurídica da empresa, quer deliberassem (como efectivamente aconteceu) exercer a seu favor o direito que a lei lhes reconhecia, a consequência fiscal seria sempre e obrigatoriamente a mesma, dado o regime fiscal que aproveitava à aquela por estar localizada na ZFM.

Esta conclusão demonstra que o raciocínio seguido pela administração fiscal, de “isolar” o acto de distribuição de dividendos como “acto axilar” do alegado propósito elisivo não tem qualquer consistência e é artificioso e por conseguinte, viola o princípio da boa-fé.

Com efeito, sendo o destino a dar aos lucros da P….. neutro quanto aos efeitos fiscais, a ter existido tal intenção elisiva[36] na mente da recorrente (rectius, na mente de quem a representava à data), essa intenção podia ter sido concretizada no acto inicial, isto é, no acto de realização das prestações suplementares à P….., porque é este acto que desencadeia todo o complexo de actos que termina na distribuição do lucro da empresa. Portanto, seriam essas prestações que poderiam estar na base do alegado esquema elisivo da recorrente.

Isto é, o acto que poderia conter uma potencial carga defraudatória dos interesses fiscais do Estado é o acto inicial (prestações suplementares) de todo o complexo de actos da operação e não o acto final (distribuição do lucro na forma de dividendos).

Mas a ser assim - como claramente nos parece que é –, então a CGAA é indevidamente aplicada, pois embora se aplique a uma operação em que o acto final é praticado quando aquela está vigente no ordenamento jurídico português, o acto inicial e potencialmente elisivo foi praticado em momento anterior à sua entrada em vigor.

Ora, como aliás reconhece expressamente o parecer do CEF referido no probatório, é indiscutível que a CGAA está abrangida pelo princípio da irretroactividade vigorante no direito tributário.

Percebe-se, assim, o motivo pelo qual a administração fiscal convocou (mal) a step transaction doctrine: ultrapassar o obstáculo que representaria considerar elisiva toda a operação e não apenas o acto final.

Mas tal pretensão levou-a a incorrer noutro vício de raciocínio, qual seja o de desconsiderar em absoluto as etapas anteriores da operação (que considera lícitas e intocáveis), para se focar no resultado ou acto final. Vício de raciocínio que se traduz em considerar que as etapas anteriores ao resultado são legais, quando a step transaction doctrine postula precisamente o contrário: a desconsideração das etapas intermédias não é absoluta (como se não fossem inquestionáveis); pelo contrário, essa desconsideração apenas releva para reconduzir a aparência de licitude, que tais etapas poderiam conferir à operação, à verdadeira natureza elisiva desta.

Com efeito, a step transaction doctrine pressupõe uma série pré-estabelecida de transacções onde se inserem passos ou transacções que carecem de propósito negocial, os quais podem ser ignorados para efeitos fiscais, permitindo então a aplicação da norma tributária relevante ao resultado final perseguido[37].

O que, como já se demonstrou, não se verifica no caso em apreço.

Donde ser de concluir, também por esta via, que a CGAA foi mal aplicada no caso em concreto.


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2.2.5.3. Da Step Transaction Doctrine

Como já se referiu, as doutrinas judiciais anti-abuso provenientes de ordenamentos jurídicos em que as decisões judiciais assumem o papel de verdadeiras regras de direito, como sucede nos países da commom law, têm o perigo de representar a aplicação de direito estrangeiro a ordens jurídicas que, como a nossa, proíbem em regra a aplicação da analogia no direito tributário.

Mas, como quer que seja, tendo sido aplicada no caso concreto uma dessas doutrinas, impõe-se averiguar, à luz da dogmática do ordenamento jurídico onde foi criada, se foi justificada a sua aplicação e se, em caso afirmativo, a mesma autorizava a aplicação da CGAA.

A jurisprudência norte-americana só aplica a step transaction doctrine[38] depois de terem sido ultrapassados testes prévios: o teste da interdependência, o teste do resultado final e o teste do compromisso obrigatório.

O primeiro, mutual interdependence test, procura determinar se as várias etapas de uma operação económica estão de tal modo interdependentes entre si que a falta de conclusão de uma delas inviabiliza a operação[39]. Isto é, averigua, segundo uma interpretação razoável de factos objectivos, se a não conclusão da série de etapas frustraria o resultado pretendido[40].

Mas, para que o teste da interdependência possa justificar a aplicação da step transaction doctrine em relação a partes relacionadas, é necessário que falte uma justificação económica que se fundamente por si só[41].

Este teste é olhado com alguma desconfiança pela doutrina norte-americana, que assinala a contraditoriedade das inúmeras decisões jurisprudenciais que o aplicam.

Considerando os contornos do caso presente, a circunstância do regime legal aplicável obstaculizar a realização, pela recorrente, dos empréstimos feitos pela P….. constitui razão suficiente para considerar a inaplicabilidade da step transaction doctrine com fundamento neste teste.

De facto, a aplicação do mutual interdependence test ao caso presente implicaria desconsiderar todas etapas para realçar a transacção verdadeiramente relevante, como se os contratos de mútuo tivessem sido celebrados directamente pela recorrente[42], o que, como já vimos, não é possível, face aos constrangimentos legais do regime legal a que está submetida.

O teste da interdependência diferencia-se do teste do resultado final (end result test) num aspecto importante, ainda que ambos sejam complementares: enquanto o primeiro se foca na questão objectiva de saber se uma etapa possui sentido independentemente das demais, o último concentra a sua análise na subjectividade do desejo das partes em conectar uma certa etapa a uma determinada transacção[43].

O teste do resultado final, o mais frequentemente convocado para justificar a aplicação da step transaction doctrine, examina se as transacções separadas são na verdade componentes de uma única operação, desde o início configurada para obter um resultado final[44].

No caso vertente, a falta de alternativa que se colocava à recorrente quanto à concretização dos mútuos sem o concurso da P….. excluiu também este teste como fundamento da aplicação da step transaction doctrine. Mas o referido teste tem uma utilidade concreta no caso sub judice: demonstrar que não é ajustada a fundamentação do relatório quando separa, para efeitos de censura jurídica, o acto de distribuição de dividendos das etapas anteriores.

Por fim o teste do compromisso obrigatório (the binding commitment test).
O teste do compromisso obrigatório investiga se há um compromisso vinculativo para realizar a etapa posterior de uma série de etapas da operação económica[45]. De acordo com o binding commitment test, caso as partes se encontrem legalmente vinculadas a completar todos os passos a transacção será tratada como única para efeitos fiscais, tendo-se em consideração o resultado proporcionado pelo todo.

Mas não se exige que todos os passos intermédios da operação sejam desprovidos de business purpose[46], não obstante diversos tribunais terem aplicado diferentes versões desta doutrina[47].

Aplicado pela primeira vez pelo U.S. Supreme Court no caso Commissioner v. Gordon[48], a factualidade típica que lhe subjaz está descrita no Revenue Ruling 2001-46[49], do Internal Revenue Service. É o mais restrito dos três testes e usualmente proíbe o uso da step transaction doctrine, a menos que exista um compromisso vinculativo quanto às etapas posteriores[50]. Circunstância que não se verifica no caso sub judice, conforme decorre da factualidade provada e que, por isso, impede a aplicação de tal teste e consequentemente, não justifica a aplicação da CGAA.

Em resumo, os testes acima referidos também não consentiam a aplicação da step transaction doctrine e, consequentemente, da CGAA ao caso presente.


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2.2.5.4. Da substância económica da operação

Por fim algumas considerações em torno da substância económica da operação em causa.

Quer na jurisprudência norte-americana[51], quer na jurisprudência inglesa[52], a aplicação da step transaction doctrine (ou o seu equivalente britânico, composite transaction) e, em consequência, a reconfiguração dos negócios jurídicos subjacentes, só se justifica se existir, como único ou principal propósito, a obtenção de uma vantagem fiscal.

Esta é também a doutrina do TJUE, que no Acórdão Cadbury Schweppes concluiu que não é abusiva a conduta visando a obtenção de um regime fiscal mais favorável desde que não seja ultrapassada a fronteira que separa o planeamento fiscal lícito da pura evasão fiscal, através da criação de meras operações artificiais.

Ora, no caso em apreço, não só as prestações suplementares da recorrente à P….. tinham razão de ser, por força do regime legal que lhe é aplicável, como é a própria administração a reconhecer a “utilidade ou necessidade de os contratos terem sido celebrados” e a aceitar a pertinência dos “meios postos em prática para a sua realização”.

Acresce que, como já se sublinhou, as sociedades comerciais têm por finalidade o lucro, devendo essa finalidade ser prosseguida por quem tem o dever de actuar em seu nome e de tomar decisões de gestão e administração. O artigo 72.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais (CSC), impõe esse dever jurídico (e não meramente deôntico, como poderia supor-se) ao estabelecer que: “Os gerentes ou administradores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por actos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa.” Assim, os gerentes e administradores respondem civilmente para com a sociedade relativamente a danos que, por factos que àqueles possam ser imputados e que decorram da violação dos deveres legais e ou contratuais a que estão sujeitos, sejam causados a esta.

Por outro lado, o artigo 64.º do CSC divide os deveres legais gerais que impendem sobre os administradores e gerentes em duas categorias: deveres de cuidado (duty of care) e deveres de lealdade (duty of loyalty).

Como refere Menezes Cordeiro, o artigo 64.º, n.º 1, do CSC, veio “articular, em alíneas separadas, os deveres de cuidado e de lealdade”, bem como “explicitar o conteúdo dos deveres de cuidado e rematar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado” e “desenvolver o teor dos deveres de lealdade, aí inserindo, entre os elementos a atender, a referência a diversos interesses.”[53]

O artigo 64.º do CSC, consagra entre nós o conceito de corporate governance que, não sendo “definível em termos jurídicos”, porque “abrange um conjunto de máximas válidas para uma gestão de empresas responsável e criadora de riqueza a longo prazo, para um controlo de empresas e para a transparência[54], comporta:
- verdadeiras regras jurídicas societárias, como sucede com o artigo 64..° e com os preceitos relativos à prestação de contas;
- regras gerais de ordem civil e deveres acessórios, também de base jurídica;
- princípios e normas de gestão, de tipo económico e para as quais, eventualmente, poderão remeter normas jurídicas;
- postulados morais e de bom senso, sempre susceptíveis de interferir na concretização de conceitos indeterminados.[55].

Os conceitos de corporate governance e de business judgement rule na lei portuguesa, não legitimando as práticas agressivas de maximização dos lucros à custa da redução forçada de impostos – que os gestores não têm o dever de implementar, princípio reconhecido hoje nos Estados Unidos e aceite noutros países da commom law e também da civil law  - não impedem as estratégias de gestão perspectivando a obtenção de economias fiscais nas transacções económicas, desde que tais estratégias não visem exclusivamente a obtenção de vantagens fiscais[56].

Portanto, não sendo juridicamente censuráveis as prestações suplementares de capital entre a recorrente e a P….. – como, insiste-se, a própria administração reconhece – também não é juridicamente censurável a recepção de dividendos não sujeitos a tributação por força da aplicação do regime da Zona Franca da Madeira (ZFM).

É que foi a própria Administração a reconhecer previamente a licitude da conduta da recorrente através da emissão de uma informação vinculativa, que o relatório reconhece que existe mas que irreleva com base na aventada ilicitude da operação de distribuição de dividendos.

Para além de tudo isto impõe-se sublinhar que o Estado Português, ao criar a ZFM e ao entrar, assim, no mercado internacional da concorrência fiscal, bem sabia das vantagens e desvantagens que essa opção encerrava.

Sabia que iria incorrer numa despesa fiscal em razão da perda de receitas gerada pelas empresas portuguesas que nela se instalassem; mas também sabia que tal perda seria compensada pela receita que a instalação de entidades estrangeiras na ZFM iria proporcionar. O saldo foi certamente ponderado e sem dúvida nenhuma positivo para o Estado Português, que por efeito da ZFM deixou de transferir para o orçamento da Região Autónoma da Madeira significativos montantes.

Por isso, invocar-se o regime legal mais favorável da ZFM para justificar a aplicação da CGAA constitui mero exercício de falaciosidade. Usufruir de um tal regime, pretendido e implementado pelo legislador do mesmo Estado do sujeito passivo, nada tem de censurável: concorde-se ou não com o regime jurídico da ZFM, a verdade é que se trata de um benefício fiscal pensado e querido pelo Estado português, que não pode retirar com uma mão aquilo que oferece com outra aos contribuintes nacionais.

Tanto mais que, como diria Colbert[57], os benefícios fiscais são mais um instrumento ao serviço da arte de depenar o ganso com o menor grasnar possível…

Como dizia o já citado juiz norte-americano Learned Hand[58], “repetidamente os tribunais dizem que não há nada de sinistro em se organizar os negócios para manter os impostos tão baixos quanto possível. Todo mundo faz isso, rico ou pobre, e todos o fazem por direito, pois ninguém tem o dever público de pagar mais do que a lei exige: os impostos são obrigações impostas, não contribuições voluntárias. Para exigir mais em nome da moral é mera hipocrisia”.

Assim sendo, beneficiar de uma vantagem fiscal, fruto de negócios jurídicos praticados não apenas com esse fim, não é suficiente para se concluir que estamos perante uma situação que mereça ser corrigida por meio da norma geral anti-abuso. Tal como a própria norma prevê, torna-se necessário que o negócio seja conduzido de forma artificiosa ou fraudulenta.

Destarte, logo se vê que, ao usufruir da isenção legal de tributação de dividendos e ao realizar essa operação respaldada na informação vinculativa que lhe reconheceu tal direito, a recorrente não praticou nenhum acto susceptível de ser enquadrado na esfera de aplicação da CGAA.

Donde, em face de todo o exposto, ser de concluir que aplicação da CGAA foi indevida e, consequentemente, ilegal, por vício de forma assente em infundada, errónea e contraditória fundamentação e por vícios de violação de lei (artigo 38.º, n.º 2, da LGT) e de violação dos princípios da boa-fé (artigo 55.º do CPPT ex vi do artigo 266.º, n.º 2, da CRP e artigos 59.º e 68.º da LGT), e da tipicidade dos impostos (artigo 103.º da CRP), vícios esses que se precipitam nas liquidações impugnadas e que, portanto, justificam que as mesmas sejam anuladas.

Para terminar resta dizer o seguinte: foram recentemente aprovadas pela Lei n.º 32/2019, de 3 de Maio, as alterações impostas pela Diretiva (UE) 2016/1164 do Conselho (Diretiva ATAD-1), que consagra um regime mais apertado no que concerne às práticas visando a elisão fiscal lesiva da base tributária, a que a OCDE tem dedicado muito esforço no âmbito do já referido BEPS (Base Erosion Profit Shifting).

De harmonia com a Directiva as autoridades fiscais de um Estado-Membro podem ignorar um acordo ou uma série de acordos cujos factos ou circunstâncias relevantes não sejam genuínos, se comprovarem que que o objetivo principal ou um dos objetivos principais é obter uma vantagem fiscal que contraria a ratio da lei fiscal aplicável. Um acordo será considerado genuíno quando for implementado por razões comerciais válidas que refletem a realidade económica.

O objectivo é complementar as regras antiabuso específicas ao abrigo da legislação nacional e, nesse sentido, cobre as lacunas dessas regras específicas.

Essas alterações implicaram um agravamento, para os sujeitos passivos, do regime de aplicação da CGAA, designadamente deixando de ser necessário às autoridades fiscais identificar a vantagem fiscal obtida como finalidade principal, bastando agora identificar uma das finalidades da operação com esse objectivo.

Mas se a aplicação da CGAA se tornou mais perigosa para os contribuintes, nem por isso a Directiva deixa de referir que as regras gerais anti-abuso só “deverão ser aplicáveis a montagens que não sejam genuínas, caso contrário, o contribuinte deverá dispor do direito de optar pela estrutura mais vantajosa do ponto de vista fiscal para as suas atividades comerciais”.

O que aplicado ao caso em apreço reforça o entendimento perfilhado, aferido à luz do regime jurídico de pregresso, alheio à influência da referida Directiva e alheio também às alterações introduzidas no artigo 38.º da LGT pela Lei n.º 32/2019, de 3 de Maio, que no confronto interpretativo com o regime aplicável, à luz dos princípios da proibição da analogia e da irretroactividade das leis fiscais, de algum modo vêm reforçar o resultado a que aqui se chega, como se referiu na nota n.º 26 supra.


*

2.2.6. Dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça

Nos termos do n.º 7 artigo 6.º do Regulamento das Custas Processuais, “Nas causas de valor superior a € 275.000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento”.

Embora a conduta processual das partes não seja merecedora de censura, o certo é que a causa é, inegavelmente, juridicamente complexa. E também de um ponto de vista fáctico, pese embora o acervo factual convocado não seja especialmente denso e extenso.

Assim, pese embora o valor a pagar de taxa de justiça pelo serviço jurisdicional prestado, em função do valor da causa, se nos afigurar exagerado, não se vê razão para que tal dispensa seja concedida em toda a sua extensão,

Destarte, dispensa-se o pagamento do remanescente da taxa de justiça em 75% do seu valor.


*

3. Dispositivo:

Em face de todo o exposto acordam em conceder parcial provimento ao recurso, e em consequência:
1. Confirmam a sentença recorrida na parte em que julgou procedente a exceção dilatória de caso julgado e absolveu a Fazenda Pública da instância quanto ao pedido de revogação do despacho do Diretor-Geral dos Impostos de 16/08/2004, que autorizou a aplicação da disposição anti-abuso;
2. Revogam a sentença recorrida na parte restante;
3. Julgam parcialmente procedente a impugnação e, em consequência, anulam as correcções/liquidações impugnadas.

Custas da acção e do recurso pela recorrente e pela Fazenda Pública, em partes iguais, com dispensa do pagamento de 75% do remanescente de taxa de justiça.

D.n.

Lisboa, 2020-09-30

Benjamim Barbosa        

Ana Pinhol

Isabel Fernandes

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[1]     In Constituição da Republica Portuguesa Anotada, 3.ª Edição, Coimbra, 1993, pags. 163 e seguintes
[2]    O Caso Knetsch [Knetsch v. United States, do US Supreme Court, de 14-11-1960, 364 U.S. 361 (1960), https://supreme.justia.com/cases/federal/us/364/361/#tab-opinion-1943031] fornece um bom exemplo da resiliência ao pagamento de impostos excessivos, como sucedeu nos EUA quando as taxas marginais atingiram 91% na década de 60 do século passado (cfr. Historical Highest Marginal Income Tax Rates, in www.taxpolicycenter.org), e da manipulação que pode ser usada nesse contexto para benefício do contribuinte [cfr. Daniel N. Shaviro, “Knetsch v. United States and Judicial Doctrines Combating Tax Avoidance,” in Paul Caron (ed.), Tax Stories: An In-Depth Look at Ten Leading Federal Income Tax Cases, New York, Foundation Press, 2003, p. 345 e ss.].
[3]    Cfr. OECD (2019), Tax Morale: What Drives People and Businesses to Pay Tax?, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/f3d8ea10-en.
[4]    Casalta Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Contributo Para a Compreensão Constitucional do Estado Fiscal Contemporâneo, Coimbra, Almedina, 1997, p. 465.
[5]    Cfr. Benno Torgler, Tax Morale and Compliance. Review of Evidence and Case Studies for Europe, Policy Research Working Paper 5922, The World Bank, Washington DC, https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/3690/WPS5922.pdf?sequence=1&isAllowed=y
[6]    Relatório BEPS, disponível em http://www.oecd.org/
[7]    In Fiscalidade, 2.ª ed., Coimbra, Almedina 2007, p. 401.
[8]    Cfr. n.os 31 e 35, respectivamente, do Acórdão do Tribunal de Justiça de 10 de Novembro de 2011, Proc. C-126/10, Colect. 2011, p. I-10923, “Caso Foggia”.
[9]    Helvering v. Gregory, 69 F.2d 809, 810-11 (2d Cir. 1934).     https://law.justia.com/cases/federal/appellate-courts/F2/69/809/1562063/
[10]  Judge Oliver Holmes, in voto de vencido no caso Compañia General de Tabacos de Filipinas vs. Collector of Internal Revenue, 275 U.S. 87 (1927).
https://supreme.justia.com/cases/federal/us/275/87/
[11]    Caso Atlantic Cost Line vs. Phillips, 332 U.S. 168, 172-73 (1947).       https://supreme.justia.com/cases/federal/us/332/168/
[12]  Para além destas a desconsideração da personalidade jurídica e a requalificação de negócios jurídicos, as presunções legais de rendimentos, os métodos indirectos e indiciários, os deveres de informação suplementar e as normas anti-abuso especiais ou específicas, fazem parte da bateria de armas no combate à fraude e evasão fiscais.
Todos estes instrumentos, incluindo as CGAA, têm em comum o mesmo denominador: evitar a redução ou eliminação da tributação por métodos que o ordenamento jurídico reprova.
[13]   Decisão da Comissão de 23 de Abril de 2013, sobre a criação de um grupo de peritos denominado de Plataforma para a Boa Governação Fiscal, Planeamento Fiscal Agressivo e Dupla Tributação [Cfr. C (2013) 2236 final, Bruxelas 23.4.2013.
https://ec.europa.eu/taxation_customs/sites/taxation/files/docs/body/c_2013_2236_fr.pdf].
[14]   Di Pietro, “Presentazione”, in L’ Elusione fiscale nell’esperienza europea, Milão, Giuffrè, 1999, p. XIX.
[15]   “1 - A liquidação dos tributos com base em quaisquer disposições anti-abuso nos termos dos códigos e outras leis tributárias depende da abertura para o efeito de procedimento próprio.
      2 - Consideram-se disposições anti-abuso, para os efeitos do presente Código, quaisquer normas legais que consagrem a ineficácia perante a administração tributária de negócios ou actos jurídicos celebrados ou praticados com manifesto abuso das formas jurídicas de que resulte a eliminação ou redução dos tributos que de outro modo seriam devidos.
3 - O procedimento referido no número anterior pode ser aberto no prazo de três anos após a realização do acto ou da celebração do negócio jurídico objecto da aplicação das disposições anti-abuso.
4 - A aplicação das disposições anti-abuso depende da audição do contribuinte, nos termos da lei.
5 - O direito de audição será exercido no prazo de 30 dias após a notificação, por carta registada, do contribuinte, para esse efeito.

6 - No prazo referido no número anterior, poderá o contribuinte apresentar as provas que entender pertinentes.
7 - A aplicação das disposições anti-abuso será prévia e obrigatoriamente autorizada, após a observância do disposto nos números anteriores, pelo dirigente máximo do serviço ou pelo funcionário em quem ele tiver delegado essa competência.
8 - As disposições não serão aplicáveis se o contribuinte tiver solicitado à administração tributária informação vinculativa sobre os factos que a tiverem fundamentado e a administração tributária não responder no prazo de seis meses.
9 - Salvo quando de outro modo resulte da lei, a fundamentação da decisão referida no n.º 7 conterá:
a) A descrição do negócio jurídico celebrado ou do acto jurídico realizado e da sua verdadeira substância económica;

b) A indicação dos elementos que demonstrem que a celebração do negócio ou prática do acto tiveram como fim único ou determinante evitar a tributação que seria devida em caso de negócio ou acto de substância económica equivalente;
c) A descrição dos negócios ou actos de substância económica equivalente aos efectivamente celebrados ou praticados e das normas de incidência que se lhes aplicam.
10 - A autorização referida no n.º 7 do presente artigo é passível de recurso contencioso autónomo.
[16]  O que não parece ter sucedido no caso presente.
[17]   Assim, Ac. do TC n.º 433/2010, de 10-11-2010, proc. n.º 79/2010, Borges Soeiro. http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20100433.html
[18]   Quando muito poderá encarar-se o sujeito passivo como mero destinatário indirecto do acto, para efeitos de exercício do direito à sua impugnação.
[19]  Código de Procedimento e Processo Tributário Anotado, Volume I, 6.ª ed., Lisboa, Áreas Editora, 2011, p. 583
[20]  Que na doutrina de Freitas do Amaral (Curso de Direito Administrativo, vol. III, 2.ª ed., Reimp.,  Coimbra, Almedina, 2002, pp. 381 e ss) se reconduzem aos seguintes vícios: usurpação de poder (ilegalidade orgânica); incompetência (ilegalidade orgânica); vício de forma (ilegalidade formal); violação da lei (ilegalidade material); desvio de poder (ilegalidade material)
[21]   Mais desenvolvidamente vd. Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e Processo Tributário Anotado, Volume II, 6.ª Edição, Áreas Editora, 2011, pp. 115 e ss..
[22]  Código de Procedimento e Processo Tributário Anotado, Volume I, 6.ª Edição, Áreas Editora, 2011, p. 469.
[23]  Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, p. 575.
[24]  Sobre a distinção entre questões de facto, questões de direito, juízos de valor e juízos significativo-normativos, vd. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., ver. e act., Coimbra, Coimbra Ed.ª, 1985, p. 408 e ss., e doutrina aí citada.
[25]  Cfr. Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, p. 578.
[26]  A verdadeira natureza jurídica das anti-abuse judicial doctrines é realçada na Lei n.º 32/2019, de 3 de Maio, que consagra nos n.os 2, 3 e 4, do artigo 38.º da LGT, regras jurídicas essencialmente semelhantes, à semelhança do que ocorreu nos EUA com a codificação da economic substance doctrine através do “Obama Care”. As referidas normas do artigo 38.º da LGT, embora não sendo aplicáveis ao caso sub judice, constituem elemento histórico de interpretação e argumento, nessa perspectiva, em favor da indevida subsunção que foi feita dos factos sub judice ao artigo 38.º, n.º 2, da LGT, isto é, confirmam que à data de tais factos a aplicação da CGAA não devia ter sido concretizada.
[27]  O instituto dos assentos e a função jurídica dos Supremos Tribunais. Separata da Revista de Legislação e de Jurisprudência, Coimbra, 1983, p. 12
[28]  A subsecção 7701(o)(5)(C) do Internal Revenue Code, aditada em 2010 através do Health Care and Education Reconciliation Act, expressamente refere que o termo “economic substance doctrine” significa “the common law doctrine”, isto é, a referida doctrine constitui uma doutrina legal ou jurídica, que pode determinar a solução a dar num caso concreto.
[29]  “FNMA v. Commissioner, 896 F.2d 580, 586 (D.C. Cir. 1990), cert. denied, 499 U.S. 974 (1991) (citing Kanawha Gas & Utilities Co. v. United States, 214 F.2d 685, 691 (5th Cir. 1954)”, apud Office of Chief Counsel Internal Revenue Service Memorandum, de 26-02-2008, https://www.irs.gov/pub/irs-wd/0826004.pdf [tradução nossa].
[30]  Neste sentido, vd. Pedro Paes de Vasconcelos, A Participação Social nas Sociedades Comerciais, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2006, págs. 76 e ss.
[31]   Manuel António Pitta, Direito aos Lucros, Coimbra, Almedina, 1989, p. 148.
[32]  Cfr. Ac. do STJ de 07-11-2017, proc. n.º 1919/150T8OAZ.P1.S1, disponível em: www.dgsi.pt
[33]  Cfr. American Bar Association, § 14.30. Grounds For Judicial Dissolution, Model Business Corporation Act (2016 Revision), December 9, www.americanbar.org. Embora não passe de verdadeira soft law (foi redigido pelo Committee on Corporate Laws of the Section of Business Law of the American Bar Association) o Model Business Corporation Act foi acolhido na legislação de metade dos estados norte-americanos.
[34] “Shareholder Oppression & Dividend Policy in the Close Corporation”, Washington and Lee Law Review, Volume 60, 2003, p. 842, doc. disponível em: https://scholarlycommons.law.wlu.edu
[35]  Daí que a afirmação, constante do relatório, de que “os rendimentos recebidos pela R….. não consubstanciam a natureza jurídica de dividendos mas sim de juros” não tenha qualquer suporte jurídico.
[36]  Utilizamos o conceito de elisão fiscal no sentido da utilização abusiva de instrumentos legais com o fito de reduzir a carga fiscal, por contraponto ao de evasão fiscal, consistente na utilização de instrumentos ilegais com o mesmo propósito.
[37]  Cfr. Gloria Marín Benitez, ¿Es Lícita la Planificacion Fiscal?, Pamplona, Thomson Reuters, 2013, p. 296, a propósito da aplicação da composite transactions, nome pelo qual é conhecida na Inglaterra a step transactions doctrine.
[38]  Aplicada pela primeira vez pelo U.S. Supreme Court no caso Commissioner vs. Court Holding, Co., 324 U.S. 331 (1945). https://supreme.justia.com/cases/federal/us/324/331/
[39]  De acordo com o teste da interdependência, as distintas etapas de uma operação são desconsideradas se, numa interpretação plausível da factualidade, se concluir que são interdependentes entre si, isto é, a step transaction doctrine é aplicável sempre que as etapas sejam tão dependentes entre si que uma relação jurídica não possa ser completada sem a totalidade da série de transacções.
[40]  Jonathan D. Grossberg, Attacking Tax Shelters: Galloping Toward a Better Step Transaction Doctrine, LOUISIANA LAW REVIEW, Vol. 78, Number 2, Spring 2008, p. 375.
[41]   TRUE v. United States, United States Court of Apeals, 10th Cir., 09-09-1999, 190 F.3d 1165. https://law.resource.org/pub/us/case/reporter/F3/190/190.F3d.1165.98-8015.html
[42]  Cfr. caso Redding vs. Commissioner of Internal Revenue, United States Court of Appeals, Seventh Circuit, 25-08-1980, 630 F.2d 1169 (7th Cir. 1980), disponível em: https://openjurist.org/630/f2d/1169/redding-v-commissioner-of-internal-revenue
[43]  Cfr. Yoram Keinan, “Rethinking the role of the judicial step transaction principle and a proposal for codification”, Akron tax journal, Abril de 2007, p. 55, disponível em: https://ideaexchange.uakron.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1126&context=akrontaxjournal
[44]  O teste do resultado final combina eventos ou etapas separadas que aparentam ser componentes de uma acção empreendida para atingir um particular resultado. Sob tal perspectiva, fases distintas serão integradas se elas fizerem parte de um único esquema disposto a atingir um único resultado.
[45]  Cfr. Falconwood Corp. v. United States, 422 F. 3d, 1939 (Fed. Cir. 2005). Sobre estes testes vd. Mark J. Silverman, “Recent Developments in the Step Transaction Doctrine”, disponível para download em: https://www.steptoe.com/images/content/2/2/v1/2208/3574.DOC
[46]  António Fernandes de Oliveira, A Legitimidade do planeamento fiscal – As cláusulas gerais anti-abuso e os conflitos de interesse, Coimbra, Coimbra Ed.ª, 2010, p. 106.
[47]  Joshua D. Blank, Nancy C. Staudt, “Corporate Shams”, New York University Law Review, Vol. 87, (March), 2012; NYU Law and Economics Research Paper No. 12-09, USC Law and Economics Research Paper No. C12-8; USC Legal Studies Research Paper No. 12-12, disponível em http://ssrn.com/abstract=2035057
[48]  391 U.S. 83, 93 (1968), disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/391/83/
[49]  Os “Revenue Ruling”  correspondem à interpretação oficial, pelo Internal Revenue Service, de normas do Internal Revenue Code. Equivalem às Circulares da AT.
[50] Cfr. “The Step Transaction Doctrine” in Office of Chief Counsel Internal Revenue Service Memorandum, 26-02-2008, p. 2, op. cit., supra nota 21.
[51]   Cfr. Joint Committee on Taxation, Technical Explanation Of The Revenue Provisions Of The “Reconciliation Act Of 2010,” As Amended, In Combination With The “Patient Protection And Affordable Care Act”, Congress of United States, 21-03-2010, p. 152, disponível in: https://www.jct.gov/publications.html?func=startdown&id=3673
[52]  Vd. Caso Craven v. White [1989] AC 398 (HL), com sumário disponível in: https://taxinterpretations.com/site-search/all/craven
[53]  “Os deveres fundamentais dos administradores das sociedades”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 2006, Ano 66 - Vol. II - Set. 2006, disponível em: http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=50879&ida=50925
[54]  Karsten Schmidt, Gesellschaftsrecht, 4.ª ed. cit., 767, apud Menezes Cordeiro, Da Responsabilidade dos Administradores das Sociedades Comerciais, Lisboa, Lex, 1996, pp. 493 e ss.
[55]  Menezes Cordeiro, Da responsabilidade…, op. cit.
[56]  Cfr. Stephen Bainbridge, “Fiduciary Duties and Corporate Tax Avoidance”, disponível em: https://www.professorbainbridge.com/, e Richard Murphy, “Companies do not have a legal duty to maximise profit or to avoid tax”, disponível em: http://www.taxresearch.org.uk/Blog/
[57]  Jean-Baptiste Colbert, Ministro de Finanças do Rei Luís XIV, a quem é atribuída a seguinte frase: “a arte da tributação consiste em depenar o ganso de modo a obter a maior quantidade de penas com o menor grasnar possível”.
[58]  In Commissioner v. Newman, 159 F.2d 848 (CA‐2, 1947), US Court of Appeals for the Second Circuit, de 20-02-1947, disponível em:  https://law.justia.com/cases/federal/appellate-courts/F2/159/848/1565902/