Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:11250/14
Secção:CA - 2.º JUÍZO
Data do Acordão:07/10/2014
Relator:CATARINA JARMELA
Descritores:NULIDADE DA SENTENÇA - AGENTE DA PSP - ARTIGO 120º N.º 1, ALÍNEA A), DO CPTA - ARTIGO 38º, DO REGULAMENTO DISCIPLINAR DA PSP - PERICULUM IN MORA – TRANSTORNOS PSÍQUICOS
Sumário:I – O tribunal de recurso não está impedido de apreciar como erro de julgamento aquilo que é apresentado pelo recorrente como nulidade da sentença.
II - Para haver uma situação enquadrável na al. a) do n.º 1 do art. 120º, do CPTA, é necessário que seja evidente a procedência da pretensão a formular no processo principal.
III – Só através designadamente de uma laboriosa indagação em termos de direito se pode apurar se o artigo 38º, do Regulamento Disciplinar da PSP, é inconstitucional, o que é suficiente para se concluir que a procedência da acção principal não é palmar, nem evidente, antes exigindo uma cuidada análise, o que implica a não verificação do requisito previsto na al. a) do n.º 1 do art. 120º, do CPTA.
IV - Constitui jurisprudência pacífica, no que à privação dos rendimentos do trabalho diz respeito, de que, apesar de ser facilmente quantificável o prejuízo pecuniário resultante dessa privação, o mesmo é de reputar de irreparável, ou, pelo menos, de difícil reparação, se essa privação puser em risco a satisfação de necessidades pessoais elementares, ou mesmo se determinar um drástico abaixamento do nível de vida do requerente e seu agregado familiar, pondo em risco a satisfação das necessidades normais, correspondentes ao padrão de vida médio das famílias de idêntica condição social.
V - A transferência dos filhos menores do recorrente para uma escola pública – face à perda de um sexto do vencimento base e dos suplementos e subsídios associados ao exercício efectivo de funções, em consequência da execução do acto suspendendo - não colocará em causa a continuação da satisfação da necessidade de educação dos mesmos, o que permite concluir que não se encontra preenchido o requisito relativo ao periculum in mora quanto aos danos patrimoniais invocados.
VI - Transtornos psíquicos não integram o conceito de dano irreparável ou de difícil reparação para efeitos de preenchimento do pressuposto periculum in mora.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
*
I - RELATÓRIO
... ... ... intentou no TAF de Sintra processo cautelar contra o Director Nacional da Polícia de Segurança Pública, no qual peticionou a suspensão de eficácia da decisão, datada de 17 de Dezembro de 2013, do Director Nacional da Polícia de Segurança Pública que determinou – na sequência da prolação de despacho de pronúncia (já transitado) por crimes cuja moldura penal corresponde pena superior a 3 anos de prisão - a suspensão das suas funções de agente principal, até decisão final absolutória, ainda que não transitada em julgado, ou até à decisão final condenatória.

Por sentença de 25 de Março de 2014 do referido tribunal - e após se ter considerado interposto o processo contra o Ministério da Administração Interna - foi indeferido o pedido de adopção da providência cautelar de suspensão de eficácia do acto de 17.12.2013, por não se verificar o pressuposto do art. 120º n.º 1, al. a), do art. 120º n.º 1, al. b), 1ª parte, e do art. 120º n.º 2, do CPTA.

Inconformado, o requerente interpôs recurso jurisdicional para este TCA Sul, tendo na alegação apresentada formulado as seguintes conclusões:

«OMISSIS»

O recorrido não apresentou contra-alegações.

Em 28.5.2014 foi proferido despacho sustentando a inexistência de qualquer nulidade na decisão recorrida.

A DMMP junto deste TCA Sul emitiu parecer, no qual sustenta que o recurso não merece provimento.


II - FUNDAMENTAÇÃO
Na sentença recorrida foram dados como assentes os seguintes factos:

«OMISSIS»

*
Presente a factualidade antecedente, cumpre entrar na análise dos fundamentos do presente recurso jurisdicional.

As questões suscitadas resumem-se, em suma, em determinar se a decisão recorrida:

- é nula por ter omitido, na fundamentação de facto, os factos alegados nos artigos 4º, 5º, 6º, 46º, 47º e 55º, do requerimento inicial - e não ter retirado dos mesmos as competentes ilações -, nulidade prevista no art. 607º n.º 4, do CPC;

- é nula por lesar a Constituição, ao usar o art. 38º, do Regulamento Disciplinar da PSP, aprovado pela Lei 7/90, de 20/2, e ao validar a suspensão do exercício de funções;

- enferma de erro de julgamento ao ter julgado improcedente o pedido cautelar (cfr. alegações de recurso e respectivas conclusões, supra transcritas).

Passando à apreciação da questão relativa à invocada nulidade da decisão recorrida

Invoca o recorrente que a decisão recorrida é nula, já que:

- omitiu, na fundamentação de facto, os factos alegados nos artigos 4º, 5º, 6º, 46º, 47º e 55º, do requerimento inicial - e não retirou dos mesmos as competentes ilações -, a qual se encontra prevista no art. 607º n.º 4, do CPC;

- lesou a Constituição ao usar o art. 38º, do Regulamento Disciplinar da PSP, aprovado pela Lei 7/90, de 20/2, e ao validar a suspensão do exercício de funções.

Dispõe o art. 615º n.º 1, do CPC de 2013, que:
“É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.”.

As razões que conduzem à nulidade da decisão recorrida encontram-se elencadas nas diversas alíneas do n.º 1 do art. 615º, ora transcritas, nas quais não se subsume a presente alegação (não se subsume na al. b), pois essa nulidade só ocorre quando se verifica falta absoluta de fundamentação, e não quando a fundamentação enunciada é insuficiente, medíocre, contraditória ou errada), sendo certo, aliás, que o art. 607º n.º 4, do CPC de 2013, não prevê qualquer causa autónoma de nulidade da sentença.


Nestes termos, tem de improceder a arguição de nulidade da decisão recorrida.

De todo o modo, não está o tribunal de recurso impedido de apreciar como erro de julgamento aquilo que é apresentado pelo recorrente como nulidade da sentença (cfr. art. 5º n.º 3, do CPC de 2013).

Assim, de seguida será apreciado o erro de julgamento que o recorrente considera existir na selecção da matéria de facto, por os factos alegados nos artigos 4º, 5º, 6º, 46º, 47º e 55º, do requerimento inicial, não terem sido incluídos na factualidade dada como assente. Quanto ao erro de julgamento que o recorrente considera existir na interpretação do art. 38º, do Regulamento Disciplinar da PSP, o mesmo será apreciado aquando da análise do invocado erro de julgamento da decisão recorrida ao julgar improcedente o pedido cautelar.


Passando à apreciação da questão respeitante ao alegado erro na selecção da matéria de facto

O recorrente considera que deverão ser incluídos, nos factos assentes, por serem relevantes para a decisão e não terem sido impugnados, os factos alegados nos artigos 4º, 5º, 6º, 46º, 47º e 55º, do requerimento inicial.

Apreciando.

Uma das condições de procedência das providências cautelares conservatórias (como é o caso, dado que se pretende simplesmente a manutenção de uma situação já existente, ou seja, da situação anterior à aplicação, por despacho de 17.12.2013, da suspensão de funções) respeita à ponderação de todos os interesses em presença segundo critérios de proporcionalidade (cfr. art. 120º n.º 2, do CPTA), razão pela qual os factos alegados nos artigos 4º a 6º, do requerimento inicial, têm de ser considerados relevantes para a decisão da causa.

Assim, e encontrando-se os mesmos plenamente provados pelo documento junto com o requerimento inicial como Doc. n.º 1, deverão tais factos ser aditados aos factos dados como provados (cfr. art. 662º n.º 1, do CPC de 2013) [o facto alegado no artigo 4º deverá ser dado como provado com rectificação do período em avaliação – de 1 de Setembro de 2003 a 31 de Dezembro de 2009 e não de 2004 a 2010 -, conforme decorre do teor de tal documento].

Outra das condições de procedência das providências cautelares conservatórias respeita ao periculum in mora (art. 120º n.º 1, al. b), 1ª parte, do CPTA), razão pela qual a factualidade alegada nos artigos 46º e 47º [neste artigo é invocado que as reduções salariais aplicadas ao requerente desde meados de 2011, em consequência de não se encontrar no exercício de funções, têm-lhe provocado transtornos psíquicos, pois o restante que aí é alegado tem natureza conclusiva e, portanto, terá se ser expurgado], do requerimento inicial, tem de ser considerada relevante para a decisão da causa.

Assim, e não tendo tal factualidade sido impugnada, deverá ser aditada aos factos dados como provados (cfr. art. 118º n.º 1, do CPTA).

Relativamente ao alegado no artigo 55º, do requerimento inicial, trata-se de factualidade irrelevante, razão pela qual a mesma não deverá ser aditada aos factos provados, pois tais decisões proferidas por tribunais de 1ª instância não constituem no nosso ordenamento jurídico (cfr. art. 203º, da CRP) precedentes vinculativos a atender por este tribunal de recurso na apreciação de casos análogos.

Acresce que se verifica que os montantes das despesas descritas nos factos V) e W) – os quais se encontram indicados nos artigos 43º e 44º, respectivamente, do requerimento inicial - não foram impugnados, razão pela qual o tribunal determina, oficiosamente, o seu aditamento (ao abrigo do art. 662º n.º 1, do CPC de 2013) à factualidade dada como assente, pois tais montantes relevam para a apreciação do requisito do periculum in mora.

Por razões de clareza, consigna-se de seguida a factualidade ora aditada aos factos dados como provados:
X) O requerente, no quadro da avaliação de serviços prestados à PSP, no período compreendido entre 1 de Setembro de 2003 e 31 de Dezembro de 2009, recebeu a nota de “Muito Bom” em cada um desses anos (cfr. artigo 4º, do requerimento inicial).
Y) Na nota de assentos do requerente na PSP constam as seguintes recompensas:
- Louvor colectivo, na data de 22.3.1994, pelo Comandante, cujo texto consta de fls. 34, dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
- Louvor colectivo, na data de 2.5.2001, pelo Director Nacional, cujo texto consta de fls. 34, dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (cfr. artigo 5º, do requerimento inicial).
Z) Na nota de assentos do requerente na PSP consta que foi agraciado com as seguintes condecorações:
- Medalha de Cobre de Comportamento Exemplar, publicada no DR, II Série, n.º 116/2000;
- Medalha de Assiduidade de 1 Estrela, publicada no DR, II Série, n.º 30/2004;
- Medalha de Prata de Comportamento Exemplar, publicada no DR, 2ª Série, n.º 135/2009 (cfr. artigo 6º, do requerimento inicial).
AA) Para prover as despesas mensais ordinárias do lar e de sua família o requerente tem recorrido a empréstimos monetários junto de amigos e familiares (cfr. artigo 46º, do requerimento inicial).
AB) As reduções salariais aplicadas ao requerente desde meados de 2011, em consequência de não se encontrar no exercício de funções, têm-lhe provocado transtornos psíquicos (cfr. artigo 47º, do requerimento inicial, expurgado da matéria conclusiva).
AC) O montante mensal das despesas descritas em V) ascende a € 300 (cfr. artigo 43º, do requerimento inicial).
AD) O montante mensal das despesas descritas em W) ascende a € 50 (cfr. artigo 44º, do requerimento inicial).

Passando à análise da questão relativa ao alegado erro de julgamento da decisão recorrida ao julgar improcedente o pedido cautelar

O recorrente defende que a decisão ora sindicada é ilegal por violação do art. 120º, do CPTA, por entender que se encontram preenchidos os requisitos enunciados nesse normativo legal para o decretamento da providência requerida.

Passemos, então, à análise do acerto (ou não) da decisão judicial recorrida nesta parte.

Do disposto no art. 120º n.ºs 1, als. a) e b), e 2, do CPTA, infere-se que constituem condições de procedência das providências cautelares conservatórias:
1) A evidência da procedência da pretensão formulada ou a formular no processo principal (art. 120º n.º 1, al. a), do CPTA);
2) a) “Periculum in mora”- receio de constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação (art. 120º n.º 1, al. b), 1ª parte, do CPTA);
b) “Fumus non malus iuris” – não ser manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada ou a formular no processo principal ou a existência de circunstâncias que obstem ao conhecimento do mérito (art. 120º n.º 1, al. b), 2ª parte, do CPTA);
c) Ponderação de todos os interesses em presença segundo critérios de proporcionalidade (art. 120º n.º 2, do CPTA).

Assim, e desde logo, cumpre apreciar se é correcta a conclusão a que se chegou na decisão recorrida no sentido de que a situação em análise não se subsume na al. a) do n.º 1 do art. 120º, do CPTA.

Para haver uma situação enquadrável nessa al. a) é necessário que seja evidente a procedência da pretensão a formular no processo principal.

Conforme explicam Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2005, págs. 602-603, “(…) a alínea a) do n.º 1, pese embora a sua colocação sistemática, não impõe requisitos de cujo preenchimento dependa, em circunstâncias normais, a concessão das providências, mas, pelo contrário, visa permitir que, em situações excepcionais, as providências sejam atribuídas sem necessidade da verificação desses requisitos. O n.º 1, alínea a), contém, assim, uma norma derrogatória, para situações excepcionais, do regime de que depende a concessão das providências em circunstâncias de normalidade. (…)
É, pois, necessária, nesta matéria, uma grande contenção da parte do juiz: como é evidente, se essa contenção faltar e o juiz despender esforços desproporcionados para esgotar, em sede cautelar, a apreciação das questões atinentes ao fundo da causa, ele tenderá a ser conduzido com maior (e indesejável) frequência à aplicação do n.º 1, alínea a). Na verdade, na generalidade dos casos, a solução a dar a qualquer questão jurídica torna-se evidente após uma análise exaustiva. Os próprios exemplos que o legislador indica no preceito sugerem, porém, que este preceito deve ser objecto de uma aplicação restritiva: a evidência a que o preceito se refere deve ser palmar, sem necessidade de quaisquer indagações” (sombreados e sublinhados nossos).

Os tribunais superiores têm-se pronunciando reiteradamente neste mesmo sentido – cfr., entre outros, Acs. do STA de 14.6.2007, proc. n.º 420/07, 24.9.2009, proc. n.º 821/09 [“(…) só muito raramente estes meios cautelares mostram de imediato o destino das acções principais. As hipóteses extremas de, logo no processo de suspensão de eficácia, se ver que o acto é ilegal ou legal são invulgares, sendo os casos resolvidos, na sua maioria, pela análise dos interesses em presença e pela sua recíproca ponderação. Com efeito, a ilegalidade do acto só é «evidente» se algum dos vícios arguidos contra o acto for manifesto, indubitável, claro num primeiro olhar. «Evidente» é o que se capta e constata «de visu», sem a mediação necessária de um discurso argumentativo cuja disposição metódica permitirá o conhecimento, «in fine», do que se desconhecia «in initio». Porque as evidências não se demonstram, nunca é evidente a ilegalidade do acto fundada em vícios cuja apreciação implique demonstrações, ou seja, raciocínios complexos através dos quais se transite de um inicial estado de dúvida para a certeza de que o vício afinal existe.”], 18.3.2010, proc. n.º 105/10, e 20.3.2014, proc. n.º 148/14 [“I - As situações a enquadrar no art. 120º, nº 1, alínea a), do CPTA, designadamente no conceito de acto “manifestamente ilegal” não devem oferecer quaisquer dúvidas quanto a essa ilegalidade que, assim, deve poder ser facilmente detectada, face aos elementos constantes do processo e pela simples leitura e interpretação elementar da lei aplicável, sem necessidade de outras averiguações ou ponderações”], Acs. deste TCA de 9.2.2006, proc. n.º 1349/06 [“IV – O que é evidente não necessita de ser explicado nem indagado: sempre que haja necessidade de explicar a bondade da pretensão do requerente, indagando factos ou o direito, não se pode ter a respectiva procedência por evidente, para efeitos do disposto na al. a), do n.º 1 do artº 120º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos”], 14.6.2007, proc. n.º 2604/07, 30.11.2011, proc. n.º 8023/11 [“II - Para efeitos do disposto na al. a) do nº 1 do art. 120º do C.P.T.A., a ilegalidade de um acto só é evidente quando for manifesta, indubitável, ou “constatável a olho nu”, sem a mediação de qualquer discurso argumentativo”], e 24.10.2013, proc. n.º 10438/13 [“2. A qualidade de cognição exigida pelo artº 120º nº 1 a) CPTA para o fumus boni iuris traduzida na expressão “evidente procedência da pretensão formulada” mede-se pelo carácter incontroverso (que não admita dúvida), patente (posto que visível sem mais indagações) e irrefragável (irrecusável, incontestável) do presumível conteúdo favorável da sentença de mérito da causa principal, derivado da cognição sumária das circunstâncias de facto e consequente juízo subsuntivo na lei aplicável, efectuados no processo cautelar”], e Acs. do TCA Norte de 11.12.2008, proc. n.º 01038/08.5 BEBRG [“II – A evidência prevista na alínea a) do n.º 1 do art. 120º do CPTA (…), não é uma evidência resultante de demonstração, antes constatável a olho nu, de tal forma que o mero juízo célere e sumário do julgador cautelar possa levar a uma certeza com evidentes repercussões no julgamento da causa principal;”], e 25.1.2013, proc. n.º 2253/10.7BEBRG-A [“I. O juízo de «evidência» inserto na al. a) do n.º 1 do art. 120.º do CPTA é tributário duma ideia de clareza e de caráter inequívoco para um qualquer jurista, realidade essa de que são nítido exemplo as três situações enunciadas naquela alínea (…) II. Tratam-se, pois, de situações em que o triunfo da pretensão deduzida ou a deduzir na ação administrativa principal se revela ou afirma no caso como patente, notório, visível e com grande grau de previsibilidade de vir a ocorrer, mercê da semelhança ou paralelo com os julgados invalidatórios anteriores e, bem assim, da natureza ostensiva e grosseira da ilegalidade cometida. III. Estamos, nessa medida, em presença de critério excecional que abrange apenas as situações em que é mais do que provável que a pretensão do requerente venha a ser julgada procedente (…)”].

Retomando o caso vertente verifica-se que o recorrente refere na alegação de recurso – invocação já feita no requerimento inicial – que a decisão suspendenda é ilegal, já que assenta no art. 38º, do Regulamento Disciplinar da PSP, aprovado pela Lei 7/90, de 20/2 [em cujo n.º 1 se dispõe o seguinte: “O despacho de pronúncia ou equivalente com trânsito em julgado em processo penal por infracção a que corresponda pena de prisão superior a três anos determina a suspensão de funções e a perda de um sexto do vencimento base até à decisão final absolutória, ainda que não transitada em julgado, ou até à decisão final condenatória.”], o qual é inconstitucional nomeadamente por violação dos princípios da inocência, da igualdade de tratamento, da adequação e proporcionalidade e do direito ao trabalho.

Ora, verifica-se que a procedência da acção principal não é evidente, tendo, desde logo, em conta os argumentos avançados pelo recorrido no sentido de que o citado art. 38º, do Regulamento Disciplinar da PSP não é inconstitucional, maxime nos artigos 26º a 39º, da contestação apresentada nestes autos.

Com efeito, face a esses argumentos, avançados pelo recorrido [concretamente: razões invocadas no Ac. do Tribunal Constitucional n.º 439/87 para a não inconstitucionalidade do art. 6º n.º 1, do anterior Estatuto Disciplinar da Função Pública, o qual tem um conteúdo equivalente ao art. 38º, do Regulamento Disciplinar da PSP; este art. 38º não vive isoladamente no ordenamento jurídico português, tendo paralelo no art. 8º, do Regulamento Disciplinar da Polícia Judiciária, aprovado pelo DL 196/94, de 21 de Julho], só através designadamente de uma laboriosa indagação em termos de direito se pode apurar se a acção principal procede, o que é suficiente para se concluir que a sua procedência não é palmar, nem evidente, antes exigindo uma cuidada análise.

De todo o modo, sempre se acrescentará, quanto à invocação de que o art. 38º, do Regulamento Disciplinar da PSP, viola o princípio da igualdade de tratamento, na medida em que o actual Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores da Administração Pública não tem dispositivo equivalente ao art. 6º, do anterior Estatuto, o seguinte: a PSP é uma força se segurança, com funções de investigação criminal, pelo que não é manifesto, e muito menos evidente, que as características específicas deste corpo – concretamente do respectivo pessoal com funções policiais, no qual se inclui o ora recorrente - não constituem fundamento material bastante para uma diferenciação de regimes relativamente aos trabalhadores públicos em geral (características específicas que, aliás, conduziram à exclusão de tal corpo do âmbito de aplicação da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas – cfr. o respectivo art. 2º n.º 2 -, a qual foi aprovada pela Lei 35/2014, de 20/6, e entrará em breve em vigor).

Assim sendo, a decisão ora sindicada não enferma de erro de julgamento quando considerou que não se verificava o requisito previsto na al. a) do n.º 1 do art. 120º, do CPTA – neste sentido, Ac. deste TCA de 6.2.2014, proc. n.º 10745/13 [“Ora, no caso presente, como acertadamente concluiu a Senhora Juíza “a quo”, a evidência do bem fundado da pretensão do requerente não era de todo manifesta, porquanto não decorria do acto suspendendo ou da respectiva fundamentação uma ilegalidade manifesta ou patente. Com efeito, na medida em que a norma aplicada para determinar a suspensão de funções do requerente e a inerente perda de um sexto do vencimento base até à decisão final absolutória, ainda que não transitada em julgado, ou até à decisão final condenatória – artigo 38º, nº 1 do ED/PSP – é uma norma absolutamente vinculativa para a Administração, que por conseguinte não admite alternativa, não era possível afirmar desde logo que tal aplicação era manifestamente ilegal e, com base nesse juízo manifesto, conceder a providência requerida ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 120º do CPTA.”].

Como decorre do supra exposto, a providência requerida também pode ser decretada se se verificarem as condições acima enunciadas sob o ponto 2), alíneas a) a c) [“Periculum in mora”, “fumus non malus iuris” e ponderação de todos os interesses, respectivamente], tendo a decisão recorrida concluído no sentido da não verificação nomeadamente do requisito relativo ao periculum in mora.

O recorrente entende que se verifica tal requisito.

Vejamos do acerto da decisão recorrida nesta parte.

É, desde logo, condição de procedência da providência requerida a existência de fundado receio de constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação [“Periculum in mora” – ponto 2), al. a)].

No caso vertente alega o recorrente, a este propósito, que o acto suspendendo lhe causa prejuízos de difícil reparação, já que o impossibilitará de prover ao seu sustento e às despesas do seu agregado familiar, tendo ainda de suportar danos psicológicos.

Constitui jurisprudência pacífica, no que à privação dos rendimentos do trabalho diz respeito, de que, apesar de ser facilmente quantificável o prejuízo pecuniário resultante dessa privação, o mesmo é de reputar de irreparável, ou, pelo menos, de difícil reparação, se essa privação puser em risco a satisfação de necessidades pessoais elementares, ou mesmo se determinar um drástico abaixamento do nível de vida do requerente e seu agregado familiar, pondo em risco a satisfação das necessidades normais, correspondentes ao padrão de vida médio das famílias de idêntica condição social – neste sentido, entre outros, Ac. do STA de 28.1.2009, proc. nº 01030/08, Ac. deste TCA de 8.9.2011, proc. n.º 7893/11, e Ac. do TCA Norte de 27.1.2012, proc. n.º 00736/11.0 BEBRG-A.


Resulta da factualidade dada como assente que, em 2013, em consequência da perda de um sexto do vencimento base e dos suplementos e subsídios associados ao exercício efectivo de funções, foi pago ao recorrente o vencimento mensal de € 1044,14, sobre o qual ainda recaíram descontos, pelo que o mesmo auferiu nesse ano, mensalmente, em termos líquidos, € 918,21 (cfr. doc. n.º 22, junto com o requerimento inicial, para o qual se remete no facto R), dado como assente). A este valor acresce o subsídio de férias, pelo que, repartindo o montante deste subsídio por doze meses, chega-se à conclusão que, em 2013, o recorrente auferiu, por mês e em média, cerca de € 1000.

Ora, tal rendimento, e como se refere na decisão recorrida, “significa que as disponibilidades económicas e financeiras do requerente, em virtude da execução do ato suspendendo(1), diminuem, implicam uma gestão mais racional da despesa, que pode passar pela transferência dos filhos para uma escola pública (…)” (sublinhados nossos), o que permitirá que o recorrente deixe de recorrer a empréstimos monetários junto de amigos e familiares (cfr. facto AA), dado como assente).

Com efeito, ascendendo as despesas mensais do recorrente e respectivo agregado familiar ao montante de € 1293,54 [cfr. factos U), AC) e AD), dados como assentes], verifica-se que, se transferir os seus filhos para uma escola pública, as despesas passarão a ascender a € 693,54 [€ 1293,54 – (€ 295 + € 305)]. Ora, com o rendimento médio mensal de € 1000 poderá fazer face a essas despesas (€ 693,54) necessárias para a sobrevivência do seu agregado familiar (constituído pelo recorrente, a esposa e dois filhos menores), ainda lhe sobrando cerca de € 300 para outras despesas.

Cumpre salientar que a transferência dos filhos do recorrente para uma escola pública não colocará em causa a continuação da satisfação da necessidade de educação dos mesmos, ou seja, tal alteração não põe em risco a satisfação das necessidades normais do seu agregado familiar.

Nestes termos, é forçoso concluir que, a perda de um sexto do vencimento base e dos suplementos e subsídios associados ao exercício efectivo de funções, em consequência da execução do acto suspendendo, não é susceptível de colocar em risco a satisfação das necessidades básicas e das necessidades normais do recorrente e do respectivo agregado familiar.

Quanto aos danos psicológicos, provou-se que as reduções salariais aplicadas ao recorrente, em consequência de não se encontrar no exercício de funções, têm-lhe provocado transtornos psíquicos (cfr. facto AB), dado como provado).

Ora, como se sumariou no Ac. deste TCA de 4.3.2010, proc. n.º 05762/09, “Uma depressão nervosa não integra o conceito de dano irreparável e ou de difícil reparação para efeitos de preenchimento do pressuposto periculum in mora de uma providência cautelar, na medida em que o estado depressivo, além de ser frequente na generalidade da população, pode ser combatido e mesmo revertido através de adequada terapêutica”, pelo que, por maioria de razão, transtornos psíquicos não podem integrar o conceito de dano irreparável ou de difícil reparação para efeitos de preenchimento do pressuposto periculum in mora.

E se esclareceu nesse Ac. deste TCA de 4.3.2010:
“Do que fica dito pode concluir-se a depressão nervosa, se bem que grave, tem tratamento.
Não se trata, pois, de um quadro de sofrimento irreversível, e por conseguinte de um “dano moral anormalmente grave”, como se disse na decisão recorrida, nem a jurisprudência invocada tem a este propósito, salvo o devido respeito, o sentido que dela se quis extrair (…).
Para além disso, dando-se como provado que o recorrente padece de um quadro depressivo, então é forçoso concluir que o perigo que se quis evitar com a providência decretada já ocorreu e que esta apenas irá tutelar danos eventuais ou hipotéticos.
(…)
Por conseguinte, o periculum invocado na sentença afinal traduz-se em quase nada: mera hipótese do estado depressivo do recorrido se agravar, com a possibilidade desse agravamento ser combatido e mesmo revertido por meio de adequada terapêutica.
Afigura-se-nos, por isso, que pode ser convocado o seguinte segmento da argumentação expendida no Ac. do STA de 12-11-2008 (Proc. n.º 0976/08) (…)” (sublinhados nossos).

Nestes termos, conclui-se que, a perda de um sexto do vencimento base e dos suplementos e subsídios associados ao exercício efectivo de funções, não é causa de danos patrimoniais, nem de danos morais susceptíveis de serem considerados como prejuízos de difícil reparação, pelo que falta a verificação do requisito relativo ao “Periculum in mora”, ou seja, a decisão recorrida não enferma de erro de julgamento quando considerou que tal requisito não estava demonstrado.

Do exposto resulta que não se verifica qualquer das condições gerais de procedência da providência cautelar requerida e acima descritas sob os n.ºs 1) [art. 120º n.º 1, al. a), do CPTA] e 2) [concretamente a al. a) – art. 120º n.º 1, al. b), 1ª parte, do CPTA -, não sendo necessário apreciar as restantes condições, previstas nas als. b) e c), já que as mesmas são de verificação cumulativa], razão pela qual deverá ser julgado improcedente o pedido de revogação da decisão recorrida que julgou improcedente o pedido cautelar, e assim mantido o juízo de improcedência da pretensão cautelar.


*
Uma vez que o recorrente ficou vencido no presente recurso jurisdicional deverá suportar as custas, a atender, a final, na acção respectiva (arts. 527 n.ºs 1 e 2 e 539º n.º 2, ambos do CPC de 2013), sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido, na modalidade de dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo (cfr. fls. 660/662, dos autos).

III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em:

I – a) Determinar o aditamento à factualidade dada como provada na decisão recorrida dos factos acima indicados.

b) Negar provimento ao pedido de revogação da decisão recorrida que julgou improcedente o pedido cautelar, e assim manter, com os fundamentos acima expressos, o juízo de improcedência da pretensão cautelar.

II – Condenar o recorrente nas custas relativas ao presente recurso jurisdicional, a atender, a final, na acção respectiva, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido, na modalidade de dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo.

III – Registe e notifique.

*
Lisboa, 10 de Julho de 2014


_________________________________________
(Catarina Jarmela)

_________________________________________
(Cristina Santos)

_________________________________________
(Paulo Gouveia)





1- E anteriormente em virtude da execução das medidas de coacção aplicadas ao recorrente no âmbito do processo crime, maxime da medida de suspensão do exercício da sua actividade policial na PSP.