Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1556/08.5BELSB
Secção:CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO
Data do Acordão:10/18/2018
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:MEDICAMENTOS
COMPARTICIPAÇÃO
COMPENSAÇÃO
DIREITO DE CRÉDITO
PRAZO
EXCEPÇÃO
JUROS
Sumário:i) A intervenção principal, espontânea ou provocada – no caso objecto do presente recurso é provocada -, não é admissível se forem contrapostos os interesses substantivos ou processuais do chamado e da parte ao lado de quem se pretende que intervenha.

ii) Nos termos do art. 847.º, nº 1, al. a), do C. Civil, quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor, desde que, entre outros requisitos, o seu crédito seja exigível judicialmente e não proceda contra ele excepção, peremptória ou dilatória, de direito material.

iii) Nos termos do disposto no número 4 do artigo 15.º do Acordo de 26 de Março de 2003, anexo ao Despacho n.º 25101/2003 (2.ª série), findo o prazo de 100 dias após a data da entrega das facturas das Farmácias, sem devolução do receituário, considera-se este definitivamente aceite pelas ARS.

iv) Tendo a ora Recorrente incumprido os prazos de que dependia o reconhecimento das rectificações feitas às facturas emitidas pelas farmácias e desrespeitado os procedimentos legalmente estabelecidos para esse efeito, circunstancialismo factual que se encontra provado nos autos, não existe direito de crédito para exigir o reembolso de montantes pagos às farmácias.

v) Pelo que, sendo oponível ao crédito invocado pela ARS....., ora Recorrente, uma excepção peremptória com efeito extintivo, a qual tem como efeito a inexigibilidade do mesmo, nunca poderia aquela extinguir as suas dívidas perante a ora Recorrida com recurso à compensação.

vi) Ao atraso no pagamento da comparticipação devida por parte do Serviço Nacional de Saúde dos medicamentos dispensados nas farmácias, não é aplicável a taxa de juro comercial, estando sim os juros sujeitos à regra geral do n.º 1 do art. 559.º do C. Civil, que prevê a sua fixação por portaria conjunta dos Ministros da Justiça e das Finanças (taxa de 4%, prevista na Portaria n.º 291/03, de 8 de Abril, em vigor desde 1.05.2003).
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

A Administração regional de saúde de ......................................... (Recorrente), interpôs recurso jurisdicional do saneador-sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, proferido na acção administrativa comum, sob a forma ordinária, contra si intentada por .................................................., S.A. (Recorrida), na parte em que neste se indeferiu o pedido intervenção provocada das Farmácias indicadas na listagem em anexo à contestação e se condenou a ora Recorrente no pagamento à A. e ora Recorrida da quantia de EUR 362.332,98, acrescida dos juros legais à taxa de comercial sucessivamente em vigor, contados desde 10.05.2008, com fundamento na ilegal compensação de créditos relativamente a facturas emitidas em 2006.

As alegações de recurso que apresentaram culminam com as seguintes conclusões:

A. Onde a recorrente entende que a sentença recorrida é passível de críticas - e daí a interposição do presente recurso - antes de mais, face ao julgamento no despacho saneador da improcedência da questão prejudicial da intervenção provocada.

B. Se é certo que o que está em discussão é a condenação da recorrente no pagamento do montante de 362.332,98 euros, acrescido de juros de mora, não se apresenta menos certo que essa situação se deveu igualmente à inércia das farmácias na emissão das notas de crédito e/ou débito.

C. Não ocorrendo, assim, como pretendido, que por via da cessão dos créditos das farmácias à recorrida, estas possam beneficiar de uma situação de enriquecimento ilícito à conta do Estado.

D. De facto, contrariamente ao entendimento sustentado na sentença, e salvo o devido respeito, o reconhecimento da situação jurídica objecto da pretensão da A. ora recorrida, não deverá ser apreciada de forma isolada.

E. Resulta que existe uma clara responsabilidade da recorrente pelo pagamento das compensações, o que não podia ser apreciada apenas do ponto de vista da actuação da ora recorrente, quando recai igualmente sobre as farmácias a obrigação de emitir as respectivas notas de crédito e/ou débito.

F. Não tendo sido emitidas tempestivamente as notas de crédito e/ou débito da facturação relativa ao ano de 2006, antes da cessão dos créditos, muito embora a recorrida não estivesse constituída em 2006, assumiu os créditos das farmácias associadas da ANF e consequentemente, assumiu igualmente os riscos da respectiva cobrança.

G. Produzindo a cessão dos créditos efeitos a partir da data da notificação, e entendendo a recorrida que não têm que ser alterados os valores da compensação dos seus créditos, ficaram por resolver os anteriores créditos e/ou débitos das facturas de 2006, estes montantes terão que ser assumido por alguma das partes.

I. Ao entender a douta sentença que estamos perante um contrato administrativo, celebrado por uma entidade pública, teremos forçosamente que concluir que ao caso se aplicam as regras do art.º 178.º do CPA, afastando esta matéria dos tribunais comuns.

J. Também aqui nos remete para erro de julgamento, porque aos contratos administrativos aplicam-se os princípios de pacta sunt servanta, da boa fé e da liberdade contratual, pelo que na falta de estipulação sobre juros de mora, conforma acontece no presente caso, será de recorrer à regra geral do n.º 1 do art.º 559.º do C.Civil, a qual estabelece que, a taxa de juros aplicável será aquela que constar de portaria conjunta dos Ministros da Justiça e das Finanças.

K. Logo, a qualificação da relação contratual para afastar a matéria dos tribunais comuns, tem implicações na taxa de juro aplicável.

L. Daqui decorre também que não poderia a douta sentença condenar a Ré, ora recorrente, a pagar a quantia peticionada acrescida dos respectivos juros porque não foi admitida a intervenção provocada das farmácias implicadas.

M. A fundamentação utilizada não contempla o quadro legal e factual aplicável, havendo por isso erro de julgamento.

A Recorrida, .................................................., S.A., apresentou as suas contra-alegações que culminaram com as seguintes conclusões:

1. As alegações de recurso apresentadas pela R. deixam transparecer nitidamente que esta parece estar verdadeiramente a recorrer do próprio Acordo para fornecimento de medicamentos, livremente subscrito pelo Ministério da Saúde, assim como do seu clausulado, onde estavam previstas as regras relativas às rectificações, que a R. incumpriu;

2. Neste contexto, vale a pena recordar (e por sua vez reiterar), que o Acordo em vigor não obrigava as farmácias a emitir as notas de crédito (no pressuposto de que a emissão dessas notas de crédito linha sido regularmente solicitada, o que não ficou provado) com as quais não concordassem, por considerarem que nada havia a rectificar nas referidas facturas;

3. Na verdade, a estratégia assumida pela R. peca, desde logo, por ignorar por completo a factualidade dada como provada pelo tribunal, claramente demonstrativa de que a R incumpriu sistematicamente os prazos e os procedimentos vigentes (cfr. os factos provados H e M);

4. É neste ponto que a argumentação da R. cai por terra, na medida em que esta não conseguiu provar que solicitou, como deveria ter feito, a emissão de notas de crédito nos termos e nos prazos contratualmente fixados;

5. Com efeito, o que surpreende é que, apesar de a R. vir reclamar os alegados créditos quase dois anos depois da sua alegada constituição, quando o prazo máximo para o efeito era de 100 dias, vem agora de forma totalmente inusitada defender-se dizendo que a inércia ficou a dever-se às farmácias, que segundo a R. não se preocupam em cumprir os prazos para emitir as notas de crédito para rectificação do receituário;

6. E o mais grave é que a R. ainda hoje não se apercebeu (ou finge não se aperceber) quais os prazos e os procedimentos contratualmente vigentes à data dos factos, só assim se justificando que insista em repetir que as Farmácias tinham a obrigação de emitir as notas de crédito (mesmo sem a recepção atempada da relação-resumo e mesmo que considerassem que não havia qualquer erro nos valores facturados que devesse ser rectificado), o que é algo que não constava do Acordo então em vigor;

7. Por fim, resta apenas dizer que a posição firmada e reafirmada pela ora Recorrida, para além estar na base daquilo que foi a decisão clarividente do Tribunal a quo, perfilha o entendimento de dois ilustres Professores Catedráticos (um de Direito Público e outro de Direito Privado), a saber o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa e o Prof. Rui Pinto Duarte, cujos pareceres se juntam na presente sede e os argumentos se dão por integralmente reproduzidos.



Neste Tribunal Central Administrativo, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, notificado nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 146.º do CPTA, não emitiu pronúncia.


Colhidos os vistos legais, vem o processo submetido à conferência desta Secção do Contencioso Administrativo para decisão.


I. 1. Questões a apreciar e decidir:

As questões suscitadas pela Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, traduzem-se em saber:

- Se a decisão recorrida enferma de erro de julgamento de direito ao indeferir a requerida intervenção provocada das Farmácias indicadas pela Recorrente;

- Se o tribunal a quo errou ao ter condenado a Recorrente a pagar a quantia peticionada, acrescida dos juros legais à taxa comercial, contados desde 10.05.2008.


II. Fundamentação

II.1. De facto

É a seguinte a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, a qual se reproduz ipsis verbis:

A. Entre 1 de Janeiro de 2002 e 31 de Dezembro de 2005, a Associação Nacional das Farmácias (ANF) celebrou com as Farmácias suas associadas diversos acordos de garantia de pagamento e cessão de créditos relativos precisamente aos créditos que as farmácias detinham sobre o Serviço Nacional de Saúde respeitantes às comparticipações devidas pela venda de medicamentos. (Doc. n.º 1, junto com a petição inicial);

B. Nos termos dos referidos acordos de garantia de pagamento, a ANF adquiriu os créditos, presentes e futuros, detidos pelas Farmácias sobre o SNS, passando a ser cessionária dos referidos créditos das farmácias junto do SNS e, in casu, junto da ARS.....;

C. Foi neste contexto que, no dia 26 de Março de 2003, foi celebrado entre a ANF (enquanto cessionária dos créditos das Farmácias) e o Ministério da Saúde, o Acordo para fornecimento de medicamentos celebrado entre o Ministério da Saúde e a Associação Nacional das Farmácias, Publicado em DR. II.ª série, n.º 301, de 31 de Dezembro de 2003 (Doe. n.º 2, junto com a petição inicial);

D. Nos termos do referido Acordo, previa-se que (art. 14.º, as receitas serão entregues mensalmente pelas farmácias às ARS, em local por elas designado, até ao dia 10 do mês seguinte, devidamente identificadas através de verbete adequado, de relação-resumo de lotes e da factura;

E. Seguidamente, previa o art. 15.º com fulcral importância para o caso, o seguinte:

«1 - A conferência de facturas obedecerá ao previsto em normas regulamentares a acordar entre as partes.

2 - Serão devolvidas às farmácias, para rectificação, as receitas em que se verifiquem incorrecções, a fim de serem incluídas em ulterior remessa.

3 - As ARS enviarão à ANF até ao dia 25 de cada mês uma relação-resumo contendo o valor das rectificações processadas até à data pelos serviços de conferência do receituário.

4 - A conferência e devolução de receituário deve ser efectuada no prazo máximo de 100 dias após a data de entrega da factura pelas farmácias. Findo este prazo, o receituário considera­ se definitivamente aceite pelas ARS.»;

F. Na sequência da publicação da Lei do Orçamento para 2006 e tendo em consideração o disposto no art. 8.º, a ANF cedeu, a favor do Banco .............................., S.A, .................................................., S.A., .................................................., S.A. e Caixa .............................., S.A., a posição contratual que detinha de cessionária nos diversos acordos de garantia de pagamento que se encontravam em vigor em 31 de Dezembro de 2005 (Doc. n.º 3, junto com a petição inicial);

G. No seguimento desta cessão de créditos, devidamente autorizada pelas farmácias cedentes e notificadas à ARS....., foram as facturas emitidas pelas farmácias em 2006 liquidadas pela ARS..... a favor das instituições financeiras acima indicadas, pelo seu valor integral;

H. Não tendo sido efectuada, no prazo contratualmente estabelecido de 100 dias, qualquer devolução de facturas para efeitos de rectificação do respectivo valor;

I. Em 28 de Dezembro de 2006 foi celebrado, entre a ANF e a ........................., o Contrato para Execução de Acordos de Garantia de Pagamento, através do qual foram cedidos à ......................... (com o consentimento das entidades financeiras acima descritas) os créditos que as Farmácias detinham sobre o SNS, com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2007. (Doc. n.º 4, junto com a petição inicial);

J. Neste contexto, os valores devidos pelo SNS (a partir de 1 de Janeiro de 2007) às farmácias, relativamente aos reembolsos das comparticipações pela venda de medicamentos, passaram a ser devidos à ......................... enquanto nova cessionária dos respectivos créditos, o que foi regularmente notificado à ARS..... (Doc. n.º 5 junto com a petição inicial);

K. Veio a ARS..... a enviar ofícios dirigidos à A., em 29/10/ 2007 (relativa a facturas de Fevereiro de 2006), em 07/11/2007 (relativa a facturas de Março de 2006), em 06/12/ 2007 (relativa a facturas de Abril de 2006), em 13/12/ 2007, (relativa a facturas de Maio de 2006), em 13/12/ 2007 (relativa a facturas de Junho de 2006), em 13/12/ 2007 (relativa a facturas de Julho de 2006), 13/12/ 2007, em 13/12/2007 (relativa a facturas de Agosto de 2006), em 19/12/2007 (relativa a facturas de Setembro de 2006), em 20/12/ 2007 (relativa a facturas de Outubro de 2006), em 20/12/ 2007 (relativa a facturas de Novembro de 2006) e em 20/12/ 2006 (relativa a facturas de Dezembro de 2006) ofícios de teor idêntico. (Doc. n.º 12, que junto com a petição inicial);

L. A todas essas comunicações da ARS..... respondeu a 08/11/ 2007, de 14/11/ 2007, de 11/12/ 2007, de 19/12/ 2007 e de 27/12/ 2007) (cfr. Doc. n.º 13, junto com a petição inicial), nos seguintes termos: «Acusamos a recepção da carta de V.Exa. (...) sobre o assunto em epígrafe, relativamente à qual vimos transmitir o seguinte:

1. O período a que se reporta a conferência de receituário em causa - Janeiro de 2006 (em cada carta consta um mês diferente de 2006) é anterior à constituição da ......................... e à data - 1 de Janeiro de 2007 - a partir da qual nos foram cedidos os créditos das farmácias sobre essa Administração Regional de Saúde.

2. Essa ARS foi oportunamente notificada, nos termos legais, quanto à data - 1 de Janeiro de 2007 - a partir da qual teve início a referida cessão de créditos.

3. Por outro lado, os fornecimentos a crédito efectuados pelas farmácias aos beneficiários do SNS, até 31 de Dezembro de 2006, regem-se pelo Acordo então em vigor, celebrado entre a ANF e o Ministério da Saúde, publicado no D.R. 2.ª série, n.º 301 de 31.12.2003, cuja vigência terminou precisamente em 31.12.2006.

4. Nos termos do art. 15.º do referido Acordo, o regime de rectificação de facturas é o seguinte:

"1- (...)

2- (...)

3- As ARS enviarão à ANF até ao dia 25 de cada mês uma relação-resumo contendo o valor das rectificações processadas até à data pelos serviços de conferência de receituário.

4- A conferência e devolução de receituário deve ser efectuada no prazo máximo de 100 dias após a data de entrega da factura pelas farmácias. Findo este prazo, o receituário considera-se definitivamente aceite pelas ARS. "

Assim, todo o receituário cuja conferência e devolução não tenha sido efectivada no prazo máximo e 100 dias, considera-se definitivamente aceite pelas ARS's.

Em face do exposto, informamos V.Ex.as que a ......................... não aceita que sejam efectuadas quaisquer rectificações no movimento contabilístico do próximo pagamento da facturação, relativas a receituário anterior a 1 de Janeiro de 2007, sob pena de procedimento judicial para cobrança de dívida e respectivos juros à taxa legal.

Por fim, permitimo-nos lembrar que solicitámos em 6 de Fevereiro e 19 de Março, através das nossas cartas Ref.ª ADM/7/.......... e Ref.ª: ADM/07/.........., respectivamente, uma reunião com V.Exa.as para análise do novo sistema de pagamentos, às quais não obtivemos qualquer resposta.»

M. Em Maio de 2008, numa das transferências mensais efectuadas pela ARS..... à ......................... relativamente às comparticipações devidas pelas facturas emitidas pelas farmácias em Março de 2008, a ARS..... decidiu, sem qualquer justificação, proceder apenas ao pagamento parcial do valor das facturas;

N. Tendo sido inquirida sobre o motivo desse pagamento parcial, veio a ARS..... indicar que o valor "descontado", no montante de € 362.332,98 euros, correspondia a uma compensação de créditos do SNS relativamente a facturas emitidas pelas farmácias em 2006 (Doc. n.º 6, junto com a petição inicial);

O. Discordando da justificação dada, a ........................., enviou em 16 de Maio de 2008, carta a reiterar, anteriores comunicações, indicando, mais uma vez, não ser legalmente aceitável o débito em causa e solicitando a devolução do referido montante (Doc. n.º 7, junto com a petição inicial);

P. A esta comunicação respondeu a ARS....., a 9 de Junho de 2008, referindo ter-se tratado de uma compensação de créditos com débitos ao abrigo do art. 847.º do Código Civil. (Doc. n.º 8, junto com a petição inicial);

Q. A esta comunicação respondeu a ......................... com nova carta, datada de 26 de Junho em que referia que a mencionada compensação carecia de qualquer fundamento factual e jurídico (Doc. n.º 9, junto com a petição inicial).



II.2. De direito

Começa a Recorrente por imputar erro de julgamento à decisão que indeferiu a intervenção provocada das Farmácias que identificou, por listagem, na contestação. Alega que o que está em discussão é a condenação no pagamento do montante de EUR 362.332,98 euros, acrescido de juros de mora, sendo que essa situação se deveu igualmente à inércia das farmácias na emissão das notas de crédito e/ou débito, pelo que, contrariamente ao decidido, o reconhecimento da situação jurídica objecto da pretensão da A. ora Recorrida, não deverá ser apreciada de forma isolada.

Vejamos.

Na sentença recorrida, neste ponto, escreveu-se o seguinte para fundamentar o indeferimento da intervenção passiva requerida:

A R. veio requerer, ao abrigo do artigo 325° n.º 1 do CPC, a intervenção principal provocada das farmácias indicadas na listagem em anexo à Contestação (cfr. documento n.º 4), para figurarem como RR., por terem, alegadamente, um interesse paralelo ao seu.

Em sede de Réplica, veio a A. responder, dizendo que «entre 1 de Janeiro de 2002 e 31 de Dezembro de 2005, a Associação Nacional das Farmácias (de ora em diante designada abreviadamente ANF) celebrou com as Farmácias suas associadas diversos acordos de garantia de pagamento e cessão de créditos relativos aos créditos que as farmácias detinham sobre o Serviço Nacional de Saúde (de ora em diante designado abreviadamente SNS) respeitantes às

Mais alegou que «nos termos dos referidos acordos de garantia de pagamento, a ANF adquiriu os créditos, presentes e futuros, detidos pelas Farmácias sobre o SNS, passando a ser cessionária dos referidos créditos das Farmácias junto do SNS e, in casu, junto da R.» e que «na sequência da publicação da Lei do Orçamento para 2006, a ANF cedeu, a favor do Banco .............................., S.A, .................................................., S.A., .................................................., S.A. e Caixa .............................., S.A., a posição contratual que detinha de cessionária nos diversos acordos de garantia de pagamento que se encontravam em vigor em 31 de Dezembro de 2005. (...) No seguimento desta cessão de créditos, devidamente autorizada pelas farmácias cedentes e notificadas à R., foram as facturas emitidas pelas farmácias em 2006 liquidadas pela R. a favor das instituições financeiras acima indicadas, pelo seu valor integral»

Alegando ainda que a «28 de Dezembro de 2006 foi celebrado, entre a ANF e a ........................., ora A., o Contrato para Execução de Acordos de Garantia de Pagamento, através do qual foram cedidos à ......................... (com o consentimento das entidades financeiras acima descritas) os créditos que as Farmácias detinham sobre o SN S, com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2007. (conforme documento. n.º 4 junto à Petição Inicial)»

Assim concluindo que «os valores devidos pelo SNS (a partir de 1de Janeiro de 2007) às farmácias, relativamente aos reembolsos das comparticipações pela venda de medicamentos, passaram a ser devidos à ......................... enquanto nova cessionária dos respectivos créditos, o que foi regularmente notificado à R. (Doc. n.º 5 que se juntou com o articulado de réplica).

Face a todo o exposto, e ao abrigo do disposto no artigo 325° e seguintes do CPC, as Farmácias apenas poderiam intervir nos autos como associadas da A. e não como associadas da R., como esta pretende, dado que o seu interesse é igual ao da A. e precisamente oposto ao da R.

Acresce que as Farmácias também não poderiam ser chamadas a intervir na presente acção, dado que as mesmas se encontram representadas para todos os efeitos legais pela ANF, conforme documentos n.º (a 4 juntos com a petição inicial)”.

No incidente de intervenção principal estão os casos em que o terceiro se associa, ou é chamado a associar-se, a uma das partes primitivas, com o estatuto de parte principal, cumulando-se no processo a apreciação de uma relação jurídica própria do interveniente conexa com a relação material controvertida entre as partes primitivas, em termos de tornar possível um hipotético litisconsórcio ou coligação iniciais” (cfr. Lopes do Rego, Comentário ao Código do Processo Civil, p. 242).

A intervenção principal, espontânea ou provocada – no caso é provocada -, não é admissível se forem contrapostos os interesses substantivos ou processuais do chamado e da parte ao lado de quem se pretende que intervenha. E é este o fundamento principal em que se alicerçou a decisão de indeferimento recorrida (v. supra).

Sobre o âmbito da intervenção principal provocada, rege o art. 325º do CPC (na redacção aplicável):

1. Qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com direito a intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.

2. Nos casos previstos no art. 31º-B, pode ainda o autor chamar a intervir como réu o terceiro contra quem pretenda dirigir o pedido.

3. O autor do chamamento alega a causa do chamamento e justifica o interesse que, através dele, pretende acautelar».

Desde já se refira que o autor pode chamar a intervir alguém, seja na posição de autor, seja na posição de réu. E este pode chamar a intervir alguém em posição paralela à sua ou à do autor. Certo é que a intervenção principal provocada pressupõe que o chamado e a parte à qual pretende associar-se tenham interesse igual na causa.

Por outro lado, como ensina Salvador da Costa, a intervenção na lide de alguma pessoa como associado do réu pressupõe um interesse litisconsorcial no âmbito da relação controvertida, cuja medida da sua viabilidade é limitada pela latitude do accionamento operado pelo autor, não podendo intervir quem lhe seja alheio (cfr. Os Incidentes da Instância, 1999, p. 104).

Como decorre do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, na parte respeitante à norma em questão: “(…) partiu-se essencialmente, numa primeira linha, da análise dos vários tipos de interesses em intervir (ou ser chamado a intervir) e das ligações que devem ocorrer entre tal interesse, invocado como fundamento da legitimidade do interveniente, e a relação material controvertida entre as partes primitivas, concluindo-se pela possibilidade de reconduzir logicamente a três formas ou tipos de intervenção, distinguindo sucessivamente: // Os casos em que o terceiro se associa ou é chamado a associar-se, a uma das partes primitivas, com o estatuto de parte principal, cumulando-se no processo a apreciação de uma relação jurídica própria do interveniente, substancialmente conexa com a relação material controvertida entre as partes primitivas, em termos de tornar possível um hipotético litisconsórcio ou coligação iniciais: é este o esquema que define a figura da intervenção principal, caracterizada pela igualdade ou paralelismo do interesse do interveniente com o da parte a que se associa// (…)”.

Ora, a Recorrente na contestação justificou a necessidade de intervenção das Farmácias identificadas por listagem nos seguintes termos:

48.º Estando em causa créditos no montante de 362.332,98 €, afigura-se, a nosso ver que o direito da R. poderá estar dependente da intervenção principal provocada das farmácias indicadas na listagem em anexo, aos presentes autos, para figurarem como Réus, doc. n.º 4.

49.º Assim, com base nos fundamentos da impugnação, vem a ora R., nos termos do art. 325.º n.º 1 do CPC, aplicável ex vi art. 1.º do CPTA, requerer a intervenção das farmácias constantes da lista aos presentes autos, para figurarem como Réus, por terem um interesse paralelo.

50.º O interesse das farmácias em intervir nos presentes autos visa assegurar que não vão ser estas, na medida da sua quota-parte de responsabilidade, a assegurar o valor de 362.332,98 €, ora compensado, uma vez que esta dívida provém dos créditos/débitos das mesmas”.

Logo se vê que o interesse que a Recorrente pretende fazer prevalecer redunda, de acordo com a sua tese, em fazer imputar também aos chamados uma parte da responsabilidade própria que sobre ela impende.

Porém, as Farmácias terceiras não têm um direito próprio e paralelo a intervir na causa como associadas da R.. Veja-se que a A., ora Recorrida, nada lhes imputa nem exige; nenhum interesse têm aquelas em intervir e, a tê-lo, seria também este contraposto em relação à posição defendida pela ora Recorrente em relação ao objecto da causa.

Como se referiu no tribunal a quo e aqui se reitera: “(…) No seguimento desta cessão de créditos, devidamente autorizada pelas farmácias cedentes e notificadas à R., foram as facturas emitidas pelas farmácias em 2006 liquidadas pela R. a favor das instituições financeiras acima indicadas, pelo seu valor integral»

Alegando ainda que a «28 de Dezembro de 2006 foi celebrado, entre a ANF e a ........................., ora A., o Contrato para Execução de Acordos de Garantia de Pagamento, através do qual foram cedidos à ......................... (com o consentimento das entidades financeiras acima descritas) os créditos que as Farmácias detinham sobre o SN S, com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2007. (conforme documento. n.º 4 junto à Petição Inicial)»

Assim concluindo que «os valores devidos pelo SNS (a partir de 1de Janeiro de 2007) às farmácias, relativamente aos reembolsos das comparticipações pela venda de medicamentos, passaram a ser devidos à ......................... enquanto nova cessionária dos respectivos créditos, (…).”

Assim, neste circunstancialismo não só a relação material controvertida não respeita àquelas entidades terceiras mas unicamente à ré, como o eventual interesse das Farmácias em causa é conflituante com o da ora Recorrente e não igual ou paralelo a este. Com efeito, a ora Recorrente a ser titular de um contra-crédito, como alega, sê-lo-á sempre sobre as farmácias e nessa medida as posições jurídicas nessa relação material controvertida são de natureza antagónica e não coincidente, o que impede que as Farmácias possam intervir como associadas da R. e ora Recorrente (o seu interesse é igual ao da A.).

Em suma, tal como está configurada causa de pedir, as Farmácias cuja intervenção foi requerida não são titulares de uma relação jurídica própria ou paralela à da ré, ora Recorrente, nem podem assumir o estatuto de parte principal na lide.

Razões pelas quais, nada mais vindo imputado à decisão recorrida neste capítulo (designadamente erro pela não convolação oficiosa do incidente de intervenção principal provocada em intervenção acessória), tem o recurso que improceder nesta parte.

Continuando, vejamos agora se o tribunal a quo errou ao ter condenado a Recorrente a pagar a quantia peticionada, acrescida dos juros legais à taxa comercial, contados desde 10.05.2008.

Para fundamentar a condenação da ora Recorrente, assentou o tribunal a quo no seguinte discurso fundamentador:

Alega a A. que a ARS..... decidiu vir, em Maio de 2008, liquidar apenas parcialmente os valores devidos à ........................., de modo a "compensar" alegados créditos que detinha sobre as Farmácias, pelo pagamento, alegadamente indevido, de facturas emitidas por estas no ano de 2006 e, «como se não bastasse o facto de ter efectuado essa "compensação" com um atraso de cerca de 2 anos face à data de emissão das facturas em causa, quando o prazo máximo, como se verá, para essas rectificações, era de 100 dias, a contar da recepção da factura por parte da ARS....., decidiu efectuar essa compensação de créditos com débitos relativos a outra entidade - ......................... - que não estava sequer constituída à data em que foram emitidas as facturas cujo pagamento foi alegadamente indevido».

Por sua vez, invoca a R. que «Nesta conformidade, tratando-se os 100 dias de um prazo meramente ordenador e, encontrando-se a R. impedida de Jazer valer o seu crédito junto das farmácias devedoras uma vez que estas, após interpelação, remetiam para a cessão de créditos, sendo o crédito a favor da R. no valor de 362.332,98 €, não tinha outra forma de receber, senão através do instituto da compensação (...)», e que «Apesar da A. não reconhecer a compensação da R. nos moldes em que foi efectuada, pelo montante de 362.332,98€, em virtude dos acertos da facturação respeitante ao ano de 2006, tal montante é devido pelas farmácias à R., caso contrário estaríamos perante uma situação que beneficiaria as farmácias devedoras em detrimento do credor/compensador, diminuindo as hipóteses de cobrança do seu contra-crédito.»

(…)

Os fornecimentos a crédito efectuados pelas farmácias aos beneficiários do SNS, até 31 de Dezembro de 2006, regem-se pelo Acordo então em vigor, celebrado entre a ANF e o Ministério da Saúde, publicado no D.R. 2.ª série, n.º 301de 31.12.2003, cuja vigência terminou precisamente em 31.12.2006 (cfr. alínea C) da matéria de facto e doc. n.º 2 junto com a petição inicial).

Assim, às facturas emitidas e liquidadas em 2006, e não obstante as cessões de créditos efectuadas, aplica-se o Acordo para fornecimento de medicamentos celebrado entre o Ministério da Saúde e a Associação Nacional das Farmácias.

Porém, no seguimento dos ofícios enviados pela ARS..... e das cartas de resposta enviadas pela ......................... (cfr. alíneas K) e L) da matéria de facto), e ao contrário do que a ARS..... havia anunciado, não ocorreu qualquer "compensação" de alegados créditos na liquidação da factura dos meses seguintes (2007), em que a ARS..... liquidou integralmente os valores facturados pelas farmácias e devidos à ......................... enquanto cessionárias dos créditos das farmácias relativamente às facturas emitidas.

Com efeito, foi apenas no dia 10 de Maio de 2008 (cfr. alínea M) da matéria de facto), no momento em que foi feita a transferência bancária relativa aos reembolsos devidos pelas facturas emitidas no mês de Março de 2008, que foram descontados € 362.332,98 euros relativos a alegados créditos decorrentes do pagamento indevido de facturas emitidas nos meses de Janeiro a Dezembro de 2006 e liquidados a um conjunto de entidades financeiras (então cessionárias dos créditos das farmácias).

Ora, nos termos do n.º 2 do art. 15.º do citado Acordo, serão devolvidas às farmácias, para rectificação, as receitas em que se verifiquem incorrecções, a fim de serem incluídas em ulterior remessa.

Previa-se, ainda, nos termos do n.º 3 do mesmo art. 15.º do Acordo, que as ARS enviarão à ANF até ao dia 25 de cada n1ês uma relação-resumo contendo o valor das rectificações processadas.

Finalmente, estabelecia-se, no n.º 4 do art. 15.º que, a conferência e devolução de receituário deve ser efectuada no prazo máximo de 100 dias após a data de entrega da factura pelas farmácias. Findo este prazo, o receituário considera-se definitivamente aceite pelas ARS. (sublinhado nosso).

Da leitura deste n.º 4 resulta que este prazo de 100 dias não se trata de um prazo meramente ordenador, ao contrário do que invoca a R.

E a verdade é que, a ARS..... não enviou as facturas às farmácias para efeitos de rectificação no prazo devido, como não enviou a relação-resumo à ANF no dia devido, pelo que, de acordo com o n.º 4 do art. 15° do Acordo (supra transcrito) findo o prazo de 100 dias a contar da data da facturação, o receituário considera-se definitivamente aceite pelas ARS, sem prejuízo de ter podido existir alguma condescendência no cumprimento deste prazo em ulteriores anos, circunstancia que não inviabiliza a necessidade do seu cumprimento para cabal cobrança de quantias indevidamente pagas.

Face a tudo o exposto, não se termina, porém, sem verificar se, não sendo ao abrigo do Acordo relativo aos prazos de pagamento das facturas, que vigorava à data da emissão das facturas que a ARS..... poderia a ARS..... reter quaisquer verbas devidas à ......................... no âmbito das facturas emitidas pelas Farmácias em Março de 2008.

Como já foi referido, as facturas emitidas pelas farmácias durante o ano de 2006 foram liquidadas pela ARS..... a diversas entidades financeiras que eram, ao tempo, cessionárias dos créditos (titulados pelas facturas) que as farmácias detinham sobre o SNS relativamente aos reembolsos dos medicamentos comparticipados.

Com efeito, em 2006 a ......................... não se encontrava ainda constituída, razão pela qual não foi a esta entidade que foram liquidados os valores correspondentes às facturas emitidas em 2006, sendo certo que a A. apenas se tornou cessionária dos créditos das farmácias sobre o SNS com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2007 (inclusive), (cfr. alínea J) da matéria de facto).

Ora, relativamente aos créditos que a ......................... detém actualmente sobre o SNS, designadamente os referentes ao pagamento das facturas enviadas pelas Farmácias em Março de 2008 e cujo pagamento foi efectuado em 10 de Maio de 2008, aplica-se o disposto no Decreto-Lei n.º 242-A/ 2006, de 29 de Dezembro e na Portaria n.º 3-B/ 2007, de 2 de Janeiro, na medida em que o Acordo acima referido foi denunciado pelo Ministro da Saúde com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2007 (cfr. alínea da matéria de facto).

Nestes termos, e no seguimento do disposto nos números 6 e 7 do art. 8.º do Decreto­ Lei n.º 242-B/ 2006, de 29 de Dezembro, prevê o art. 10.º da Portaria n.º 3-B/ 2007, de 2 de Janeiro que, «no dia 10 do mês seguinte ao do envio da factura mensal, o Estado, através da ARS onde terceiro, procede ao pagamento dos montantes indicados no número seguinte, mediante transferência para uma conta bancária indicada pela farmácia».

Nos termos do n.º 2 do art. 10.º da Portaria em causa, estabelece-se que, «O valor a pagar corresponde ao valor da factura mensal, entregue no mês anterior, rectificado dos valores correspondentes às notas de crédito ou de débitos emitidas pela farmácia».

Ora, a verdade é que a actuação da ARS..... relativamente ao pagamento (efectuado no dia 10 de Maio) das facturas relativas ao mês de Março, não cumpre, o disposto na legislação aplicável, v.g. o disposto no art. 10.º da Portaria n.º 3-B/ 2007, de 2 de Janeiro acima descrita.

Com efeito, de acordo com o referido regime legal e regulamentar, no caso de haver lugar a qualquer rectificação, deve aplicar-se o procedimento previsto no art. 9.º da já citada Portaria, que dispõe que «quando haja lugar a rectificações, a ARS, ou a entidade por esta designada, envia à farmácia, até ao dia 25 de cada mês, sempre que possível por via electrónica, os seguintes documentos: a) uma relação resumo contendo o valor das rectificações; b) a justificação das rectificações, c) as receitas e documentos de facturação que correspondem às rectificações.»

Nos termos do n.º 3 do mesmo art 9.º da Portaria supra citada, prevê-se que, as farmácias, após a aceitação dos valores das rectificações, emitem as respectivas notas de crédito ou débito e enviam-nas à ARS, ou à entidade por esta designada, com a factura mensal, até ao dia 10 do mês seguinte (...), sendo que, de acordo com o n.º 6 do mesmo art. 9.º, a relação resumo, contendo o valor das rectificações, é enviada à farmácia, no prazo de 90 dias contados da data limite para a entrega da factura a que respeitam».

Podendo ler-se também, no n.º 7 do art. 9.º da Portaria que «findo o prazo referido no número anterior (90 dias) sem que a relação resumo seja enviada à farmácia, a factura considera-se definitivamente aceite pelo Estado».

Ora, a verdade é que não foi seguido este procedimento no que respeita ao "desconto" no valor de € 362.332,98 euros relativos à liquidação, no dia 10 de Maio de 2008, dos valores facturados pelas Farmácias (e devidos à .........................) em Março de 2008.

E não foi, porque esses valores não se reportam a alegadas rectificações de facturas emitidas em 2008, nem tão pouco em 2007 mas são relativas a facturas emitidas em 2006.

Face a tudo o exposto, conclui-se que a compensação de créditos impugnada nos presentes autos, relativa a facturas emitidas em 2006, teria de seguir a tramitação prevista no Acordo de pagamento de facturas então em vigor e dirigir-se aos beneficiários dos pagamentos alegadamente indevidos (cessionários dos créditos), o que, como se viu, não aconteceu.

Do mesmo modo se conclui que eventuais descontos relativamente às facturas de 2008 teriam de seguir a tramitação prevista na legislação relativa aos modos de pagamento de facturas actualmente em vigor, o que também não aconteceu.

Assim sendo, encontra-se a ......................... ilegalmente desembolsada do valor de € 362.332,98 euros relativamente à liquidação, no dia 10 de Maio de 2008, dos valores facturados pelas Farmácias em Março de 2008, o que viola, por um lado o Acordo já referido, e por outro a legislação aplicável, devendo a ARS..... ser condenada ao pagamento dessa mesma verba acrescida dos juros legais em vigor a partir do dia 10 de Maio de 2008 e até ao efectivo pagamento total.

Na verdade, o crédito que a ARS..... invoca ter relativamente às facturas de 2006 não é exigível na medida em que, nos termos do Acordo então em vigor já passaram (muito) mais de 100 dias desde a emissão dessas facturas, razão pela qual se considera, nos termos do Acordo, o receituário aceite pelos seus valores nominais.

E o assim decidido é de manter.

De acordo com os termos da fundamentação constante do parecer do I. Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa, oportunamente junto aos autos pela Recorrida, e na qual nos revemos, o comportamento da ora Recorrente, “é grosseiramente ilegal, em primeiro lugar, visto pretender tratar como cessionária dos créditos das Farmácias ao SNS, créditos esses correspondentes a 2006, entidade que só assumiu tal posição contratual em 1 de Janeiro de 2007.E “é grosseiramente ilegal, em segundo lugar, na medida em que ignora que, nos termos do disposto no número 4 do artigo 15.º do Acordo de 26 de Março de 2003, anexo ao Despacho n.º 25101/2003 (2.ª série), findo o prazo de 100 dias após a data da entrega das facturas das Farmácias, sem devolução do receituário, considera-se este definitivamente aceite pelas ARS. Finalmente, também nos termos do mesmo parecer jurídico: “contra o que fica dito não procedem razões atinentes a questões administrativas ou burocráticas de relacionamento das ARS com as Farmácias ou as entidades cessionárias dos seus créditos ao SNS que tenham impedido ou dificultado o respeito dos prazos de 100 dias ou o procedimento previstos no Acordo e na Portaria indicados. Era dever das ARS conhecerem os termos de um e de outra e utilizarem, no respeito do bloco de legalidade vigente, os mecanismos neles consignados, para obstarem à consequência da aceitação dos montantes dos créditos invocados pelas Farmácias.

Ou seja, tal como referido na sentença recorrida, a verdade é que a ARS..... não enviou as facturas às farmácias para efeitos de rectificação no prazo devido, como não enviou a relação-resumo à ANF no dia devido, pelo que, de acordo com o n.º 4 do art. 15° do Acordo (supra transcrito) findo o prazo de 100 dias a contar da data da facturação, o receituário terá de considerar-se definitivamente aceite pelas ARS (sem prejuízo de ter podido existir alguma condescendência no cumprimento deste prazo em ulteriores anos, circunstancia que não inviabiliza a necessidade do seu cumprimento para cabal cobrança de quantias indevidamente pagas).

Dito de modo diverso: “[t]endo a ARS.......... (i) incumprido os prazos de que dependia o reconhecimento das rectificações feitas às facturas periodicamente emitidas pelas farmácias e (ii) desrespeitado os procedimentos estabelecidos para esse efeito, não se constituiu (ou caducou) o seu direito de crédito a exigir o reembolso de montantes por incorrectamente - no entender da ARS.......... - pagos às farmácias” (cfr. parecer jurídico do Professor Doutor Rui Pinto Duarte, junto aos autos).

Razões pelas quais, o valor que foi descontado por iniciativa da ora Recorrente, no montante de EUR 362.332,98 euros, e que correspondia, de acordo com que defende a mesma entidade, a uma compensação de créditos do SNS relativamente a facturas emitidas pelas farmácias em 2006, não encontra acolhimento na previsão do art. 847.º do C. Civil, sendo, portanto, ilícita. Com efeito, para operar a compensação prevista neste art. 847.º, necessário é que o crédito detido seja exigível judicialmente e não proceda contra ele excepção, peremptória ou dilatória, de direito material (nº 1, al. a)).

Por outro lado, a situação factual assente na decisão recorrida é distinta daquela tratada no ac. do STA de 14.07.2015, proc. n.º 254/15 (cuja doutrina não se desconhece), dado que as circunstâncias de facto constitutivas do direito invocado foram aqui alegadas estão aqui provadas. Como constante, sem controvérsia, de H) do probatório: “Não tendo sido efectuada, no prazo contratualmente estabelecido de 100 dias, qualquer devolução de facturas para efeitos de rectificação do respectivo valor”.

Donde, poder falar-se aqui, contrariamente ao que ocorreu no citado processo decidido em recurso pelo STA, em aceitação ou validação das facturas pela ARS, dado que, no caso, não foram enviadas as facturas às farmácias para efeitos de rectificação no prazo devido, bem como não foi enviada a relação-resumo à ANF no dia devido. E a cominação legalmente estabelecida, como explicitado supra, é a aceitação das facturas.

Pelo que, improcede o recurso igualmente nesta parte.

Por fim, descortina-se no recurso interposto que a Recorrente crítica a qualificação dos juros feita pela Mma. Juiz a quo, quanto à sua natureza comercial. Alega que “na falta de estipulação sobre juros de mora, conforma acontece no presente caso, será de recorrer à regra geral do n.º 1 do art.º 559.º do C.Civil, a qual estabelece que, a taxa de juros aplicável será aquela que constar de portaria conjunta dos Ministros da Justiça e das Finanças.

Relativamente à qualificação dos juros comerciais ou legais, importa destacar que no caso presente a matéria em apreço é respeitante a actividade contratual de objecto passível de acto acto administrativo. Apesar da aplicação supletiva do C. Civil, é substancialmente disciplinada pelo Direito Administrativo (Acordo de 2006 e Portaria de 2007). Aliás, essa foi a posição – acertada – assumida pelo tribunal a quo quando para resolver a excepção de incompetência material que havia sido suscitada pela R. e ora Recorrente escreveu: “[a] comparticipação por parte Serviço Nacional de Saúde dos medicamentos dispensados nas farmácias não decorre de uma actividade de Direito Privado do Estado, antes representando uma actuação legalmente fixada, desde logo no Decreto­ Lei n.º 118/92, de 25 de Junho, no âmbito da actividade de prestação do Estado­ Administração. // O referido acordo para fornecimento de medicamentos celebrado entre o Ministério da Saúde e a Associação Nacional das Farmácias, integrando-se na actividade contratual da Administração, não deixa de dever ser qualificado como contrato administrativo, celebrado por uma entidade pública, no âmbito dos seus poderes públicos, no cumprimento da legislação aplicável. // Assim como, o facto de estar em causa um contrato que tem na sua base uma imposição legal relativa à comparticipação do preço dos medicamentos, em que uma das partes é urna entidade pública e em que a matéria desse contrato pode ser substituída por um acto administrativo unilateral da administração, são indícios mais do que suficientes para qualificar o acordo em causa como sendo um contrato administrativo.

Mas essa conclusão não se mostra incompatível com o decidido a propósito da natureza dos juros.

Com efeito, o Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro, veio estabelecer o regime especial relativo aos atrasos de pagamento em transacções comerciais, transpondo a Directiva n.º 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29/07, alterando o artigo 102.º do Código Comercial (entretanto revogado, pelo Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de Maio, com excepção do art. 6.º que alterou o art. 102.º do C. Comercial). Nesse diploma, estabelece-se nos art.s 2.º e 3.º, al. a), e 4.º, nº 1, que:


Artigo 2.º

Âmbito de aplicação


1 - O presente diploma aplica-se a todos os pagamentos efectuados como remunerações de transacções comerciais.

2 - São excluídos da sua aplicação:

a) Os contratos celebrados com consumidores;

b) Os juros relativos a outros pagamentos que não os efectuados para remunerar transacções comerciais;

c) Os pagamentos efectuados a título de indemnização por responsabilidade civil, incluindo os efectuados por companhias de seguros.


Artigo 3.º

Definições


Para efeitos do presente diploma, entende-se por:

a) «Transacção comercial» qualquer transacção entre empresas ou entre empresas e entidades públicas, qualquer que seja a respectiva natureza, forma ou designação, que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração;


Artigo 4.º

Juros e indemnização


1 - Os juros aplicáveis aos atrasos de pagamento das transacções previstas no presente diploma são os estabelecidos no Código Comercial.

Assim, estando em causa a comparticipação por parte do Serviço Nacional de Saúde dos medicamentos dispensados nas farmácias, isto é, estando em causa um contrato que tem na sua base uma imposição legal relativa à comparticipação do preço dos medicamentos, terá que analisar-se se o mesmo contrato tem subjacente o fornecimento de mercadorias – no caso os medicamentos – contra uma remuneração – esta aqui sob a forma de comparticipação (a crédito).

Ora, a comparticipação dos medicamentos dispensados nas farmácias, distingue-se da aquisição de medicamentos ou o seu fornecimento pelas entidades que compõem o Serviço Nacional de Saúde. Nesta última situação, por exemplo de aquisição de medicamentos pelos Hospitais, dúvida não há em como se está perante uma transacção comercial para efeitos de aplicação do citado diploma. No entanto, o sinalagma que se estabelece na situação presente é distinto, não se podendo falar de uma fornecimento de medicamentos ao Serviço Nacional de Saúde, pois que os medicamentos são comprados pelos utentes às Farmácias que os dispensam, nem a comparticipação do Estado no preço dos medicamentos equivale a uma remuneração por um qualquer serviço que haja sido prestado.

Desse modo, os pagamentos reivindicados encontram-se excluídos da aplicação deste diploma. E por esta via, os juros de mora a considerar não são os aplicáveis às dívidas do Estado com a taxa dos juros comerciais, estando sim sujeitos à regra geral do n.º 1 do art. 559.º do C.Civil, segundo o qual "[o]s juros legais e os estipulados sem determinação da taxa ou quantitativo são os fixados em portaria conjunta dos Ministros da Justiça e das Finanças e do Plano."

Procede, pois, o recurso neste ponto, devendo, em conformidade, revogar-se a decisão recorrida nesta parte e determinar o pagamento dos juros legais à taxa de 4%, prevista na Portaria n.º 291/03, de 8 de Abril (que vigora desde 1.05.2003).



III. Conclusões

Sumariando:

i) A intervenção principal, espontânea ou provocada – no caso objecto do presente recurso é provocada -, não é admissível se forem contrapostos os interesses substantivos ou processuais do chamado e da parte ao lado de quem se pretende que intervenha.

ii) Nos termos do art. 847.º, nº 1, al. a), do C. Civil, quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor, desde que, entre outros requisitos, o seu crédito seja exigível judicialmente e não proceda contra ele excepção, peremptória ou dilatória, de direito material.

iii) Tendo a ora Recorrente incumprido os prazos de que dependia o reconhecimento das rectificações feitas às facturas emitidas pelas farmácias e desrespeitado os procedimentos legalmente estabelecidos para esse efeito, circunstancialismo factual que se encontra provado nos autos, não existe direito de crédito para exigir o reembolso de montantes pagos às farmácias.

iv) Pelo que, sendo oponível ao crédito invocado pela ARS....., ora Recorrente, uma excepção peremptória com efeito extintivo, a qual tem como efeito a inexigibilidade do mesmo, nunca poderia aquela extinguir as suas dívidas perante a ora Recorrida com recurso à compensação.

v) Ao atraso no pagamento da comparticipação devida por parte do Serviço Nacional de Saúde dos medicamentos dispensados nas farmácias, não é aplicável a taxa de juro comercial, estando sim os juros sujeitos à regra geral do n.º 1 do art. 559.º do C. Civil, que prevê a sua fixação por portaria conjunta dos Ministros da Justiça e das Finanças (taxa de 4%, prevista na Portaria n.º 291/03, de 8 de Abril, em vigor desde 1.05.2003).





IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em, concedendo parcial provimento ao recurso:

- Revogar a sentença recorrida na parte em que condenou a ora Recorrente no pagamento de juros moratórios à taxa de comercial sucessivamente em vigor, por serem devidos juros moratórios à taxa legal de 4%, de acordo com a Portaria n.º 291/03, de 8 de Abril, no que se condena a R. e ora Recorrente; e

- Manter, quanto ao demais, a sentença recorrida.

Custas por ambas as partes, com decaimento que se fixa para a Recorrente em ¾ e em ¼ para a Recorrida, julgando-se dispensado, compulsados os termos processuais da causa, o pagamento do remanescente da taxa de justiça.

Lisboa, 19 de Outubro de 2018



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PEDRO MARCHÃO MARQUES


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HELENA CANELAS


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ANTÓNIO AGUIAR DE VASCONCELOS