Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:764/12.9BELLE
Secção:CT
Data do Acordão:03/02/2023
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:IMPOSTO SUCESSÓRIO
PRESUNÇÃO RELATIVA À INCIDÊNCIA DE IMPOSTO
PRESUNÇÃO INILIDÍVEL
Sumário:I. Nos termos do art.º 10.º do CIMSISSD, lido em consonância com o art.º 2031.º do Código Civil, a incidência do imposto sucessório regula-se pela legislação em vigor à data da morte do de cujus.

II. Prevendo a lei vigente no momento referido em I., no art.º 26.º do CIMSISSD, uma presunção inilidível, no que respeita à incidência objetiva do imposto, não é exigível aos sujeitos passivos que se disponham a ilidi-la, ainda que a AT, sem respaldo na disciplina legal aplicável no caso, afirme que tal é possível.

III. Sendo a norma em causa, tal como já referido pelo Tribunal Constitucional, atentatória dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva, tal circunstância fere a validade da liquidação nessa parte.

IV. Da norma de incidência que se extrai do art.º 26.º do CIMSISSD aplicável in casu retira-se um único sentido interpretativo: a consagração de uma presunção inilidível, contrária à Constituição, consagração essa que afasta qualquer interpretação conforme a Constituição, caso contrário estaríamos a criar nova regulação, situação que contraria o princípio da separação de poderes.

Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio recorrer da sentença proferida a 11.05.2016, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Loulé, na qual foi julgada parcialmente procedente a impugnação apresentada por M. G. V. L., C. M. V. L., P. J. V. L. e R. N. V. L. (doravante Recorridos ou Impugnantes), que teve por objeto a liquidação de imposto sucessório, efetuada no processo de herança aberto por óbito de C. E. V. L.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Nas suas alegações, a FP formulou as seguintes conclusões:

“1. A douta sentença recorrida decidiu pela procedência parcial do pedido dando razão aos impugnantes na parte relativa ao valor tributável calculado ao abrigo do artigo 26º do Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto Sobre Sucessões e Doações (CIMSISSD);

2. Com o sempre devido respeito, não pode a FP concordar com tal decisão;

3. Na fundamentação de direito, a douta sentença recorrida considerou que a AT presumiu o valor dos bens móveis, para efeito de tributação em Imposto sobre Sucessões com fundamento naquele preceito legal que os impugnantes colocam em crise com base no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 211/2003 ;

4. A douta sentença recorrida ancora a decisão nesse aresto do TC e, bem assim, no douto Acórdão do STA proferido no Procº 0910/13 de 19-03-2016;

5. A Mmª Juiz a quo conclui que à data do óbito do autor da sucessão, aplicava-se a presunção contida no mencionado artigo 26º do CIMSISSD;

6. Tendo tal norma sido declarada inconstitucional, considerou a Mmª Juiz ser de proceder o alegado pelos impugnantes;

7. Ora, a presunção prevista no artigo 26º do CIMSISSD foi declarada inconstitucional na justa medida em que se considerava não admitir prova em contrário;

8. Tal não é, porém, o caso dos autos;

9. Com efeito, a decisão do Recurso Hierárquico fundamentou nos seus artigos 13º a 16º, que a presunção em causa admite sempre prova em contrário por força da entrada em vigor do art.º 73º da Lei Geral Tributária;

10. A pretensão dos ali recorrentes não foi atendida, quanto a este item, por não ter sido provado que o valor dos bens fosse inferior ao considerado com a aplicação da presunção;

11. Ou seja, considerando a AT a presunção juris et de jure inconstitucional, em conformidade com o decidido pelo Tribunal Constitucional, é de admitir a manutenção da norma mas entendendo-se a mesma como presunção juris tantum;

12. Assim, tivessem os ali recorrentes ora impugnantes provado que o valor apurado quanto aos bens móveis fosse diverso do real, admitir-se-ia tal valor;

13. O que não se verificou no recurso, nem nos autos;

14. Tendo decidido no sentido da procedência do pedido, incorreu o julgador da 1ª instância em erro de julgamento e violou o disposto no art.º 26º do CIMSISSD com a interpretação constitucionalmente aceite;

Pelo exposto e com mui douto suprimento de V. Exas., deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogada a sentença recorrida e substituída por outra que considere o pedido improcedente como é de inteira JUSTIÇA”.

Os Recorridos não contra-alegaram.

Foram os autos remetidos ao Supremo Tribunal Administrativo (STA), nos quais, por decisão sumária de 27.06.2020, o mesmo se declarou incompetente em razão da hierarquia, ordenando a sua remessa a este TCAS.

Neste TCAS, os autos foram a vista do Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do art.º 288.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT), vem o processo à conferência.

É a seguinte a questão a decidir:

a) Verifica-se erro de julgamento, porquanto os Impugnantes poderiam ter ilidido a presunção prevista no art.º 26.º do Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações (CIMSISSD), o que não fizeram?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“A) Em 20/06/1997, foi instaurado o processo de Imposto Sucessório nº 11862, por óbito de C. E. V. L., cônjuge da Impugnante, que ocorreu em 24/05/1997 (cfr. fls. 6 a 37 do processo de imposto sucessório apenso);

B) Em 16/02/1998, foi apresentada no referido processo, a relação de bens (cfr. fls. 26 a 36 dos autos);

C) Em 25/05/2004 foi emitida a liquidação de Imposto sucessório no valor de 147.844,32 (cfr. fls. 163 a 178 do processo de imposto sucessório);

D) Em 16/06/2004 os Impugnante apresentaram contestação relativamente às verbas 1,2,3,4,31,32,33,50,51 e 52 (cfr. fls. 179 a 185 do processo de imposto sucessório);

E) Em 16/07/2004 é feita nova liquidação com exclusão das verbas contestadas (cfr. fls. 191 a 212 do processo de imposto sucessório);

F) Em 18/08/2004 os Impugnantes apresentam nova contestação, que veio a ser indeferida por despacho de 21/07/2005 (cfr. fls. 299 a 300 do processo de imposto sucessório);

G) Em 17/08/2005, os Impugnantes apresentaram recurso que veio a ser deferido parcialmente por despacho da Subdiretora-Geral da Direção de Serviços do Imposto Municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis, do imposto de selo, dos impostos rodoviários e das contribuições especiais, em 21/05/2012 (cfr. fls. não numeradas do processo de recurso hierárquico);

H) Em 16/07/2012 foi emitida liquidação no montante de €147.844,32 (cfr. fls. 166 e 166 dos autos);

I) Serviu de base à liquidação impugnada, o montante de 816.906,99 nos quais se incluem €812.700,61 resultante da soma dos bens imóveis e bens móveis no valor de €121.905,09, onde se inclui o valor de €119,475,06, presumido nos termos do art. 26º do CIMSISSSD (cfr. fls. 163 a 165 do processo de recurso hierárquico e 166 dos autos);

J) Em 02/10/2012 foi emitida liquidação referente às verbas 1,2,3 e 4 – quotas das sociedades, no valor de €70.428,96 (cfr. fls. 169 e 170 dos autos);

K) As verbas 31 e 32 encontravam-se oneradas por hipoteca constituída a favor do B. B. V. (Portugal) S.A. sendo o valor do crédito hipotecário de €330.732,93 à data do óbito de C. E. V. L., em 24/05/1997 (cfr. fls. 21 e 51 dos autos);

L) A verba 33 encontrava-se onerada com uma hipoteca constituída a favor do B. c. P., S.A. sendo o valor do crédito hipotecário de €825.497,583 à data do óbito de C. E. V. L., em 24/05/1997 (cfr. fls. 20 e 67 dos autos);

M) À data do óbito de C. E. V. L., em 24/05/1997, havia uma dívida resultante de empréstimo concedido pelo C. A. no valor de €54.934,91 (cfr. fls. 37 dos autos);

N) Em 25/09/2000, os Impugnantes, em representação da fima “P. – I. M. G., LDA.” celebraram escritura de compra e venda em que declararam vender pelo preço de €124.699.47, o prédio rútico inscrito na matriz sob o artigo 9.., secção .., da freguesia de M., concelho de Borba, com o VPT de €98,80 (cfr. fls. 97 a 100 dos autos)”.

II.B. Refere-se ainda na sentença recorrida:

Não se provaram quaisquer outros factos passíveis de afectar a decisão de mérito, em face das possíveis soluções de direito, e que, por conseguinte, importe registar como não provados”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

Quanto aos factos provados a convicção do Tribunal fundou-se na documentação junta com os articulados, no processo administrativo junto aos autos, cuja veracidade não foi posta em causa e ainda do depoimento da testemunha que apenas relevou quando afirmou que frequentava a casa da irmã impugnante, e que o recheio da mesma era normal, sem luxos.

Quanto aos factos não provados, tal resultou da falta de prova documental e também testemunhal, uma vez que o depoimento da testemunha, revelou-se insuficiente para esclarecimento deste tribunal, uma vez que, embora cunhado do de cujus, à altura dos factos era emigrante e só tinha contactos anuais com a sua irmã, no verão, não tendo acompanhado qualquer escritura de compra e venda dos imóveis em causa nos autos, não tendo conhecimento sobre o valor dos bens”.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Alega a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, na medida em que, como a própria administração tributária (AT) referiu em sede de recurso hierárquico, é admissível a prova em contrário, nas situações subsumíveis ao art.º 26.º do CIMSISSD, sendo que o que sucedeu foi que os Recorridos não a fizeram.

Vejamos então.

O art.º 26.º do CIMSISSD, na redação anterior à alteração que lhe foi dada pelo DL n.º 472/99, de 8 de novembro, dispunha nos seguintes termos:

“Nas transmissões por morte, quando não houver arrolamento judicial dos mobiliários, presumir-se-á, sem admissão de prova em contrário, a existência de mobílias, dinheiro, jóias e mais objetos de uso pessoal ou doméstico, necessários para perfazer, com os bens da mesma espécie que foram relacionados, um valor mínimo equivalente às seguintes percentagens do ativo restante da sucessão:

Até 500 contos ................................................................... 3

Mais de 500 contos a 2500 contos .................................... 6

Mais de 2500 contos a 5000 contos ................................... 9

Mais de 5000 contos a 10 000 contos ................................ 12

Mais de 10 000 contos ...................................................... 15”.

Como decorre desta redação, a mesma previa uma presunção inilidível (como resulta da expressão, “presumir-se-á, sem admissão de prova em contrário”).

A este respeito, o Tribunal Constitucional teve oportunidade de se pronunciar, no Acórdão n.º 211/03, de 28.04.2003, no qual se decidiu “julgar inconstitucional a norma do artigo 26º do Código do Imposto Municipal da Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 41 969, de 24 de Novembro de 1958, na redacção que lhe foi dada pelo nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 308/91, de 17 de Agosto, ao estabelecer, nas transmissões por morte, não ocorrendo “arrolamento judicial dos mobiliários”, uma presunção sem admissão de prova em contrário da existência de uma determinada quota de “mobílias, dinheiro, jóias, e mais objectos de uso pessoal ou doméstico”, por se considerar que uma presunção inilidível, neste domínio, viola o princípio constitucional da igualdade, conexionado com o da capacidade contributiva, contidos nos artigos 13º, nº 1, e 104º, nº 3, da Constituição da República”.

Entretanto, com o DL n.º 398/98, de 17 de dezembro, foi aprovada a Lei Geral Tributária (que entrou em vigor a 01.01.1999), que veio, no seu art.º 73.º, determinar que as presunções legais em matéria de incidência admitem sempre prova em contrário.

Como referem Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa (Lei Geral Tributária – comentada e anotada, 3.ª Ed., Vislis, Lisboa, 2003, p. 359):

“Perante este artigo tinha de ter-se por revogado, a partir da entrada em vigor da L.G.T., o art . 26.° do C.I.M.S .I.S.D. que, relativamente às transmissões por morte, estabelecia uma presunção de existência de bens móveis sem admissão de prova em contrário, norma esta que, aliás, quanto a tal segmento, era já inconstitucional por ofensa do princípio da capacidade contributiva ínsito na dimensão material do princípio da legalidade e no princípio da igualdade tributárias”.

Foi no contexto da aprovação da LGT que surgiu o DL n.º 472/99, de 8 de novembro, como resulta de forma clara do respetivo preâmbulo. Ali se refere:

“Um dos propósitos fundamentais da lei geral tributária aprovada pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro, foi introduzir maiores coerência, clareza e estabilidade no sistema fiscal composto por múltiplas normas jurídicas frequentemente contraditórias entre si, em evidente prejuízo da necessária unidade do sistema fiscal. As soluções da lei geral tributária prevalecem obviamente sobre as normas em sentido contrário dos vários códigos e leis tributárias que ficaram, a partir de 1 de Janeiro de 1999, data da sua entrada em vigor, revogadas tacitamente, por incompatibilidade. Apenas ficou salvaguardada a legislação especial. Essa ressalva, no entanto, não pode fundamentar soluções desarmónicas com as da lei geral tributária, que ponham em causa a unidade do sistema fiscal. A adaptação dos vários códigos e leis tributárias à lei geral tributária não é nem poderia ser, por isso mesmo, uma condição de eficácia ou aplicabilidade das suas normas. Mas a não dependência da eficácia da nova lei dessa adaptação não diminui de algum modo a sua importância. Pelo contrário, acentua-a, dado ter sido justamente um dos propósitos fulcrais da lei geral tributária eliminar quaisquer manifestações arbitrárias de dissonância no sistema fiscal que possam prejudicar o correcto exercício dos poderes da administração tributária e das garantias dos contribuintes e, reflexamente, sejam susceptíveis de afectar a justiça e equidade fiscal” (sublinhados nossos).

Neste seguimento, o já mencionado art.º 26.º foi alterado, tendo a sua redação passado a ser a seguinte:

“Nas transmissões por morte, quando não houver arrolamento judicial dos mobiliários, presumir-se-á a existência de mobílias, dinheiro, joias e mais objetos de uso pessoal ou doméstico, necessários para perfazer, com os bens da mesma espécie que foram relacionados, um valor mínimo equivalente às seguintes percentagens do ativo restante da sucessão:

Até 500 contos ................................................................... 3

Mais de 500 contos a 2500 contos .................................... 6

Mais de 2500 contos a 5000 contos ................................. .. 9

Mais de 5000 contos a 10 000 contos ................................ 12

Mais de 10 000 contos ...................................................... 15”.

Como resultava do art.º 10.º do CIMSISSD, “[a] incidência da sisa e do imposto sobre as sucessões e doações regular-se-á pela legislação em vigor ao tempo que se efetuar a transmissão”.

Por seu turno, nos termos do art.º 2031.º do Código Civil, há que atentar à data da abertura da sucessão (“no momento da morte do seu autor”).

Apliquemos estes conceitos ao caso dos autos.

In casu, a abertura da sucessão ocorreu a 24.05.1997 [cfr. facto A)], na vigência, pois, da já mencionada presunção inilidível, prevista no art.º 26.º do CIMSISSD.

Considerando que era essa a disciplina aplicável in casu, há que chamar à colação o entendimento em torno da respetiva inconstitucionalidade, constante do já referido Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 211/03, de 28.04.2003.

Essa violação da nossa lei fundamental encontra-se intrínseca, pois, a uma previsão legal, que era aquela com a qual os Impugnantes podiam legitimamente contar, que consagrava, sem margens para dúvidas, uma determinada presunção como inilidível. E, assim sendo, não lhes era exigível fazer qualquer prova em contrário, que a própria lei inequivocamente afastava.

A circunstância de ter havido alterações ulteriores que modificaram essa situação não tem impacto no concreto caso dos Recorridos.

Aliás, veja-se que o Acórdão do Tribunal Constitucional citado foi proferido num momento em que a nova disciplina já estava em vigor, a que, aliás, faz referência, e a sua decisão é inequívoca.

Logo, é irrelevante que a AT tenha referido em sede de recurso hierárquico que era admissível prova em contrário, quando a disciplina legal concretamente aplicável dispunha em sentido diverso.

Como referido no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 09.03.2016 (Processo: 0910/13):

“[O] Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.° 211/03 Lisboa, de 28 de Abril de 2003 relatado pelo Conselheiro Alberto Tavares da Costa, considerou que a norma constante do artigo 26º do CIMSISD, na redacção emergente do Decreto-Lei nº 252/89, de 9 de Agosto, ao estabelecer uma presunção absoluta e inilidível de que o valor dos bens mobiliários representa, sempre e necessariamente, uma quota de outros bens ou valores patrimoniais da herança, conduz a uma verdadeira ‘ficção’ da existência de bens dessa natureza, sem que seja outorgada ao contribuinte qualquer possibilidade de demonstração de que a real estrutura do património hereditário se não compaginava com tal imposição legal e que tal interpretação normativa viola os princípios constitucionais da igualdade e da capacidade contributiva.

Ora, a abertura da sucessão de C………. remonta à data de 30 de Novembro de 1998, quando ainda vigorava o artigo 26.° do CIMSISD na redacção que estabelecia a presunção legal que foi julgada inconstitucional em 2003 e que não podemos de deixar de considerar”.

Veja-se que, na interpretação de uma determinada norma, tem de se atentar no seu sentido, começando pelo seu elemento literal.

No caso, tal sentido literal era inequívoco: o legislador configurou a presunção em causa como inilidível – o que afasta qualquer interpretação da norma conforme a Constituição, dado que a mesma é expressa ao fazer precludir “definitivamente” a possibilidade de ilidir a presunção (v., apesar de no âmbito contraordenacional, o Acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional n.º 172/2021, de 24.02.2021).

Como referido por Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Ed., 22.ª Reimpressão, Almedina, Coimbra, pp. 1226 e 1227): “O princípio da interpretação das leis em conformidade com a constituição (…) ganha relevância autónoma quando a utilização dos vários elementos interpretativos não permite a obtenção de um sentido inequívoco dentro os vários significados da norma. (…) Esta formulação comporta várias dimensões: (…) (3) o princípio da exclusão da interpretação conforme a constituição mas ‘contra legem’ impõe que o aplicador de uma norma não pode contrariar a letra e o sentido dessa norma através de uma interpretação conforme a Constituição (…) // Este princípio deve ser compreendido articulando todas as dimensões referidas, de modo que se torne claro: (…) a interpretação das leis em conformidade com a constituição deve afastar-se quando, em lugar do resultado querido pelo legislador, se obtém uma regulação nova e distinta, em contradição com o sentido literal ou sentido objectivo claramente recognoscível da lei ou em manifesta dessintonia com os objetivos pretendidos pelo legislador”.

No caso, considerando a norma de incidência aplicável, retira-se um único sentido interpretativo: a consagração de uma presunção inilidível, contrária à Constituição, nos termos já referidos, consagração essa que afasta qualquer interpretação conforme a Constituição, caso contrário estaríamos a criar nova regulação, situação que contraria o princípio da separação de poderes (cfr. o art.º 111.º da CRP).

Assim, prevendo a norma de incidência uma presunção inilidível e sendo tal previsão inconstitucional, nada há a apontar à sentença proferida, que foi justamente nesse sentido.

Como tal, não assiste razão à Recorrente.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Negar provimento ao recurso;

b) Custas pela Recorrente;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 02 de março de 2023

(Tânia Meireles da Cunha)

(Susana Barreto)

(Patrícia Manuel Pires)