Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:732/21.0BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:12/15/2021
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:GARANTIA BANCÁRIA
VALIDADE
IDONEIDADE DA GARANTIA
Sumário:I. Os órgãos da AT podem praticar, no âmbito da execução fiscal, atos de natureza processual e atos materialmente administrativos.

II. Estando em causa a prática de um ato materialmente administrativo, tal implica respeito pelos princípios inerentes ao procedimento administrativo tributário, onde se inclui o direito de participação.

III. A circunstância de uma garantia bancária ter uma validade de 48 meses não faz dela uma garantia inidónea, não só em virtude da possibilidade conferida no CPPT de haver reforço ulterior de garantias, caso seja necessário, mas também do facto de o regime atinente à caducidade das garantias evidenciar que as mesmas não têm de se manter até que a decisão final do pleito seja definitiva.

Votação:Unanimidade
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio apresentar recurso da sentença proferida a 11.10.2021, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Sintra, na qual foi julgada procedente a reclamação de ato do órgão de execução fiscal, apresentada por J. A. C., Lda (doravante Recorrida ou Reclamante), que teve por objeto decisão do Diretor de Finanças Adjunto da Direção de Finanças de Lisboa, que indeferiu o seu pedido de aceitação de uma garantia, prestada sob a forma de garantia bancária, com vista à obtenção da suspensão do processo de execução fiscal (PEF) 3654202001177397.

Apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

A) In casu, salvaguardado o elevado respeito, deveria ter sido dada uma maior acuidade ao escopo do vertido nos artigos 52.º e 60.º, ambos da LGTributária; artigos 169.º e 199.º, ambos do CPPTributário e art. 163, n.º 1 do CPAdministrativo,

B) devidamente condimentado e com arrimo no respeito pelo Princípio da legalidade e do Principio da Justiça, o qual, abarca todos os demais.

C) Também, deveria o respeitoso Aerópago a quo, ter melhor valorado e considerado o acervo probatório documental constante dos autos (maxime, o teor do vertido na informação oficial da Direcção de Finanças de Lisboa constante de págs. 36 e sgs. da numeração da plataforma do SITAF) assim como a Informação oficial de págs. 44 a 55 da numeração da plataforma do SITAF.

D) Ao que acresce a vicissitude de o respeitoso Tribunal a quo, ter extraído erradas ilações jurídico-factuais da factualidade dada como assente (mormente a vertida no item F) do probatório.

E) Para que, se pudesse aquilatar pela IMPROCEDÊNCIA DA RECLAMAÇÃO aduzida pelo Recorrido, maxime pela constatação da inexistência dos vícios que são imputados ao despacho sindicado nos presentes autos, mantendo-se a existência do mesmo, incólume na ordem jurídica.

F) Como as conclusões do recurso exercem uma importante função de delimitação do objeto daquele, devendo “corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende obter do tribunal Superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo Tribunal a quo” - (Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4.ª ed., Coimbra, Almedina, 2017, p. 147),

G) A delimitação do objecto do recurso supra elencado, é ainda melhor explanado, explicitado e fundamentado do item 15º ao 27º das Alegações de Recurso que supra se aduziram (itens aqueles, que por economia processual, aqui se dão por expressa e integralmente vertidos) e das quais, as presentes Conclusões, são parte integrante.

H) Posto que, aquelas vicissitudes supra elencadas, estão comprovadas, referenciadas e dadas como assentes nos presentes autos, não tendo sido devidamente relevadas pelo Tribunal a quo,

I) pois que, a tê-lo sido, o itinerário decisório a implementar pelo respectivo Areópago, de certo, que teria sido outro.

J) Nem, tão pouco, da factualidade dada como assente e do acervo probatório existente nos autos sub judice, foram extraídas ilações jurídico-factuais assertivas por parte do respeitoso Areópago recorrido.

K) Por conseguinte, salvo o devido respeito, que é muito, o Tribunal a quo lavrou em erro de julgamento.

NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO, e com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido total provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se a sentença proferida com as devidas consequências legais.

CONCOMITANTEMENTE,

Apela-se desde já à vossa sensibilidade e profundo saber, pois, se aplicar o Direito é um rotineiro ato da administração pública, fazer justiça é um ato místico de transcendente significado, o qual poderá desde já, de uma forma digna ser preconizado por V. as Ex.as, assim se fazendo a mais sã, serena, objectiva e acostumada

JUSTIÇA!”.

A Recorrida não apresentou contra-alegações.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Foram os autos com vista à Ilustre Magistrada do Ministério Público, nos termos do art.º 288.º, n.º 1, do CPPT, que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Com dispensa dos vistos legais, atenta a sua natureza urgente (art.º 657.º, n.º 4, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT), vem o processo à conferência.

São as seguintes as questões a decidir:

a) Há erro de julgamento de facto, em virtude de o ato reclamado não ser um ato sujeito aos princípios do procedimento tributário?

b) Há erro de julgamento, em virtude de o ato reclamado não padecer de ilegalidade, uma vez que a garantia não se mostrava idónea, atento o respetivo prazo de validade?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

A) Contra a ora Reclamante J. A. C., LDA. foi instaurado pelo Serviço de Finanças de Oeiras 1, o processo de execução fiscal n.º 3654202001177397 e apenso (n.º 3654202001192434), para cobrança coerciva de dívida de IRC referente aos anos de 2017 a 2018, no valor de € 107.744,89, e ao ano de 2019, no valor de €42.690,56 – cfr. fls. 24 a 27 e 28-33 do sitaf;

B) Foram apresentadas reclamações graciosas relativamente às duas liquidações de IRC – facto não controvertido (cfr. informação a fls. 34-35 do sitaf e conclusões da petição inicial);

C) Em 31-03-2021, para efeitos de suspensão do processo de execução fiscal identificado em A), a ora Reclamante apresentou junto do Serviço de Finanças de Oeiras 1 garantia bancária no valor de € 140.000,00 e uma caução no valor de € 14,96 – cfr. fls. 34-35 do sitaf e fls. 59 a 66 do registo do sitaf n.º 006394511;

D) Em 21-04-2021, deu entrada no Serviço de Finanças de Oeiras - 1 exposição escrita da ora Reclamante, com o seguinte teor:

Imagem: Original nos autos

Imagem: Original nos autos

- cfr. fls. 51 e 52 do registo do sitaf n.º 006394511;

E) Com o requerimento referido na alínea antecedente, a ora Reclamante juntou o documento “Garantia Bancária Autónoma”, com o seguinte teor:

Imagens: Originais nos autos


- cfr. fls. 53 do registo do sitaf n.º 006394511;

F) Em 18-06-2021, foi emitida informação por técnico da Direção de Finanças de Lisboa, sob o assunto “APRECIAÇÃO DE GARANTIA PA 02/2021”, onde consta o seguinte:

Imagem: Original noa autos

Imagens :Orginais nos autos

Imagens: Originais nos autos

Imagens: Originais nos autos

- cfr. fls. 44-55 do sitaf;

G) Em 29-06-2021, na informação referida na alínea antecedente, foi exarado despacho pelo Diretor de Finanças Adjunto da Direção de Finanças de Lisboa, com o seguinte teor:

“Concordo. Face à informação e pareceres prestados e com os fundamentos neles aduzidos, aceito a garantia prestada, sob a forma de depósito caução, por se mostrar idónea, porém de valor insuficiente para garantir o processo de execução fiscal n.º 3654202001177397, pelo valor e para o efeito, deverá o mandatário da executada ser notificado para o seu reforço, pelo valor em falta, dado que indefiro o pedido de aceitação de garantia, prestada sob a forma de garantia bancária, por não se mostrarem preenchidos os requisitos legais para tal.

Ao Serviço de Finanças para efeitos”.

- cfr. fls. 44-55 do sitaf;

H) Em 07-07-2021, a Reclamante foi notificada do despacho referido na alínea antecedente – cfr. fls. 127 a 129 do registo do sitaf n.º 006394511”.

II.B. Refere-se, ainda, na sentença recorrida:

“Inexistem factos não provados com relevância para a decisão da causa”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“A convicção do Tribunal, quanto aos factos provados, decorre da análise crítica dos documentos juntos aos autos, supra identificados a propósito de cada uma das alíneas do probatório e cujo conteúdo não foi impugnado pelas partes”.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento quanto à falta de audição prévia

Considera, desde logo, a Recorrente que o Tribunal a quo errou no seu julgamento, no que toca ao entendimento de que o ato reclamado padece de vício de forma, por preterição do direito de audição, concluindo-se, da leitura integral das alegações, que sustenta tal entendimento no facto de estarmos perante a prática de um ato no contexto de um PEF, processo de natureza judicial, e que, por isso, não lhe são aplicáveis as formalidades do procedimento tributário, designadamente a prevista no art.º 60.º da Lei Geral Tributária (LGT).

Vejamos então.

O PEF é um processo de natureza judicial (cfr. art.º 103.º, n.º 1, da LGT), “sem prejuízo da participação dos órgãos da administração tributária nos atos que não tenham natureza jurisdicional”.

Assim, desde logo, há uma distinção entre processo de execução fiscal e procedimento administrativo tributário.

O PEF, como qualquer processo, define-se como uma sucessão ordenada de atos visando a obtenção de um determinado fim, no caso a cobrança coerciva de determinadas dívidas (cfr. o art.º 148.º do CPPT).
Atenta a circunscrição constante do mencionado art.º 103.º da LGT, caberá aos Tribunais Tributários a prática, no âmbito destes processos, dos atos de natureza jurisdicional, cabendo aos órgãos da administração tributária os demais. (1)

A este propósito, é de chamar à colação o disposto no art.º 10.º, n.º 1, al. f), do CPPT, nos termos do qual “… [a]os serviços da administração tributária cabe: (…) f) Instaurar os processos de execução fiscal e realizar os atos a estes respeitantes, salvo os previstos no n.º 1 do artigo 151.º do presente Código”.
O legislador optou por atribuir a “um órgão administrativo competência funcional para agir como agente ou operador auxiliar do juiz na realização da função executiva, praticando todos os actos inscritos nesse meio processual, tendo em vista a agilização do processo e a obtenção da maior eficácia na arrecadação de receitas do Estado, libertando o juiz de todos os actos que não envolvam uma função materialmente jurisdicional". (2)

Neste contexto, os órgãos da administração tributária (AT) podem praticar, no âmbito da execução fiscal, atos de natureza processual(3) [podendo, estes últimos, consubstanciar-se em meras operações materiais ou em atos processuais de natureza não jurisdicional (v.g. citação, venda)].

No entanto, nesse mesmo âmbito, podem também ser praticados atos materialmente administrativos, como resulta do n.º 2 do art.º 103.º da LGT (nos termos do qual: “[é] garantido aos interessados o direito de reclamação para o juiz da execução fiscal dos atos materialmente administrativos praticados por órgãos da administração tributária”).

Como referido no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 05.12.2018 (Processo: 0705/18.0BELRA):

“[C]onstitui já jurisprudência consolidada do Pleno da Secção de Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo o entendimento de que no processo de execução fiscal – que tem natureza judicial (cfr. art. 103.º da LGT) – a AT intervém quer como órgão de execução fiscal, praticando actos processuais sem natureza jurisdicional, quer como sujeito activo da relação tributária que deu origem à dívida exequenda, praticando actos administrativos tributários.

(…) [No caso de acto administrativo em matéria tributária, a] decisão fica, por isso, sujeita aos princípios e normas que disciplinam a actividade administrativa tributária, designadamente aos que se referem ao princípio da participação, a assegurar mediante a notificação para o exercício do direito de audiência prévia (cfr. art. 60.º da LGT, art. 45.º do CPPT e art. 121.º do CPA) – cf. neste sentido, Acórdãos do Pleno da Secção de Contencioso Tributário de 29.06.2018, recurso 312/18 e da Secção de Contencioso Tributário de 11.07.2012, recurso 730/12” (sublinhado nosso).

Portanto, nem todos os atos praticados pela AT num determinado PEF têm natureza processual, sendo aí praticados atos de natureza administrativa, sujeitos à disciplina dos atos administrativos tributários, quando a mesma atue nas vestes de sujeito ativo da relação tributária que deu origem à dívida exequenda.

Feito este introito, apreciemos então.

In casu, como resulta da decisão proferida sobre a matéria de facto, não impugnada:

a) A Recorrida apresentou reclamações graciosas relativas às liquidações de IRC que consubstanciam a dívida exequenda;

b) Constituiu garantia bancária, para efeitos da sua suspensão;

c) A 21.04.2021, a Recorrida apresentou requerimento junto do SF de Oeiras 1, para efeitos de suspensão do PEF em causa, apresentando, para o efeito, quer a garantia bancária referida, quer caução no valor remanescente não abrangido pelo valor da garantia;

d) Foi elaborada informação, na qual se aceita a caução, não obstante sem caráter suspensivo da execução, atento o seu valor, e onde não se aceita a garantia bancária prestada, em virtude de a mesma ter uma validade definida de 48 meses;

e) A 29.06.2021, foi proferido despacho, no sentido da não aceitação da garantia prestada sob a forma de garantia bancária, por não se mostrarem preenchidos os requisitos para tal.

A primeira questão que se coloca é a de saber se estamos perante um ato processual, como defende a Recorrente, ou perante um ato administrativo tributário, como considerou o Tribunal a quo.

Desde já se adiante que se considera estar perante um ato administrativo tributário, porquanto aqui a AT surge-nos a atuar não como auxiliar do juiz tributário, mas nas vestes de sujeito ativo da relação tributária que deu origem à dívida exequenda.

Veja-se, antes de mais, que estamos a falar de um ato, proferido na sequência de requerimento apresentado pela Reclamante, em que é requerida a suspensão do PEF, face à apresentação de garantia por depósito caução e garantia bancária.

Atendendo a esse contexto, o ato reclamado não se configura com um ato meramente processual, mas como um ato administrativo tributário.

Em situação onde estava justamente em causa um pedido de suspensão do processo formulado por um executado, diz-nos o Supremo Tribunal Administrativo [Acórdão de 25.01.2017 (Processo: 012/17)]:

“Quando o órgão da execução fiscal aprecia e decide o pedido de suspensão da execução fiscal e afere da necessária constituição ou prestação de garantia, ou dispensa da mesma, está a praticar um acto administrativo, um acto que decorre do exercício de poderes jurídico-administrativos e que visa a produção de efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta [cfr. art. 148.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA)]. O acto reclamado constitui, pois, um acto de natureza administrativa, a que têm de ser aplicados os requisitos procedimentais exigidos para tal tipo de actos (…).

Dito de outro modo, da natureza judicial que a lei atribui ao processo de execução fiscal não resulta que os actos praticados pela AT no âmbito desse processo e que não se confinem à mera tramitação do processo percam a sua natureza de actos materialmente administrativos em matéria tributária”.

Estando nós perante um ato administrativo, tal implica respeito pelos princípios inerentes ao procedimento administrativo tributário, onde se inclui o direito de participação.

O direito de audição prévia decorre do desiderato constitucional consubstanciado no direito de participação dos cidadãos na formação das decisões administrativas que lhes disserem respeito, consagrado no art.º 267.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

É certo que a lei, em termos de procedimento, determina a dispensa da audiência de interessados no caso em que a decisão seja urgente [cfr. art.º 124.º, n.º 1, al. a), do Código do Procedimento Administrativo].

No entanto, o caso dos autos não está legalmente configurado como sendo uma situação que o legislador configurou como urgente.

Chama-se a este respeito à colação o Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, de 16.03.2016 (Processo: 01315/14), cuja doutrina consideramos transponível in casu, porque respeitante a atos administrativos praticados pela AT num contexto de execução fiscal. Neste acórdão, distinguindo-se os atos administrativos tributários praticados em sede de execução fiscal de natureza urgente dos de natureza não urgente, refere-se:

“No presente caso (…) está em causa (…) o indeferimento do pedido de suspensão da execução fiscal fundamentado em oferecimento de uma determinada garantia (concretizada na indicação de bens à penhora) considerada não idónea.

(…) O pedido de suspensão da execução fiscal mediante o oferecimento de bens à penhora não reveste por lei natureza urgente (ao contrário do que sucede com o pedido de dispensa de prestação de garantia –artº 170º nº 4 do CPPT). Neste sentido se tem pronunciado este STA como de forma conhecedora se refere no acórdão recorrido, vide Acs de 04/12/2013 e de 06/03/2014 respectivamente nos recursos nºs 01688/13 e 0108/14, sendo que o ora relator subscreveu este último aresto.
Com efeito, há que ter em conta a especialidade do disposto no artigo 170 nº 4 do CPPT que estabelece urgência na tramitação do procedimento de dispensa de prestação de garantia instituindo um prazo curto de 10 dias e tal exigência mostra-se incompatível com o exercício do direito de audição que dilataria, anormalmente, o prazo de decisão. E, por isso(…), a preterição de tal formalidade degradar-se-á de formalidade essencial em não essencial pois a urgência desse procedimento determina até a sua dispensa face ao disposto no artigo 103º do CPA.

Mas já a decisão sobre o requerimento no qual foi oferecida garantia não tem natureza urgente na medida em que a lei nada dispõe sobre a urgência do seu procedimento sendo certo que “ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus”. Também o argumento de que o processo de reclamação do artº 276º do CPPT tem natureza urgente o que só por si ditaria a não necessidade de audiência prévia dos actos materialmente administrativos praticados pela Administração Tributária não convence, porque o facto de o processo judicial ter natureza urgente não implica que o acto material anteriormente praticado pela AT tenha origem necessariamente num procedimento urgente como é o da dispensa de garantia”.

Assim, ao contrário do que sucede com outros procedimentos tributários enxertados no processo de execução fiscal, aos quais o legislador confere natureza urgente, como é caso paradigmático o do pedido de dispensa de prestação de garantia, previsto no art.º 170.º do CPPT, nada resulta da lei no sentido de que o procedimento em causa nos presentes autos tenha carater urgente. Como tal, é de aplicar a regra de ser exigível o cumprimento da formalidade consubstanciada no exercício do direito de audição.

Não tendo sido cumprida tal formalidade, o ato reclamado padece de vício.

Face ao exposto, não assiste razão à Recorrente nesta parte.

III.B. Do erro de julgamento, quanto à ilegalidade da decisão reclamada na parte em que não aceita como idónea a garantia bancária

Considera, por outro lado, a Recorrente que, no tocante ao decidido, no sentido da ilegalidade da decisão, na parte em que não aceita como idónea a garantia bancária, o Tribunal a quo errou o seu julgamento, sendo que, in casu, a garantia não se mostrava idónea, atento o respetivo prazo de validade.

Vejamos.

Na situação sob apreciação, como resulta da informação que consubstancia a fundamentação do ato reclamado, a garantia bancária apresentada não foi considerada garantia idónea, em virtude de a mesma referir um prazo de validade de 48 meses, contados a partir de 17.03.2021. Assim, considerou-se que não estava assegurada a validade da garantia até à decisão do pleito, ou seja, até à verificação do caso decidido ou resolvido ou o trânsito em julgado da decisão judicial, em cumprimento do disposto no art.º 169.º, n.º 1, do CPPT. Concluiu-se, pois, que a garantia em causa não tem a virtualidade de assegurar a cobrança dos créditos tributários, caso tenha de ser acionada, não sendo, pois, garantia idónea.

Atento o disposto no art.º 52.º da LGT:

“1 - A cobrança da prestação tributária suspende-se no processo de execução fiscal em virtude de pagamento em prestações ou reclamação, recurso, impugnação e oposição à execução que tenham por objeto a ilegalidade ou inexigibilidade da dívida exequenda, bem como durante os procedimentos de resolução de diferendos no quadro da Convenção de Arbitragem n.º 90/436/CEE, de 23 de Julho, relativa à eliminação da dupla tributação em caso de correção de lucros entre empresas associadas de diferentes Estados membros.

2 - A suspensão da execução nos termos do número anterior depende da prestação de garantia idónea nos termos das leis tributárias.

3 - A administração tributária pode exigir ao executado o reforço da garantia no caso de esta se tornar manifestamente insuficiente para o pagamento da dívida exequenda e acrescido”.

Nos termos do art.º 169.º do CPPT:

“1 - A execução fica suspensa até à decisão do pleito em caso de reclamação graciosa, a impugnação judicial ou recurso judicial que tenham por objeto a legalidade da dívida exequenda, bem como durante os procedimentos de resolução de diferendos no quadro da Convenção de Arbitragem 90/436/CEE, de 23 de julho, relativa à eliminação da dupla tributação em caso de correção de lucros entre empresas associadas de diferentes Estados-Membros, ou de convenção para evitar a dupla tributação, desde que tenha sido constituída garantia nos termos do artigo 195.º ou prestada nos termos do artigo 199.º ou a penhora garanta a totalidade da quantia exequenda e do acrescido, o que deve ser informado no processo pelo funcionário competente.

(…) 9 - Quando a garantia constituída nos termos do artigo 195.º, ou prestada nos termos do artigo 199.º, se tornar insuficiente é ordenada a notificação do executado dessa insuficiência e da obrigação de reforço ou prestação de nova garantia idónea no prazo de 15 dias, sob pena de ser levantada a suspensão da execução”.

Por seu turno, dispõe o art.º 199.º do mesmo código que:

“1 - Caso não se encontre já constituída garantia, com o pedido deverá o executado oferecer garantia idónea, a qual consistirá em garantia bancária, caução, seguro-caução ou qualquer meio suscetível de assegurar os créditos do exequente.

2 - A garantia idónea referida no número anterior poderá consistir, ainda, a requerimento do executado e mediante concordância da administração tributária, em penhor ou hipoteca voluntária, aplicando-se o disposto no artigo 195.º, com as necessárias adaptações.

(…) 5 - No caso de a garantia apresentada se tornar insuficiente, a mesma deve ser reforçada nos termos das normas previstas neste artigo.

6 - A garantia é prestada pelo valor da dívida exequenda, juros de mora contados até ao termo do prazo de pagamento voluntário ou à data do pedido, quando posterior, com o limite de cinco anos, e custas na totalidade, acrescida de 25 /prct. da soma daqueles valores, exceto no caso dos planos prestacionais onde a garantia é prestada pelo valor da dívida exequenda, juros de mora contados até ao termo do prazo do plano de pagamento concedido e custas na totalidade, sem prejuízo do disposto no n.º 14 do artigo 169.º

7 - As garantias referidas no n.º 1 serão constituídas para cobrir todo o período de tempo que foi concedido para efetuar o pagamento, acrescido de três meses, e serão apresentadas no prazo de 15 dias a contar da notificação que autorizar as prestações, salvo no caso de garantia que pela sua natureza justifique a ampliação do prazo até 30 dias, prorrogáveis por mais 30, em caso de circunstâncias excecionais.

(…) 10 - Em caso de diminuição significativa do valor dos bens que constituem a garantia, o órgão da execução fiscal ordena ao executado que a reforce ou preste nova garantia idónea no prazo de 15 dias, com a cominação prevista no n.º 8 deste artigo”.

In casu, como já referido, a Recorrida apresentou o requerimento, no âmbito do PEF 3654202001177397, mencionado em D) do probatório, apresentando como garantia uma garantia bancária e caução, para efeitos de suspensão do PEF em causa.

Na informação referida em F) do probatório, em relação à caução, foi a mesma considerada garantia idónea, mas não suficiente para assegurar o crédito tributário.

Quanto ao mais, a AT considerou que, face à circunstância de a garantia bancária ter um prazo de validade de 48 meses, não estava abrangido todo o período temporal eventualmente necessário, em virtude de a decisão final da contestação das liquidações em causa vir a ser em data indeterminável. Nesse seguimento, concluiu pela inidoneidade da garantia.

Vejamos então.

Como já deixamos plasmado, para ser aceite determinada garantia, com vista à suspensão de um PEF, a mesma tem de se afigurar como idónea.

Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 27.04.2016 (Processo: 0457/16), “cumpre à AT, perante o caso concreto, averiguar da idoneidade da garantia oferecida em ordem à suspensão da execução fiscal, idoneidade que deve aferir-se pela susceptibilidade de assegurar o pagamento da dívida exequenda e do acrescido, caso seja necessário executar a garantia (cfr. arts. 169.º, 199.º e 217.º, do CPPT, e art. 52.º, da LGT)”.

In casu, como já referimos, o único fundamento de que a AT lançou mão, para considerar a garantia bancária inidónea, teve a ver com o facto de a mesma ter uma validade de 48 meses.

O Tribunal a quo, a este propósito, considerou que tal fundamento não é suficiente para alicerçar a conclusão extraída em termos de idoneidade da garantia, sustentando-se, em síntese, na circunstância de a própria lei prever um regime de caducidade de garantia.

Desde já se refira que a idoneidade da garantia tem de ser aferida pela sua suscetibilidade de responder pela dívida exequenda e acrescido no momento em que é oferecida. O facto de, num momento futuro, poder vir a verificar-se, por que motivo seja, que determinada garantia já não cumpre com a sua função, não justifica a sua não aceitação, porquanto o próprio legislador prevê um mecanismo para o efeito, concretamente o reforço da garantia prestada (cfr. o art.º 52.º, n.º 3, da LGT, e os art.ºs 169º, n.º 9, e 199.º, n.ºs 5 e 10, do CPPT).

Como tal, a circunstância de uma garantia bancária ter um prazo de 4 anos de validade não faz dela, por esse motivo, garantia inidónea, sendo, pelo contrário, idónea durante tal prazo.

Acresce que, como refere o Tribunal a quo, o próprio CPPT prevê um regime de caducidade das garantias no seu art.º 183.º-A, nos termos do qual:

“1 - A garantia prestada para suspender a execução em caso de reclamação graciosa, impugnação judicial ou oposição caduca:

a) Automaticamente se a reclamação graciosa não estiver decidida no prazo de um ano a contar da data da sua interposição;

b) Se na impugnação judicial ou na oposição não tiver sido proferida decisão em 1.ª instância no prazo de quatro anos a contar da data da sua apresentação e o interessado apresente requerimento no processo.

2 - As situações previstas no número anterior são independentes de a garantia ter sido prestada pelo contribuinte ou constituída pela Autoridade Tributária e Aduaneira”.

Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 12.10.2016 (Processo: 0935/16):

“[O] art. 183.º-A, aditado ao CPPT pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, passou a permitir aos interessados obter a declaração de caducidade da garantia prestada pelo contribuinte ou constituída pela Administração Tributária, sem perder o efeito suspensivo da execução, se a reclamação graciosa em que fosse discutida a legalidade da liquidação não fosse decidida no prazo de um ano ou a impugnação judicial em que fosse discutida essa legalidade não estivesse decidida, em 1.ª instância, no prazo de dois anos (ulteriormente alterado para três anos pela Lei n.º 30-B/2002, de 30 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2003), a contar da sua apresentação, prazos que eram acrescidos de seis meses caso houvesse lugar à produção de prova pericial.

Como refere LOPES DE SOUSA, em anotação ao referido preceito, nas situações “(…) em que os processos demorassem mais do que o previsto neste artigo, o processo de execução fiscal continuaria suspenso, mesmo sem garantia (Sublinhado nosso.), até ao momento em que estaria se a garantia se mantivesse, que é, como se refere no art. 169.º, n.º 1, do CPPT, o da «decisão do pleito»” (JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário, 6ª ed., Áreas Editora, 2011, volume III, anotação 3 ao art. 183.º-A, pág. 342.)”.

Ou seja, a AT parte de um erro sobre os pressupostos, que é o de que a garantia tem de se manter em vigor até à formação de caso decidido ou resolvido ou até ao trânsito em julgado da decisão que ponha termo ao litígio, o que colide com o regime da própria caducidade da garantia. O que a lei prevê é a suspensão do PEF até esse momento, ainda que a garantia prestada tenha, entretanto, caducado. No fundo, a AT confunde entre suspensão do PEF até à decisão final do pleito e validade da garantia, até esse momento, coincidência que, como vimos, não resulta da lei.

No caso de reclamação graciosa, situação que sustentou o pedido de prestação de garantia em causa, a caducidade da mesma ocorre, em regra, no prazo de um ano a contar da sua apresentação, caso não haja decisão. Já se estivermos perante impugnação judicial, tal prazo é, em regra, de quatro anos.

Portanto, o defendido no despacho reclamado, no sentido de a garantia ter de estar válida até à decisão final do pleito, carece de sustentação, não só face ao já referido, no sentido de poder ser haver reforços de garantia, mas também dado que o disposto no art.º 169.º, n.º 1, do CPPT, não pode deixar também de ser lido em consonância com o art.º 183.º-A do mesmo código, que admite a manutenção da suspensão da execução, ainda que haja caducidade da garantia.

Neste seguimento, não se alcança de que forma os princípios da legalidade e da justiça foram beliscados na decisão recorrida, o que, aliás, foi alegado de forma conclusiva pela Recorrente.

Como tal, improcede também nesta parte o alegado pela Recorrente.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Negar provimento ao recurso;

b) Custas pela Recorrente;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 15 de dezembro de 2021

(Tânia Meireles da Cunha)

(Susana Barreto)

(Patrícia Manuel Pires)
















1) V. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 80/2003, de 12.02.2003.
2) Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 23.02.2012 (Processo: 059/12) e sua profunda análise em torno da natureza dos atos praticados no âmbito do processo de execução fiscal.
3) Para uma abordagem desta distinção, v. os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 11.04.2018 (Processo: 0312/18) e 25.01.2017 (Processo: 012/17) e ampla jurisprudência no mesmo citada.