Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1300/19.1BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:02/27/2020
Relator:SOFIA DAVID
Descritores:PROCEDIMENTO ESPECIAL DE DETERMINAÇÃO DO ESTADO-MEMBRO RESPONSÁVEL PELA APRECIAÇÃO DO PEDIDO DE PROTECÇÃO INTERNACIONAL;
ITÁLIA;
TRANSFERÊNCIA PARA O ESTADO-MEMBRO INICIALMENTE DESIGNADO COMO RESPONSÁVEL;
DECISÃO JURISDICIONAL QUE CONFIRMA A NÃO ATRIBUIÇÃO DA PROTECÇÃO INTERNACIONAL.
Sumário:I - Por força do art.º 5.º do Regulamento (EU) n.º 604/2013, de 26-06, no procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de protecção internacional deve ocorrer uma entrevista pessoal com o requerente da protecção, que é acompanhada de um resumo escrito, que lhe será entregue. Essa entrevista serve para ouvir o requerente, para colher as suas informações, mas também para o informar acerca do seu pedido e respectivo enquadramento legal. Tal entrevista servirá, ainda, para recolher do requerente a sua pronúncia acerca da própria decisão a tomar-se no âmbito do procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de protecção internacional;
II - O art.º 3.º, n.º 2, do Reg. n.º 604/2013, de 26-06, determina uma verdadeira obrigação legal dos Estados-Membros apreciarem acerca da eventual ocorrência de falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes de protecção internacional, antes de procederem à transferência daqueles para outro Estado-Membro em obediência aos critérios indicados no Capitulo III do Regulamento;
III – Se face às declarações do requerente de protecção se constata que após a sua entrada em Itália foram-lhe prestadas condições de acolhimento nos cerca de 3 anos que aí esteve, fica arredada a possibilidade de o retorno a Itália poder sujeitá-lo a tratamentos desumanos ou degradantes, decorrentes de eventuais falhas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento;
IV- Estando provado nos autos que já ocorreu uma decisão jurisdicional que confirmou a decisão administrativa tomada pelo Estado Italiano de não atribuição da protecção internacional, o retorno do Recorrente a Itália visará apenas a execução daquela decisão tomada pelo Estado Italiano, com a obrigação de regresso do requerente de protecção ao país de origem, o que se antevê algo rápido ou quase imediato ao seu retorno.
Votação:UNANIMIDADE - com declaração de voto
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul


I - RELATÓRIO

F............interpôs recurso da sentença do TAC de Lisboa, que julgou improcedente a presente acção onde o A. e Recorrente impugnava o despacho da Directora Nacional (DN) do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), do Ministério da Administração Interna (MAI), de 07/06/2019, que considerou inadmissível o pedido de protecção internacional formulado pelo ora Recorrente e ordenou a sua transferência para Itália, por ser esse o país responsável pela sua retoma a cargo.
O Recorrente formulou as seguintes conclusões de recurso: “1 - O Recorrente F............, cidadão nacional da Serra Leoa, intentou acção administrativa especial, para impugnação da decisão da Directora Nacional do SEF-Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, de 07/06/2019, que considerou seu pedido de protecção internacional inadmissível, determinando sua transferência para a Itália, Estado-Membro responsável pela sua retoma a cargo, nos termos do Regulamento (UE) n.º 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de Junho (Regulamento Dublin III).
2 – O Tribunal ad quo julgou a acção improcedente por “não provada”, absolvendo a entidade demandada. A douta decisão considerou factos provados, os constantes do PA, entendendo que o restante matéria alegada, embora pese sua pertinência nos respectivos articulados, são meros juízos conclusivos, insusceptíveis de ser objecto de juízo probatório.
Seguem-se os principais factos provados e respectivos articulados na sentença recorrida:
Facto provado
“E) Em 06/06/2019 as autoridades portuguesas enviaram às autoridades italianas mensagem de correio electrónico, informando-as que, ao abrigo do art. 25°, nº 2, do Regulamento de Dublin, tinham 2 semanas para se pronunciar sobre o pedido efectuado, o que não fizeram - fls. 46, P A.
........... Articulado na r. sentença
Conforme resulta dos factos provados, o SEF agiu de acordo com o estabelecido nos artº 18°, nº 1, al. d), 23°, n" 1 e 2 e 25° do Regulamento (UE) 604/2013, quando solicitou a Itália a retoma a cargo do A. e considerou o pedido de retoma aceite pelas autoridades italianas. (grifo nosso)
............ Facto provado
H) O pedido de protecção internacional apresentado pelo Requerente em Itália foi negado pela autoridade administrativa competente em 05/04/2016, tendo sido confirmado judicialmente pela Corte di Appelio di Bologna por sentença de 15/01/2019 - cfr. doc. 13 e 14, juntos com a p.i. (grifo nosso)
..... Articulado na r.sentença
O facto de o A. ter visto indeferido o seu pedido de protecção internacional em Itália [na fase administrativa e judicial], não obsta à sua retoma a cargo e à execução da transferência pelo SEF. (grifo nosso) ...................
Pretende, contudo, o A., obstar à sua transferência invocando a pressão migratória que assola a Itália, e as deficiências sistémicas para atendimento dos numerosos requerimentos de protecção internacional.
..... consultada a jurisprudência do TEDH, constata-se que o Tribunal rejeitou várias queixas, com o argumento de que o art° 3° da CEDH e 4° da CDFUE não impede transferências para Itália dado
que as provas apresentadas não constituem fundamento substancial de um risco real de tratamento contrário com a proibição aí constante.
.......... Assim, não pode este Tribunal concluir que o Estado Português estava impedido de proceder à transferência do A. para Itália.
Sendo o pedido de protecção internacional inadmissível (cfr. art° 19°-A, n" 1, al. a), da Lei do Asilo), conforme estatui o n° 2, do art° 19°-A, da Lei do Asilo, "prescinde-se da análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de protecção internacional", isto é, fica prejudicada a apreciação do mérito do pedido de protecção internacional pelas autoridades nacionais, tendo em conta que é outro Estado-Membro, in casu, Itália, o responsável pela retoma a cargo do requerente, pelo que o acto impugnado não pode padecer de qualquer vício relacionado com o mérito de tal pedido. (grifo nosso)
3 – Como se percebe, o Tribunal ad quo considerou factos provados, os estrictamente enquadrados na nas normas para inadmissibilidade, relevando o facto provado, precisamente na entrevista realizada aos 21/05/2019, que o pedido [“Case ID ................”], já há cerca de 3 anos, fora negado pela Itália, tanto na fase administrativa (doc. 13) como nos recursos judiciais (Doc 14). Contudo, é novamente a ela redirecionada a análise do pedido de protecção internacional.
4 – Não obstante, para análise dos pedidos de protecção internacional apresentados num dos Estados-Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida rege o REGULAMENTO (UE) N.º 604/2013 do PARLAMENTO EUROPEU e do CONSELHO de 26 de junho de 2013 [Regulamento Dublin III] no âmbito da União Europeia, a douta sentença recorrida confronta com os princípios do Sistema de Dublin e com a Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, ao considerar que foram respeitados no caso sub judice os critérios de retoma a cargo previstos no Regulamento Dublin III, abstendo-se de exigir da ora Recorrida, a apreciação das informações para os efeitos de determinar se se encontram preenchidos os pressupostos de aplicação da cláusula de salvaguarda constante em seu artigo 3º, n.º 2.
A aplicação sucessiva dos critérios previstos no Regulamento de Dublin para o apuramento do Estado responsável pela apreciação do pedido de protecção internacional (art.º 25.º/2) é mitigada pela existência de cláusulas que permitem ou impõem aos Estados membros que tomem em consideração outros aspectos e, afinal, decidam pela não transferência do requerente de asilo para o Estado que a singela aplicação desses critérios elege como responsável. Referem-se especificamente às designadas “cláusulas humanitárias” ( art.ºs 16.º e 17.º respeitante a dependentes ou outros membros de uma família), e a actualmente conhecida por “cláusula de salvaguarda”, prevista no artigo 3.º/2, do mesmo Regulamento, aplicável ao presente caso.
A cláusula de salvaguarda ─ verificação e apreciação das informações disponíveis e actuais, pertinentes, sobre o procedimento de asilo e sobre as condições de acolhimento praticadas no Estado, em princípio, responsável pela análise do pedido de protecção internacional ─ é um momento obrigatório de ponderação da decisão de transferência, à luz dos deveres de protecção dos direitos fundamentais que obrigam todos os Estados membros.
Segundo a jurisprudência assente do Tribunal de Justiça da União Europeia, os Estados- Membros estão obrigados a não adoptar uma interpretação do direito derivado e também do
seu direito nacional que seja susceptível de entrar em conflito com os direitos fundamentais protegidos pela ordem jurídica da União ou com os outros princípios gerais do Direito da União.
O direito da União, de aplicação imediata na ordem jurídica nacional, impõe que todo o normativo resultante da Lei do Asilo (nomeadamente dos seus artigos 19.º-A e 37.º/2) deve ser interpretado e compatibilizado também com a mencionada cláusula de salvaguarda.
A douta sentença ora recorrida, não se detém a apreciar a situação em Itália, e alegando normalidade, não carreou quaisquer elementos para aquele processo administrativo nem procedeu à ponderação da decisão de determinação do Estado competente de acordo com os critérios gerais à luz das imposições resultantes da mencionada cláusula de salvaguarda.
5 – O Tribunal a quo desconsiderou o facto da pressão migratória que assola a Itália, somadas às deficiências sistêmicas para atendimento dos numerosos requerimentos de asilo e protecção internacional, maior do que a capacidade instalada do Estado para tanto, como é noticiado e difundido amplamente, pela imprensa nacional e estrangeira e por organizações não governamentais razão provável de não ter se manifestado no prazo legal, com previsível nova negativa, em face das negativas anteriores.
O Tribunal ad quo omitiu-se na instrução da causa, relativamente a informação sobre a situação actual de acolhimento dos refugiados e requerentes de protecção internacional em Itália. Não consta do PA, qualquer informação obtida de fontes credíveis, como o Gabinete Europeu de Apoio em matéria de Asilo, ACNUR, Amnistia Internacional, organizações de direitos humanos, nem qualquer análise da situação vivida pelo Requerente naquele país.
O douto Tribunal ad quo não determinou oficiosamente a junção aos autos de Parecer do Centro Português para os Refugiados (CPR) sobre as condições de acolhimento de requerentes de asilo e refugiados e sobre o funcionamento do próprio procedimento de asilo em Itália.
O Tribunal de Justiça lançou as bases e critérios de apreciação das condições mínimas de acolhimento, de conformidade com as exigências do art.º 4.º da Carta, e diante das notícias de desalojamentos e de detenções em hotspots ou centros de repatriação por períodos de até seis meses, há que se avençar a hipótese da efectiva satisfação das necessidades básicas, como alimentar-se, lavar-se e alojar-se, aos requerentes de asilo e dos beneficiários de protecção internacional.
6 - Abordando a questão fundamental, relativa aos princípios violados: - a rigidez em perseguir o prazo de resposta, com fim de logo estabelecer a ocorrência tácita de aceitação, não só demonstra menor importância à regra básica da união dos Estados para a missão, consubstanciada na Convenção de Genebra de 1951, na Convenção Européia dos Direitos do Homem, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, do Tratado de Funcionamento da União Européia, tendo como consequência a e dos princípios da não expulsão (artigo 33º nº 1, 1ª parte da Convenção de Genebra de 1951), da não repulsão (artigo 3º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem), bem como violação das disposições normativas ( artigos 1º, 3º.18º e 19º, nº 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e artigo 78º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, pois óbviamente, a transferência dos requerentes para a Itália, então sem condições de acolhimento, os colocará em situação de tratamento desumano, degradantes, enfim, desigual.
Assim, enquanto a decisão de transferência é acto estrictamente vinculado, o direito da pessoa humana, no caso o Sr F............, e bem a expressão de sua vontade e possibilidade, protegidos pelos dispositivos acima citados uma vez que pediu protecção internacional a Portugal.
7 - Quer isto dizer que, ao contrário da argumentação expendida na douta sentença, a ora recorrida deveria sim, ter sido condenada a reconstituir o procedimento de determinação do Estado-Membro responsável pela análise do pedido de protecção internacional [art.º 36.º e ss. da Lei do Asilo] apresentado pelo, ora, recorrente, procedendo à sua instrução cabal ─ que terá de passar por um apuramento junto do Requerente, ora recorrente, das suas circunstâncias pessoais e das situações vivenciadas em Itália e porventura pela obtenção de mais dados, sistematizados e actualizados, junto de entidades nacionais e internacionais independentes e acreditadas, sobre o procedimento de asilo e as condições acolhimento dos refugiados e requerentes de protecção internacional em Itália ─ para efeitos de determinar se se encontram preenchidos os pressupostos de aplicação da cláusula de salvaguarda constante do art.º 3.º/2 do Regulamento Dublin III relativamente à prefigurada transferência para Itália; mais deve aquela apreciar as informações coligidas e decidir de acordo com os critérios expostos, que decorrem da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia ─ em diálogo com o TEDH ─, uma vez que está em causa aplicação de direito da União, sendo imposta a observância do sentido e âmbito dos direitos fundamentais em causa garantidos pela CEDH.
8 - O Acórdão do TCAS de 06/06/2019, processo 2240/18.7BELSB é de relevância fundamental para o presente julgamento, em razão de que dele foram extraídos fundamentos para as presentes Conclusões.
9 - Por todo o exposto, o ora recorrente não se conforma, com a d. sentença proferida pelo Tribunal Administrativo de Circulo de Lisboa, considerando que a mesma decorre de incorrecto enquadramento e interpretação dos factos e do direito, além da carência instrutória, razão pela qual apresenta o presente recurso, com expectativa de sua reforma, para a procedência da Acção Administrativa Especial, com efeitos para: a impugnação do Acto administrativo expresso na Decisão da Sra. Diretora do SEF-Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, de transferência do requerente, ora autor, à Itália, pela inadmissibilidade do pedido de protecção internacional pelo Estado Português; e o acolhimento pelo SEF-Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, do pedido de protecção internacional requerido ao Estado Português, provendo o requerente dos benefícios a que tem direito, pelos citados diploma.”

O Recorrido nas contra-alegações formulou as seguintes conclusões: “8º O pedido de condenação do SEF de admissão do pedido de proteção internacional. deve improceder.
9º O ato administrativo cuja anulação é requerida encontra-se legalmente enquadrado face ao disposto na Lei n.º 27/2008 de 30/6 e do Regulamento (EU) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de junho.
10º O conteúdo específico do interesse público em causa encontra completa e legítima identificação no procedimento prosseguido, que respeitou todas as garantias do recorrente.
11º Em suma, o recurso deve ser considerado improcedente, uma vez que a sentença impugnada foi proferida nos termos e respeito dos princípios e normas aplicáveis.”

O DMMP pronunciou-se no sentida da improcedência do recurso.

II – FUNDAMENTAÇÃO
II.1 – OS FACTOS
Na decisão recorrida foi dada por assente, por provada, a seguinte factualidade, que não vem impugnada em recurso:
A) Em 06/05/2019 o aqui A. F............, cidadão nacional da Serra Leoa, apresentou pedido de protecção internacional ao Estado Português, junto do Gabinete de Asilo e Refugiados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras – cfr. fls. 1 e s., do PA.
B) Na sequência da recolha de impressões digitais ao A., verificou-se existir um hit positivo com o “Case ID…………..”, inserido por Itália – cfr. fls. 43, do PA.
C) Em 21/05/2019 o A. prestou declarações sobre o seu pedido de protecção internacional, constando da Entrevista/transcrição, o seguinte:
“(…)
(…)
«imagem no original»






(…)



(…)

(…)

(…)”- cfr. fls. 21-29, do PA.
D) Em 22/05/2019 pelo Gabinete de Asilo e Refugiados, do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, foi apresentado pedido de retoma a cargo às autoridades italianas – cfr. fls. 41-45, do PA.
E) Em 06/06/2019 as autoridades portuguesas enviaram às autoridades italianas mensagem de correio electrónico, informando-as que, ao abrigo do artº 25º, nº 2, do Regulamento de Dublin, tinham 2 semanas para se pronunciar sobre o pedido efectuado, o que não fizeram – cfr. fls. 46, do PA.
F) Em 07/06/2019, pelo Gabinete de Asilo e Refugiados, do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, foi prestada a Informação nº ……/GAR/2019, onde consta o seguinte: “(…)


«imagens no original»




(…)” – fls. 49-52, do PA.
G) Em 07/06/2019, pela Directora Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, foi proferida decisão, nos termos seguintes:
“(…)
«imagem no original»


(…)” - cfr. fls. 53, do PA.
H) O pedido de protecção internacional apresentado pelo Requerente em Itália foi negado pela autoridade administrativa competente em 05/04/2016, tendo sido confirmada judicialmente pela Corte di Appello di Bologna por sentença de 15/01/2019 – cfr. doc. 13 e 14, juntos com a p.i..

II.2 - O DIREITO
As questões a decidir neste processo são:
- aferir do erro decisório e da violação dos princípios da não expulsão, da não repulsão, dos art.ºs 1.º, 3.º, 18.º,19.º, n.º 2, da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE) e 78.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), por não se ter exigido ao SEF a prévia verificação do preenchimento da cláusula de salvaguarda constante do art.º 3.º, n.º 2, do Regulamento de Dublin III, por não se ter determinado oficiosamente a junção de parecer do Centro Português para os Refugiados (CPR) e por se ter desconsiderado a apreciação das falhas sistémicas existentes em Itália e relativas ao procedimento protecção e de acolhimento dos requerentes de protecção internacional.

Dos factos provados, não impugnados neste recurso, decorre que o A. e Recorrido formulou em 06/05/2019, junto do SEF, um pedido de protecção internacional.
Iniciada a instrução desse procedimento, verificou-se, que o A. e Recorrido entrou no Espaço Schengen pela fronteira externa da Itália, onde pediu protecção internacional.
Solicitada a retoma a cargo a Itália, este Estado-Membro nada respondeu no prazo legal, de 2 semanas, prazo aplicável por se ter recorrido a dados obtidos através do Sistema Eurodac – cf. art.º 25.º, n.º 1, do Reg. (EU) n.º 604/2013, de 26-06.
Em 21/05/2019, foi realizada uma entrevista com o A. e Recorrido, em língua que entendia, na qual se explicou que o pedido de protecção internacional seria analisado pelo país de entrada no Espaço Schengen. Nessa entrevista, o A. e Recorrente relatou que chegou a Itália em 08/10/2015 e aí viveu cerca de 3 anos, num campo de refugiados em Placenza, onde frequentou a escola para aprender a língua italiana e onde fez vários cursos profissionais, na área da mecânica, construção e informática. Mais relatou o ora Recorrente, que não tendo sido admitido o seu pedido de protecção internacional pelas autoridades italianas, recorreu para tribunal dessa decisão. Porque improcedeu o primeiro recurso, o A. voltou a recorrer, sem sucesso. Recorreu, depois, para o Supremo Tribunal, também sem sucesso. Mais disse o Recorrente, no final da entrevista, que não queria regressar a Itália.
Está provado nos autos que em 15/01/2019 foi prolatada uma decisão pela Corte Di Apello di Bolonha, que confirmou a decisão de negação do pedido de protecção internacional tomada em 05/04/2016 pela autoridade italiana competente.
Portanto, atendendo à factualidade trazida a litígio resulta que a decisão impugnada, da DN do SEF, que considerou inadmissível o pedido de protecção internacional formulado pelo ora Recorrente, foi tomada no âmbito do procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de protecção internacional, que vem regulado nos art.ºs 3.º, 5.º, 22.º, n.ºs 1 e 7 do Reg. n.º 604/2013, de 26-06 e 37.º a 39.º da Lei n.º 27/2008, de 30-06.
Nos termos dos citados preceitos, se a responsabilidade pela análise do pedido de protecção internacional couber a outro Estado-Membro, o SEF deve suspender o procedimento comum destinado à concessão da protecção internacional que tenha sido requerida em Portugal e deve dar início ao procedimento especial de determinação do Estado responsável – cf. arts.º 3.º, n.º 1, 20.º, n.º 1, 23.º, n.º 1, 25.º, n.ºs 1, 2 do Reg. n.º 604/2013, de 26-06, 36.º, 37.º e 39.º da Lei n.º 27/2008, de 30-06.
Para o efeito, o SEF deve solicitar a esse Estado a retoma a cargo do requerente de protecção, abstendo-se de mais diligências no procedimento comum para a apreciação do pedido de protecção internacional – cf. art.º 37.º, n.º 1, da Lei n.º 27/2008, de 30-06.
Caso as autoridades do Estado-Membro requerido aceitem a retoma a cargo, ou nada respondam no prazo legal – de 1 mês ou de 2 semanas, caso se baseie em dados obtidos através de um Sistema Eurodac - o Director do SEF deve considerar inadmissível o pedido de protecção internacional formulado, nos termos dos art.ºs 19.º, n.º 1, al. a) e 19.º-A e 20.º da Lei n.º 27/2008, de 30-06, determinando a transferência do requerente para o Estado-Membro responsável pela respectiva análise – cf. art.ºs 25.º n.º1, 2, 26.º n.º 1, do Reg. n.º 604/2013, de 26-06, 37.º, n.º 2 e 38.º, da Lei n.º 27/2008, de 30-06.
Ora, esta foi a tramitação ocorrida nos presentes autos.
No caso em apreço, verificou-se, que o requerente de protecção internacional já a tinha pedido em Itália e que esse pedido foi indeferido pelo Estado italiano. Interposto recurso jurisdicional dessa decisão até ao Corte Di Apello di Bolonha, foi a mesma mantida.
Diz o Recorrente que, no caso, não se verificou o preenchimento da cláusula de salvaguarda constante do art.º 3.º, n.º 2, do Regulamento de Dublin III, padecendo a decisão do SEF e a decisão recorrida de um défice instrutório, por essa mesma razão. Alega também o Recorrente, que a falta da junção do parecer do CPR, que deveria ter sido oficiosamente determinada e a desconsideração da apreciação da situação italiana relativa ao procedimento protecção e de acolhimento dos requerentes de protecção internacional, quando é sabido que apresenta falhas sistémicas, implica a violação dos princípios da não expulsão, da não repulsão, dos art.ºs 1.º, 3.º, 18.º,19.º, n.º 2, da CDFUE e 78.º do TFUE.
No art.º 3.º, n.º 1, do Reg. (EU) n.º 604/2013, de 26-06, estipula-se que os pedidos de protecção devem ser analisados por um único Estado-Membro, o determinado de acordo com os critérios enunciados no Capítulo II do Reg. Mas, no n.º 2 do mesmo preceito, acrescenta-se que “caso seja impossível transferir um requerente para o Estado-Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na acepção do artigo 4.°da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável prossegue à análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável".
Por seu turno, no art.º 17.º daquele mesmo Regulamento, sob a epígrafe “Cláusulas Discricionárias”, permite-se a derrogação do estabelecido no art.º 3.º, n.º 1, permitindo a “cada Estado-Membro (…) decidir analisar um pedido de protecção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força dos critérios definidos” no Regulamento.
Como decorre do art.º 5.º do Reg. (EU) n.º 604/2013, de 26-06, requerida a protecção internacional, ocorre uma entrevista pessoal com o respectivo requerente. Essa entrevista serve para ouvir o requerente, para colher as suas informações, mas também para o informar acerca do seu pedido e respectivo enquadramento legal. Tal entrevista servirá, ainda, para recolher do requerente a sua pronúncia acerca da própria decisão a tomar-se no âmbito do procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de protecção internacional.
No caso sub judice, atendendo às declarações do requerente de protecção, consta-se que após a sua entrada em Itália foram-lhe prestadas condições de acolhimento nos cerca de 3 anos que aí esteve. Segundo o seu relato, pôde estudar a língua italiana e fazer diversos cursos profissionais. No restante, o requerente, ora Recorrente, não relata uma única dificuldade sentida nesse país e relacionada com as condições de acolhimento ou do procedimento de asilo. Basicamente, o Recorrente apenas mostrou desagrado por não lhe ter sido concedida a protecção requerida quando se esforçou muito a estudar e a trabalhar. Igualmente, o Recorrente mostra desagrado por não terem tido sucesso os sucessivos recursos jurisdicionais que interpôs.
Mais resulta da prova feita nestes autos, que já ocorreu uma decisão jurisdicional que confirmou a decisão administrativa tomada pelo Estado Italiano de não atribuição da protecção internacional ao ora Recorrente.
Portanto, é manifesto que, no caso, não se configura uma situação que leve a crer que se o Recorrente retornar a Itália poderá será sujeito a tratamentos desumanos ou degradantes, decorrentes de eventuais falhas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento. Essa situação não se configura, primeiro, porque face ao relato do Recorrente, feito na sequência da entrevista, essa possibilidade ficou totalmente arredada. Depois, porque o ora Recorrente já foi alvo de uma decisão administrativa, que foi confirmada judicialmente, que não lhe concedeu a protecção internacional. Por isso, o Recorrente retornará a Itália apenas para ser executado o seu regresso ao país de origem – regresso que é uma incumbência do Estado Italiano, atendendo ao determinado no art.º 18.º, n.º 1, al. d), do Regulamento de Dublin. Ou seja, retornado a Itália o Recorrente já não irá aguardar por qualquer decisão que aprecie o seu pedido de protecção – tendo de ficar, nesse entretanto, a aguardar num centro de acolhimento - mas deverá ser alvo de uma mera ordem de execução da decisão já tomada, que se antevê algo rápido ou quase imediato ao seu retorno.
Em suma, no caso em apreço está excluída a possibilidade de existir um risco real e comprovado de o requerente de protecção, ora Recorrente, poder sofrer tratos desumanos e degradantes, na acepção do art.º 4.º da CDFUE, caso o mesmo seja transferido para Itália. No caso em apreço, não se mostram, pois, violados os invocados princípios da não expulsão, da não repulsão ou os art.ºs 3.º, n.º 2, do Regulamento de Dublin III, 1.º, 3.º, 18.º,19.º, n.º 2, da CDFUE e 78.º do TFUE.
Assim, não tinha o Director do SEF que proceder a quaisquer averiguações antes de determinar a retoma a cargo por Itália.

III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam:
- em negar provimento ao recurso interposto e manter a decisão recorrida;
- sem custas por isenção objectiva (cf. art.º 84.º da Lei nº 27/2008, de 30-06).

Lisboa, 27 de Fevereiro de 2020.
(Sofia David)

(Dora Lucas Neto)
[com declaração de voto]

(Pedro Nuno Figueiredo)


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Declaração de voto

Concorda-se com o sentido da decisão, mas não teríamos levado a cabo a análise da cláusula de salvaguarda constante do 2§ parágrafo do n.º 2, do art. 3.º do Regulamento de Dublin III, por considerarmos que nas situações em que um Estado Membro já tenha proferido decisão sobre o concreto pedido de proteção internacional em causa nos autos, como sucedeu, e esta decisão tiver sido de indeferimento, a retoma a cargo pelo Estado Membro que decidiu o pedido, enquanto Estado Membro responsável, é inquestionável, nos termos das disposições conjugadas dos art.s 3.º, n.º 1, e 18.º, n.º 1, alínea d), do Regulamento de Dublin III, atendendo a que a primeira regra firmada é a de que «Os pedidos são analisados por um único Estado-Membro (…)».