Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 93/04.1BEFUN |
Secção: | CA |
Data do Acordão: | 05/14/2020 |
Relator: | DORA LUCAS NETO |
Descritores: | SUCESSÃO LEGAL ENTRE ENTIDADES PÚBLICAS; COMPETÊNCIAS; LEGITIMIDADE PASSIVA. |
Sumário: | Tendo sido transferidos para a Região Autónoma da Madeira, independentemente de quaisquer formalidades, os direitos e obrigações, incluindo posições contratuais, nomeadamente direitos de arrendamento, na titularidade do Estado, que estivessem relacionados com os serviços da Direcção de Finanças da Região Autónoma da Madeira, e tendo sido extintos a Direcção de Finanças da Região Autónoma da Madeira e os serviços locais dela dependentes, há que retirar daqui as devidas consequências, a saber, verificar a sucessão legal em causa e determinar que todas as notificações a partir daí fossem feitas à entidade sucedente. |
Votação: | UNANIMIDADE |
Aditamento: |
1 |
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:
I. Relatório O Ministério da Finanças, ora Recorrente, interpôs recurso jurisdicional do acórdão do Tribunal Administrativo do Funchal, que decidiu julgar parcialmente procedente a ação contra si intentada por J..., e consequentemente: i) Anulou o ato impugnado, por violação dos princípios da boa-fé e da proteção da confiança, que consubstanciam o vício de violação de lei; e, conhecendo do pedido indemnizatório, ii) Condenou o Ministério das Finanças a pagar ao A. a quantia de € 25.421,75, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde a data de citação até integral e efetivo pagamento
Nas alegações de recurso que apresentou (fls. 707 e ss. do SITAF), culminou com as seguintes conclusões: «(…) I. Vem o Recorrente pôr em causa o Douto acórdão que o condenou a pagar a quantia de €25.421,73, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% porque, na sua opinião, aquele enferma das seguintes nulidades: omissão de pronúncia e erro na interpretação dos factos e consequente enquadramento legal.
2. Quanto à primeira questão do erro na interpretação dos factos e consequente enquadramento legal, entende o Recorrente que a matéria trazida aos autos, correctamente interpretada, impõe uma decisão diversa, na medida em que as conclusões retiradas na sentença deveriam conduzir logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto. Existindo, por isso, um vício no processo lógico de construção da sentença. 3. Senão veja-se: entendeu, e bem, o Douto Tribunal quando decidiu que a ilegalidade formal da proposta, ou seja, a sua apresentação extemporânea face ao prazo definido no procedimento consubstancia um fundamento válido para a não adjudicação, concluindo que o Autor nunca adquiriu direito à celebração do contrato em causa nos autos. No entanto, ao mesmo tempo, indemniza o Autor pelos danos que não teria se tivesse celebrado o contrato, como se fosse titular de qualquer expectativa legítima de vir a ser contraente. Que não tinha, residindo aqui o erro lógico. 4. Ao assim decidir, a Douta sentença é incongruente com as conclusões que ela própria retira, enfermando de contradição insanável, e acaba por. tutelar expectativas que não poderiam existir, uma vez que o procedimento pré-contratual, que foi anulado, não seria nunca apto a produzir consequências jurídicas resultantes de expectativas legítimas que um concorrente teria. Muito menos de alguém que não chegou a sê-lo. 5. No que toca à segunda questão, da omissão de pronúncia, entende o Recorrente que o Douto Tribunal a quo não se pronunciou sobre algumas questões oportunamente alegadas e que, a fazê-lo, a decisão teria necessariamente; de ter sido diversa. 6. Em primeiro lugar, não se pronunciou sobre a (i)legitimidade da Autoridade Tributária e Aduaneira para, neste momento, representar em juízo os interesses da Região Autónoma da Madeira (RAM) nos presentes autos, em função do disposto no n° 1 do art° 8° do Decreto-lei n° 18/2005 de 18/01, que atribuiu à RAM poder tributário próprio. Pelo que a entidade competente para patrocinar um eventual recurso seria a Direcção Regional dos Assuntos Fiscais da RAM, que deveria ter sido notificada da Douta sentença, que não foi. Devendo esta omissão ser suprida, para os devidos efeitos.
7. Em segundo lugar, a Douta decisão é também omissa, porque não considerou as causas de mérito justificativas de suspensão do procedimento e que, por esta via implicariam que não pudessem ser considerados como violados quaisquer princípios de boa-fé ou de confiança: - A entrada em vigor da Deliberação do Conselho de Ministros n° 7-B/2002 de 26 de Abril de 2002; - O novo Despacho do SEAF proferido em 04/05/2004 que determinou que se aguardasse a transferência de competências da DGCI para a RAM, sendo que qualquer novo procedimento seria já autorizado pela Região e não pelos Serviços Centrais da DGCI; ! - O facto de o SEAF ter anulado o procedimento pré-contratual em circunstâncias que encontraram cabimento na previsão da alínea b) do art°58° do regime geral constante do Capítulo I do Decreto-lei n° 197/99 de 8 de Junho, pelo que o despacho não seria anulável por vício de forma, estando legalmente enquadrado;
8. Em suma, a Douta sentença nada disse sobre a questão de que a desistência do procedimento adjudicatório se deveu a razões ligadas à inconveniência e mesmo à impossibilidade administrativa do SEAF autorizar a continuação do procedimento de arrendamento. 9. Tivesse a Douta sentença apreciado estas questões, não poderia nunca considerar como violados quaisquer princípios de boa-fé ou de confiança, na medida em que existiram razões legais e de mérito para que a suspensão ocorresse. Em virtude desta omissão de apreciação, considera a Douta sentença (e acórdão confirmatório), erradamente, que o acto de suspensão do procedimento não foi fundamentado. 10. Em terceiro lugar, a decisão é omissa porque não considera o argumento da entidade requerida de que o então Autor deveria efectivamente ser indemnizado, não em função do valor de uma renda resultante de um contrato de arrendamento, mas do valor de um depósito, nos termos dos art°s 1185° e s.s do Código Civil. 11. Sobre esta questão, o Tribunal nada diz. Sendo que a sua apreciação era fundamental para chegar a um eventual valor de indemnização que remunere justamente o então Autor pelo depósito de um cofre num espaço em bruto, inacabado. Nesta parte, a Douta decisão, por omissão na apreciação de argumentos, é totalmente infundada e, a manter-se este valor, a indemnização enriquece, sem causa, o então Autor que recebe um valor, astronómico e totalmente desadequado, sem adesão nem à realidade dos factos nem do Direito. 12. Em quarto lugar, ainda no que toca ao valor da indemnização, a Douta sentença é também omissa porque quanto ao valor remanescente da indemnização (3.421,75 pela elaboração do projecto de arquitetura, decoração e execução das instalações durante o período de tempo em que o cofre permaneceu nas mesmas, ou seja durante í 1 meses), a decisão posta não se pronunciou sobre a questão da idoneidade dos documentos apresentados: não há nenhum documento de suporte da transacção financeira. 13. Deverá, por isso, considerar-se que não existe qualquer nexo causal entre, o acordo feito entre o Autor e o então Chefe do SF de Santana e os danos alegados relativamente a despesas de adaptação, que também por não estarem provados, não são imputáveis ao Recorrente. Não podendo por isso o Recorrente ser condenado no pagamento da; quantia de €3.421,75 a título de indemnização por danos patrimoniais, na medida em que o Autor não logrou demonstrar nenhuma lesão patrimonial correspondente. 14. Decorrendo daqui que não estão preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual, pelo que também quanto a esta matéria deveria improceder o peticionado, a partir da correcta apreciação dos argumentos da entidade recorrida.»
A Recorrida, cabeça de casal da herança de J..., contra-alegou, concluindo como segue: «(…) 1. Só uma leitura desatenta ou distorcida da douta sentença pode justificar a alegação de omissão de pronúncia e errada interpretação dos factos. 2. A omissão de pronúncia não ocorre por o Tribunal não acatar a argumentação da parte vencida, é necessário que, em face do sentido da decisão, tenha feito tábua rasa de factos que deveria ter apreciado e não apreciou, o que não sucede no caso em apreço. 3. Com efeito, todas as questões relevantes e com interesse para a boa decisão da causa foram apreciadas e decididas, quer do ponto de visto dos factos, quer do ponto de vista do direito. 4. Os factos, alias, foram quase na totalidade dados como assentes no despacho saneador. 5. O tribunal introduziu mais um quesito simples, relacionado com os prejuízos decorrentes dos projectos e despesas, e efectuou a respectiva produção de prova. 6. A questão da invalidade do procedimento foi apreciada e decidida. 7. A falta de fundamentação foi decidida, em função do conteúdo do acto e não de alegações posteriores que nunca foram notificadas ao A. 8. Em face da nulidade do procedimento, a questão da falta de fundamentação, inclusive, perdeu todo o interesse e ficou prejudicada, pelo menos no que respeita aos seus efeitos. 9. A regionalização dos serviços de finanças não acarreta a ilegitimidade da recorrente, visto que os factos foram por si praticados antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 18/2005, de 18 de Janeiro. 10. Acresce que a excepção de ilegitimidade não foi suscitada nos autos no momento próprio. 11. A questão do cofre não representa um depósito. 12. O cofre foi colado no prédio do A., num contexto de arrendamento iminente e perante factos que lhe criaram a forte convicção que a celebração do contrato de arrendamento seria uma certeza inquestionável. 13. Foi isto que ficou provado, é esta a verdade dos factos e foi esta a convicção do Tribunal a quo. 14. O espaço foi utilizado ilicitamente e o A. padeceu prejuízos por causa dessa ocupação. 15. Recorde-se que houve aceitação das obras a realizar com base no projecto apresentado e aprovado pelo R. 16. A renda foi fixada e acordada. 17. Que mais evidência o R. poderia solicitar para acreditar que iria celebrar o contrato e receber as respectivas rendas?! 18. O A. não prestou consentimento informal à colação do cofre, o cofre foi colocado no seu prédio a pedido do R. e porque estaria iminente a celebração do contrato de arrendamento, o que não veio a suceder. 19. O que ficou provado foi que o R. retirou o seu cofre do Serviço de Finanças e colocou-o no prédio do A. 20. A postura abusiva do R. em querer pagar cerca de 30 €, por ter impedido a fruição do espaço com um cofre com mais de uma tonelada e ter aceitado o valor da renda, fazendo crer que o contrato seria celebrado, chega a ser chocante e fortalece a convicção subjacente à douta sentença, no que respeita à ilicitude da sua conduta e à violação do princípio da boa-fé e da protecção da confiança. 21. A prova do remanescente dos prejuízos decorre da conjugação de prova documental e testemunhal, a qual não foi abalada, nem posta em causa pelo R. 22. Recorde, que o processo foi julgado mais 10 anos depois da data dos factos e da interposição da acção, sendo compreensível que seja difícil possuir toda a documentação. 23. O facto de o Tribunal a quo reconhecer que não assiste ao A. o direito a celebrar o contrato de arrendamento não é contraditório com a condenação em indemnização por violação dos princípios da boa é e da protecção da confiança, por estar precisamente em causa a quebra ilícita de fundadas expectativas na celebração do contrato de arrendamento. 24. Ou seja, a razão de ser da condenação não é a violação do direito à celebração do contrato mas sim uma actuação ilícita e violada da boa fé e da protecção da confiança. 25. O acto de suspensão é anulável, por falta de fundamentação, nos termos dos artigos 123.9 e seguintes do anterior CPA e 268.9, n.93 da CRP. 26. A recorrente criou no A. fundadas e sérias expectativas, dignas de tutela. 27. A recorrente violou, com a sua conduta os elementares princípios da boa fé e da protecção da confiança. 28. A recorrente ocupou ilicitamente o espaço durante onze meses, tendo nele colocado um cofre com uma tonelada. 29. A indemnização a que foi condenado está fundamentada de acto e de direito e é devida. 30. Na verdade a violação do princípio da boa é geradora de responsabilidade civil (Art. 6-A do anterior CPA). 31. No caso em apreço, em face dos factos provados, não está em causa um procedimento pré-contratual, nem uma decisão de não contratação pura e normal, inserta num procedimento pré-contratual. 32. Está em causa uma actuação ilegal e ilícita, que deve implicar a responsabilização por todos os danos e prejuízos causados e que foram provados. 33. Está em causa a responsabilidade pré-contratual prevista no art. 227.º do C.C. 34. Admitir a aplicação da regras da responsabilidade pré- contratual, previstas para os procedimentos pré- contratuais em sede de contratação pública é ceder ao abuso de direito. 35. Na verdade, seria permitir que a recorrente depois de toda a sua conduta geradora de sérias expectativas, viesse invocar factos geradores de invalidades por si cometidas em seu próprio benefício.»
I. 2. Questões a apreciar e decidir: As questões suscitadas pela Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, traduzem-se em apreciar se a sentença recorrida incorreu omissão de pronúncia e erro na interpretação dos factos e consequente enquadramento legal, suscitadas que foram nos seguintes termos: i) Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia sobre: i.1.) a (i)legitimidade da Autoridade Tributária e Aduaneira para, neste momento, representar em juízo os interesses da Região Autónoma da Madeira (RAM) nos presentes autos, em função do disposto no n° l do art°8° do Decreto-lei n°18/2005 de 18/01, que atribuiu à RAM; i.2.) as causas de mérito justificativas de suspensão do procedimento e que, por esta via implicariam que não pudessem ser considerados como violados quaisquer princípios de boa-fé ou de confiança; 1.3.) o argumento da entidade requerida de que o então Autor deveria efetivamente ser indemnizado, não em função do valor de uma renda resultante de um contrato de arrendamento, mas do valor de um depósito, nos termos dos art.s 1185° e s.s do Código Civil. 1.4.) quanto ao valor remanescente da indemnização (3.421,75 pela elaboração do projeto de arquitetura, decoração e execução das instalações durante o período de tempo em que o cofre permaneceu nas mesmas, ou seja, durante 11 meses), a questão da idoneidade dos documentos apresentados: não há nenhum documento de suporte da transação financeira.
ii) Do erro na interpretação dos factos e consequente enquadramento legal, por entender a Recorrente que a matéria trazida aos autos, corretamente interpretada, impõe uma decisão diversa, na medida em que as conclusões retiradas na sentença deveriam conduzir logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto. iii) Do erro de julgamento por não estarem preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.
II. Fundamentação II.1. De facto A matéria de facto pertinente é a constante da sentença recorrida, que aqui se transcreve ipsis verbis: II.2. De direito A Recorrente começa por invocar a nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia, i.1.) por não ter conhecido da (i)legitimidade da Autoridade Tributária e Aduaneira para, neste momento, representar em juízo os interesses da Região Autónoma da Madeira (RAM) nos presentes autos, em função do disposto no n° l do art°8° do Decreto-lei n°18/2005 de 18/01, que atribuiu à RAM poder tributário próprio. Pelo que a entidade competente para patrocinar um eventual recurso seria a Direcção Regional dos Assuntos Fiscais da RAM, que deveria ter sido notificada da Douta sentença, que não foi. Devendo esta omissão ser suprida, para os devidos efeitos (cfr. conclusão n.º 6); i.2.) por não ter considerado as causas de mérito justificativas de suspensão do procedimento e que, por esta via implicariam que não pudessem ser considerados como violados quaisquer princípios de boa-fé ou de confiança (conclusões n.ºs 7, 8 e 9); 1.3.) por não se ter pronunciado sobre o argumento da entidade requerida de que o então Autor deveria efetivamente ser indemnizado, não em função do valor de uma renda resultante de um contrato de arrendamento, mas do valor de um depósito, nos termos dos art°s 1185° e ss. do Código Civil (conclusões n.º 10 e 11); 1.4.) por não se ter pronunciado sobre - quanto ao valor remanescente da indemnização (3.421,75 pela elaboração do projeto de arquitetura, decoração e execução das instalações durante o período de tempo em que o cofre permaneceu nas mesmas, ou seja, durante 11 meses) -, a questão da idoneidade dos documentos apresentados: não há nenhum documento de suporte da transação financeira (conclusões n.º 12).
Vejamos.
Sobre a suscitada nulidade o tribunal a quo pronunciou-se nos termos seguintes: «(…) Nas conclusões 6., 7., 8., 9., 10., 11. e 12. do recurso é invocada a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, o que consubstancia a nulidade prevista no art. 615.°, n.° 1, alínea d), 1.a parte, do Código de Processo Civil. Todavia, as questões submetidas à apreciação do Tribunal foram conhecidas, não lhe cabendo apreciar todos os argumentos ou razões que o Recorrente invoca. Concretizando: Conclusão 6.: é manifesto que a questão suscitada pelo Recorrente foi decidida em conferência, pelo que não se verifica a nulidade invocada. Conclusões 7., 8. e 9.: não são questões, mas antes meros argumentos ou fundamentos, pelo que não se verifica a nulidade invocada. Conclusões 10. e 11.: é manifesto que a questão suscitada pelo Recorrente foi valorada pelo acórdão, constando tanto da fundamentação de facto como de direito, pelo que não se verifica a nulidade invocada. Conclusão 12.: o Recorrente, no contraditório exercido, não impugnou os documentos a que se refere. Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo. Somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação. Não se verifica a nulidade invocada. Conclusões 1., 2., 3., e 4.: o Recorrente imputa uma contradição ao acórdão, o que é susceptível de configurar a nulidade prevista no art. 615.°, n.° 1, alínea c), do Código de Processo Civil. Não existe qualquer contradição, ambiguidade ou erro lógico entre os fundamentos e a decisão.»
Cumpre conhecer. II. 1. Da nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia Constitui jurisprudência pacífica e reiterada que a omissão de pronúncia existe quando o tribunal deixa, em absoluto, de apreciar e decidir as questões que lhe são colocadas. Sendo que, Alberto dos Reis, esclarece lapidarmente que «[s]ão, na verdade coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzido pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.» A doutrina e a jurisprudência distinguem, pois, as “questões” dos “argumentos” ou “razões”, para concluir que só a falta de pronúncia sobre questões de que o tribunal deva conhecer integra a nulidade prevista no art. 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC. Em face do que, a sentença recorrida não padece da invocada nulidade, pois conheceu de todas as questões, pese embora possa não ter exposto e contraditado todos os argumentos invocados pelo R., ora Recorrente, sem prejuízo de poder consubstanciar, sim, erro de julgamento, pelo que, como tal será analisada.
Analisemos, pois, cada um deles separadamente. i.1.) Da (i)legitimidade da Autoridade Tributária e Aduaneira para, neste momento, representar em juízo os interesses da Região Autónoma da Madeira (doravante RAM) nos presentes autos, em função do disposto no n.º l do art. 8° do Decreto-lei n°18/2005 de 18.01., em virtude do qual a entidade competente para patrocinar um eventual recurso seria a Direcção Regional dos Assuntos Fiscais da RAM, que deveria ter sido notificada da decisão recorrida e não foi (cfr. conclusão n.º 6).
No acórdão recorrido (cfr. fls. 633 e ss. do SITAF), sobre esta questão, consta o seguinte discurso fundamentador: «(…) A Entidade Demandada, na reclamação apresentada, alega e requer a notificação da sentença à Direcção Regional dos Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira, porquanto é a entidade competente para tomar decisões sobre a matéria dos autos e para patrocinar um eventual recurso. A ilegitimidade passiva da Entidade Demandada não foi alegada nos autos. Ademais os factos em causa são anteriores ao Decreto-Lei n.° 18/2005, de 18/01, e foram praticados por órgãos e agentes da Entidade Demandada. Nestes termos, é indeferido o requerido.»
Para a decisão desta questão importa ter presente o disposto no citado Decreto-Lei n.º 18/2005, de 18.01., que aqui se transcreve, em parte, para maior facilidade de exposição: « Artigo 1.º Objecto 1 - São transferidas para a Região Autónoma da Madeira as atribuições e competências fiscais que no âmbito da Direcção de Finanças da Região Autónoma da Madeira e de todos os serviços dela dependentes vinham sendo exercidas no território da Região pelo Governo da República, sem prejuízo do disposto nos artigos 140.º e 141.º da Lei n.º 130/99, de 21 de Agosto. 2 - Compete ao Governo Regional da Região Autónoma da Madeira exercer a plenitude das competências previstas na Constituição e na lei em relação às receitas fiscais próprias, praticando todos os actos necessários à sua administração e gestão. 3 - Pelo presente diploma são extintos a Direcção de Finanças da Região Autónoma da Madeira e os serviços locais dela dependentes.
Artigo 2.º Órgão regional Por decreto regulamentar regional será criado um organismo com vista à prossecução na Região Autónoma da Madeira das atribuições e competências cometidas à Direcção de Finanças da Região Autónoma da Madeira, extinta pelo presente diploma nos termos do n.º 3 do artigo anterior (…) Artigo 8.º Cessão da posição contratual 1 - São transferidos para a Região Autónoma da Madeira, independentemente de quaisquer formalidades, os direitos e obrigações, incluindo posições contratuais, nomeadamente direitos de arrendamento, na titularidade do Estado que estejam relacionados com os serviços da Direcção de Finanças da Região Autónoma da Madeira. 2 - A partir da data da entrada em vigor do presente diploma, a execução de obras e a aquisição de equipamento já adjudicados relacionados com os serviços da Direcção de Finanças da Região Autónoma da Madeira ficam sob a responsabilidade do Governo Regional da Madeira. 3 - Para os efeitos do número anterior, o Governo da República transferirá para o Governo Regional as verbas necessárias orçamentadas para aqueles fins, ficando estas consignadas ao pagamento daqueles encargos. (…)»
Do citado diploma resulta, em suma, que foram transferidos para a Região Autónoma da Madeira, independentemente de quaisquer formalidades, os direitos e obrigações, incluindo posições contratuais, nomeadamente direitos de arrendamento, na titularidade do Estado que estejam relacionados com os serviços da Direcção de Finanças da Região Autónoma da Madeira, tendo sido extintos a Direcção de Finanças da Região Autónoma da Madeira e os serviços locais dela dependentes.
Mário Aroso de Almeida (1), sobre este tipo de superveniências processuais, entende perentoriamente, que «(…) Ocorrendo a extinção de um ministério ou a alteração da sua estrutura, após a verificação do facto que serve de fundamento à causa de pedir na ação, a legitimidade passiva deve ser reconhecida ao departamento ministerial que, nos termos da Lei Orgânica do Governo, deva suceder nos direitos e obrigações da entidade extinta ou substituída (cfr. Acórdão do STA de 18 de outubro de 2011, Processo n.º 823/11). Este é também o entendimento que resulta da norma transitória do artigo 21.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 86-A/2011, de 12 de julho, que aprova a Lei Orgânica do Governo.»
Também na jurisprudência, para além do aresto citado na transcrição supra, é consensual o entendimento de que (2) «(…) Tendo sido extinto o instituto público (“IPTM - Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos, I.P.”) que emitiu o título executivo que deu origem à execução fiscal, para prosseguir a oposição que lhe foi deduzida não se impõe que o executado/oponente deduza incidente de habilitação, antes se operando a sucessão ope legis entre aquele instituto e a entidade pública que lhe sucedeu como titular do crédito exequendo.»
A doutrina que dimana da jurisprudência citada, com as necessárias e evidentes adaptações, é inteiramente aplicável ao caso em apreço.
Assim, não pode manter-se a decisão recorrida que, tendo tomado conhecimento nos autos do invocado Decreto-Lei n.° 18/2005, de 18.01., e da consequente transferência para a RAM dos direitos e obrigações, incluindo posições contratuais, relacionados com os serviços da Direcção de Finanças da Região Autónoma da Madeira e que estavam na titularidade do Estado relacionados com os serviços da Direcção de Finanças da Região Autónoma da Madeira, assim como da extinção da Direcção de Finanças da Região Autónoma da Madeira e os serviços locais dela dependentes, não retirou daí as devidas consequências, a saber, verificar a sucessão legal em apreço e determinar que todas as notificações a partir daí fossem feitas à entidade sucedente. Ou seja, a decisão em conferência de fls. 633, com remissão para a decisão de fls. 543 e ss. – todos ref. SITAF – deveria ter sido notificada à RAM e não ao Ministério das Finanças – SEAF, como o foi (cfr. fls. 639 SITAF).
Em face do que, imperioso se torna revogar o acórdão recorrido na parte em que conhece da presente questão prévia e ordenar a baixa dos autos para que se proceda à notificação à RAM do acórdão de fls. 633 e ss. SITAF, acompanhado da decisão singular de fls. 543 e ss. SITAF, para os devidos efeitos, e se a tal nada mais obstar.
III. Decisão Pelo exposto, acordam os juízes da secção do contencioso administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e ordenando que os autos regressem ao Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, a fim de aí retomarem os seus termos, a partir da prolação do acórdão de fls. 633 e ss. do SITAF, conforme supra exposto e se a tal nada mais obstar.
Custas pela Recorrida na presente instância.
Notifique nos termos habituais, considerando-se que no presente processo, porque não urgente, os respetivos prazos para a prática de atos processuais pelas partes estão suspensos (cfr. art. 7.º, n.º 1, da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, na redação dada pela Lei n.º 4-A/2020, de 06.04.).
Lisboa, 14.05.2020. Dora Lucas Neto Pedro Nuno Figueiredo Ana Cristina Lameira ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ (1) in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2017, pg. 110 – anot. ao art. 10.º CPTA. |