Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:165/17.2 BCLSB
Secção:CA-2º JUÍZO
Data do Acordão:02/15/2018
Relator:CATARINA JARMELA
Descritores:PROCESSO DISCIPLINAR
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
CULPA – EXIGÊNCIAS DE PREVENÇÃO
FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL
ISENÇÃO DE CUSTAS - ARTIGO 4º N.º 1, AL. F), E AL. G), DO RCP
Sumário:I – Os meios de prova produzidos perante órgão de polícia criminal na fase de inquérito de processo crime não podem servir para formar a convicção no processo disciplinar à autoridade com competência decisória - ou seja, que decide sobre a prática da infracção disciplinar e da pena aplicável, isto é, in casu do Conselho de Disciplina da FPF -, sendo tal prova inválida.
II – O facto de o Conselho de Disciplina da FPF ter atendido a prova que não é válida (produzida na fase de inquérito de processo crime) não contamina a prova produzida independentemente dessa prova inválida.
III – Nada impede que se dê prevalência a uma determinada prova - in casu às declarações de uma testemunha - em detrimento de outra – no caso sub judice às declarações do recorrido, enquanto arguido -, à qual não se reconheça suporte de credibilidade.
IV – A medida concreta da pena disciplinar aplicada pela Administração apenas é contenciosamente sindicável quanto a aspectos vinculados e em casos de erro grosseiro ou manifesto, incluindo por desrespeito dos princípios gerais reguladores da actividade administrativa – nomeadamente do princípio da proporcionalidade -, encontrando-se o fundamento teorético-político deste controle jurisdicional atenuado, sobre o mérito da decisão administrativa, no princípio da separação de poderes.
V – A determinação da medida concreta da pena faz-se em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuras infracções disciplinares, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de infracção, militem a favor do agente ou contra ele [cfr. art. 41º n.ºs 1 e 2, do Regulamento Disciplinar da FPF (versão 2006)].

VI – À culpa compete fornecer o limite máximo da pena que ao caso deve ser aplicada, sendo que as exigências de prevenção geral fornecerão o limiar mínimo abaixo do qual já não é suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar e as exigências de prevenção especial permitirão determinar, em último termo, a medida da pena – cfr. art. 40º n.ºs 1 e 2, do Cód. Penal, ex vi art. 40º, do Regulamento Disciplinar da FPF (versão 2006).
VII – A Federação Portuguesa de Futebol não beneficia da isenção de custas prevista no art. 4º n.º 1, al. g), do RCP, já que é uma pessoa colectiva de direito privado.
VIII – A actuação da Federação Portuguesa de Futebol que, no Tribunal Arbitral do Desporto (e também neste TCA Sul), litiga em defesa directa e imediata da legalidade do acórdão do respectivo Conselho de Disciplina, opondo-se à sua invalidação, e com a legitimidade geral que lhe confere o art. 10º n.ºs 1 e 9, do CPTA - ou seja, decorrente da autoria do referido acórdão -, não integra a previsão do art. 4º n.º 1, al. f), do RCP, pois aquela não litiga em defesa directa das atribuições que lhe estão especialmente cometidas pelo respectivo estatuto (promover, regulamentar e dirigir, a nível nacional, o ensino e a prática do futebol, em todas as suas variantes e competições) ou legislação que lhe é aplicável.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
I - RELATÓRIO
S..... apresentou no Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), nos termos do art. 4º n.ºs 1 e 3, al. a), da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto (LTAD), aprovada pela Lei 74/2013, de 6/9, na redacção da Lei 33/2014, de 16/6, recurso do acórdão, proferido em plenário, do Conselho de Disciplina (Secção Não Profissional) da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), de 5.5.2017, no âmbito do processo disciplinar n.º 53 (2012/2013) - nos termos do qual foi condenado, pela prática da infracção disciplinar prevista e punida pelos arts. 107º n.º 2 e 49º-A, do Regulamento Disciplinar da FPF (versão de 2006), na pena de 2 anos de suspensão e multa de € 1 500 -, contra a Federação Portuguesa de Futebol, no qual formulou os seguintes pedidos:
a) Revogar a condenação com fundamento na nulidade decorrente da violação da proibição da alteração substancial dos factos e consequentemente determinar a absolvição do demandante.
b) Subsidiariamente, considerar não provados os factos imputados ao demandante e assim absolve-lo.
Sem prescindir e, subsidiariamente,
c) Revogar o acórdão recorrido, decidindo pela absolvição do demandante com fundamento no alegado em 2. supra [Do Exame Crítico da Prova e dos Meios de Prova Inválidos]
d) Revogar o acórdão recorrido com fundamento na falta de preenchimento do tipo legal, como alegado em 3. supra [Do preenchimento dos elementos típicos da infracção].
Ainda e sempre subsidiariamente,
e) Revogar a decisão de condenação, decidindo pela fixação da pena de suspensão no mínimo regulamentar de um ano.”.

Por acórdão de 24 de Outubro de 2017 do TAD foi decidido [com voto de vencido do árbitro designado pela FPF na parte em que se decide não haver lugar à devolução do processo ao Conselho de Disciplina da FPF]:
- julgar improcedente a excepção da alteração superveniente dos factos suscitada por S.....;
- julgar procedente o pedido de declaração de nulidade do acórdão proferido pelo Conselho de Disciplina no proc. n.º 53-12/13 e, consequentemente, revogar as sanções aplicadas a S.....;
- negar provimento ao reconhecimento de isenção de custas formulado pela FPF, com fundamento no despacho do Presidente do TAD proferido no proc. n.º 2/2015;
- condenar a FPF nas custas.

Inconformada, a FPF interpôs recurso jurisdicional para este TCA Sul desse acórdão [no segmento em que anula o acórdão proferido pelo Conselho de Disciplina no proc. n.º 53-12/13 – com fundamento na invalidade dos meios de prova -, da decisão do colégio arbitral em não determinar a devolução do processo à autoridade administrativa para suprir o vício assacado à decisão e do segmento decisório que versa sobre a rejeição do pedido de isenção de custas que apresentou], tendo na alegação apresentada formulado as seguintes conclusões:
1. O presente recurso tem por objeto o Acórdão Arbitral proferido pelo Colégio Arbitral constituído junto do Tribunal Arbitral do Desporto, proferido em 24 de outubro de 2017, designadamente os segmentos que se pronunciam sobre: a anulação do acórdão com fundamento na invalidade dos meios de prova, a não devolução do processo à autoridade administrativa para suprir o vício assacado à decisão e a rejeição do pedido de isenção de custas apresentado pela ora Recorrente.
2. A decisão que ora se impugna é passível de censura, porquanto existe um erro de julgamento na interpretação e aplicação do Direito invocado.
3. Afirma o Colégio de Árbitros que, sem as declarações prestadas pelo Recorrido e pela testemunha M..... em sede de processo judicial perante Órgão de Polícia Criminal, o julgador não teria prova que sustentasse a decisão, o que não corresponde de todo à verdade. Diz ainda o Acórdão recorrido que o depoimento daquela testemunha se encontra contaminado por prova que não é admissível.
4. O TAD não explica convenientemente as razões pelas quais entende que a prova produzida em sede disciplinar não seria produzida se não se tivesse conhecimento da prova decorrente do processo penal (nomeadamente da confissão).
5.O depoimento da testemunha M..... foi produzido em sede disciplinar muito antes de ter sido concedido acesso ao processo criminal. Por isso, não estamos na presença um fruto da árvore envenenada, ao contrário do que afirma o Tribunal a quo. Não se verifica, portanto, qualquer razão de dependência ou de sequencialidade entre um depoimento e outro.
6. Por outro lado, a junção, em sede disciplinar e por meio de certidão, de prova produzida em processo penal não é proibida, embora apenas lhe possa, em certos casos, ser reconhecido valor indiciário.
7. A valoração do depoimento da testemunha M..... perante OPC podia, ao menos em abstracto, ser feita como indício de prova que foi precisamente o que foi feito pelo Conselho de Disciplina, como aliás o próprio acórdão do TAD acaba por admitir, contraditoriamente, quando afirma que aquele órgão conjugou e confrontou os dois depoimentos prestados pela testemunha. Caso o depoimento considerado inadmissível tivesse sido valorado como prova direta, e não como prova indiciária, não teria sido, obviamente, conjugado e confrontado com nada.
8. Neste contexto, a valoração cruzada do depoimento da testemunha M..... junto do OPC (ainda que por forma meramente indiciária) juntamente com o depoimento da mesma testemunha na CII (previamente produzido) não estava vedado ao Conselho de Disciplina. Pelo contrário, impunha-se.
9. Ainda que se admitisse a existência de uma proibição de valoração da confissão na fase preliminar do processo-crime, o que não se concede, sempre se teria de aquilatar, o que o acórdão recorrido não faz, da força probatória dos demais meios de prova não contaminados.
10. Assim, no limite, seria de desvalorar as provas produzidas em sede de processo judicial, perante OPC, na tese do Tribunal a quo a que não se adere, mas por mera cautela de patrocínio se admite, mas ter-se-ia sempre de ter em conta todas as provas restantes produzidas nos autos.
11. Nesse sentido, não resta qualquer dúvida de que os factos foram praticados pelo Recorrido e que existem provas mais do que bastantes da referida prática nos autos que sustentam a sua condenação.
12. Face ao exposto, o Acórdão recorrido é nulo, por erro de julgamento e também por falta de fundamentação.
13. Também de forma surpreendente, o Colégio Arbitral decide não determinar a devolução do processo à autoridade administrativa para suprir o vício assacado à decisão impugnada. Para fundamentar tal posição, o Tribunal a quo invoca um Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 19.05.2016 sendo este o seu único apoio. Acontece que a jurisprudência citada pelo TAD é totalmente desadequada ao caso concreto.
14. A situação prevista no acórdão citado (relativo a processo de contraordenação) reporta-se aos casos em que os factos constantes da decisão administrativa são insuficientes, o que acontece frequentemente quando a autoridade administrativa se esquece de incluir os factos subjetivos (vg, o arguido agiu livre, consciente e voluntariamente, bem sabendo...). Totalmente distinta desta situação é o caso de alegada insuficiência probatória, ou seja, o caso em que os factos acusados estão bem aduzidos, o que está em crise é a prova. Nestas situações, tanto o tribunal de primeira instância (nos termos do disposto no artº340º do CPP), como o tribunal de recurso (410º, 426º e 430º do CPP) são obrigados (por força do princípio do inquisitório), sempre que tal seja possível, a renovar o meio de prova ou a ordenar a sua renovação.
15. Em especial no que tange aos tribunais de recurso, o CPP (aplicável nos processos de contraordenação) ordena expressamente o reenvio do processo para novo julgamento em casos de dúvida ou insuficiência probatória (previstos na al. a) do nº2 do art.s 410º).
16. A mesma conclusão se deve retirar no contexto do direito administrativo, pois a declaração de invalidade de um ato administrativo não colide, à luz do disposto no artº173º, nº l do CPTA, com o "poder de praticar novo acto administrativo, no respeito pelos limites ditados do caso julgado", ou seja, desde que o novo ato não reincida nos mesmos erros do anterior.
17. Na hipótese da Recorrente se ver confrontada com a necessidade de executar a sentença do TAD, admitindo sem conceder que a mesma não padece de qualquer vício, nos termos da LTAD, aplicar-se-ão subsidiariamente as regras do CPTA.
18. Tratando-se de anulação de um ato administrativo o órgão competente pode, de modo a dar execução à sentença, substituir o ato anulado por outro devidamente expurgado dos vícios que o afeta, o que repercutirá os seus efeitos retroativamente com referência à data em que o Conselho de Disciplina atuou da primeira vez.
19. Deste modo, ao impedir a possibilidade de ser praticado novo ato, o Tribunal a quo procede em excesso de pronúncia devendo por isso ser anulado.
20. O Acórdão recorrido decide ainda rejeitar o pedido de isenção de custas apresentado pela Recorrente, pelo que também neste segmento decidiram mal os Exmos. Árbitros que compuseram o Colégio Arbitral;
21. A negação de tal direito é violador de normas constitucionais, designadamente o artigo 13º e 20º, nº l e 2 e 268º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa, uma vez que introduz uma desigualdade no acesso à justiça face aos demais intervenientes e agrava a situação da FPF face ao enquadramento legal que existia antes da existência de uma instância arbitral obrigatória;
22. Ao rejeitar o pedido de isenção da taxa de arbitragem apresentada pela ora Recorrente, o Colégio de Árbitros aplicou, assim, uma norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo;
23. Isto significa que se este Douto Tribunal Superior entender igualmente não ser de reconhecer a isenção da Recorrente das taxas previstas na LTAD e na Portaria acima referida, estará também aplicar norma reportada como inconstitucional e a violar o artigo 4º do Regulamento das Custas Processuais, e os artigos 13º e 20º, nº1 e 2 e 268º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis,
Deverá o Tribunal Central Administrativo Sul dar provimento ao recurso e revogar o Acórdão Arbitral proferido, com as devidas consequências legais, ASSIM SE FAZENDO O QUE É DE LEI E DE JUSTIÇA.”.

O recorrido, notificado, apresentou contra-alegação de recurso na qual pugnou pela manutenção da decisão proferida pelo TAD.

O Ministério Público junto deste TCA Sul notificado para os efeitos do disposto no art. 146º n.º 1, do CPTA, não emitiu parecer.
II - FUNDAMENTAÇÃO
No acórdão recorrido foram dados como assentes os seguintes factos:
a) o Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol (doravante CD da FPF) deliberou, em 12.10.2012, a instauração de processo disciplinar contra o Demandante, naquela data jogador da Associação Desportiva N…., uma vez que a Comissão de Instrução e Inquéritos da LPFP havia dado, no âmbito do inquérito n° 27-11/12, conta da existência de indícios do envolvimento do Demandante em actos de corrupção de jogadores;
b) paralelamente ao processo disciplinar, correram termos no Juiz 3 da Secção de Instrução Criminal, Instância Central da Comarca de Coimbra, o proc. n° 303/12.1 JACBR, no âmbito do qual o Demandante foi pronunciado pela prática do crime de corrupção ativa;
c) findo o inquérito no âmbito do processo disciplinar foi deduzida acusação contra o Demandante pela prática do ilícito disciplinar p.p. nos termos do art.107°, n°2 do RDFPF (versão 2006) pelo facto de, na véspera do jogo Naval - Moreirense, realizado a 29.04.2012, a contar para a Liga Orangina, ter, após solicitação de responsável do Moreirense, abordado o jogador da Naval, M....., convidando-o a provocar um penálti e/ou ser expulso, de modo a facilitar a vitória ao Moreirense, prometendo-lhe em troca, o pagamento de 5.000€;
d) foram tomadas as declarações do Demandante, conforme por ele requerido, tendo, em 05.11.2013, sido encerrada a instrução e proposta a condenação daquele na pena de suspensão de 1 ano e de multa de 12.500€ pela prática da dita infração;
e) o CD da FPF aplicou ao Demandante, na sequência do referido processo disciplinar, as seguintes sanções disciplinares: (i) multa de 1.500€ euros e (ii) suspensão por dois anos, por aplicação dos artigos 107°, n° 2 e 49°-A, ambos do Regulamento Disciplinar da FPF (versão 2006);
f) o Demandante impugnou, em 15.05.2017, junto deste TAD, o Acórdão do CD da FPF, dando origem ao presente processo arbitral”.
*
Presente a factualidade antecedente, cumpre entrar na análise dos fundamentos do presente recurso jurisdicional.

As questões suscitadas resumem-se, em suma, em determinar se o acórdão arbitral recorrido é:
- nulo por falta de fundamentação e excesso de pronúncia;
- enferma de erro ao:
- julgar procedentes dois dos vícios invocados pelo recorrido [invalidade de meios de prova e inexistência de prova para sustentar os factos considerados provados em 2) a 10) no acórdão do Conselho de Disciplina da FPF] e, em caso afirmativo, determinar se procedem os restantes vícios alegados pelo recorrido e cujo conhecimento foi considerado prejudicado pelo acórdão arbitral recorrido [cfr. art. 149º n.º 2, do CPTA (na redacção dada pelo DL 214-G/2015, de 2/10, tal como as demais referências feitas ao CPTA neste acórdão), ex vi art. 61º, da LTAD];
- rejeitar o pedido de isenção de custas.


Nulidade do acórdão recorrido

Invoca a recorrente que a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação e excesso de pronúncia.

Apreciando.

Dispõe o art. 615º n.º 1, do CPC de 2013, ex vi art. 1º do CPTA, este último aplicável por força do art. 61º, da LTAD, que:
“É nula a sentença quando:
(…)
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
(…)
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
(…)”.

A nulidade prevista na al. b) do n.º 1 deste art. 615º relaciona-se directamente com o estatuído no art. 46º, al. e), da LTAD, nos termos do qual a decisão final do colégio arbitral é reduzida a escrito e dela constam a fundamentação de facto e de direito, ou seja, os factos considerados provados e a aplicação da lei aos factos (cfr. art. 607º n.º 3, do CPC de 2013).

Como ensina Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, 1952, pág. 140, “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto.” (sublinhados nossos).

E como explica Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 4ª Edição, 2003, págs. 48 e 49, “Como atrás vimos, as decisões judicias devem ser fundamentadas, face ao determinado no n.º 1 do art. 205.º da CRP e no art. 158.º Actual art. 154º, (1).
A falta de motivação susceptível de integrar a nulidade de sentença é apenas a que se reporta à falta absoluta de fundamentos quer estes respeitem aos factos quer ao direito.
A motivação incompleta, deficiente ou errada não produz nulidade, afectando somente o valor doutrinal da sentença e sujeitando-a consequentemente ao risco de ser revogada ou alterada quando apreciada em recurso.
Para que haja falta de fundamentos de facto, como causa de nulidade de sentença, torna-se necessário que o juiz omita totalmente a especificação dos factos que considere provados, de harmonia com o que se estabelece no n.° 3 do art. 659.° (2) e que suportam a decisão.
No que concerne aos fundamentos de direito, duas notas se impõe destacar: à uma, o julgador não tem que apreciar todas as razões jurídicas produzidas pelas partes, se bem que não se encontre dispensado de resolver todas as questões por elas suscitadas; à outra, não é forçoso que o juiz indique as disposições legais em que baseia a sua decisão, bastando que mencione as regras e os princípios jurídicos que a apoiam.
Não é assim, neste âmbito, nula a sentença que se firme em fundamentos de direito não invocados pelas partes, em consonância com a possibilidade admitida na 1ª parte do art. 664.°(3), como também não o é a que, sem referir o disposto nos arts. 408.°, n.° 1, 879.°, alínea a), e 1317.°, alínea a), do CC, se limite a afirmar que a propriedade sobre determinada coisa se transfere por mero efeito do contrato de compra e venda.
A fundamentação, para além de visar persuadir os interessados sobre a correcção da solução legal encontrada pelo Estado, através do seu órgão jurisdicional, tem como finalidade elucidar as partes sobre as razões por que não obtiveram ganho de causa, para as poderem impugnar perante o tribunal superior, desde que a sentença admita recurso, e também para este tribunal poder apreciar essas razoes no momento do julgamento.” (sublinhados nossos).

É também entendimento pacífico da jurisprudência que a nulidade da sentença prevista na al. b) do n.º 1 do referido art. 615º só ocorre quando se verifica falta absoluta de fundamentação - de facto e de direito -, e não quando a fundamentação enunciada é insuficiente, medíocre ou errada, ou seja, a sentença só será nula por falta de fundamentação se a parte vencida ficar sem perceber a razão pela qual a mesma lhe foi desfavorável, assim impossibilitando a sua impugnação em sede de recurso, e o tribunal de recurso ficar sem perceber as razões determinantes da decisão, ficando impossibilitado de as poder apreciar no julgamento do recurso - neste sentido, entre muitos outros, Acs. do STA de 14.7.2008, proc. n.º 510/08, 3.12.2008, proc. n.º 540/08, 1.9.2010, proc. n.º 653/10, 7.12.2010, proc. n.º 1075/09, 2.3.2011, proc. n.º 881/10, 7.11.2012, proc. n.º 1109/12, 29.1.2014, proc. n.º 1182/12, e 12.3.2014, proc. n.º 1404/13.

Retomando o caso vertente verifica-se que no acórdão arbitral recorrido foram consignados como provados os factos a) a f), ou seja, não se verifica qualquer falta de fundamentação de facto.

Além disso, o acórdão recorrido também contém fundamentação de direito, pois a mesma não é omissa quanto às razões - de direito - que conduziram à decisão proferida, concretamente sob a epígrafe “AS ILEGALIDADES INVOCADAS” são referidas diversas disposições legais (cfr. fls. 5 a 13, do mesmo).

Poder-se-á alegar que esta fundamentação é incompleta ou errada, mas tal é insuficiente para se considerar que a decisão recorrida é nula nos termos da al. b) do n.º 1 do art. 615º, do CPC de 2013, pois a nulidade prevista neste normativo legal só ocorre, conforme supra explicitado, quando se verifica falta absoluta de fundamentação, e não quando esta é apenas deficiente, medíocre ou errada.

Conclui-se, assim, que a decisão recorrida não enferma de falta absoluta de fundamentação, pois contém a motivação de facto e de direito – sem prejuízo de tal análise poder ser deficiente ou errada - que levou o julgador a proferir decisão de parcial procedência.

Aliás, tal conclusão é corroborada pelo facto de a recorrente ter percebido de forma cabal as razões em que assentou o acórdão recorrido, face aos erros de julgamento que, na respectiva alegação de recurso, imputa ao mesmo.

Nestes termos, tem de improceder a arguição de nulidade imputada ao acórdão arbitral recorrido estatuída na al. b) do n.º 1 do art. 615º, do CPC de 2013.

Quanto à nulidade prevista na 2ª parte da al. d) do n.º 1 do mencionado art. 615º, chamada de excesso de pronúncia, a mesma relaciona-se directamente com o estatuído no art. 95º n.º 1, do CPTA, aplicável por força do art. 61º, da LTAD, nos termos do qual “A sentença (…) não pode ocupar-se senão das questões suscitadas, salvo quando a lei lhe permita ou imponha o conhecimento oficioso de outras”.

A propósito desta nulidade, esclarece Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, 2ª Edição, 2009, pág. 37, que o “excesso de pronúncia, quer dizer, é a hipótese de a causa do julgado não se identificar com a causa de pedir ou o julgado não coincidir com o pedido, ou ainda, o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas ou de excepções que estão na exclusiva disponibilidade das partes e que estas não aduziram”.

Ora, no acórdão arbitral recorrido, concretamente a fls. 10 e 11 do mesmo, foi apreciada a questão de saber “se o processo deve ser devolvido ao Conselho de Disciplina para suprir aquele vício ou se, pelo contrário, não há lugar a tal diligência” - aí se concluindo não haver lugar à devolução do processo à autoridade administrativa -, a qual não foi suscitada pelas partes e não é de conhecimento oficioso, razão pela qual terá de ser julgada verificada esta nulidade.

Pelo exposto, tem de proceder a arguição de nulidade do acórdão arbitral recorrido no segmento em que apreciou a questão relativa à (des)necessidade de devolução do processo ao Conselho de Disciplina.


Erro do acórdão arbitral recorrido ao ter julgado procedentes os dois vícios analisados


Invalidade de meios de prova

No recurso interposto perante o TAD o ora recorrido invocou designadamente que o acórdão do Conselho de Disciplina da FPF, e no que respeita aos factos dados como provados em 2) a 10), assentou na valoração de meios de prova inválidos [interrogatório do recorrido e depoimento de M..... perante órgão de polícia criminal, no âmbito do inquérito crime n.º 303/12.1 JACBR – cfr. arts. 365º, 366º e 367º, todos do CPP].

No acórdão arbitral recorrido concluiu-se a este propósito que no acórdão do Conselho de Disciplina da FPF foram valorados - para prova dos factos 2) a 10) -, de modo inválido (atento o disposto nos arts. 125º, a contrario, 141º n.º 1, al. b), e 357º n.º 1, al. b), todos do CPP), os seguintes meios de prova: a confissão do ora recorrido e o depoimento da testemunha M....., ambos perante órgão de polícia criminal na fase de inquérito do processo crime n.º 303/12.1 JACBR.

Invoca a recorrente que a junção, em sede disciplinar e por meio de certidão, de prova produzida em processo penal não é proibida, embora apenas lhe possa ser reconhecido, em certos casos, valor indiciário.

Vejamos.

O acórdão de 5.5.2017 do Conselho de Disciplina da FPF condenou o recorrido pela prática de uma infracção ao disposto no art. 107º n.º 2, com remissão para o art. 49º-A, ambos do Regulamento Disciplinar da FPF (versão de 2006), na pena de suspensão pelo período de 2 anos e multa fixada em € 1 500.

Nesse acórdão - concretamente a fls. 11-12, do mesmo - foram considerados provados os seguintes factos:
1) Na época desportiva 2011/2012 o Arguido esteve inscrito na FPF, como jogador de futebol, de classe amadora, categoria sénior, do “Futebol Clube Pampilhosa”.
2) No dia 28 de abril de 2012 o Arguido contactou telefonicamente M…., jogador da equipa sénior de futebol da “Naval - Futebol SAD”.
3) No referido telefonema o Arguido solicitou a M…. um encontro junto à residência deste último, na Figueira da Foz.
4) O Arguido e M… eram amigos e jogaram juntos na União Desportiva Oliveirense, nas épocas 2007/2008 e 2008/2009.
5) No dia 28 de abril de 2012, após o telefonema referido no facto provado 3), a hora que não se sabe precisar, o Arguido e M…. encontraram-se no exterior do prédio onde reside o último, sito na Figueira da Foz.
6) Dizendo-se mandatado por uma pessoa de Guimarães, o Arguido propôs a M..... que este, no jogo em que iria intervir no dia seguinte, na Figueira da Foz, a contar para a Liga Orangina 2011/2012, entre a “Naval - Futebol, SAD” e o “Moreirense Futebol Clube”, voluntária e deliberadamente provocasse uma grande penalidade contra a sua equipa e/ou provocasse a sua expulsão.
7) Tudo em ordem a facilitar a vitória do “Moreirense Futebol Clube” no jogo identificado no facto anterior.
8) Em troca de alguma das atitudes referidas no facto 6), o Arguido propôs-se entregar a M..... a quantia de €5.000,00 (cinco mil euros).
9) M..... rejeitou liminarmente a oferta feita pelo Arguido.
10) O Arguido agiu de livre, voluntária e conscientemente, com o objetivo de corromper o jogador M..... e, assim, desvirtuar a verdade desportiva no jogo identificado em 6), bem sabendo que com a sua conduta violava os deveres previstos no Regulamento da FPF.
11) Na época desportiva 2012/2013 o Arguido esteve inscrito na FPF, como jogador de futebol, classe amadora, categoria sénior, da “Associação Desportiva Nogueirense”.
12) Na época desportiva 2012/2013 não foi averbada no cadastro desportivo ao Arguido qualquer sanção disciplinar.
13) O Arguido tem averbadas no seu cadastro desportivo algumas infracções disciplinares punidas com jogos de suspensão, nomeadamente, nas épocas 2005/2006 e 2008/2009”.

Além disso, nesse acórdão - concretamente a fls. 12-13, do mesmo – consignou-se o seguinte quanto à forma de formação da convicção quanto aos factos ora transcritos sob os n.ºs 2) a 10):
A convicção quanto aos restantes factos [facto 2) a 10)], fundamentalmente, da confrontação e conjugação dos depoimentos constantes dos autos de interrogatório do Arguido e de M..... perante órgão de polícia criminal, no âmbito do processo crime com o NUIPC 303/12.1JACBR (v. fls. 151 a 161) e, ainda do depoimento da testemunha M..... perante a CII (v. fls. 23 a 25).
Antes de mais profícuos avanços e concretizações, sintetizemos, mesmo que em termos genéricos, os pilares em que assentou a apreciação da prova e a formação da convicção:
(i) o Arguido, que na defesa em sede disciplinar pugna pela sua inocência, quando prestou declarações no processo crime que corre termos no Comarca de Coimbra com o mesmo objeto, ainda na fase de inquérito, confessou os factos que aqui lhe são imputados (v. fls. 158 a 161).
(ii) os depoimentos da testemunha M..... prestados em sede disciplinar e em sede judicial são coincidentes e, ademais, correspondem com a versão apresentada pelo Arguido perante o órgão de polícia criminal (isto é, com a confissão deste) (...)” (sublinhados nossos).

Do trecho ora transcrito decorre que a convicção do Conselho de Disciplina da FPF assentou, quanto aos factos 2) a 10), nomeadamente nos seguintes meios de prova:
- autos de interrogatório do recorrido perante órgão de policia criminal [Polícia Judiciária], no âmbito de processo crime n.º 303/12.1 JACBR [cfr. certidão extraída desse processo crime e junta a fls. 154 a 161, do processo disciplinar n.º 53 (2012/2013)];
- auto de inquirição de M…. perante órgão de policia criminal [Polícia Judiciária], no âmbito do processo crime n.º 303/12.1 JACBR [cfr. certidão extraída desse processo crime e junta a fls. 151 a 153, do processo disciplinar n.º 53 (2012/2013)].

O acórdão arbitral recorrido andou bem ao concluir que estes meios de prova, produzidos perante órgão de polícia criminal na fase de inquérito do processo crime n.º 303/12.1 JACBR, não podiam servir para formar a convicção do Conselho de Disciplina da FPF, sendo tal prova inválida, como se passa a demonstrar.

As declarações prestadas pelo recorrido (enquanto arguido) e por M..... (enquanto testemunha) perante órgão de policia criminal [Polícia Judiciária], no âmbito do processo crime n.º 303/12.1 JACBR, apenas relevam nesse processo crime para sustentar a acusação [bem como o despacho de pronúncia, dado que nesse processo crime foi requerida a abertura de instrução], não servindo tais meios de prova nesse processo crime para formar a convicção do julgador.

Com efeito, de acordo com o disposto nos arts. 355º, 356º, a contrario, e 357º, a contrario, todos do Código de Processo Penal (CPP), é proibida a valoração desses meios de prova em julgamento para efeitos de formação da convicção do tribunal.

As proibições de prova são barreiras colocadas à determinação dos factos que constituem objecto do processo, consubstanciando-se na prescrição de um limite à descoberta da verdade, tudo se passando como se a referida prova não existisse, devendo a mesma ser ignorada, pois a descoberta da verdade material não pode se obtida a qualquer preço, mas antes através de meios legalmente admissíveis.

Efectivamente, ensina a este propósito Manuel da Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, 1992, pág. 83, “Como Gössel acentua, as proibições de prova são «barreiras colocadas à determinação dos factos que constituem objecto do processo». Mais do que a modalidade do seu enunciado, o que define a proibição de prova é a prescrição de um limite à descoberta da verdade. Normalmente formulada como proibição, a proibição de prova pode igualmente ser ditada através de uma imposição e, mesmo, de uma permissão.”.

E conforme esclarece Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II Volume, 1993:
- A págs. 101 e 102, “9.1. Um dos meios de que a lei se serve para proteger os cidadãos contra as ingerências abusivas nos seus direitos é a proibição de prova.
A proibição de prova assume desse logo grande importância pelo seu efeito dissuasor. Se os direitos do cidadão são violados, as provas que se obtenham através de tal violação não poderão ser atendidas no processo, são proibidas. Pretende-se com tal proibição evitar o sacrifício de direitos das pessoas por partes das autoridades judiciárias, dos órgãos de polícia criminal ou dos particulares, privando de eficácia as provas obtidas ou produzidas ilegalmente: as provas proibidas não podem ter efeitos no processo.
É manifesto que com a proibição de prova se pode sacrificar a verdade, já que a prova proibida, seja qual for a causa da proibição, pode ser de extrema relevância para a reconstituição do facto histórico, pode mesmo ser a única. Um facto pode ter de ser julgado como não provado simplesmente porque o meio que o provaria não pode ser valorado no processo, é um meio de prova proibido.
Simplesmente, como já por várias vezes foi referido, o CPP/87 não considera a busca da verdade como um valor absoluto e por isso não admite que a verdade possa ser procurada, usando de quaisquer meios, mas tão-só através de meios justos, ou seja, de meios legalmente admissíveis. A verdade não é um valor absoluto e, por isso, não tem de ser investigada a qualquer preço, mormente quando esse «preço» é o sacrifício dos direitos das pessoas.”;
- E a págs. 105 e 106, “Como ensina o Doutor Manuel da Costa Andrade há uma imbricação íntima entre as proibições de prova e o regime das nulidades (1 Manuel da Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, p. 193). Com efeito, é no título dedicado às nulidades que o CPP inscreve o preceito segundo o qual «as disposições do presente título não prejudicam as normas deste Código relativas a proibições de prova» (art. 118.º, n.º 3) e frequentemente, a lei enuncia as proibições de prova cominando precisamente com a sanção da nulidade a violação dos pertinentes imperativos legais.
São, porém, realidades distintas e autónomas, embora a utilização de uma prova proibida no processo tenha os efeitos da nulidade do acto.
10.2 – A lei não indica claramente quais os efeitos da admissão no processo de uma prova proibida. A prova proibida é nula, o que significa que é inválida, bem como os actos que dela dependerem e que ela possa afectar (art. 122º). O efeito primário desta invalidade é que a prova não pode ser utilizada no processo, não podendo, por isso servir, para fundamentar qualquer decisão.
A consequência essencial que a obtenção de uma prova proibida provoca vem a ser a sua não utilização: trata-se pois de não a tomar em conta para qualquer fim processual, é como se a referida prova não existisse.”.

Ora, sendo as declarações prestadas pelo recorrido e por M..... perante órgão de policia criminal, no âmbito do processo crime n.º 303/12.1 JACBRA, prova proibida em julgamento, isto é, que não pode se aproveitada para efeito da formação da convicção do tribunal criminal - solução que decorre nomeadamente dos princípios da imediação e do contraditório -, também tal prova não pode valer no processo disciplinar ora em causa [n.º 53 (2012/2013] para formar a convicção da autoridade com competência decisória (ou seja, que decide sobre a prática da infracção disciplinar e da pena aplicável, isto é, in casu do Conselho de Disciplina da FPF), tendo em conta que não existem razões válidas para que tais meios de prova possam valer no processo disciplinar e, assim, sacrificar-se os princípios da imediação [o instrutor deve conhecer directa e pessoalmente as provas para obter uma visão conjunta da razão de ciência da testemunha sobre os factos e poder, mediante a formulação de perguntas, apurar da sua credibilidade, o mesmo ocorrendo com as declarações do arguido] e do contraditório [no processo disciplinar ora em causa, a partir da dedução da acusação, o arguido e o seu mandatário podem estar presentes em todos os actos de instrução e sugerir questões ou diligências pertinentes (cfr. art. 221º n.º 6, do Regulamento Disciplinar da FPF, versão de 2013, o qual entrou em vigor em 25.6.2013 e é aplicável in casu à tramitação do processo disciplinar, atento o disposto no seu art. 238º n.º 2, face à circunstância da acusação só ter sido deduzida em 25.9.2013), contraditório que in casu se verificou nas declarações que o ora recorrido prestou em 25.10.2013, nas quais o seu defensor esteve presente e formulou questões ao mesmo (cfr. fls. 65-66, do processo disciplinar n.º 53 (2012/2013)); a fase de inquérito no processo crime tem estrutura essencialmente inquisitória e não contraditória], pois no âmbito disciplinar foi possível recolher declarações a M..... e ao ora recorrido [cfr. fls. 24-25 e 65-66, respectivamente, do processo disciplinar n.º 53 (2012/2013)], solução para a qual também concorre a autonomia do processo disciplinar face ao processo crime.

Pelo exposto, tem de improceder nesta parte o presente recurso.


Inexistência de prova para sustentar os factos considerados provados em 2) a 10) no acórdão do Conselho de Disciplina

No recurso interposto perante o TAD o ora recorrido invocou que as declarações de uma testemunha, contrariadas pelo arguido, ora recorrido – tendo em conta a proibição de valoração das declarações prestadas pelo recorrido (enquanto arguido) e por M..... (enquanto testemunha) perante órgão de policia criminal [Polícia Judiciária], no âmbito do processo crime n.º 303/12.1 JACBR -, não bastam para dar como provados os factos 2) a 10), supra elencados, que, assim, devem passar a figurar na lista dos factos não provados, atenta, aliás, a obrigatoriedade de se lançar mão das regras do ónus da prova e do princípio in dubio pro reo.

No acórdão arbitral recorrido concluiu-se que sem a prova viciada [confissão do recorrido e depoimento da testemunha M..... perante órgão de policia criminal, no âmbito do processo crime] o Conselho de Disciplina não lograria chegar à mesma conclusão, isto é, considerar provados os factos 2) a 10), razão pela qual revogou as sanções aplicadas ao ora recorrido.

Invoca a recorrente que, mesmo desvalorizando as provas produzidas em sede de processo judicial perante órgão de policia criminal, sempre se teria de atender às provas produzidas em sede disciplinar que permitem dar como assentes os referidos factos 2) a 10).

Vejamos.

O facto de o Conselho de Disciplina da FPF ter atendido a prova que não é válida (produzida na fase de inquérito do processo crime n.º 303/12.1 JACBR) não contamina a prova produzida independentemente dessa prova inválida, concretamente não contamina a inquirição de M..... e o interrogatório do ora recorrido no âmbito disciplinar [constantes de fls. 24-25 e 65-66, respectivamente, do processo disciplinar n.º 53 (2012/2013)], os quais ocorreram em 2012 e 2013, respectivamente, ou seja, muito antes da junção da certidão com a prova produzida na fase de inquérito do processo crime n.º 303/12.1 JACBR, junção que só ocorreu em Janeiro de 2017 [cfr. fls. 149, do processo disciplinar n.º 53 (2012/2013)].

Expurgado do processo disciplinar essa prova inválida, os elementos probatórios disponíveis quanto aos factos, descritos sob os n.ºs 6) a 10) no acórdão de 5.5.2017 do Conselho de Disciplina da FPF e supra transcritos, limitam-se às declarações da testemunha M..... [o qual afirmou que S....., ora recorrente, lhe solicitou que no jogo contra o Moreirense fizesse um penalti e/ou fosse expulso, oferecendo-lhe para o efeito € 5000] e às declarações do recorrido [que afirmou ser absolutamente falso que tenha tentado aliciar ou coagir o M..... a fazer o que quer que fosse, recusando o alegado na nota de culpa] prestadas no âmbito disciplinar, constantes de fls. 24-25 e 65-66, respectivamente, do processo disciplinar n.º 53 (2012/2013).

De todo o modo, cumpre salientar que nada impede que se dê prevalência a uma determinada prova (in casu às declarações da testemunha M.....) em detrimento de outra (in casu às declarações do recorrido), à qual não se reconheça suporte de credibilidade.

Com efeito, e como se sumariou no Ac. da Relação de Guimarães de 25.9.2017, proc. n.º 70/16.0 GBBCLG1, “(…) em que vigora o princípio da livre apreciação da prova, nada impede o Tribunal de fundamentar a decisão sobre a matéria de facto exclusivamente nas declarações da assistente, opostas às do arguido, desde que tal se encontre clara e devidamente justificado na motivação, com a exteriorização das razões pelas quais aquelas lhe mereceram maior credibilidade” (sublinhados nossos).

Ora, in casu verifica-se que a testemunha M..... imputa ao ora recorrido, de forma peremptória e consistente (das suas declarações resulta de forma clara que não se tratou de qualquer brincadeira), a prática de factos bastantes graves, pelo que, sendo o mesmo amigo do recorrido - amizade que foi afirmada também pelo próprio recorrido nas declarações que prestou no âmbito disciplinar [cfr. fls. 65, do processo disciplinar n.º 53 (2012/2013); no artigo 11º, da defesa apresentada à nota de culpa, o recorrido qualifica a relação que mantém com M..... como “relação de forte amizade” (cfr. fls. 46, do processo disciplinar n.º 53 (2012/2013))] -, ter-se-á que concluir que tais declarações correspondem à verdade, isto é, são totalmente credíveis, pois não é normal, de acordo com as regras da experiência, que alguém impute a outrem de quem é amigo a prática de factos bastantes graves (pois puníveis criminal e disciplinarmente) se os mesmos não forem verdadeiros.

Esta conclusão implica que se considere que o ora recorrido, nas declarações que prestou no âmbito disciplinar - ao negar a prática dos factos que lhe são imputados pela testemunha M..... -, faltou à verdade, o que não é motivo de espanto, pois as declarações do recorrido não podem ser consideradas isentas, imparciais, desinteressadas e objectivas, já que o mesmo tem um particular interesse em ver vingar a sua versão dos factos.

Conclui-se, assim, que existe prova suficiente e convincente de que o recorrido praticou os factos que lhe são imputados sob os n.ºs 6) a 10) no acórdão de 5.5.2017 do Conselho de Disciplina da FPF.

Além disso, não ocorre a violação do princípio in dubio pro reo - que constitui princípio relativo à prova, sendo o correlato processual do princípio da presunção de inocência do arguido -, pois inexiste qualquer dúvida razoável quanto à prática pelo recorrido de tais factos que lhe são imputados no acórdão de 5.5.2017 do Conselho de Disciplina da FPF, ou seja, tal princípio não se aplica quando a actividade probatória não deixa dúvida na posição a tomar na decisão sobre a matéria de facto.

Relativamente aos factos descritos sob os n.ºs 2) a 5) no acórdão de 5.5.2017 do Conselho de Disciplina da FPF também existe prova suficiente e concludente da sua ocorrência, tendo em conta que a prova produzida no âmbito disciplinar quanto aos mesmos (declarações do recorrido e depoimento de M.....) é convergente.

Nestes termos, o acórdão arbitral recorrido incorreu em erro ao ter considerado que inexiste prova suficiente da prática pelo recorrido dos factos que lhe são imputados no acórdão de 5.5.2017 do Conselho de Disciplina da FPF e ao declarar a nulidade deste acórdão e revogar as sanções aí aplicadas ao recorrido, razão pela qual deverá ser revogado o acórdão arbitral recorrido nesta parte.

A procedência do presente recurso nesta parte implica, face ao estatuído no art. 149º n.º 2, do CPTA, ex vi art. 61º, da LTAD, que este tribunal conheça, em substituição, dos restantes vícios alegados pelo recorrido [no requerimento inicial apresentado perante o TAD] e que não foram conhecidos pelo TAD, por a sua apreciação ter sido considerada prejudicada.


Passando à apreciação, em substituição, dos vícios do acórdão de 5.5.2017 do Conselho de Disciplina da FPF não conhecidos pelo TAD

Cumpre, então, analisar, em substituição, dos seguintes vícios:
- falta de preenchimento dos elementos típicos da infracção;
- falta de fundamentação e violação dos princípios da proporcionalidade e adequação na fixação da pena de suspensão.

Falta de preenchimento dos elementos típicos da infracção

No recurso interposto perante o TAD o ora recorrido invocou a falta de preenchimento dos elementos típicos da infracção prevista nos arts. 107º n.º 2 e 49ºA, ambos do Regulamento Disciplinar da FPF, uma vez que, não tendo o clube praticado a infracção do art. 49º ou do art. 49º-A, não pode o jogador ser censurado pela conduta em causa, por falta de previsão legal, mas sem razão.

Efectivamente, a letra das normas regulamentares em que assentou a condenação do recorrido - à data dos factos jogador de futebol, classe amadora, categoria sénior - é clara no sentido de que se visa punir a conduta do jogador, independentemente da punição do clube, como se passa a demonstrar.

O acórdão de 5.5.2017 do Conselho de Disciplina da FPF condenou o ora recorrido pela prática de uma infracção ao disposto no art. 107º n.º 2, com remissão para o art. 49º-A, ambos do Regulamento Disciplinar da FPF (versão de 2006), na pena de suspensão pelo período de 2 anos e multa fixada em € 1 500.

Estatui o art. 107º, do Regulamento Disciplinar da FPF (versão de 2006) - inserido na Secção V, com a epígrafe “DAS INFRACÇÕES ESPECÍFICAS DOS JOGADORES” (sublinhado nosso) -, o seguinte:
(…)
2 – É punido com suspensão de 1 a 4 anos e multa de € 750 a € 12.500 o jogador que pratique as infracções previstas nos artigos 49º, nº 1 e nº 3, 49º-A.
(…)” (sublinhado nosso).

Os arts. 49º e 49º-A, desse mesmo Regulamento - inseridos na Secção III, com a epígrafe “DAS INFRACÇÕES ESPECÍFICAS DOS CLUBES” (sublinhado nosso) -, prevêem as infracções disciplinares de “Corrupção de clubes e agentes desportivos” e de “Corrupção de outros agentes desportivos”, respectivamente, em que o agente da infracção é um clube.

Ora, determinando o transcrito art. 107º n.º 2 que é punido com suspensão de 1 a 4 anos e multa de € 750 a € 12 500 o jogador que pratique as infracções descritos nos arts. 49º n.ºs 1 e 3 e 49º-A, tal implica que, onde nestes dois normativos regulamentares consta “clubes”, se passe a ler “jogadores”, isto é, para o jogador poder ser censurado basta que pratique as condutas descritas nesses arts. 49º n.ºs 1 e 3 e 49º-A [isto é, que faça ou intervenha em acordos com vista à obtenção de um resultado falseado, quer seja pela actuação anómala de uma ou ambas as equipas contendoras ou de algum dos seus jogadores, quer pela dolosa utilização irregular de qualquer um destes, quer pela apresentação de uma equipa notoriamente inferior ao habitual ou outro procedimento conducente ao mesmo propósito, que der ou aceite recompensa ou promessa de recompensa para obtenção de um resultado falseado ou que der ou prometer recompensa a qualquer agente da equipa adversária, com vista à obtenção de uma actuação parcial ou de um resultado falseado], independentemente da punição do clube.

Dito por outras palavas, o referido art. 107º n.º 2 surge como uma norma de extensão dos arts. 49º n.ºs 1 e 3 e 49º-A - directamente aplicáveis apenas aos clubes -, possibilitando a punição também dos jogadores por actos de corrupção (independentemente da punição do clube).

Assim sendo, tem de improceder o presente vício.


Falta de fundamentação e violação dos princípios da proporcionalidade e adequação na fixação da pena de suspensão.

No recurso interposto perante o TAD o ora recorrido invocou a falta de fundamentação e a violação dos princípios da proporcionalidade e adequação na fixação em dois anos da pena de suspensão, defendendo que tal pena (de suspensão) deve ser fixada no mínimo regulamentar de um ano.

Apreciando.

O acórdão de 5.5.2017 do Conselho de Disciplina da FPF condenou o ora recorrido na pena de suspensão pelo período de 2 anos e multa fixada em € 1 500.

Para melhor enquadramento e decisão destas questões, passa-se a transcrever a fundamentação do referido acórdão do Conselho de Disciplina sobre a medida e graduação da pena:
(Texto no Original)

(…)

”.

Da fundamentação ora transcrita decorre, em suma, que foi aplicada ao ora recorrido a pena de 2 anos de suspensão, atendendo a que:
- é nos arts. 40º a 44º, do Regulamento Disciplinar da FPF, que constam as normas que possibilitam alcançar a medida concreta da sanção, tendo sempre presente o princípio da proporcionalidade;
- a determinação da medida da pena, e de acordo com o disposto no art. 40º, far-se-á em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuras infracções disciplinares;
- as exigências de prevenção geral são muito relevantes, pois no âmbito desportivo tem-se entendido que a corrupção põe profundamente em causa os valores da verdade, da lealdade e da correcção, reconduzindo-se a actos susceptíveis de alterarem fraudulentamente os resultados da competição e, portanto, avessos aos conceitos de desportivismo ou fair play, dos quais emergiram os valores que assim se ameaçam; estando em linha de conta valores constitutivos da própria razão de ser do desporto, e sendo a competição desportiva o momento chave para que os mesmos sejam postos em prática e transmitidos aos adeptos, só pode exigir-se que qualquer conduta susceptível de os violar seja severamente punida pelas instâncias disciplinares, como inclusivamente o é pelas instâncias penais; acresce notar a especial preocupação que o fenómeno da corrupção no desporto tem acarretado e que levou, inclusive, à sua criminalização (cfr. Lei 50/2007, de 31/8);
- as exigências de prevenção especial ou individual são reduzidas, pois o arguido não tem qualquer condenação disciplinar por prática de actos de corrupção, ou similares (facto provado n.º 12);
- a infracção praticada pelo arguido está tipificada no Regulamento Disciplinar da FPF como ilícito muito grave, o mesmo agiu com dolo directo e deveria melhor do que ninguém reprimir e afastar do desporto o tipo de ilícito em causa.

Dito por outras palavras, a pena de 2 anos de suspensão aplicada ao ora recorrido foi considerada proporcional atendendo a que, embora as exigências de prevenção especial sejam reduzidas, a culpa do mesmo é elevada e as exigências de prevenção geral são especialmente relevantes.

Ora, um destinatário normal, colocado perante estas razões, percebe a factualidade e as normas que sustentaram a decisão de aplicação ao recorrido da pena de 2 anos de suspensão.

Nestes termos, conclui-se pela improcedência do vício de falta de fundamentação, cumprindo analisar a alegação de violação do princípio da proporcionalidade [o qual se desdobra em três dimensões: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito].

O princípio da proporcionalidade encontra-se consagrado no art. 266º n.º 2, da CRP, e no art. 53º, al. b), do DL 248-B/2008, de 31/12 (que estabelece o regime jurídico das federações desportivas e as condições de atribuição do estatuto de utilidade pública desportiva), constituindo um limite interno ao poder discricionário da Administração na fixação da medida concreta da pena disciplinar.

Ora, a medida concreta da pena aplicada pela Administração apenas é contenciosamente sindicável quanto a aspectos vinculados e em casos de erro grosseiro ou manifesto, incluindo por desrespeito dos princípios gerais reguladores da actividade administrativa, encontrando-se o fundamento teorético-político deste controle jurisdicional atenuado, sobre o mérito da decisão administrativa, no princípio da separação de poderes – neste sentido, entre outros, Acs. do STA de 3.11.2004, proc. n.º 329/04 [em cujo sumario consta o seguinte: “I - A graduação da sanção disciplinar de suspensão, dentro dos limites legalmente estabelecidos, é uma actividade incluída na discricionariedade imprópria (justiça administrativa), podendo sofrer os vícios típicos do exercício do poder discricionário, designadamente o desrespeito pelo princípio da proporcionalidade, na sua vertente da adequação. II - Nas hipóteses em que a medida tomada se situa dentro de um círculo de medidas possíveis, deve considerar-se proporcionada e adequada aquela de que a Administração se serviu”; neste aresto escreveu-se o seguinte: “Como se disse, por exemplo, no Acórdão de 6-3-97 – Rec 41112, seguindo jurisprudência uniforme “os tribunais não podem substituir-se à Administração na fixação concreta da pena, pelo que a graduação da pena disciplinar, não sendo posta em causa a qualificação jurídico-disciplinar das infracções, não é contenciosamente sindicável, salvo erro grosseiro ou manifesto, ou seja, se a medida da pena for ostensivamente desproporcionada, uma vez que tal actividade se insere na chamada actividade discricionária da Administração], 16.2.2006, proc. n.º 412/05 [no qual se escreveu designadamente o seguinte: “Em todo o caso, sempre anuiremos que a graduação da sanção disciplinar de suspensão, dentro dos limites legalmente estabelecidos, é uma actividade incluída na discricionariedade imprópria (justiça administrativa), podendo sofrer os vícios típicos do exercício do poder discricionário, designadamente o desrespeito pelo princípio da proporcionalidade, na sua vertente da adequação (Ac. do STA, de 3/11/2004, Proc. nº 0329/04)./Contudo, nas hipóteses em que a medida tomada se situa dentro de um círculo de medidas possíveis, deve considerar-se proporcionada e adequada aquela de que a Administração se serviu (Esteves de Oliveira e outros, in Código de Processo Administrativo anotado, pags. 1904/105; tb. cit. Ac. do STA de 3/11/2004).”], 29.3.2007 (Pleno), proc. nº 412/05, 7.9.2010, proc. n.º 1012/09, 23.9.2010, proc. n.º 58/10, 15.11.2012 (Pleno), proc. n.º 622/11 [“V - Os tribunais não podem sindicar a proporcionalidade da medida concreta da pena, salvo havendo erro grosseiro ou manifesto”], 20.11.2014, proc. n.º 475/14 [“V - Na fixação concreta da pena disciplinar, a Administração goza de prerrogativas de avaliação e de decisão só judicialmente sindicáveis em caso de erro manifesto.”], 12.3.2015, proc. n.º 245/14 [“I - Muito embora seja certo caber dentro dos poderes judiciais analisar se os factos que justificaram a punição tiveram lugar e se eles constituem a infracção disciplinar que a determinou já lhe escapa, salvo em casos de erro manifesto e grosseiro, a competência para apreciar se a medida concreta da pena foi bem doseada por esta ser uma tarefa da Administração inserida dentro dos seus poderes discricionários.”], 3.11.2016, proc. n.º 548/16, e 17.11.2016 (Pleno), proc. n.º 131/13.

Conforme esclarecem Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Anotado, Volume I, 2006, págs. 121 a 126:
I. Vêm reguladas neste artigo 3.° do CPTA algumas das questões nucleares que o julgamento da Administração Pública pelos Tribunais, do Poder Administrativo pelo Poder Judicial, suscita em sede de separação e interdependência de poderes e funções do Estado.
(…)
O reflexo mais nítido dessa separação (e também dessa interdependência) da função judicial e da função administrativa está na distinção feita no n.° 1 entre aquilo que, sendo embora próprio desta última, é passível de apreciação e sanção judicial e aquilo que, constituindo reserva do poder administrativo, não pode ser judicialmente fiscalizado.
(…)
A insindicabilidade judicial do mérito das medidas e opções administrativas ou, se se preferir, a reserva de discricionariedade da Administração representa, assim, um dos limites funcionais da justiça administrativa (cf. Barbosa de Melo, Direito Administrativo, 11, p. 72) e, ao mesmo tempo, um dos corolários do princípio constitucional da separação de poderes, um domínio da responsabilidade exclusiva dos titulares da função administrativa e, por isso, um fundamento da autonomia do poder administrativo no contexto dos vários poderes do Estado.
II. A chave da distinção feita no art. 3.°/1 do CPTA - justamente porque não opõe legalidade a discricionariedade, mas juridicidade a mérito - não passa pela afirmação de que o uso de poderes discricionários se encontra fora do domínio do jurídico (out of law), de que a Administração estaria aí submetida apenas a regras de boa administração e que portanto as suas decisões discricionárias, não encontrando quaisquer parâmetros normativos de controlo, também não seriam passíveis, em absoluto, em quaisquer circunstâncias, de censura judicial. Não é nada disso, claro.
O poder discricionário é, com efeito, tanto como o poder vinculado, um poder jurídico. Basta ver que, além de pressupor uma concessão legislativa - uma norma de competência (em sentido estrito) - e de se encontrar sempre teleologicamente ordenado (por uma norma jurídica, também) à prossecução de um certo e determinado interesse, o exercício de poderes discricionários conhece limites jurídicos internos, que funcionam irremediavelmente como parâmetro da validade das respectivas decisões administrativas.
O que sucede é que - ao contrário do poder vinculado - a opção em que se manifesta ou concretiza o exercício desses poderes, tendo sido cometida pelo legislador à responsabilidade da Administração, só em certas circunstâncias pode ser judicialmente sindicável. Não porque se trate de um «resto» menosprezado pelos tribunais, não porque a complexidade (a «tecnicidade») da questão iniba totalmente o juiz, mas, repete-se, porque o legislador, intencionalmente, quis atribuir à Administração, em última instância, uma competência decisiva nessa matéria, confiante em que ela saberá fazer um uso correcto dos conhecimentos (administrativos, financeiros, técnicos, etc.) de que dispõe para escolher a decisão concreta que melhor realiza o interesse em vista do qual essa competência lhe foi atribuída.
Sendo que tudo o que nessa opção ou escolha só for confrontável com juízos de mérito, com regras de boa administração, com esta ou aquela arte ou técnica, escapa por natureza à função judicial, à iurisdictio - à qual compete (apenas) declarar e fixar o Direito para uma dada hipótese.
E portanto de duas, uma: ou há (invoca-se que há) vínculos jurídicos a condicionar, de qualquer modo, a actuação da Administração no caso em apreço, e pede-se ao tribunal que averigue da sua existência e (em caso afirmativo) que os torne efectivos, ou não há vínculos desses e o Tribunal só pode abster-se de julgar a conduta administrativa. Naqueles aspectos em que as decisões concretas da Administração relevam de uma qualquer opção discricionária ou de uma margem de apreciação ou valoração autónoma, os tribunais administrativos - não conseguindo formular sobre essa opção um juízo de desconformidade com o bloco legal que lhe é aplicável - ficam, por lei, proibidos de exercer um controlo sobre elas.
Um exemplo demonstra bem o cerne da distinção: se, num concurso de uma empreitada de obra pública, a proposta de realização da obra segundo o projecto de um concorrente é classificada tecnicamente, pelo júri, com 18 valores, e outra com 10 valores, não é dado ao concorrente que apresentou esta arguir, nem ao tribunal averiguar, que (se) a diferença entre ambas não é dessa monta, que é antes de 16 para 12 ou de 14 para 13, porque se trata de uma questão de conveniência ou mérito da respectiva opção administrativa, em suma, de um caso de discricionariedade técnica, de a Administração entender que com os materiais ou os processos construtivos da primeira proposta a obra ficará «a valer» tecnicamente 18 valores, e com os do outro concorrente só 10 - do mesmo modo que um aluno não pode arguir judicialmente com fundamento apenas num juízo diverso daquele que o seu examinador formulou (salvo em casos de erro grosseiro, claro) que a prova escrita de exame que prestou era merecedora de uma nota positiva, em vez daquela negativa que lhe foi atribuída.
(…) Do mesmo modo que não se pode reconhecer que uma prova de exame é certeira na maior parte e nas mais importantes das questões postas, sem padecer de erros graves, e atribuir-lhe uma nota negativa, porque aí também já são regras ou princípios jurídicos - como os da racionalidade ou da proporcionalidade - que são violados, e não meras opções técnicas (ou de mérito) tomadas pela Administração.
III. A judicial restraint decretada pelo legislador no art. 3.°/1 do CPTA, impondo ao tribunal que circunscreva os seus juízos à interpretação e aplicação das normas e princípios jurídicos, vale para todas as formas por que se revela a actividade administrativa, desde o acto administrativo até à mera operação material (ou acto jurídico), passando pelo contrato e também pela actividade de produção normativa da Administração Pública, em especial, pela chamada actividade de planeamento (e a sua célebre «cláusula de ponderação de interesses»). Em todos estas formas ou manifestações da actividade administrativa há ou pode haver momentos de discricionariedade (tudo depende do caso), para os quais valem, então, as determinações deste art. 3. °/1 do CPTA.
Por outro lado, a hetero-contenção judicial aí consagrada é, por nós, alheia ou indiferente às várias posições doutrinais sobre o conceito (e âmbito) da discricionariedade. Há, de facto, quem distinga discricionariedade em sentido próprio ou estrito, figuras afins ou próximas da discricionariedade, interpretação ou aplicação de conceitos jurídicos indeterminados ou de conceitos técnicos, e há também quem englobe todas as situações referidas num conceito amplo de discricionariedade.
Seja porém qual for o entendimento que se tenha sobre tão complicado problema, o que releva para efeitos da constrição judicial estabelecida neste preceito legal, e da distinção aí inscrita, é que (por interpretação da norma em causa) se possa descortinar uma intenção legislativa de reconhecer à Administração um campo próprio e autónomo de apreciação e valoração, típico e específico do exercício da função administrativa, confiado à responsabilidade e entregue aos juízos do agente administrativo. Acontecendo isso, o juiz deverá respeitar a lei, abstendo-se de (des)valorizar, ele próprio, a opção feita pela Administração.
(…)
IV. O juiz não pode opor às opções discricionárias da Administração os seus próprios juízos de oportunidade ou conveniência, do tipo «se fosse eu, não teria mandado construir a estrada ou a ponte naquele local, mas noutro, bem melhor do ponto de vista urbanístico, rodoviário ou ambiental», ou coisa similar.
Mas pode e deve opor-lhe os «seus» juízos jurídicos, o paradigma de juridicidade que haja elaborado a partir das regras e princípios aplicáveis ao caso, e anular as decisões administrativas discricionárias que se não conformem com ele.
O que acontecerá sempre que (mas apenas quando) seja desrespeitado um dos pressupostos ou limites jurídicos do tal poder discricionário, permitindo detectar ou assinalar um vício jurídico à opção em que ele se haja materializado.
É o caso, entre outros:
i) do abuso do poder discricionário, mais conhecido entre nós por desvio de poder (que tem lugar quando o motivo principalmente determinante da actuação administrativa não condiga com "le but de la loi");
ii) do chamado erro de facto (quando se dão como verificados factos ou circunstâncias que não ocorreram, pelo menos como descritos, e se assumem como fundamento da opção administrativa);
iii) do erro manifesto de apreciação, resultante de um muito deficiente juízo técnico ou de valor, abrangendo as situações de «atrofia do poder discricionário» ou de redução de discricionariedade a zero (ver Hartmut Maurer, Droit Administratif Allemand, 1994, p. 135 e s.);
iv) da violação (que, em princípio, deverá ser flagrante e ostensiva) dos princípios gerais da actividade administrativa, da justiça, imparcialidade, proporcionalidade, racionalidade, igualdade, razoabilidade e boa fé ;
(…)
Basta ver o que se passa com a entrada galopante do princípio da proporcionalidade no seio do Direito Administrativo (erigido em parâmetro da validade jurídica da actividade administrativa pelo art. 266.°/2 da CRP e pelo art. 5.°/2 do CPA), cujas proposições jurídicas acabam, em parte, por sobrepor-se ou equiparar-se a outras tipicamente administrativas, associadas ao mérito ou demérito da opção do agente administrativo.
Assim, para averiguar se uma conduta da Administração é (des)proporcionada, o tribunal tem que ajuizar, sucessivamente, se a opção da Administração serve objectivamente, na prática, para realizar o interesse público em causa - portanto, se é adequada, conveniente e oportuna -, se, servindo, ela é necessária para o efeito (ou se havia outras opções menos drásticas, mas igualmente eficientes para realizar o interesse público em causa) e, em terceiro lugar, se as vantagens para o interesse público da medida escolhida são proporcionais à «carga coactiva» (Gomes Canotilho) que a mesma representa - ou, numa outra perspectiva, raramente lembrada, se «carga» dessa medida para o interesse público é proporcionada à utilidade social ou individual da mesma. E se, no termo disso, o tribunal chegar à conclusão que não se verifica qualquer uma das referidas premissas anula o acto administrativo em causa por violação do princípio da proporcionalidade.
Não é pouco, como se vê, o que sobre o «mérito» da actividade administrativa vai envolvido no juízo do tribunal a tal propósito.
Justamente por isso, para evitar que o teste da proporcionalidade acabe por transformar-se numa espécie de «cavalo de Tróia», por onde os tribunais facilmente invadiriam a «cidade» do mérito da Administração, há-de exigir-se que a violação desse princípio (e doutros, afins) só constitua fundamento jurídico da invalidação dos actos administrativos, em geral, quando seja concretamente ostensiva ou manifesta (…).” (sublinhados nossos).

E como ainda a este propósito explicitam Fernanda Paula Oliveira e José Eduardo Figueiredo Dias, Noções Fundamentais de Direito Administrativo, 2016, 4ª Edição:
- A págs. 126 e 127, “Do ponto de vista teórico, há dois princípios jurídicos fundamentais que se contrapõem no sentido de reconhecer uma menor ou maior extensão ao poder discricionário da Administração: o princípio do Estado de Direito e o princípio da separação de poderes.
(…)
De acordo com o princípio da separação de poderes a ideia é precisamente a oposta: proclama-se uma maior autonomia e uma responsabilidade própria da Administração (não se pode pretender que ela seja o que nunca foi: totalmente executiva), uma vez que o poder administrativo tem legitimidade e autonomia próprias em face dos outros dois tradicionais poderes do Estado: o legislativo e o judicial.
Realça-se, assim, a necessidade de reconhecer a legitimidade da Administração em face do poder legislativo: este exprime os seus comandos através de regras gerais e abstratas, ao passo que a Administração está em contacto com os casos concretos, devendo ser-lhe reservada a aplicação das finalidades gerais aos casos concretos.
Relativamente ao poder judicial, sublinha-se a necessidade de evitar uma “dupla Administração” que existiria se o juiz estivesse sempre em condições de anular as escolhas administrativas, substituindo pelos seus próprios critérios aqueles que foram utilizados pela Administração. Neste sentido, entende-se que a Administração é também responsável pela realização da ideia de Direito, pela realização e concretização deste.
A Administração tem perante a Constituição uma dignidade igual à do poder legislativo e à do poder judicial. Da mesma forma que ela não pode assumir um poder constitucionalmente atribuído aos outros poderes estaduais, estes também não podem intervir na esfera reservada à Administração.
O princípio da separação dos poderes acaba por ser o grande fundamento do poder discricionário: a Administração é responsável pela prossecução do interesse público, devendo fazer as escolhas e tomar as decisões nesse sentido, estando o juiz responsabilizado pelo controlo (atenuado, como veremos) da juridicidade dessas decisões.
Na linha deste raciocínio é comum sublinhar-se a legitimidade democrática dos órgãos administrativos (muito mais marcada do que aquela de que gozam os tribunais), a capacidade técnica desses mesmos órgãos, fundamental para tomar decisões com fortes componentes técnicas e ainda a irrepetibilidade das decisões administrativas, a responsabilidade pelas suas opções e a maior proximidade da Administração à realidade dos factos” (sublinhados nossos);
- A pág. 137, “a) A posição que defendemos (na linha da conceção preconizada entre nós por Rogério Soares) é a de um conceito unitário e amplo de discricionariedade como um espaço de decisão da responsabilidade da Administração, decorrente de uma indeterminação legal, o que abrange não apenas as situações de indeterminação estrutural mas também as de indeterminação conceitual, englobando quer as faculdades (diretas) de ação (que decorrem de normas autorizativas e de normas de decisão alternativa) quer os espaços de apreciação na aplicação de conceitos indeterminados - quer estes se encontrem na hipótese (discricionariedade de apreciação) quer na estatuição da norma (discricionariedade de decisão) -, quer ainda as prerrogativas de avaliação (juízos sobre aptidões pessoais ou avaliações técnicas especializadas, decisões com elementos de prognose, ponderação de interesses complexos e decisões com consequências políticas).” (sublinhados nossos);
- E a págs. 140 a 142, “a) Se é clara a juricidade do poder discricionário, importa contudo perguntar pela sua justiciabilidade, isto é, pela suscetibilidade do seu controlo jurisdicional. Ora, não há dúvida de que, ao contrário do que defendem algumas teorias, o exercício de poderes discricionários é suscetível de fiscalização pelo juiz. A questão está em saber até onde podem ir os tribunais administrativos quando estão em causa os poderes discricionários da Administração.
É frequente falar-se de duas formas de controlo a exercer pelos tribunais.
No contexto de um controlo externo, tendo em conta que nenhum ato é absolutamente discricionário, contendo sempre alguns aspetos vinculados, será sempre possível controlá-lo no que toca aos fins e competências estipulados na forma legal. O controlo desses momentos vinculados da atuação administrativa quando está em causa a prática de um ato discricionário não tem contornos especiais relativamente aos atos vinculados. Assim, se o órgão que atuou não era competente ou não dispunha de legitimação para agir, o tribunal administrativo anulará o ato praticado, por vício de incompetência, exactamente nos mesmos termos em que o anularia se o órgão estivesse a agir ao abrigo de poderes vinculados. Também se se demonstrar que a Administração se serviu dos poderes discricionários para prosseguir interesses (públicos ou privados) diferentes daqueles que a lei tinha em vista ao conceder-lhe tal competência discricionária, o tribunal anulará o ato praticado por desvio de poder subjetivo. (…)
Já no que concerne ao chamado controlo intrínseco, onde se coloca à prova o próprio uso dos poderes discricionários, a dificuldade é maior. Naturalmente que o parâmetro de controlo não pode agora ser a lei, pois ela é aqui, como já dissemos, deliberadamente lacunosa. O critério de controlo é mais vago e ao mesmo tempo mais abrangente, sendo constituído pelos princípios jurídicos que, como dissemos, devem nortear a Administração ao decidir com base em poderes discricionários, sendo necessário analisar todo o processo que antecede os atos administrativos, bem como a fundamentação que os justifica. Todavia, só a violação ostensiva ou intolerável destes princípios (desvio de poder objetivo) poderá basear a anulação jurisdicional dos atos praticados ao abrigo de poderes discricionários, sob pena de os tribunais administrativos praticarem uma “dupla administração” ao pronunciarem-se sobre o mérito das decisões administrativas. A intolerabilidade da violação de tais princípios variará na medida da densidade do princípio em causa e dos circunstancialismos concretos em presença.
Deve, em todo o caso, relembrar-se que grande parte dos “princípios gerais de direito administrativo” tem hoje expressa consagração constitucional (artigo 266º, nº 2) e/ou legal (artigos 3º a 19º do CPA), o que facilita a tarefa do julgador.
Para além disso, os atos praticados ao abrigo de poderes discricionários podem ser anulados com base em erro de facto, se a Administração baseou a sua decisão em factos inexistentes ou falseados, ou em erro manifesto de apreciação, quando se toma evidente que a Administração avaliou ou qualificou mal a realidade (está aqui em causa um “juízo valorativo”), embora se tenha baseado em factos verdadeiros, correspondentes à realidade. Não compete aos tribunais substituírem-se à Administração na avaliação da situação, mas compete-lhes anular o ato quando verificarem que a avaliação feita pela Administração é manifestamente desacertada e inaceitável, quando o erro é ostensivo e notório, percetível a uma pessoa sem os conhecimentos da Administração, O campo de eleição para o erro manifesto de apreciação é o do preenchimento de conceitos indeterminados típicos.
O exercício de poderes discricionários por parte da Administração é, pois, suscetível de fiscalização por parte do juiz, mas não de reexame: a maior flexibilidade dos parâmetros usados leva a que se caracterize o controlo judicial dos atos administrativos discricionários como um controlo atenuado. Pode-se, portanto, dizer que os poderes discricionários da Administração implicam uma repartição de competências entre a mesma e os tribunais. Assim, se à Administração cabe a adoção da solução mais adequada a um dado caso concreto, recaindo sobre si a responsabilidade de prosseguir o interesse público, aos tribunais caberá a fiscalização da atuação administrativa, tendo em conta os vários limites que lhe são impostos, mas abstendo-se de se pronunciar sobre a conveniência dessa atuação.
(…)
b) Não se pode, contudo, confundir juridicidade com justiciabilidade: o mundo jurídico é sempre mais vasto do que o justiciável. Toda a actividade administrativa está sujeita ao princípio da juridicidade mas nem toda ela é justiciável: não existe por isso, como vimos, um controlo total da atividade administrativa pelos tribunais.” (sublinhados e sombreados nossos).

Ora, no caso em apreciação não se pode considerar que a aplicação da pena de suspensão pelo período de 2 anos se consubstancie numa violação ostensiva do princípio da proporcionalidade, pelas razões a seguir enunciadas.

A moldura sancionatória para a infracção disciplinar pela qual o recorrido foi condenado é - no que respeita à pena de suspensão - de 1 a 4 anos.

A determinação da medida concreta da pena faz-se em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuras infracções disciplinares, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de infracção, militem a favor do agente ou contra ele [cfr. art. 41º n.ºs 1 e 2, do Regulamento Disciplinar da FPF (versão 2006)].

À culpa compete fornecer o limite máximo da pena que ao caso deve ser aplicada (este princípio da culpa decorre da inviolabilidade da dignidade humana, tendo como função a proibição de excesso, constituindo um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas, sejam de prevenção geral sejam de prevenção especial), sendo que as exigências de prevenção geral fornecerão o limiar mínimo abaixo do qual já não é suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar e as exigências de prevenção especial permitirão determinar, em último termo, a medida da pena (tendo em conta os referidos limites: o máximo fixado pela medida da culpa que não poderá em caso algum ser ultrapassado e o mínimo fixado pelas exigências de prevenção geral) – cfr. art. 40º n.ºs 1 e 2, do Cód. Penal, ex vi art. 40º, do Regulamento Disciplinar da FPF (versão 2006), Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral, Tomo II - As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, págs. 73, 215, 218, 219, 227, 229, 230, 231, 238, 242 e 243, e Anabela Miranda Rodrigues, A Determinação da Medida Concreta da Pena Privativa de Liberdade e a Escolha da Pena: anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de Março de 1990 (3.ª Secção - Processo n.º 40639), in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano I, Fasc. n.º 2 (Abril-Junho 1991), págs. 250 a 253.

Ora, tendo em conta que, conforme consta do acórdão de 5.5.2017 do Conselho de Disciplina da FPF - e pelas razões indicadas no mesmo, as quais foram supra elencadas -, embora as exigências de prevenção especial sejam reduzidas, a culpa do recorrido é elevada e as exigências de prevenção geral são especialmente relevantes - e, portanto, incompatíveis com a fixação da pena de suspensão no seu mínimo ou perto desse mínimo -, não se pode considerar que a pena de suspensão concretamente aplicada de 2 anos - situada no terço inferior da moldura sancionatória (que é de 1 a 4 anos) - se traduz numa violação intolerável do princípio da proporcionalidade, ou seja, inexiste qualquer erro grosseiro ou manifesto em que tivesse incorrido o Conselho de Disciplina da FPF ao fixar a pena de suspensão pelo período de 2 anos.

Pelo exposto, também tem de improceder o presente vício (violação do princípio da proporcionalidade), o que implica que, em substituição, se absolva a recorrente de todos os pedidos formulados pelo recorrido no recurso interposto perante o TAD.

Isenção de custas

Argumentou ainda a recorrente que o acórdão arbitral recorrido enferma de erro ao rejeitar o pedido de isenção de custas que apresentou, salientando que beneficia da isenção de custas prevista no art. 4º n.º 1, als. f) e g), do Regulamento das Custas Processuais (RCP), ex vi art. 80º, al. b), da LTAD [que prevê no âmbito da arbitragem necessária a aplicação subsidiária do Regulamento das Custas Processuais]. Além disso, alegou beneficiar neste TCA Sul da isenção de custas prevista no art. 4º n.º 1, al. f), do RCP.

Apreciando.

O DL 34/2008, de 26/2, o qual entrou em vigor em 20.4.2009 (cfr. o respectivo art. 26º n.º 1, na redacção da Lei 64-A/2008, de 31/12), revogou, através do seu art. 25º n.º 1, “as isenções de custas previstas em qualquer lei, regulamento ou portaria e conferidas a quaisquer entidades públicas ou privadas”, e aprovou o Regulamento das Custas Processuais (RCP) – cfr. o respectivo art. 1º.

Dispõe o art. 4º, do RCP, o seguinte:
1 – Estão isentos de custas:
(…)
f) As pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos, quando actuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável;
g) As entidades públicas quando actuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições para defesa de direitos fundamentais dos cidadãos ou de interesses difusos que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto, e a quem a lei especialmente atribua legitimidade processual nestas matérias;
(…)” (sublinhados nossos).

A isenção de custas prevista na al. g) do n.º 1 deste art. 4º, respeita às pessoas colectivas públicas, que não é o caso da ora recorrente, a qual é uma pessoa colectiva de direito privado – cfr. art. 1º n.º 1, dos Estatutos da FPF [onde se refere nomeadamente que a FPF é uma pessoa coletiva “ constituída sob a forma de associação de direito privado”].

Quanto à isenção de custas prevista na al. f) do n.º 1 do referido art. 4º, a mesma depende da verificação dos seguintes requisitos:
a) tratar-se de uma pessoa colectiva privada sem fins lucrativos;
b) que actue no processo judicial exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos.

Quanto ao requisito supra enunciado sob a alínea a), o mesmo encontra-se preenchido, face ao teor do art. 1º n.º 1, dos Estatutos da FPF [onde se refere nomeadamente que a FPF é “uma pessoa colectiva sem fins lucrativos”].

Relativamente ao requisito acima enumerado sob a alínea b), e como esclarece Salvador da Costa, Regulamento das Custas Processuais, Anotado, 2013, 5ª Edição, págs. 159 e 160:
Esta isenção é motivada pela ideia de estímulo ao exercício de funções públicas por particulares que, sem espírito de lucro, realizam tarefas em prol do bem comum, o que à comunidade aproveita e ao Estado incumbe facilitar, pelo que lhe subjaz o desiderato de tutela do interesse público.
É subjectiva, condicionada às circunstâncias de não terem fins lucrativos e de aquelas entidades atuarem nos processos judiciais, do lado activo ou do lado passivo, no âmbito das suas especiais competências ou para defender os interesses comunitários que lhe estão especialmente conferidos.
Dada a sua estrutura e fins, essas associações e fundações beneficiam da isenção de custas a que se reporta este normativo nas acções relativas à defesa e promoção dos seus interesses específicos, naturalmente sob a envolvência do interesse público.
É uma isenção de custas restrita, na medida em que funciona em relação aos processos concernentes às suas especiais atribuições ou para defesa dos interesses conferidos pelo respectivo estatuto, ou pela própria lei, que coincidam com o bem comum.
Considerando a história deste preceito, reportado às instituições particulares de solidariedade social e às pessoas coletivas de utilidade pública administrativa, reponderando, propendemos em considerar que esta isenção não abrange as ações que não tenham por fim direto a defesa de interesses que lhe estão especialmente confiados pela lei ou pelos seus estatutos.” (sublinhados e sombreados nossos).

A FPF, ora recorrente, de acordo com o prescrito no art. 2º n.º 1, dos respectivos Estatutos, tem por principal objecto promover, regulamentar e dirigir, a nível nacional, o ensino e a prática do futebol, em todas as suas variantes e competições.

Ora, a recorrente, no TAD (e também neste TCA Sul), não litiga em defesa directa das atribuições enunciadas no parágrafo anterior, pois está em juízo em defesa directa e imediata da legalidade do acórdão do respectivo Conselho de Disciplina de 5.5.2017, estando em causa saber se tal acórdão é ou não válido e intervindo a ora recorrente no TAD (e também neste TCA Sul) com a legitimidade geral que lhe confere o art. 10º n.ºs 1 e 9, do CPTA (no âmbito do TAD aplicável por força do art. 61º, da LTAD), ou seja, decorrente da autoria do referido acórdão de 5.5.2017.

Dito por outras palavras, a ora recorrente contestou o recurso interposto perante o TAD (bem como interpôs o presente recurso jurisdicional) não para defender interesses ou atribuições que lhe estão especialmente cometidos pelo respectivo estatuto ou legislação que lhe é aplicável, mas apenas para se opor à invalidação do acórdão do respectivo Conselho de Disciplina de 5.5.2017, invocando que o mesmo não padece de qualquer vício.

Conclui-se, assim, que a actuação da ora recorrente também não se encontra contida na isenção prevista no art. 4º n.º 1, al. f), do RCP.

Finalmente alega a recorrente que a negação de tal isenção perante o TAD viola designadamente os arts. 13º, 20º n.ºs l e 2 e 268º n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, uma vez que introduz uma desigualdade no acesso à justiça face aos demais intervenientes e agrava a sua situação face ao enquadramento legal que existia antes da existência de uma instância arbitral obrigatória, mas sem razão, dado que, antes da existência da arbitragem necessária, a recorrente era demandada nos tribunais administrativos de 1ª instância onde não beneficiava de isenção de custas ao abrigo do art. 4º n.ºs 1, als. f) e g), do RCP, conforme supra explicitado.

Do exposto resulta que o TAD bem andou ao indeferir o pedido de isenção de custas formulado pela ora recorrente, pelo que nesta parte tem de improceder o presente recurso jurisdicional – neste sentido, Ac. deste TCA Sul de 1.6.2017, proc. n.º 57/17.5 BCLSB [“II – A Federação Portuguesa de Futebol não beneficia da isenção de custas prevista no art. 4º n.º 1, al. g), do RCP, já que é uma pessoa colectiva de direito privado. III – A actuação da Federação Portuguesa de Futebol que, no Tribunal Arbitral do Desporto (e também neste TCA Sul), litiga em defesa directa e imediata da legalidade do acórdão do respectivo Conselho de Disciplina, opondo-se à sua invalidação, e com a legitimidade geral que lhe confere o art. 10º n.ºs 1 e 9, do CPTA - ou seja, decorrente da autoria do referido acórdão -, não integra a previsão do art. 4º n.º 1, al. f), do RCP, pois aquela não litiga em defesa directa das atribuições que lhe estão especialmente cometidas pelo respectivo estatuto (promover, regulamentar e dirigir, a nível nacional, o ensino e a prática do futebol, em todas as suas variantes e competições) ou legislação que lhe é aplicável”].
*
A recorrente e o recorrido deverão suportar as custas na proporção do respectivo decaimento, ou seja, de 1/10 e 9/10, respectivamente, nesta instância recursiva e perante o TAD (cfr. art. 527º n.ºs 1 e 2, do CPC de 2013, ex vi art. 1º, do CPTA, e art. 80º, al. a), da LTAD).
III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em:
I – a) Conceder parcial provimento ao presente recurso jurisdicional:
- declarando nulo o acórdão arbitral recorrido na parte em que apreciou a questão relativa à (des)necessidade de devolução do processo ao Conselho de Disciplina;
- revogando o acórdão arbitral recorrido no segmento em que declarou a nulidade do acórdão proferido pelo Conselho de Disciplina no processo n.º 53 (2012/2013) e revogou as sanções aplicadas ao recorrido;
b) Em substituição, julgar improcedentes os vícios imputados ao acórdão proferido pelo Conselho de Disciplina no processo n.º 53 (2012/2013) e não apreciados no acórdão arbitral recorrido e, consequentemente, absolver a recorrente de todos os pedidos formulados pelo recorrido no recurso interposto perante o TAD.
II – Condenar a recorrente e o recorrido nas custas na proporção de 1/10 e 9/10, respectivamente, nesta instância recursiva e no TAD.
III – a) Registe e notifique.
b) Após trânsito comunique a presente decisão ao TAD.
*
Lisboa, 15 de Fevereiro de 2018




(Catarina Gonçalves Jarmela - relatora)



(Conceição Silvestre – 1ª adjunta)



(Carlos Araújo – 2º adjunto)