Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2170/19.5BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:05/14/2020
Relator:SOFIA DAVID
Descritores:PROCEDIMENTO ESPECIAL DE DETERMINAÇÃO DO ESTADO-MEMBRO RESPONSÁVEL PELA APRECIAÇÃO DO PEDIDO DE PROTECÇÃO INTERNACIONAL;
ITÁLIA;
TRANSFERÊNCIA PARA O ESTADO-MEMBRO INICIALMENTE DESIGNADO COMO RESPONSÁVEL
Sumário:

I - O art.º 3.º, n.º 2, do Reg. n.º 604/2013, de 26/06, determina uma verdadeira obrigação legal dos Estados-Membros apreciarem acerca da eventual ocorrência de falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes de protecção internacional, antes de procederem à transferência daqueles para outro Estado-Membro em obediência aos critérios indicados no Capitulo III do Regulamento;
II – Se face às declarações do requerente de protecção se constata que após a sua entrada e permanência em Itália, aí foi-lhe prestado alojamento, assistência médica e comida, fica arredada a possibilidade de o retorno a Itália poder sujeitá-lo a tratamentos desumanos ou degradantes, decorrentes de eventuais falhas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento.
Votação:MAIORIA, COM VOTO DE VENCIDO
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul
I - RELATÓRIO
O Ministério da Administração Interna (MAI) interpôs recurso da sentença do TAC de Lisboa, que julgou procedente a presente acção onde o A. e Recorrido impugnava o despacho da Directora Nacional (DN) do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), de 04/11/2019, que considerou inadmissível o pedido de protecção internacional formulado pelo ora Recorrente e ordenou a sua transferência para Itália, por ser esse o país responsável pela sua retoma a cargo. Na sentença recorrida determinou-se, a final, a condenação do MAI a reconstituir o procedimento de determinação do Estado Membro responsável pela análise do pedido de protecção internacional, procedendo à sua instrução cabal para efeitos de determinar se se encontram preenchidos os pressupostos de aplicação da cláusula de salvaguarda constante do art.º 3.º/2 do Regulamento Dublin III relativamente à prefigurada transferência para Itália e a condenação do MAI a apreciar as informações coligidas e decidir de acordo com os critérios decorrentes da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia ─ em diálogo com o TEDH ─, uma vez que está em causa aplicação de direito da União, sendo imposta a observância do sentido e âmbito dos direitos fundamentais em causa garantidos pela CEDH.

O Recorrente formulou as seguintes conclusões de recurso: “1ª - A ora recorrente discorda do entendimento vertido na douta Sentença ora a quo.
- O ora recorrente deu início ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de asilo, que culminou com o apuramento de que essa responsabilidade pertencia a Itália (cf. art.º 25º, n.º 2 do citado Regulamento (UE) 604/2013 e art.º 37.º , nº 1 da Lei n.º 27/2008 (Lei de Asilo)), impondo a lei como consequência imediata (vinculada) que fosse proferido o ato de inadmissibilidade e de transferência;
3ª - De harmonia com o art. 25.º nº 2 do Regulamento Dublin e o art. 37º, nº 1 da Lei de Asilo, o ora recorrente procedeu à determinação do Estado-Membro (E.M.) responsável pela análise do pedido de asilo, procedimento regido pelo art.º 36º e seguintes da Lei 27/2008, de 30 de junho, tendo, no âmbito do mesmo sido apresentado, aos 20/09/2019, pedido de retoma a cargo às autoridades italianas, o qual foi tacitamente aceite.
- Consequente e vinculadamente, por despacho do recorrente, nos termos dos arts. 19º-A, nº 1, a) e 37º nº 2 da citada lei, foi o pedido considerado inadmissível e determinada a transferência do requerente para Itália, E.M. responsável pela análise do pedido de Asilo nos termos do citado regulamento, motivo pelo qual o Estado português se torna apenas responsável pela execução da transferência nos termos dos arts. 29º e 30º do Regulamento de Dublin;
5ª - Com a devida Vénia, afigura-se ao recorrente que a Sentença, ora objeto de recurso, carece de fundamentação legal, porquanto não logrou fazer a melhor interpretação do regime que regula os critérios de determinação do estado membro responsável, em conformidade com o Regulamento (EU) que o hospeda.
6ª - Estamos perante um procedimento em que o E.M. responsável já estava determinado, sendo este Estado a Itália, Estado onde foi apresentado o pedido de proteção internacional. Ao deslocar-se para Portugal, cabe às autoridades portuguesas, ora Recorrente, aplicar vinculadamente as regras da retoma a cargo, previstas no art. 23º do Regulamento (UE) nº 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de julho, e ao Estado italiano cumprir com as obrigações previstas no artigo 18º, do mesmo Regulamento.
7ª - No caso em escrutínio, e em cumprimento do disposto no art.º 5.º do Regulamento 604/2013 ex vi art. 36.º, n.º 1 da Lei 27/2008, foi realizada entrevista pessoal ao requerente que deu origem ao respetivo Relatório; do qual constam as principais informações facultadas pelo requerente;
8ª – No tocante ao sistema de análise dos pedidos de asilo na Itália, nos elementos constantes nos autos, inexistem quaisquer indícios que permitam concluir pela existência de falhas sistémicas no procedimento de Asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes, que impliquem um risco de tratamento desumano ou degradante, ou que dadas as particulares condições do recorrido a transferência implique um risco sério e verosímil de exposição a um tratamento contrário ao art.º 4º da CDFUE, nem risco objetivo (direto ou indireto) de reenvio para o país de origem, para que Portugal não proferisse a decisão de transferência ora impugnada, motivos esses que o recorrido não invocou quando efetuou pedido de proteção internacional”.
O Recorrido não contra-alegou.
O DMMP pronunciou-se no sentida da procedência do recurso.

II – FUNDAMENTAÇÃO
II.1 – OS FACTOS
Na decisão recorrida foi dada por assente, por provada, a seguinte factualidade, que não vem impugnada em recurso:
a) O Autor, M..............., é natural de Fanca e nacional da Guiné-Bissau ─ cfr. informações constantes do PA.
b) O Autor apresentou por escrito, junto dos serviços do R., a 10/10/2019, pedido de asilo e protecção do Estado Português, o qual deu origem ao processo de asilo n.º 1615TN/19 ─ fls. 2, 4 a 6 e13 do PA.
c) Foi consultado o sistema EURODAC e foi detetado um Hit positivo com o n.º de referência: I..............., inserido pela Itália, em Biella, a 01/06/2016 ─ cfr. fls. 3 do PA.
d) A 10 de Outubro de 2019, pelas 15h20m, o A. prestou declarações junto do SEF, em língua mandinga, por assim ter solicitado, na presença de nome M............... ─ fls. 15 e ss. do PA.
e) Durante a entrevista, o Requerente foi perguntado sobre a sua passagem por países europeus com a indicação de que tinha sido encontrado um registo na base de dados de impressões digitais Eurodac recolhido em Itália a 1 de Junho de 2016; referiu, a esse propósito que havia estado em Itália até Setembro de 2019, primeiro num campo e depois num campo de refugiados, sempre na Sicília, onde tinha alojamento, assistência médica e comida; que ficou por Itália até que um dia dois trabalhadores do campo lhe vieram dizer que tinha de sair.
f) Referiu ainda o seguinte:


«imagem no original»







g) As declarações prestadas foram lidas ao A. em língua mandinga, que compreende e na qual se expressa — fls. 22 do PA.
h) Foi organizado o processo de determinação de responsabilidade pela análise do pedido de protecção internacional ─ que recebeu o n.º 02104/19 ─ e a 18 de Outubro de 2019 o Gabinete de Asilo e Refugiados do SEF efectuou um pedido de retoma a cargo do Autor às autoridades italianas, invocando o art.º 18.°/1/b) do Regulamento (UE) n.º 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho — cfr. fls. 30 a 34 do PA.
i) A 4 de Novembro, as autoridades portuguesas informaram as autoridades italianas de que consideravam que, por nada terem dito durante duas semanas, à luz do art.º 25.º/2 do Regulamento Dublin, estas tinham concordado em retomar a cargo o cidadão estrangeiro em causa — cfr. fls. 35 do PA.
j) Na mesma data, foi elaborada proposta de decisão (informação n.º 1968/GAR/2019), com base na qual foi proferida, nesse mesmo dia, decisão do seguinte teor: «De acordo com o disposto na alínea a) do n.º 1, do artigo 19.º - A e no n.º 2 do artigo 37.º, ambos da Lei n.º 27/08, de 30 de Junho, alterada pela Lei n.º 26/2014 de 05 de Maio, com base na informação n.º 1714/GAR/2019 do Gabinete de Asilo e Refugiados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, considero o pedido de protecção internacional apresentado pelo cidadão que se identificou como M..............., nacional da Guiné-Bissau, inadmissível.
Proceda-se à notificação do cidadão nos termos do artigo 37.º, n.º 3, da Lei n.º 27/08 de 30 de Junho, com as alterações introduzidas pela Lei 26/14 de 5 de Maio, e à sua transferência, nos termos do artigo 38.º do mesmo diploma, para a Itália, Estado Membro responsável pela análise do pedido de protecção internacional nos termos do Regulamento (UE) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de Junho.
Lisboa, 04-11-2019
A Diretora Nacional– fls. 38-42 do PA.
k) Tal Decisão foi transmitida ao Autor, a 4 de Novembro de 2019, pela leitura da notificação da mesma em língua mandinga «que compreende ou seja razoável presumir que compreenda», tendo-lhe sido entregue cópia da decisão e da informação referida em j) – conforme auto de notificação a fls. 43 do PA.
l) A 01/06/2018, foi publicado na página oficial do Jornal Folha de S. Paulo na internet, no endereço https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/06/expulsar-imigrantes-sera-prioridade-diz-novo-ministro-do-interior-italiano.shtml, o artigo intitulado "Expulsar imigrantes será prioridade, diz novo ministro do Interior italiano" cujo teor se dá por reproduzido e da qual constam, entre outras, as seguintes referências: «(…)Além de aumentar as expulsões, o novo ministro disse nessa sexta (1º), após ser empossado, que pretende reduzir o número dos que chegam e os recursos gastos pelo país com refugiados e solicitantes de asilo».
m) A 28/08/2017 foi publicada, na página oficial do Jornal Expresso, notícia sob o título “PM italiano debate migrações com parceiros da EU e África perante grande protesto de apoio a refugiados”, [disponível em https://expresso.pt/internacional/2017-08-28-PM-italiano-debate-migracoes-com-parceiros-da-UE-e-Africa-perante-grande-protesto-de-apoio-a-refugiados ], cujo teor se dá por reproduzido e da qual constam, entre outras, as seguintes referências: «(…) Entre janeiro e junho deste ano, quase 100 mil requerentes de asilo desambarcaram na costa italiana e as autoridades continuam sem conseguir garantir o acolhimento e integração destas pessoas.// (…) No sábado, milhares de requerentes de asilo e italianos que saíram em sua defesa marcharam pela capital com cartazes onde se lia "Os refugiados não são terroristas", exigindo o fim dos despejos e garantias de habitação adequada aos requerentes de asilo – depois de, na véspera, o conselho municipal de Roma, cuja câmara é liderada pelo movimento populista Cinco Estrelas, ter chegado a um acordo com a empresa
que detém o edifício em causa para que 40 refugiados idosos, doentes e menores possam continuar a viver ali nos próximos seis meses enquanto aguardam novas casas».
n) A 21 de Agosto de 2018, no mesmo site, foi publicada notícia sob o título “Itália. 177 migrantes só desembarcam se UE mostrar “espírito de solidariedade”, diz Salvini”, [disponível em https://expresso.pt/internacional/2018-08-21-Italia.-177-migrantes-so-desembarcam-se-UE-mostrar-espirito-de-solidariedade-diz-Salvini ], cujo teor se dá por reproduzido e da qual constam, entre outras, as seguintes referências: «Os migrantes, que se encontram há cinco dias a bordo, não poderão pisar solo italiano até que “a Europa entre em cena para ajudar”, disse Salvini. Em declarações à televisão italiana, o ministro impôs as suas condições: “O navio pode desembarcar em Itália desde que os 177 migrantes sejam distribuídos num espírito de solidariedade da União Europeia.”// (…) Na tarde desta segunda-feira, depois de três dias de negociações, o ministro italiano dos Transportes anunciou que o navio Diciotti atracaria em Catânia, o que acabou por acontecer às 23h53 locais (menos uma hora em Lisboa). Pouco depois, fontes próximas de Salvini fizeram saber que o navio tinha autorização para atracar mas os migrantes teriam de permanecer a bordo. / Na sua maioria provenientes da Eritreia e da Somália, os migrantes “precisam de assistência o mais rapidamente possível”, alertou ao jornal “The Guardian” Giovanna Di Benedetto, porta-voz da organização Save The Children. “Alguns deles passaram vários meses, se não mais de um ano, presos em campos de detenção da Líbia”, acrescentou.»
o) Com data de 22/12/2018, consta na página oficial da SIC Notícias, o artigo sob o título “Portos de Itália fechados a navio com 300 migrantes resgatados no Mediterrâneo” [disponível em https://sicnoticias.pt/especiais/crise-migratoria/2018-12-22-Portos-de-Italia-fechados-a-navio-com-300-migrantes-resgatados-no-Mediterraneo ], cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido e do qual constam, entre outras as seguintes referências: «(…)Os portos de Itália estão fechados para os mais de 300 migrantes resgatados do mar Mediterrâneo pela organização não-governamental Proactiva Open Arms, afirmou hoje o ministro do Interior italiano, Matteo Salvini, depois de Malta ter recusado acolhê-los.»
p) Com data de 23/01/2019, está disponível no endereço https://www.wort.lu/pt/mundo/italia-fecha-centro-para-refugiados-e-despeja-mais-de-500-pessoas-5c48b166da2cc1784e33c406 , o artigo intitulado “Itália fecha centro para refugiados e despeja mais de 500 pessoas”, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido e do qual consta a seguinte passagem: «(…)O Governo italiano está a encerrar um centro de refugiados na cidade de Castelnuovo di Porto, perto de Roma, despejando as mais de 500 pessoas que aí encontravam abrigo. De acordo com o diário britânico The Guardian, trata-se de uma medida adotada no âmbito do "decreto Salvini", aprovado em novembro passado (…).// Salvini justificou a medida com o argumento de que o centro era "um antro de crime e tráfico de droga" e que se seguiria o fecho de outro espaço do género, localizado em Mineo, na Sicília. Além disso, acrescentou que o encerramento permitiria ao Governo poupar seis milhões de euros por ano, verba que pretendia gastar a "ajudar italianos". "Fiz o que qualquer bom pai faria", referiu, citado pelo Guardian.// Porém, Riccardo Travaglini, edil de Castelnuovo di Porto, que chegou a acolher uma refugiada oriunda da Somália em sua casa, teceu duras críticas à medida. "Num só dia arruínam-se anos de trabalho. Estas pessoas estavam já integradas na sociedade", afirmou, referindo-se a vários casos de refugiados que estavam a trabalhar e com os filhos em escolas. O Guardian indica que "muitos estavam em pleno processo de requerimento de asilo ou tinham recebido proteção humanitária que lhes assegurava permanência durante dois anos em função de estarem impossibilitados de voltar a casa por motivos variados". Já Roberto Morassut, do Partido Democrático, comparou a expulsão dos refugiados com "deportações para os campos de concentração dos nazis".//Salvini afirmou que, "todos os que tiverem direitos serão realojados". Quanto aos restantes, confirmou que será iniciado um "processo de deportação". A medida surgiu na mesma altura em que a Alemanha anunciou que se retirava da Operação Sophia, destinada ao combate de tráfico de pessoas no Mediterrâneo desde 2015, precisamente em função da recusa italiana de acolher refugiados nos seus portos. // Desde que foi formado o Governo de coligação entre a Liga, liderada por Salvini, e o M5S de Luigi Di Maio, esta é a maior operação de expulsão de refugiados. O Guardian conta que as pessoas em causa estão a ser retiradas do espaço e enviadas de autocarro para destino desconhecido, tendo ficado determinado que o centro encerraria até ao próximo dia 31.»
q) No site reliefweb, responsável por fornecer informação humanitária no quadro da Agência das Nações Unidas para os Assuntos Humanitários (OCHA), consta referência ao relatório/projecto levado a cabo no seio do Conselho Dinamarquês para os Refugiados nos seguintes termos:
Sumário
Em 2016, o Danish Refugee Council e o Swiss Refugee Council iniciaram um projecto de monitorização conjunta, documentando as experiências de requerentes de asilo transferidos para Itália de acordo com o Regulamento Dublin III. Na sequência do primeiro relatório de monitorização de Fevereiro de 2017, que documentou a situação de seis famílias com filhos menores, o segundo relatório documenta a situação de 13 indivíduos vulneráveis e famílias transferidas para Itália de outros países europeus.
Os 13 casos de estudo demonstram que a recepção de requerentes de asilo vulneráveis transferidos para Itália é arbitrária, apesar das garantias prestadas pelas autoridades italianas na sequência do acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no processo Tarakhel c. Suíça.
Através da monitorização da situação de 13 pessoas transferidas ao abrigo do Regulamento Dublin, o Danish Refugee Council e o Swiss Refugee Council documentam como a muitos é totalmente negado o acesso ao sistema de acolhimento italiano ou necessitam de esperar longos períodos antes de serem alojados, o que dificulta significativamente o acesso efectivo ao procedimento de asilo italiano.
As experiências dos requerentes de asilo que participaram demonstram que, depois de terem acesso a condições de acolhimento, que frequentemente estão longe de ser adequadas para responder às suas necessidades especiais de acolhimento, as pessoas vulneráveis transferidas ao abrigo do Regulamento Dublin ficam em risco de perder o direito a alojamento sem que a sua situação de vulnerabilidade seja devidamente tida em conta.
Ao acompanhar os casos documentados através do projecto de monitorização, o Danish Refugee Council e o Swiss Refugee Council concluíram que é claro que existe um risco real de que não sejam prestadas condições de acolhimento adequadas a requerentes vulneráveis retomados ao abrigo do Regulamento Dublin à chegada a Itália, expondo-os a risco de maus-tratos contrários ao artigo 3.g da CEDH e ao artigo 4.g da Carta dos Direitos Fundamentais da UE.
O risco de violação dos direitos fundamentais das pessoas retomadas ao abrigo do Regulamento Dublin tem aumentado com as alterações ao sistema de acolhimento italiano introduzidas pelo Decreto Salvini, que entrou em vigor a 5 de Outubro de 2018 e que piorou o sistema de acolhimento italiano.
Por fim, as experiências das pessoas transferidas ao abrigo do Regulamento Dublin monitorizadas evidenciam que os Estados-Membros devem cumprir as obrigações a que estão vinculados pelo Regulamento Dublin de assegurar que é dada a devida resposta às necessidades especiais de pessoas retomadas a cargo na sequência de uma transferência Dublin para o Estado-Membro responsável. Como ilustrado pelos casos de estudo deste relatório, aqueles que são responsáveis por dar resposta às necessidades especiais de pessoas vulneráveis transferidas ao abrigo do Regulamento Dublin, parecem frequentemente desconhecê-las, apesar das obrigações que incumbem ao Estado que procede à transferência nos termos dos artigos 31 e 32 do Regulamento Dublin III, segundo as quais têm de transmitir qualquer necessidade especial da pessoa a transferir.
(…)
1.2. Desenvolvimentos políticos recentes e consequências para o sistema de asilo italiano
O número de novos requerentes de asilo registados em Itália diminuiu progressivamente em 2017 e 2018, em parte devido à cooperação das autoridades italianas com as contrapartes líbias. Um Memorando de Entendimento entre as autoridades italianas e líbias foi assinado e entrou em vigor em Fevereiro de 2018 por um período de três anos. 0 Memorando e outras formas de cooperação entre os dois países para travar o fluxo migratório para Itália têm sido fortemente criticados, tanto por organizações internacionais de direitos humanos, como por organizações intergovernamentais. Anteriores acordos semelhantes entre a Líbia de Gaddafi e a Itália foram censurados pelo TEDH na sua decisão no processo Hirsi Jamaa e outros c. Itália, no qual o tribunal decidiu que as parcerias violavam o princípio do non-refoulement e a proibição de expulsões colectivas.
O ACNUR reportou 21.000 novas chegadas por mar a Itália entre Janeiro e Setembro de 2019, em comparação com 105.400 no mesmo período em 2017. Tal não significa, contudo, que a pressão sobre o sistema de asilo italiano tenha desaparecido, uma vez que no final de 2017 ainda estavam pendentes em primeira instância 145.906 pedidos de asilo.
Acresce que o sistema de asilo italiano sofreu alterações significativas desde as eleições nacionais em Março de 2018. Matteo Salvini, da Liga, - que se tornou Ministro da Administração Interna - impulsionou o Decreto sobre Segurança e Migração, também conhecido como Decreto Salvini. O diploma, que entrou provisoriamente em vigor a 5 de Outubro de 2018 e foi aprovado sob forma de lei pelo Parlamento Italiano a 28 de Novembro de 2018, piorou significativamente a situação de requerentes de asilo e migrantes em Itália. 0 Decreto Salvini será analisado com mais detalhe no capítulo 3.19.
Enquadramento jurídico De acordo com a jurisprudência firmada do TEDH, os requerentes de asilo são um grupo particularmente desfavorecido e vulnerável, que necessita de protecção especial, sendo as crianças requerentes de asilo identificadas como grupo extremamente vulnerável, mesmo quando acompanhadas pelos pais. Na decisão no caso MSS, o TEDH concluiu que condições de acolhimento precárias e a ausência de acesso efectivo ao procedimento de asilo podem constituir uma violação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH). No processo Tarakhel c. Suíça, o TEDH afirmou que a determinação do nível de severidade dos maus-tratos e, portanto, [a determinação] de se [estes] enquadram no escopo do artigo 3.9, é relativa e depende de todas as circunstâncias do caso, tais como a duração do tratamento e os seus efeitos físicos ou mentais e, em alguns casos, o género, idade e condição de saúde da vítima. Esta ideia foi reiterada pelo TEDH no processo O.M. c. Hungria, no qual o Tribunal considerou que requerentes de asilo lésbicas, gay, transgénero ou intersexo (LGBTI) também constituem um grupo particularmente vulnerável. 0 Tribunal considerou que, por forma a prevenir situações que possam replicar o sofrimento que levou estas pessoas a fugir, as autoridades devem actuar com particular cuidado no alojamento de requerentes de asilo que alegam integrar um grupo vulnerável no país que tiveram de deixar. A jurisprudência relevante relativa a transferências Dublin de famílias com crianças para Itália, incluindo as decisões do TEDH nos casos Tarakhel c. Suíça e N.A. c. Dinamarca, é descrita no relatório DRMP [Dublin Returnee Monitoring Project] de Fevereiro de 2017, que também inclui normas relevantes relativas aos direitos da criança. 5.Conclusão 5.1. Experiências das pessoas transferidas ao abrigo do Regulamento Dublin monitorizadas
À semelhança dos seis casos acompanhados na primeira monitorização, nenhum dos 13 indivíduos ou famílias vulneráveis monitorizadas para este segundo relatório DRMP teve acesso a condições de acolhimento adequadas à chegada a Itália
(…) Para garantir que os requerentes de asilo, em particular os considerados vulneráveis e com necessidades especiais de acolhimento, têm acesso a condições de acolhimento e cuidados de saúde adequados, o acesso e a qualidade das condições de acolhimento são regulados no plano europeu, em particular pela Directiva Acolhimento (reformulada). Antes do Decreto Salvini, o sistema italiano SPRAR destinava-se a prestar condições de acolhimento adequadas a requerentes de asilo considerados vulneráveis. Na sequência do acórdão Tarakhel, as autoridades italianas garantiram que famílias com crianças seriam alojadas num centro SPRAR após serem transferidas para Itália ao abrigo do Regulamento Dublin III. Todavia, através da monitorização de 13 indivíduos ou famílias vulneráveis transferidas para Itália ao abrigo do Regulamento Dublin III, o DRC e o OSAR confirmaram as conclusões do primeiro relatório DRMP de Fevereiro de 2017, que documentou seis famílias, nenhuma das quais recebeu alojamento, assistência e cuidados adequados à chegada a Itália. Assim, contrariamente às normas relevantes de Direito Internacional, Europeu ou Nacional, nenhum dos 13 indivíduos ou famílias cujas experiências foram descritas neste relatório teve acesso a alojamento adequado à chegada a Itália, o que também aconteceu às seis famílias referidas no primeiro relatório DRMP. Uma vez que as autoridades italianas não suprem as necessidades de acolhimento dos requerentes de asilo em geral, nem as necessidades especiais de requerentes de asilo vulneráveis, apesar de estarem juridicamente obrigadas a fazê-lo, o mero acesso a condições de acolhimento à chegada por uma pessoa vulnerável transferida ao abrigo do Regulamento Dublin parece ser uma questão de sorte. No processo H. e Outros c. Suíça, o TEDH referiu que, apesar de os seis casos documentados no primeiro relatório DRMP não serem insignificantes, o número de casos documentados não era elevado ao ponto de indicar que as garantias prestadas pelas autoridades italianas na sequência do acórdão Tarakhel não eram, em si mesmas, fiáveis. Todavia, tendo documentado mais 13 casos de pessoas vulneráveis transferidas para Itália ao abrigo do Regulamento Dublin, o DRC e o OSAR consideram que é evidente que há um risco real de que não sejam prestadas condições de acolhimento adequadas a pessoas vulneráveis transferidas ao abrigo do Regulamento Dublin aquando da chegada a Itália, expondo-as a risco de tratamento contrário ao artigo 3.g da CEDH e ao artigo 4.- da Carta dos Direitos Fundamentais da UE. Ademais, tal como ilustrado pelos casos de estudo, e contrariamente ao estabelecido pela lei italiana, os requerentes de asilo vulneráveis correm o risco de lhes ser negado ou retirado o acesso ao sistema de acolhimento italiano sem que a sua situação de vulnerabilidade ou o princípio da proporcionalidade sejam tidos em conta, o que pode dificultar significativamente o seu acesso efectivo ao procedimento de asilo. Tendo em conta as condições de acolhimento inadequadas actualmente prestadas nos centros de acolhimento de primeira linha italianos, onde todos os requerentes de asilo, excepto menores não acompanhados são alojados desde 5 de Outubro de 2018, o DRC e o OSAR temem que seja provável que as condições do sistema de acolhimento italiano se deteriorem. Disto decorre, entre outras coisas, que os requerentes de asilo, incluindo as pessoas transferidas ao abrigo do Regulamento Dublin, apenas têm acesso a cuidados de saúde de emergência. No que respeita às obrigações dos Estados-Membros ao abrigo dos artigos 31 e 32 do Regulamento, que vincula o Estado-Membro que executa a transferência a transmitir ao Estado- Membro receptor informação sobre quaisquer necessidades especiais da pessoa a transferir, as experiências de pessoas transferidas ao abrigo do Regulamento Dublin documentadas neste relatório demonstram que os responsáveis por dar resposta às necessidades especiais de acolhimento de pessoas vulneráveis transferidas não têm, frequentemente, conhecimento das mesmas.» [conforme tradução livre fornecida pelo CPR a que a signatária teve acesso no âmbito de outros processos] ─ Fonte: Danish Refugee Council, Swiss Refugee Council, MUTUAL TRUST IS STILL NOT ENOUGH The situation of persons with special reception needs transferred to Italy under the Dublin III Regulation, 12 de Dezembro de 2018, disponível em: https://reliefweb.int/report/italy/mutual-trust-still-not-enough-situation-persons-special-reception-needs-transferred [consultado a 2 de Agosto de 2019]
r) No site European Database of Asylum Law (EDAL), dedicado à recolha de informação actualizada sobre decisões proferidas, designadamente em instâncias jurisdicionais, nos Estados europeus, consta referência a decisão do Tribunal Administrativo do Luxemburgo de 10 de Julho de 2018 nos seguintes termos: «A 10 de Julho, o Tribunal Administrativo do Luxemburgo pronunciou-se no processo 41401/18, relativo a um requerente de asilo Guineense que chegou ao Luxemburgo através de Itália. Alguns meses depois de ter pedido asilo, foi informado de que seria transferido para Itália por existir um primeiro registo das suas impressões digitais no país. O requerente impugnou a decisão enquanto estava em detenção domiciliária devido à sua transferência para Itália. Alegou que as falhas sistémicas em Itália e a falta de condições de acolhimento adequadas não asseguram o respeito pelos seus direitos fundamentais e que a transferência para o país configuraria um risco real de tratamento desumano ou degradante. Respondendo à contestação do governo, o Tribunal reiterou que, não obstante a confiança mútua continuar a ser aplicável a Estados-Membros, esta continua a ser uma presunção ilidível e, à luz da fundamentação to TJUE no processo C-578/2016, deverá ser feita uma análise individual. Prosseguiu examinando provas relevantes sobre a actual situação dos requerentes de asilo no país, incluindo o recente relatório AIDA do ECRE sobre Itália, concluindo que o procedimento de asilo e o sistema de acolhimento efectivamente apresentam várias falhas sistémicas. Notou também que tais falhas são exacerbadas pela actual instabilidade política no país. Afastando o argumento do Governo segundo o qual as alegações do requerente eram demasiados gerais, o Tribunal concluiu que há prova suficiente para considerar que o procedimento de asilo e as condições de acolhimento em Itália são inadequadas, notando que as autoridades italianas não conseguem assegurar acesso a cuidados médicos e condições de vida dignas, criando um possível risco de tratamento desumano ou degradante.» [conforme tradução livre fornecida pelo CPR a que a signatária teve acesso no âmbito de outros processos] Fonte: European Database of Asylum Law (EDAL), Luxembourg-Administrative Tribunal stops Dublin transfer of asylum seeker to Italy, due to country's systemic deficiencies, 10 de Julho de 2018, disponível em: https://www.asylumlawdatabase.eu/en/content/luxembourg-%E2%80%93-administrative-tribunal-stops-dublin-transfer-asylum-seeker-italy-due- country%E2%80%99s [consultado a 2 de Agosto]

II.2 - O DIREITO
As questões a decidir neste processo são:
- aferir do erro decisório porque, no caso concreto, não se verificam quaisquer indícios que permitam concluir pela existência de falhas sistémicas no procedimento protecção e de acolhimento dos requerentes de protecção internacional, que impliquem o risco de tratamento desumano e degradante, com a transferência do requerente de protecção para Itália, sendo, por isso mesmo, aquela obrigação de transferência, um acto vinculado para o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF).

Dos factos provados, não impugnados neste recurso, decorre que o A. e Recorrido formulou em 10/10/2019, junto do SEF, um pedido de protecção internacional.
Iniciada a instrução desse procedimento, verificou-se, que o A. e Recorrido entrou no Espaço Schengen pela fronteira externa da Itália, onde pediu protecção internacional.
Solicitada a retoma a cargo a Itália, este Estado-Membro nada respondeu no prazo legal, de 2 semanas, prazo aplicável por se ter recorrido a dados obtidos através do Sistema Eurodac – cf. art.º 25.º, n.º 1, do Reg. (EU) n.º 604/2013, de 26/06.
Em 10/10/2019, foi realizada uma entrevista com o A. e Recorrido, em língua que entendia, na qual se explicou que o pedido de protecção internacional seria analisado pelo país de entrada no Espaço Schengen. Nessa entrevista, o A. e Recorrente relatou que esteve em Itália até Setembro de 2019, na Sicília, num campo de refugiados onde tinha alojamento, assistência médica e comida. Mais disse o A. e Recorrido, que quando tinha dores de barriga muito fortes, em Itália “levavam-me ao hospital e davam-me medicação para acalmar as dores”.
A decisão da DN do SEF, de 04/11/2019, que considerou inadmissível o pedido de protecção internacional formulado pelo ora Recorrido e ordenou a sua transferência para Itália, por ser esse o país responsável pela sua retoma a cargo, foi tomada no âmbito do procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de protecção internacional, que vem regulado nos art.ºs 3.º, 5.º, 22.º, n.ºs 1 e 7 do Reg. n.º 604/2013, de 26/06 e 37.º a 39.º da Lei n.º 27/2008, de 30/06.
Nos termos dos citados preceitos, se a responsabilidade pela análise do pedido de protecção internacional couber a outro Estado-Membro, o SEF deve suspender o procedimento comum destinado à concessão da protecção internacional que tenha sido requerida em Portugal e deve dar início ao procedimento especial de determinação do Estado responsável – cf. arts.º 3.º, n.º 1, 20.º, n.º 1, 23.º, n.º 1, 25.º, n.ºs 1, 2 do Reg. n.º 604/2013, de 26/06, 36.º, 37.º e 39.º da Lei n.º 27/2008, de 30/06.
Para o efeito, o SEF deve solicitar a esse Estado a retoma a cargo do requerente de protecção, abstendo-se de mais diligências no procedimento comum para a apreciação do pedido de protecção internacional – cf. art.º 37.º, n.º 1, da Lei n.º 27/2008, de 30/06.
Caso as autoridades do Estado-Membro requerido aceitem a retoma a cargo, ou nada respondam no prazo legal – de 1 mês ou de 2 semanas, caso se baseie em dados obtidos através de um Sistema Eurodac - o Director do SEF deve considerar inadmissível o pedido de protecção internacional formulado, nos termos dos art.ºs 19.º, n.º 1, al. a) e 19.º-A e 20.º da Lei n.º 27/2008, de 30/06, determinando a transferência do requerente para o Estado-Membro responsável pela respectiva análise – cf. art.ºs 25.º n.º1, 2, 26.º n.º 1, do Reg. n.º 604/2013, de 26/06, 37.º, n.º 2 e 38.º, da Lei n.º 27/2008, de 30/06.
Ora, esta foi a tramitação ocorrida nos presentes autos.
No art.º 3.º, n.º 1, do Reg. (EU) n.º 604/2013, de 26/06, estipula-se que os pedidos de protecção devem ser analisados por um único Estado-Membro, o determinado de acordo com os critérios enunciados no Capítulo II do Reg. Mas, no n.º 2 do mesmo preceito, acrescenta-se que “caso seja impossível transferir um requerente para o Estado-Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na acepção do artigo 4.°da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável prossegue à análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável".
Por seu turno, no art.º 17.º daquele mesmo Regulamento, sob a epígrafe “Cláusulas Discricionárias”, permite-se a derrogação do estabelecido no art.º 3.º, n.º 1, permitindo a “cada Estado-Membro (…) decidir analisar um pedido de protecção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força dos critérios definidos” no Regulamento.
Como decorre do art.º 5.º do Reg. (EU) n.º 604/2013, de 26/06, requerida a protecção internacional, ocorre uma entrevista pessoal com o respectivo requerente. Essa entrevista serve para ouvir o requerente, para colher as suas informações, mas também para o informar acerca do seu pedido e respectivo enquadramento legal. Tal entrevista servirá, ainda, para recolher do requerente a sua pronúncia acerca da própria decisão a tomar-se no âmbito do procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de protecção internacional.
No caso sub judice, atendendo às declarações do requerente de protecção, constata-se que após a sua entrada em Itália foram-lhe prestadas condições de acolhimento no período de tempo que aí esteve. Segundo o seu relato, em Itália, o requerente de protecção teve alojamento, assistência médica e comida. No restante, o requerente, ora Recorrido, não relata uma única dificuldade sentida nesse país e relacionada com as condições de acolhimento ou do procedimento de asilo.
Portanto, no caso concreto, não se configura uma situação que leve a crer que se o Recorrido retornar a Itália poderá será sujeito a tratamentos desumanos ou degradantes, decorrentes de eventuais falhas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento.
Neste sentido, numa situação similar, já nos pronunciamos nos Acs. n.º 2368/19.6BELSB, de 16/04/2020 e n.º 1300/19.1BELSB, de 27/02/2020.
No restante, o STA, no recente Ac. n.º 02240/18.7BELSB, de 16/01/2020, veio a defender o seguinte: “Ora, resulta dos «considerandos 4 e 5» do Regulamento [EU] 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26.06.2013, que se pretendeu implementar um método claro e operacional para determinar o Estado-membro responsável pela análise dos pedidos de asilo, e que esse método se deverá basear em critérios objectivos e equitativos, de modo a permitir uma determinação rápida do Estado-membro responsável e a não comprometer o objectivo de celeridade no tratamento dos pedidos de protecção internacional.
Daí resultar que apenas em casos devidamente justificados, ou seja, naqueles casos em existam motivos válidos para crer que «há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes» e que tais falhas impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante, nomeadamente por envolver tortura, é que se impõe ao Estado em causa diligenciar pela obtenção de informação actualizada acerca da existência de risco de o requerente ser sujeito a esse tipo de tratamentos. Nestes casos, de ponta, não há quaisquer razões de celeridade e eficiência que possam suplantar a protecção devida ao requerente de asilo.
O que obviamente não ocorre neste caso, no qual as queixas do requerente, relativas à sua permanência em campo de «refugiados», em Itália, e desde logo por falta da sua necessária densificação, não são de molde a induzir qualquer «suspeita séria» - motivos válidos - de vir a sofrer - por parte do Estado Italiano - tratamento «desumano ou degradante», nos termos expostos.
E isto bastaria, a nosso ver, para impor o julgamento de total improcedência da acção, uma vez que não devendo o SEF ser condenado no sentido em que o foi, a sua decisão administrativa está em sintonia com as normas legais em que se louvou.
4. Por seu turno, as notícias pesquisadas oficiosamente pelo tribunal também não são, atento todo o circunstancialismo em que surgem, de forma a impor essa condenação.
Não poderemos escamotear o facto delas se referirem a um Estado-membro da «União Europeia», tal como o Estado Português, responsável desde logo pelo cumprimento da respectiva Carta dos Direitos Fundamentais, bem como noticiarem ocorrências relativas a uma situação inusitada: a do fluxo anormal de imigração ilegal de cidadãos de países africanos para a Europa, via Itália.
Esta «imigração ilegal», que ocorre por muitos e variados motivos, visando todos eles a melhoria das condições de vida do imigrante, não se pode confundir simplesmente com a situação do refugiado. Este, que em sentido amplo não deixa de ser imigrante, busca refúgio em país estrangeiro por recear, com razão, ser perseguido no seu país de origem em consequência de actividade exercida em favor da democracia, da liberdade social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana, ou em virtude da sua raça, nacionalidade, convicções políticas ou pertença a determinado grupo social [ver artigo 2º, alínea ac), da Lei nº27/2018, de 30.06, redacção dada pela Lei nº26/2014, de 05.05].
Foi esta avalancha de imigração ilegal, constituída por um universo de imigrantes onde se integrarão potenciais refugiados mas não só, que provocou um deficit nas condições do seu acolhimento por parte de Itália, e terá provocado uma reacção política hostil na mira de suscitar a participação solidária dos demais Estados-membros na resolução do problema.
Assim, os epifenómenos traduzidos nas notícias oficiosamente respigadas pelo tribunal, reflectem toda essa inusitada situação vivida, nomeadamente, em Itália, mas não são aptos a implicar o risco de tratamento desumano ou degradante, mormente tortura, dos requerentes de protecção internacional por parte do Estado Italiano.
Temos, por conseguinte, que as notícias levadas ao acervo factual provado, a título de factos notórios, não deixando de traduzir uma «situação anómala», não são, por si só, e atentos os contornos da situação, susceptíveis de configurar motivos válidos para crer que se preenche - no caso concreto - a hipótese legal prevista no 2º parágrafo do nº2 do artigo 3º do Regulamento [EU] 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26.06.2013. Isto é, elas não constituem razões sérias e verosímeis de que o requerente corra o risco real de ser sujeito a tratos desumanos ou degradantes, mormente tortura, por parte das autoridades italianas.
Não se impunha, assim, no presente caso, que o SEF procedesse à averiguação oficiosa que lhe foi imposta pelo acórdão recorrido.”
Em suma, no caso em apreço está excluída a possibilidade de existir um risco real e comprovado de o requerente de protecção, ora Recorrido, poder sofrer tratos desumanos e degradantes, na acepção do art.º 4.º da CDFUE, caso o mesmo seja transferido para Itália.
Assim, não tinha o Director do SEF que proceder a quaisquer averiguações antes de determinar a retoma a cargo por Itália.
III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam:
- em conceder provimento ao recurso interposto, revogar a decisão recorrida e julgar improcedente a presente acção;
- sem custas por isenção objectiva (cf. art.º 84.º da Lei nº 27/2008, de 30/06).

Lisboa, 14 de Maio de 2020.
(Sofia David)

(Dora Lucas Neto - com voto de vencido).

(Pedro Nuno Figueiredo)


Voto de vencido
Não obstante o disposto no art. 19.º-A, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 27/2008, de 30.06 (Lei do Asilo) e art. 25.º, n.º 2 do Regulamento (UE) n.º 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26.06. (Regulamento de DublinIII), tendo ocorrido uma situação de admissão tácita, não se impunha ao Estado Português, de uma forma vinculada e sem mais, a tomada de decisão de transferência do requerente de proteção internacional.
De uma leitura conjugada do Regulamente de DublinIII, a decisão de “retoma a cargo” não pode ser tomada sem que o Estado Membro decisor tenha conhecimento – conhecimento este que tem de se revelar no procedimento - das condições atuais existentes no procedimento de asilo e no acolhimento no Estado Membro considerado responsável, quando sobre o mesmo recaiam dúvidas objetivas e fundadas sobre tais condições - para que possa verificar se, no caso concreto, existem motivos que determinem a impossibilidade da transferência do requerente de Asilo, nos termos do art. 3.º, n.º 2, 2§ e 3§ parágrafos – verdadeiras cláusulas de salvaguarda - do Regulamento de DublinIII.
Conhecimento este que vai ao encontro da exigência de demonstração que resulta da divulgação constante do comunicado de imprensa n.°33/19 do TJUE, 19.03.2019, na parte em que, esclarece que «(…) O Tribunal de Justiça conclui que o Direito da União não se opõe a que um requerente de proteção internacional seja transferido para o Estado-Membro responsável ou a que um pedido de concessão do estatuto de refugiado seja declarado não admissível pelo facto de já ter sido concedida ao requerente proteção subsidiária noutro Estado-Membro, a menos que se demonstre que o requerente que se encontraria, nesse outro Estado-Membro, numa situação de privação material extrema, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais.» pois esta exigência não se pode interpretar como se tal demonstração se exija apenas ao requerente de asilo, por três ordens de razões:
Primeira: não é defensável que um Estado Membro possa ignorar a situação que se vive no Estado Membro que seria primariamente responsável pela análise do pedido ao abrigo do Regulamento de DublinIII.
Segunda: a presunção de que os Estados Membros respeitam os direitos fundamentais, baseada no princípio da confiança mútua, pode e deve ser ilidida com base em prova do domínio público, aplicando este princípio em concordância prática com os princípios da eficiência e da solidariedade – cfr. art. 67.º do Tratado sobre o funcionamento da União Europeia -, pois, atendendo à realidade de alguns países europeus– muito em particular Grécia e Itália, considerando, apenas o critério transfronteiriço e de forte pressão migratória – imperioso se torna admitir exceções ao princípio da confiança mútua, por forma a aliviar estes países em relação a uma resposta que lhes é exigida, mas que se revela, na prática, inexigível, possibilitando que a resposta comum europeia seja mais eficiente, se distribuída de outra forma.
Terceira: por existir uma inversão do ónus da prova para as autoridades dos Estados Membros, na medida em que o Sistema Europeu Comum de Asilo (SECA) visa ainda a concretização plena da Convenção de Genebra, da qual o Estado Português é signatário, e a garantia de que ninguém será “devolvido” para um lugar onde possa vir a estar em risco de vida, de saúde ou de perseguição.
É neste contexto, aliás, que surgem as recomendações, constantes de relatórios internacionais de entidades oficiais ou ONG acreditadas, para que os Estados Membros não transfiram pessoas vulneráveis para a Itália, sinalizando que, em qualquer outro caso, as autoridades responsáveis devem ainda realizar uma avaliação individual detalhada, solicitando, inclusive às autoridades italianas informações precisas sobre a instalação de receção alocada à pessoa, na mesma linha, aliás, da jurisprudência do TEDH, Ac. Tarakhel v. Suíça, de 04.11.2014.
Neste aresto, o TEDH concluiu que os Estados-Membros deveriam obter garantias, in casu, das autoridades italianas, de que os requerentes de asilo seriam acomodados adequadamente antes de realizar uma transferência. No caso tratava-se também de um requerente de asilo com necessidades especiais, mas tal diligência deverá ser concretizada, dentro do mesmo espírito, no âmbito do Sistema Europeu Comum de Asilo, quando exista uma dúvida objetiva e sustentada sobre quais as condições que o “retornado de Dublin” vai encontrar no destino, designadamente, se vai encontrar uma situação de privação material extrema, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais (cfr. comunicado de imprensa n.°33/19 do TJUE, supra citado).
E, neste sentido, a título de exemplo, veja-se o muito recente relatório do Swiss Refugee Council – OSAR -, Italy: Updated Report on the Reception System with a Focus on the Situation for Dublin Returnees, de janeiro de 2020, disponível em: https://www.fluechtlingshilfe.ch/assets/herkunftslaender/dublin/italien/200121-italy-reception-conditions-en.pdf.
O art. 58.º do CPA, ao dispor expressamente que «(…) mesmo que procedimento seja instaurado por iniciativa dos interessados, [o responsável pela direção do procedimento e outros órgãos que participem na instrução, podem] proceder a quaisquer diligências que se revelem adequadas e necessárias à preparação de uma decisão legal e justa (…)», permite-o e não deixa grande margem para dúvidas, cumprindo, aliás, a doutrina que dimana do citado acórdão Tarakhel.
É nestes termos que, face a todo o exposto, somos levados a concluir que este risco, ou perigo, para o requerente de proteção internacional tem de ser atual, e por esse motivo, não está necessariamente dependente das suas alegações, no procedimento e no processo, estando estas, por definição, reportadas a um tempo passado, não obstante poderem ser muito relevantes, designadamente, quanto a situações pessoais vividas.
Mas não acompanhamos a conclusão de que as mesmas são determinantes, para evitar uma averiguação do Estado Membro, quando existam dúvidas objetivas e sustentadas sobre quais as condições que o “retornado de Dublin” vai encontrar no destino, designadamente, se vai encontrar uma situação de privação material extrema, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais (cfr. comunicado de imprensa n.° 33/19 do TJUE, supra citado).
Do procedimento em apreço não consta que tenha sido feita qualquer diligência nesse sentido pelo RECORRIDO, em face do que, perante dúvidas objetivas sobre a situação concreta que o requerente vai encontrar no destino – Itália - porque não foi demonstrado, nem no procedimento, nem nos autos - de que a mesma seja suficiente para afastar o perigo de tratamentos desumanos ou degradantes, tal como resulta das informações que colhemos dos relatórios internacionais supra citados -, no caso em apreço, teríamos concluído pelo não provimento do recurso e pela manutenção da sentença recorrida, embora com fundamentação não inteiramente coincidente.

Dora Lucas Neto