Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2240/18.7BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:06/06/2019
Relator:ALDA NUNES
Descritores:PROTEÇÃO INTERNACIONAL
RETOMA A CARGO
ITÁLIA
ART 3º, Nº 2 DO REGULAMENTO DE DUBLIN
Sumário:· Cabe ao requerente do pedido de asilo ou, subsidiariamente, de autorização de residência por razões humanitárias, o ónus da prova dos factos que alega.
· Mas o ónus de alegação e prova do requerente quanto às condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional em Itália deve ser atenuado e essa mesma realidade deve ser apurada pela Administração e, depois, pelo tribunal.
· Devendo faze-lo junto de fontes como o Gabinete Europeu de Apoio em matéria de Asilo, o ACNUR, e organizações de direitos humanos relevantes à data da decisão sobre o pedido, sempre que os factos alegados e provados exijam um juízo de prognose relativamente à situação a que o requerente ficará exposto após a transferência Dublin.
· Nessas circunstâncias não pode o SEF proceder a uma aplicação cega do disposto no art 3º, nº 2 do Regulamento de Dublin.
· Devendo antes paralisar o processo de transferência para averiguar se esta pode significar a sujeição do requerente a tratamento cruel, degradante ou desumano num Estado-membro.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em Conferência, na Secção de Contencioso Administrativo, do Tribunal Central Administrativo Sul:

Relatório

O Ministério da Administração Interna/ Serviço de Estrangeiros e Fronteiras recorre da sentença proferida na presente instância, a 31.1.2019, que julgou procedente a ação especial urgente de pedido de asilo e condenou a entidade demandada a reconstituir o procedimento relativo ao pedido de proteção internacional formulado pelo autor B.............., em 23.7.2018, instruindo o pedido com informação atualizada sobre as condições de acolhimento dos refugiados e requerente de proteção internacional em Itália.
O recorrente pede seja revogada a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, por, nas alegações que apresentou, concluir:
«1ª - A autoridade recorrida não concorda com os termos da sentença ora recorrida;
2ª- De harmonia com o art.º 18,º nº 1, b) do Regulamento (UE) 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, e o art.º 37º, nº 1 da Lei de Asilo, o ora recorrente procedeu à determinação do Estado-Membro responsável pela análise do pedido de asilo, procedimento regido pelo art.º 36º e seguintes da Lei 27/2008, de 30 de junho (Lei de Asilo), tendo, no âmbito do mesmo sido apresentado, aos 27/07/2018, pedido de retoma a cargo às autoridades italianas, tendo o Gabinete de Asilo e Refugiados do SEF aos 22/08/2018, comunicado às autoridades italianas que, ao abrigo do nº 2, do artigo 25º do mesmo Regulamento, a falta de uma decisão equivale à aceitação do pedido.
3ª - Consequente e vinculadamente, por despacho do Diretor Nacional do ora recorrente proferido aos 23/08/2018, nos termos dos arts 19º-A, nº 1, a) e 37º nº 2 da citada lei, foi o pedido considerado inadmissível e determinada a transferência do requerente para Itália, Estado-Membro responsável pela análise do pedido de Asilo nos termos do citado regulamento, motivo pelo qual o Estado português se torna apenas responsável pela execução da transferência nos termos dos arts 29º e 30º do Regulamento de Dublin;
4ª – O ora recorrente deu início ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de asilo, que culminou com o apuramento de que essa responsabilidade pertencia à Itália (cf. art.º 13º, n.º 2 do citado Regulamento (UE) 604/2013 e art.º 37º, nº 1 da Lei n.º 27/2008 (Lei de Asilo)), impondo a lei como consequência imediata (vinculada) que fosse proferido o ato de inadmissibilidade e de transferência;
5ª - “Estamos, portanto, perante um ato estritamente vinculado, sendo que a validade dos atos praticados no exercício de poderes vinculados tem de ser feita em função dos pressupostos de facto e de direito fixados por lei, ou seja pela confrontação da factualidade dada como provada com a consequência jurídica imediatamente derivada da lei (…) é a própria Lei nº 27/2008, de 30 de Junho, que no seu artigo 37.º, n.º 2, lhe impunha a atuação levada a efeito “ (cf. Acórdão do TCA SUL de 19/01/2012, proc. nº 08319/11);
6ª - Resulta, pois, incompreensível o entendimento ora sufragado na douta sentença ora recorrida por se considerar que “ (…) o ato impugnado - ao não apurar a situação concretamente alegada pelo Autor, na entrevista - incorre em deficit de instrução quanto aos factos essenciais à decisão de transferência e, por conseguinte, à decisão de (in)admissibilidade do pedido de proteção internacional formulado, em violação do disposto no artigo 58º do CPA, devendo ser anulado nos termos do artigo 163º, nº , do mesmo Código.”; 7ª - Pelo contrário, a alegação do Requerente., desacompanhada da apresentação de um mínimo de elementos objetivos, é insuficiente para considerar demonstrada a existência de falhas sistémicas no procedimento de asilo italiano que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante; ou que, dadas as particulares condições do A a transferência implica um risco sério e verosímil de exposição do A, a um tratamento contrário ao artigo 4º da CDFUE.
8ª – Nos presente autos inexiste qualquer indicio que permita concluir pela existência de falhas sistémicas no procedimento de Asilo, único óbice para que Portugal não proferisse a decisão de transferência ora impugnada;
9ª – Ao contrário do pugnado pela douta sentença recorrida, o procedimento de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional (que culminou com o apuramento de que essa responsabilidade pertencia à Itália) antecede e fundamenta que o pedido apresentado seja considerado inadmissível e seja determinada a transferência da análise do pedido;
10ª - Contrariamente ao que a sentença refere, ao ora recorrente outra solução não restava que não fosse propalar a competente decisão de inadmissibilidade e de transferência, a qual não padece de qualquer vicio de facto ou de direito.»

O recorrido contra-alegou o recurso, concluindo nos termos que seguem: 1ª – O autor concorda com os termos da sentença que foi agora recorrida. 2ª - Efetivamente incumbia à Entidade Demandada, antes de ter tomado a decisão ora impugnada, instruir oficiosamente o procedimento, com informação fidedigna atualizada sobre o funcionamento do procedimento de asilo italiano e as condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional naquele país, recorrendo a fontes credíveis e consolidadas, dada a dificuldade de prova que assiste ao autor, mas que é notória tendo em conta todas as noticias que vêm a público e que fizeram do prova do processo em apreço.
3ª - No caso em apreço, a decisão impugnada nada refere a propósito do funcionamento do procedimento de asilo italiano e das condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional nesse Estado-Membro, não se mostrando possível, através da sua leitura, aferir da existência ou não de um risco atual, direto ou indireto, de o Autor ser sujeito a tratamento desumano ou degradante, na aceção dos artigos 3.º da CEDH e 4.º da CDFUE.
4ª – Verifica-se por isso que há indícios que permitem concluir pela probabilidade séria de o Autor, ao ser transferido para aquele Estado, correr um risco real de ser sujeito a tratos desumanos ou degradantes, na aceção do artigo 4. da CDFUE, como o mesmo referiu, não se sente em segurança em Itália, estava num campo de refugiados e não tinha acesso aos cuidados mais básicos como saúde e higiene.
5ª - Verifica-se que o ato impugnado – ao não apurar a situação concretamente alegada pelo Autor, na entrevista – incorre em deficit de instrução quanto aos factos essenciais à decisão de transferência e, por conseguinte, à decisão de (in)admissibilidade do pedido de proteção internacional formulado, em violação do disposto no artigo 58.º do CPA, devendo ser anulado nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do mesmo Código”.
Nestes termos e nos melhores de direito, requer-se que seja mantida a douta sentença que condena o recorrente a reconstituir o procedimento relativo ao pedido de proteção internacional formulado pelo Autor, em 23.07.2018, instruindo o pedido com informação atualizada sobre as condições de acolhimento dos refugiados e requerentes de proteção internacional em Itália».

O Exmo. Procurador Geral Adjunto, notificado nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 146º e 147º, ambos do CPTA, emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso, determinando-se a transferência da análise do pedido às autoridades italianas, de acordo com o estabelecido no regulamento de Dublin.

Sem vistos, vem o processo submetido à conferência para julgamento.

Fundamentação de facto
O Tribunal a quo deu como provados os factos que seguem:

A) «Em 20.07.2018, um agente da Polícia de Segurança Pública constatou que o Autor encontrava-se a pernoitar na via pública, na Rua Mãe D’Agua, em Lisboa, tendo o mesmo afirmado que aguardava a abertura do Centro de Acolhimento Temporário, existente naquele local, a fim de solicitar asilo político. – Cfr. fls. 7-8 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
B) Antes da data referida na alínea anterior, o Autor esteve em Itália, onde requereu proteção internacional. – Admitido por acordo; cfr. fls. 3-4 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
C) Em 23.09.2016, as impressões digitais do Autor foram registadas, na base de dados do Sistema Eurodac, sob a referência IT.............., em Cagliari, Itália. – Cfr. fls. 3 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
D) Em 04.06.2018, as impressões digitais do Autor foram registadas na base de dados do Sistema Eurodac, sob a referência IT.............., em Cagliari, Itália. – Cfr. fls. 4 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
E) Em 20.07.2018, foi emitido, pela Esquadra de Turismo da Polícia de Segurança Pública de Santa Apolónia o instrumento intitulado “PEDIDO DE INFORMAÇÃO SOBRE CIDADÃO ESTRANGEIRO”, relativo ao Autor, de cujo teor, que aqui se dá por integralmente reproduzido, se extrai o seguinte: “Afirmou que se encontrava em Itália, onde entrou por barco, desde 02/09/2016, sem autorização de residência ou com visto, entrou de seguida em França no dia 13 de julho de 2018, em Espanha dia 16 de julho de 2018, e entrou em território nacional em 19-072018, deslocou por via terrestre (autocarro). Pretende Asilo Político em virtude de alegar que é perseguido no seu país.” – Cfr. fls. 6 do PA;
F) Em 23.07.2018, o Autor requereu proteção internacional, junto do Gabinete de Asilo e Refugiados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, em Lisboa, data em que foram registadas as suas impressões digitais, na base de dados do Sistema Eurodac. – Cfr. fls. 2 e 19 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
G) A 27.07.2018, os serviços do Gabinete de Asilo e Refugiados enviaram, às autoridades italianas, um pedido de retoma a cargo do Autor, invocando o artigo 18.º, n.º 1, alínea b), do Regulamento (UE) 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, e as ocorrências registadas no Sistema Eurodac, sob as referências IT................ e IT............... – Cfr. fls. 23-27 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
H) Em 21.08.2018, o Autor prestou declarações, junto do Gabinete de Asilo e Refugiados, em Lisboa, tendo sido lavrado o instrumento intitulado “Entrevista/Transcrição”, de cujo teor, que aqui se dá por integralmente reproduzido, se extrai o seguinte:
Nome e categoria do funcionário: J..................... / INSPETOR Departamento do Serviço de Estrangeiros: GABINETE DE ASILO E REFUGIADOS Nome intérprete: N/A Língua utilizada no ato: INGLESA (…) I. Identificação do requerente Apelido: C..... Nome: B..... (…)
Local de nascimento: BASSE Nacionalidade (tratando-se de apátrida qual o ultimo país de residência habitual): GÂMBIA Etnia: M.......... (…)
II. Apresentação e objetivos
O entrevistador apresentou-se a si e ao intérprete.
Confirmou-se que a entrevista foi feita na língua inglesa, escolhida pelo requerente e através da qual comunica claramente.
Foi explicado ao requerente que nos termos do Regulamento de Dublin, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, apenas um Estado-Membro é responsável, pelo que, o seu pedido está sujeito a um procedimento especial de admissibilidade.
Este procedimento prevê que o pedido de proteção internacional possa ser considerado inadmissível quando se verifique, com base em dados objetivos, provas ou indícios, que Portugal não é responsável pela análise do pedido de proteção internacional. Neste caso, prescinde-se da análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de proteção internacional.
Esta entrevista faz parte do procedimento de admissibilidade e visa determinar o seguinte:
- Presença de membros da família (cônjuge, filhos menores solteiros) em Portugal ou noutro Estado-Membro
- Presença de familiares (tios adultos ou avós) em Portugal ou noutro Estado Membro
- No caso de um menor não acompanhado e solteiro a presença do pai, mãe ou outro adulto responsável pelo requerente por força da Lei ou da prática do Estado Membro
- Presença de dependentes residentes noutro Estado-Membro ou dependência residentes noutro Estado Membro
- Existência de anterior(es) pedido(s) de proteção internacional noutro(s) Estado-Membro
- Emissão de documentos de residência ou vistos
- Entrada ilegal pela fronteira de um Estado Membro (por via terrestre, marítima ou aérea) a partir de um país terceiro
- Permanência por um período ininterrupto de pelo menos cinco meses no território de um Estado Membro
- Entrada num Estado Membro em que está dispensado de visto
O requerente foi informado que:
- Os intervenientes na presente entrevista estão vinculados ao dever de sigilo e confidencialidade
- As informações que indicar não serão comunicadas às autoridades do país de origem ou da nacionalidade,
- Caso não entenda alguma das perguntas formuladas pelo entrevistador poderá solicitar a clarificação das mesmas,
- Caso não saiba a resposta para alguma das perguntas deverá comunicar este facto,
- Caso se sinta indisposto ou cansado poderá pedir para interromper a entrevista
O requerente foi ainda informado que:
- O folheto informativo que lhe foi entregue no momento do registo do seu pedido de proteção internacional contem informações importantes sobre o procedimento designadamente os critérios que determinam a responsabilidade, a obrigação de permanência em Portugal até à decisão final, as vias de recurso e que, caso faça um pedido de proteção internacional noutro Estado Membro ou seja detetado em situação ilegal, será transferido para Portugal.
O requerente foi questionado sobre se tem perguntas quanto ao procedimento descrito: NÃO
Percebeu o procedimento que lhe foi descrito? SIM
Autoriza que seja comunicada ao Conselho Português para os Refugiados, de acordo com o previsto no n.º 5, do artigo 20.º, da Lei n.º 27/08 de 30.06, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 26/14 de 05.05, as decisões que vierem a ser proferidas no seu processo? SIM
Está em condições para realizar a entrevista? SIM (…)
VI. Registos Eurodac
De acordo com os registos constantes da base de dados de impressões digitais Eurodac verifica-se que passou em vários países europeus. Queira indicar a duração da estadia em cada um desses países onde foi alvo de registo:
País/Referência: Data: Duração da estada:
IT................... 23/09/2016 21 dias
IT................... 18/05/2018 1 ano e 8 meses
(…)
VII. Entrada e/ou estadia
Data de saída do país de nacionalidade/origem? Saí no dia 12/02/2016.
Saiu sozinho ou acompanhado? Saí sozinho
Documentos com que viajou. Saí com a minha carta de condução.
Qual o percurso efetuado desde o país de origem até chegar a Portugal? Saí da Gâmbia e fui para o Senegal, depois Mali, Burkina Faso, Níger, Líbia, Itália, França, Espanha.
Em que data chegou a Portugal? Cheguei no dia 20/07/2018.
Com que documentos entrou em Portugal? Sem documentos.
Regressou ao seu país de origem? Não.
É titular de um título de residência na União Europeia? Não.
Onde permaneceu nos últimos 5 meses anteriores ao pedido de proteção? Em Itália.
Pode apresentar provas documentais sobre a estadia/percurso que refere? Tenho quase todos os bilhetes de transporte desde que sai da Sardenha de Cagliari, até chegar a Portugal, mas estão no CPR.
VIII. Pedidos de proteção internacional anteriores
Alguma vez pediu proteção internacional num país da União Europeia (e Islândia, Suíça, Noruega ou Liechtenstein) ou facultou as suas impressões digitais para registo? Em caso afirmativo, onde? Sim: [X] (…) Itália
O seu pedido encontra-se em análise? (…) Não: [X] (…) O seu pedido foi recusado? Sim: [X] (…) Foi afastado para o país da sua nacionalidade ou origem? (…) Não: [X]: Em que data teve lugar esse afastamento? N/A
Regressou voluntariamente ao país da sua nacionalidade, de origem ou outro país terceiro? (…) Não: [X]
Em que data regressou voluntariamente ao seu país de origem? N/A
IX. Vulnerabilidade
Está de boa saúde? Sim: [X]
Tem problemas de saúde? Sim: [X]
Quais? Tenho alguns problemas de visão.
Está a ter acompanhamento médico? Não.
Está ser medicado? Não.
Encontra-se acompanhado de membro da família ou familiar com problemas de saúde? Não.
X. Porque motivo solicita proteção internacional? Saí da Gâmbia porque, ajudei um amigo meu gay a sair do país, por causa de ele ser gay, a polícia soube que eu o tinha ajudado e também me queria apanhar. Decidi vir para Portugal, porque não me sinto em segurança, havia muitos problemas no campo onde estava, e depois falaram-me sobre Portugal e decidi vir, quero tomar conta de mim e da minha família,
XI. Pretende acrescentar alguma informação? Não.
RELATÓRIO
De acordo com as declarações prestadas pelo requerente identificado no ponto 1 e de acordo com as informações recolhidas, conclui-se que o mesmo:
(…)
Apresentou pedido de proteção noutro país da União Europeia Itália (REGULAMENTO (UE) N.º 604/2013 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 26 de junho de 2013 que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados-Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida - Artigo 18.º, n.º 1).
Perante a presente informação, tem algo a declarar? Não quero regressar a Itália, não me sinto em segurança, quando nos sentimos doentes é muito difícil ir ao hospital, dão-nos Brufen para todas as queixas que temos.
Se a decisão for me transferirem para Itália, vou recorrer dessa decisão para o tribunal.
E mais não disse, nem lhe foi perguntado, pelo que, lidas as declarações em língua inglesa, língua que compreende e na qual se expressa, as achou conforme, ratifica e vai assinar juntamente com todos os intervenientes, pelas 15 horas e 20 minutos, hora a que findou este ato” – Cfr. fls. 16-24 dos autos e fls. 28-37 do PA;
I) Em 22.08.2018, os serviços do Gabinete de Asilo e Refugiados comunicaram às autoridades italianas que, por falta de resposta ao pedido identificado em G), Portugal considera que Itália aceitou retomar a cargo o Autor. – cfr. fls. 38 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
J) A 23.08.2018, os serviços do Gabinete de Asilo e Refugiados emitiram a informação n.º 1171/GAR/2018, de cujo teor, que aqui se dá por integralmente reproduzido, se extrai o seguinte:
“PROCESSO N.º 1274.18PT
IDENTIFICAÇÃO DO REQUERENTE
Nome: B............... (…)
PROPOSTA
Com base na presente informação e à consideração superior para decisão, propõe-se que, de acordo com o disposto na alínea a) do n.º 1, do artigo 19.º-A, da Lei n.º 27/08, de 30 de junho, alterada pela Lei n.º 26/2014, de 05 de maio, o pedido de proteção seja considerado inadmissível e se proceda à transferência para a Itália do (a) cidadão (ã) acima identificado (a), nos termos do artigo 25º, N.º 2 do Regulamento (CE) N.º 604/2013 do Conselho, de 26 de junho. (…)
Dos motivos invocados no pedido de transferência
Aos 27-07-2018, o GAR apresentou um pedido de retoma a cargo às autoridades italianas, ao abrigo do artigo 18º, Nº 1 b), do Regulamento (UE) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de junho.
Consultado o sistema EURODAC, foram detetados dois Hit positivos com o "Case ID IT........... e IT...........", inseridos pela Itália.
Aos 22-08-2018, Portugal informou as autoridades italianas que ao abrigo do artigo 25º, Nº 1, do Regulamento (UE) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de junho, tinha duas (2) semanas para se pronunciar sobre o nosso pedido.
As autoridades italianas não se pronunciaram dentro do prazo estabelecido no art.º 25 nº 1, do Regulamento (UE) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de junho, por isso de acordo com o artigo 25 nº 2 do mesmo Regulamento, a falta de uma decisão equivale à aceitação do pedido.
Pelo exposto, propõe-se que Itália seja considerada o Estado responsável pela retoma a cargo, ao abrigo do artigo 25.º, N.º 2 do Regulamento (CE) N.º 604/2013 do Conselho de 26 de junho.” – Cfr. fls. 26-27 dos autos e fls. 42-43 do PA;
K) A 23.08.2018, a Diretora Nacional Adjunta do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, proferiu a “DECISÃO”, de cujo teor, que aqui se dá por integralmente reproduzido, se extrai o seguinte:
PROCESSO N.º 1274.18PT
De acordo com o disposto na alínea a) do n.º 1, do artigo 19.º-A, e no n.º 2 do artigo 37º, ambos da Lei n.º 27/08, de 30 de junho, alterada pela Lei nº 26/2014 de 05 de maio, com base na informação n.º 1171/GAR/2018 do Gabinete de Asilo e Refugiados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, considero o pedido de proteção internacional apresentado pelo cidadão que se identificou como B................, nacional da Gâmbia, inadmissível.
Proceda-se à notificação do cidadão nos termos do artigo 37º, n.º 3, da Lei n.º 27/08 de 30 de junho, com as alterações introduzidas pela Lei 26/14 de 5 de maio, e à sua transferência, nos termos do artigo 38º do mesmo diploma, para a Itália, Estado Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional nos termos do Regulamento (UE) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de junho.” – Cfr. fls. 25 dos autos e fls. 45 do PA.
L) Consta publicado, com data de 08.05.2018, na página do Diário de Notícias na internet, no endereço «https://www.dn.pt/lusa/interior/migrantes-acusam-italia-de-responsabilidade-porabusos-cometidos-na-libia-9319675.html», o artigo intitulado “Migrantes acusam Itália de responsabilidade por abusos cometidos na Líbia”, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido e do qual se extrai o seguinte excerto:
“Dezenas de migrantes nigerianos que sobreviveram a um naufrágio no Mediterrâneo em 2017 apresentaram uma queixa no Tribunal Europeu de Direitos Humanos a acusar Itália de violação dos direitos humanos por "subcontratar" à Líbia o seu salvamento. O caso, apoiado por organizações judiciais e de direitos humanos, constituiu um desafio direto ao contestado acordo da Itália com a Líbia em 2017, que reduziu substancialmente o número de requerentes de asilo que tentavam alcançar a Europa. Em conferência de imprensa, os apoiantes do caso referiram hoje que esta decisão política -- que envolve fundos europeus no treino e equipamento da guarda costeira líbia para o patrulhamento das suas costas e a interceção de migrantes --, submeteu os potenciais refugiados à escravatura, tortura e outros tratamentos degradantes e inumanos, quando foram forçados a regressar à Líbia. Os 70 nigerianos envolvidos neste processo argumentam que a Itália foi responsável pelos abusos, ao manter um "controlo efetivo" sobre os socorristas líbios através do seu centro de coordenação da guarda costeira em Roma e dos navios da marinha italiana fundeados ao largo de Trípoli e que coordenam localmente as operações de salvamento. Referem que a Itália é também responsável pelos abusos pelo facto de as violentas condições nos centros de detenção líbios, onde os migrantes eram colocados após o seu regresso, serem bem conhecidas e estarem documentadas.”
M) Com data de 04.06.2018, foi publicado, na página da Reuters-Brasil na internet, no endereço «https://br.reuters.com/article/topNews/idBRKCN1J01JT-OBRTP», o artigo intitulado “Itália não será mais "campo de refugiados da Europa", diz novo governo”, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido e do qual se extrai o seguinte excerto:
“ROMA (Reuters) - A Itália não será mais o “campo de refugiados da Europa”, disse o recém-empossado novo ministro do Interior italiano, Matteo Salvini, nesta segunda-feira, prometendo ações duras para reduzir a chegada de imigrantes e enviar de volta os que já chegaram. (…) Salvini manteve a pressão nesta segunda-feira, dizendo em uma entrevista a uma rádio que a Itália “não pode ser transformada em um campo de refugiados” e prometendo pressionar para que os parceiros de Roma obtenham mais assistência da União Europeia para lidarem com o problema. “É claro e óbvio que a Itália foi abandonada, agora temos que ver os factos”, disse Salvini quando indagado sobre os comentários da chanceler alemã, Angela Merkel, segundo a qual a Europa precisa de uma nova abordagem para a imigração. Salvini, que quer abrir um novo centro de detenção e deportação de imigrantes em cada região italiana, tuitou mais tarde: “ou a Europa nos dá uma mão para tornar nosso país seguro, ou escolheremos outros métodos”.
N) Com data de 28.07.2018, foi publicado, na página do jornal O Público na internet, no endereço «https://www.publico.pt/2018/07/28/mundo/noticia/criancas-migrantes-em-italiaobrigadas-a-prostituirse-para-conseguir-atravessar-fronteira-1839419»,o artigo intitulado “Crianças migrantes em Itália obrigadas a prostituir-se para conseguir atravessar fronteira”, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido e do qual se extrai o seguinte excerto:
“Desde o início de 2017 que 1900 raparigas foram abusadas na região fronteiriça italiana, denuncia a ONG Save The Children (…) A troco de uma passagem segura para o território francês, as crianças migrantes no norte de Itália estão a prostituir-se, revela uma investigação da organização humanitária Save The Children. A situação tem piorado nos últimos meses e não se concentra apenas na região fronteiriça, mas estende-se também a outras áreas da Itália. (…) Mais de 18 mil pessoas chegaram a Itália através do Mediterrâneo desde o início do ano, de acordo com os dados da Organização Internacional das Migrações, que revelam uma queda acentuada face ao mesmo período do ano passado (94 mil). A maioria foge de países em guerra ou onde são perseguidas, mas também à fome e à miséria. A situação das crianças concentradas perto da fronteira entre Itália e França agravou-se depois de as autoridades locais terem desmantelado um campo improvisado perto de Ventimiglia. A ausência de um local onde, apesar das más condições de vida, havia algum nível de segurança forçou os menores a deambular pelas cidades mais próximas, muitas vezes colocando-se em situações “degradantes, promíscuas e perigosas”, nota o relatório.”
O) Consta publicado, com data de 22.12.2018, na página da SIC Notícias na internet, no endereço «https://sicnoticias.pt/especiais/crise-migratoria/2018-12-22-Portos-deItalia-fechados-a-navio-com-300-migrantes-resgatados-no-Mediterraneo», o artigo intitulado “Portos de Itália fechados a navio com 300 migrantes resgatados no Mediterrâneo”, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido e do qual se extrai o seguinte excerto:
“Os portos de Itália estão fechados para os mais de 300 migrantes resgatados do mar Mediterrâneo pela organização não-governamental Proactiva Open Arms, afirmou hoje o ministro do Interior italiano, Matteo Salvini, depois de Malta ter recusado acolhê-los.”
P) Consta publicado, a 23.01.2019, no endereço «https://www.wort.lu/pt/mundo/it-lia-fechacentro-para-refugiados-e-despeja-mais-de-500-pessoas-5c48b166da2cc1784e33c4 06», o artigo intitulado “Itália fecha centro para refugiados e despeja mais de 500 pessoas”, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido e do qual se extrai o seguinte excerto: “O Governo italiano está a encerrar um centro de refugiados na cidade de Castelnuovo di Porto, perto de Roma, despejando as mais de 500 pessoas que aí encontravam abrigo. De acordo com o diário britânico The Guardian, trata-se de uma medida adotada no âmbito do "decreto Salvini", aprovado em novembro passado (…). Salvini justificou a medida com o argumento de que o centro era "um antro de crime e tráfico de droga" e que se seguiria o fecho de outro espaço do género, localizado em Mineo, na Sicília. Além disso, acrescentou que o encerramento permitiria ao Governo poupar seis milhões de euros por ano, verba que pretendia gastar a "ajudar italianos". "Fiz o que qualquer bom pai faria", referiu, citado pelo Guardian. Porém, Riccardo Travaglini, edil de Castelnuovo di Porto, que chegou a acolher uma refugiada oriunda da Somália em sua casa, teceu duras críticas à medida. "Num só dia arruinam-se anos de trabalho. Estas pessoas estavam já integradas na sociedade", afirmou, referindo-se a vários casos de refugiados que estavam a trabalhar e com os filhos em escolas. O Guardian indica que "muitos estavam em pleno processo de requerimento de asilo ou tinham recebido proteção humanitária que lhes assegurava permanência durante dois anos em função de estarem impossibilitados de voltar a casa por motivos variados". Já Roberto Morassut, do Partido Democrático, comparou a expulsão dos refugiados com "deportações para os campos de concentração dos nazis". Salvini afirmou que, "todos os que tiverem direitos serão realojados". Quanto aos restantes, confirmou que será iniciado um "processo de deportação". A medida surgiu na mesma altura em que a Alemanha anunciou que se retirava da Operação Sophia, destinada ao combate de tráfico de pessoas no Mediterrâneo desde 2015, precisamente em função da recusa italiana de acolher refugiados nos seus portos. Desde que foi formado o Governo de coligação entre a Liga, liderada por Salvini, e o M5S de Luigi Di maio, esta é a maior operação de expulsão de refugiados. O Guardian conta que as pessoas em causa estão a ser retiradas do espaço e enviadas de autocarro para destino desconhecido, tendo ficado determinado que o centro encerraria até ao próximo dia 31.”

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Com interesse para a decisão, julgo não provado o seguinte facto:
1) – Na data em que foi proferida a decisão identificada em K), o Autor encontrava-se há cerca de seis meses, em Portugal.

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Motivação:
A convicção que permitiu dar como provados os factos acima descritos assentou – conforme discriminado em cada uma das alíneas dos factos assentes – na análise crítica dos documentos constantes dos autos e do processo administrativo (PA), bem como na consulta aos endereços da comunicação social na internet acima identificados, cujas informações veiculadas são de acesso e conhecimento geral e, portanto, factos notórios [cfr. artigo 412.º do CPC].
Por sua vez, o julgamento negativo do facto indicado como não provado em 1) assentou na análise do teor dos documentos referidos nas alíneas E) e H) dos factos provados, de onde resulta que o Autor declarou que chegou a Portugal no mês de julho de 2018».

O Direito.
O objeto do recurso:
Atentas as conclusões das alegações do recurso, que delimitam o seu objeto, nos termos dos arts 635º, nº 3 a 5 e 639º, nº 1 do CPC, ex vi art 140º, nº 3 do CPTA, dado inexistir questão de apreciação oficiosa, a questão decidenda passa, por determinar se a decisão recorrida, que julgou a ação procedente e condenou o ora recorrente a instruir o pedido com informação atualizada sobre as condições de acolhimento dos refugiados e requerentes de proteção internacional em Itália, incorreu em erro de julgamento na interpretação que fez do disposto no art 3º, nº 2 do Regulamento (EU) nº 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26.6 (Regulamento de Dublin).

Erro de julgamento de direito.
Na situação em apreço, o recorrido, nacional da Gâmbia, requereu proteção internacional junto do Gabinete de Asilo e Refugiados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, em 23.7.2018, o que já tinha feito antes, em 23.9.2016 e em 18.5.2018, em Itália. E, por assim ser, com base nas ocorrências registadas no Sistema Eurodac e na ausência de resposta da Itália ao pedido de retoma a cargo, o SEF, no âmbito do procedimento especial regulado no capítulo IV da Lei nº 27/2008, de 30.6, com as alterações introduzidas pela Lei nº 26/2014, de 5.5 (que passamos a identificar como Lei de Asilo), considerou o Estado italiano responsável pela análise do pedido de proteção internacional formulado pelo requerente/ aqui recorrido.
Sucede que o requerente declarou não querer regressar a Itália por não se sentir em segurança, dado haver muitos problemas nos campos de refugiados, «quando nos sentimos doentes é muito difícil ir ao hospital, dão-nos Brufen para todas as queixas que temos» (cfr al H) dos factos provados).
A esta realidade fáctica somou-se a prova dos factos inscritos nas als L), M), N), O), P) do probatório.
E, assim sendo, o tribunal de 1ª instância decidiu:
«Ora, não obstante a Entidade Demandada alegar, nos presentes autos, a inexistência de quaisquer elementos ou indícios que permitam concluir pela verificação de falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes em Itália, na verdade – independentemente de o Autor não ter logrado fazer prova cabal da realidade que vivenciou em Itália – há que atender à natureza jus-fundamental da matéria em litígio, a qual respeita ao exercício do direito de asilo e de proteção subsidiária – direitos essenciais à realização da dignidade humana – razão pela qual o ónus da prova é atenuado em razão do dever oficioso de apuramento da verdade material, primeiro, pela Administração e, depois, pelo Tribunal, de acordo com as informações possíveis de alcançar [cfr. o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido em 28.02.2018, no proc. n.º 1915/17.2BELSB].
De facto, não obstante o Autor ter alegado, na entrevista a que foi submetido, questões relativas à insegurança e à falta de cuidados de saúde no campo onde esteve durante o período de permanência em Itália, certo é que o ato impugnado nada refere sobre as condições de acolhimento de refugiados e requerentes de asilo naquele Estado Membro, que indicie o apuramento da concreta situação invocada.
Todavia, face ao acervo de informação que tem vindo a público, veiculada pela comunicação social, nacional e internacional, sobre a situação de grande afluência de refugiados em Itália e sobre as condições de acolhimento e permanência dos requerentes de proteção internacional naquele Estado-Membro – que são factos que a generalidade das pessoas, regularmente informadas, têm conhecimento e, nessa medida, factos notórios – de que são exemplo os artigos cujo teor se julgou assente nas alíneas L), M), N), O) e P), incumbia à Entidade Demandada, previamente à decisão ora impugnada, instruir oficiosamente o procedimento, com informação fidedigna atualizada sobre o funcionamento do procedimento de asilo italiano e as condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional naquele país, recorrendo a fontes credíveis e consolidadas como o Gabinete Europeu de Apoio em matéria de Asilo, o ACNUR e organizações de direitos humanos relevantes, de molde a verificar se, no caso concreto, se verificam ou não os motivos determinantes da impossibilidade da transferência, referidos no 2.º parágrafo, do n.º 2, do artigo 3.º do Regulamento (UE) 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho.
Efetivamente, como refere Patrícia Cabral – a propósito da extensão da proteção do artigo 3.º da CEDH a transferências no âmbito do Sistema de Dublin – «a aplicação da Convenção de Dublin, tal como do atual Regulamento de Dublin III, não dispensa as autoridades de verificar se existem garantias suficientes de que a pessoa não será sujeita a um risco sério de sujeição a tratamentos contrários ao artigo 3.º no país de acolhimento, nomeadamente um risco de refoulement, direta ou indiretamente, para o seu país de origem» (Cfr. Construção de uma Responsabilidade Europeia Além-Fronteiras – O novo Conceito de «Falhas Sistémicas» no Quadro dos Critérios de Determinação do Estado-Membro Responsável pelo Tratamento dos Pedidos de Proteção Internacional Baseados no Artigo 78.º do TFUE, Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídicas Internacionais, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Julho, 2015, pág. 19).
Neste sentido, o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu, no Acórdão de 21.12.2011 [Processos apensos C-411/10 e C-493/10], que «incumbe aos Estados-Membros, incluindo os órgãos jurisdicionais nacionais, não transferir um requerente de asilo para o “Estado-Membro responsável”, na aceção do Regulamento n.º 343/2003, quando não possam ignorar que as falhas sistémicas do procedimento de asilo e das condições de acolhimento dos requerentes de asilo nesse Estado-Membro constituem razões sérias e verosímeis de que o requerente corre um risco real de ser sujeito a tratos desumanos ou degradantes, na aceção desta disposição».
Impõe-se, assim, a obrigação de os Estados-membros ponderarem todas as informações conhecidas sobre o país considerado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, sempre que não possam desconhecer «os factos que determinam uma manifesta violação do artigo 4.º da CDFUE no país de destino» (Cfr. Patrícia Cabral, ob. cit. pág. 51) de molde a aferir se existem, no caso, motivos que justifiquem a decisão de não transferência, nomeadamente, a existência de um risco real, direto ou indireto, de o requerente ser sujeito a tratamento desumano ou degradante, na aceção dos artigos 3.º da CEDH e 4.º da CDFUE.
No caso dos autos, a decisão impugnada nada refere a propósito do funcionamento do procedimento de asilo italiano e das condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional nesse Estado-Membro, não se mostrando possível, através da sua leitura, aferir da existência ou não de um risco atual, direto ou indireto, de o Autor ser sujeito a tratamento desumano ou degradante, na aceção dos artigos 3.º da CEDH e 4.º da CDFUE.
Face às informações conhecidas sobre a situação dos requerentes de proteção internacional no Estado Italiano, verifica-se que o ato impugnado – ao não apurar a situação concretamente alegada pelo Autor, na entrevista – incorre em deficit de instrução quanto aos factos essenciais à decisão de transferência e, por conseguinte, à decisão de (in)admissibilidade do pedido de proteção internacional formulado, em violação do disposto no artigo 58.º do CPA, devendo ser anulado nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do mesmo Código. Atenta a ausência de informação atualizada, obtida junto de fontes como Gabinete Europeu de Apoio em matéria de Asilo e o ACNUR, sobre as condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional em Itália, não se mostra possível aferir, em concreto, da responsabilidade das autoridades portuguesas pela análise do pedido de proteção internacional formulado pelo Autor, razão pela qual não é de condenar a Entidade Demandada na admissão do pedido à fase da instrução e, consequentemente, na respetiva aprovação.
Porém, constitui-se a Entidade Demandada no dever de reconstituir o procedimento, instruindo-o com informação atualizada sobre as condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional em Itália, de molde a aferir se o caso concreto do Autor tem enquadramento na previsão do artigo 3.º, n.º 2, 2.º parágrafo, do Regulamento (UE) 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho.
Nesta conformidade, tem o presente processo de proceder» (sublinhados nossos).
A decisão recorrida mostra-se correta em face dos factos provados.

Os critérios e mecanismos de determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de asilo apresentado num dos Estados-Membros por um nacional de um país terceiro constam do Regulamento (CE) nº 604/2013, do Conselho de 24 de julho – Regulamento de Dublim III.

O referido Regulamento estabelece como princípio que só um Estado-Membro é responsável pela análise de um pedido de asilo, o que tem como objetivo (i) evitar que os requerentes de asilo sejam enviados de um país para outro, bem como (ii) evitar o abuso do sistema através da apresentação de vários pedidos de asilo por uma única pessoa em vários Estados-Membros (cfr art 3º, nº 1 do Regulamento).

A determinação do Estado responsável pela análise de um pedido de asilo apresentado num Estado-membro das Comunidades Europeias é feita seguindo critérios objetivos hierarquizados, insertos nos arts 8º a 15º do Regulamento. Se nenhum destes critérios – dos arts 8º a 15º – se aplicar no caso concreto, o Estado-membro responsável será aquele onde o pedido é apresentado pela primeira vez, nos termos do artigo 3º, nº 2 do Regulamento 604/2013/UE.

A aplicação sucessiva dos critérios de determinação do Estado responsável pela determinação do estatuto de refugiado é mitigada pela existência de cláusulas que permitem aos Estados levar em consideração outros aspetos na decisão de transferir ou não o requerente de asilo. Referimo-nos às cláusulas humanitárias previstas nos artigos 16º e 17º e à «cláusula de soberania», prevista no artigo 3º, nº 2 do Regulamento UE 604/2013, de 26.6.
A «cláusula de soberania», prevista no artigo 3º, era, até 2013, uma faculdade discricionária dos Estados de assumirem a análise de um pedido mesmo não sendo, de acordo com os critérios de Dublin, os responsáveis pelo mesmo.
Esta cláusula servia também para permitir aos Estados afastar a aplicação dos critérios Dublin sempre que as suas obrigações internacionais os obrigassem a tal, isto é, sempre que a aplicação hierárquica dos critérios pudesse conduzir a resultados incompatíveis com aquelas obrigações.
Esta cláusula foi objeto de particular atenção por parte da doutrina desde que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considerou, no caso M.S.S. contra a Bélgica e a Grécia, de 21 de janeiro de 2011, que a transferência – no caso concreto, requerida e executada pela Bélgica – de requerentes de asilo para um Estado-membro em dificuldades pelo elevado número de pedidos que estava a receber – concretamente, a Grécia – constituía violação do artigo 3º da CEDH.
O Tribunal de Justiça da União Europeia perfilhou esta posição na decisão de 21 de dezembro de 2011 no caso N.S. (processo n.º C-411/10), em que também estava em causa a transferência de um afegão do Reino Unido para a Grécia, e no caso de cinco requerentes provenientes do Afeganistão, Irão e Argélia (processo n.º C-493/10), que entraram em território europeu via Grécia e que depois chegaram à Irlanda que pretendia o seu retorno para a Grécia, de acordo com os critérios Dublin. Na decisão que veio a ser tomada conjuntamente nestes dois casos, o Tribunal entendeu que, muito embora não se deva entender que qualquer desrespeito por direitos fundamentais dos requerentes obste às transferências Dublin, quando se verifiquem deficiências sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes, como aquelas que verificavam na altura na Grécia, e estas sejam de tal modo evidentes que os Estados-membros não possam ignorá-las, os Estados não podem proceder a transferências Dublin para esses Estados com sistemas em colapso. Os Estados que pretendam executar transferências estão pois obrigados a não transferir requerentes de asilo nestas situações para os Estados responsáveis de acordo com os critérios do Regulamento Dublin II.
Na sequência destas decisões dos tribunais europeus de Estrasburgo e do Luxemburgo e refletindo esta evolução, o Regulamento 604/2013/UE veio prever expressamente, no art 3º, que quando haja falhas sistémicas no sistema de asilo do Estado para que o requerente deva ser transferido, havendo o risco de ser desrespeitado o direito absoluto do requerente a não ser sujeito a penas ou tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, não pode haver lugar à transferência do requerente ainda que os critérios Dublin se achem cumpridos.
A cláusula de soberania, prevista no art 3º do Regulamento, impõe assim aos Estados um juízo de prognose relativamente à situação a que o requerente ficará exposto após a transferência Dublin, devendo o Estado onde se encontra o requerente paralisar o processo de transferência sempre que entenda que esta pode significar a sujeição do requerente a tratamento cruel, degradante ou desumano num Estado-membro.
Foi aqui que a decisão recorrida constatou um deficit instrutório no procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de asilo do requerente/ recorrido, porque, fundamentou, «face às informações conhecidas sobre a situação dos requerentes de proteção internacional no Estado italiano e à concreta situação alegada pelo autor na entrevista», incumbia ao SEF, primeiro, diligenciar por informação atualizada sobre as condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional em Itália para, de seguida, aferir pela existência ou não de deficiências sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes em Itália e, por fim, decidir se procede ou não à transferência do recorrido para a Itália.
Pois, nos termos do art 3º, nº 2, §2 do Regulamento, quando se verifiquem deficiências sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes e estas sejam de tal modo evidentes que os Estados-membros não possam ignorá-las, os Estados não podem proceder a transferências Dublin para esses Estados com sistemas em colapso ou com dificuldades.
Portanto, a sentença recorrida mais não fez do que condenar o ora recorrente, em face do alegado pelo recorrido na entrevista e os factos provados nas als L) a P), a diligenciar por informação antes de ordenar a transferência do recorrido para Itália.
O que significa que, no caso concreto, atentos os factos provados, não podia o recorrente ter feito uma aplicação cega do disposto no art 3º, nº 2 do Regulamento de Dublin.
Na verdade, a situação apurada exigia uma interpretação do art 3º do Regulamento de Dublin em conformidade com o princípio da solidariedade (cfr art 80º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia).
Por a decisão do SEF, de 23.8.2018, ser omissa relativamente a qualquer informação sobre a situação atual de acolhimento dos requerentes de proteção internacional em Itália, não obstante ter sido alegada pelo recorrido a insegurança e a falta de cuidados de saúde no campo de refugiados onde esteve alojado e os factos provados nas als L) a P), mostra-se a sentença recorrida conforme com o Direito, sem bulir com a discricionariedade do Estado.

Nestes termos, a decisão recorrida não padece de erro de julgamento de direito e, improcedendo o recurso, mantem-se na ordem jurídica.


Decisão
Pelo exposto, acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em julgar improcedente o recurso e, assim, manter a sentença recorrida.
Sem Custas – cfr art 84º da Lei do Asilo.
Registe e notifique.
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Lisboa, 2019-06-06,

(Alda Nunes)


(José Gomes Correia)


(António Vasconcelos).