Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2517/15.3BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:09/30/2021
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:EMBARGOS DE TERCEIRO
EX-CÔNJUGE
PENHORA APÓS DIVÓRCIO
Sumário:I. Os embargos de terceiro supõem a qualidade de terceiro do embargante e que a penhora em relação à qual se reage ofenda a sua posse ou qualquer outro direito incompatível com a sua realização ou o seu âmbito.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acórdão

I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou Embargada ou FP) veio apresentar recurso da sentença proferida a 28.06.2016, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Sintra, na qual foram julgados procedentes os embargos de terceiro deduzidos por M.... (doravante Recorrida ou Embargante), no âmbito do processo de execução fiscal (PEF) n.º 150…., instaurado no Serviço de Finanças (SF) de Cascais 1, contra D.... e C.....

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito suspensivo.

Nesse seguimento, a Recorrente apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

“a) Visa o presente recurso reagir contra a decisão proferida nos presentes autos que julga procedentes os embargos de terceiro deduzidos por M...., na sequência de penhora de direito correspondente a ½ do prédio urbano inscrito na matriz predial da freguesia de São Domingos de Rana, concelho de Cascais, sob o artigo 1…, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais sob a descrição n.° 494….. efectuada no âmbito do processo de execução fiscal n.° 150….. instaurado contra D..... (e outros).

b) Nos termos do disposto no artigo 819.° do Código Civil, “Sem prejuízo das regras do registo, são ineficazes em relação ao exequente os actos de disposição ou oneração dos bens penhorados”, dispondo o n.° 1 do artigo 1789.° do Código Civil que “Os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, mas retrotraem-se à data da proposição da acção quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges”, e o n.° 3 que “Os efeitos patrimoniais do divórcio só podem ser opostos a terceiros a partir da data do registo da sentença.

c) Desde logo se realce não resultar do probatório a data do registo da sentença de divórcio a que a douta sentença apela, mostrando-se fixados os seguintes factos: o divórcio ocorreu em 12/10/2000 por sentença transitada em julgado, no decurso de acção que terá sido intentada em 27/01/1999; em 27/12/2013 foi registada a penhora em causa nos presentes autos; em 24/11/2014 foi adjudicado à embargante o imóvel penhorado por sentença proferida, e transitada, no âmbito de partilha judicial; e em 22/05/2015 procedeu a embargante ao registo de tal aquisição.

d) O n.° 1 do artigo 1789.° do Código Civil limita a produção dos efeitos do divórcio em relação à data da propositura da acção às relações patrimoniais entre os cônjuges, pelo que não pode ter aplicação ao caso sub judice - uma vez que em causa relações com terceiros - mais derivando do n.° 3 poderem ser os efeitos patrimoniais do divórcio opostos a terceiros após o registo da sentença, facto que não foi levado ao probatório.

e) Assim, decidiu o Tribunal a quo com fundamento em norma cuja aplicação se limita às relações entre os cônjuges, mostrando-se ademais o entendimento defendido pelo Tribunal a quo viciado por interpretação do direito não suportável.

f) Ora, se atentarmos à sistemática do Código Civil poderemos afirmar que o n.° 1 do artigo 1789.° do Código Civil se relaciona de forma directa com os efeitos do casamento quanto às pessoas e bens dos cônjuges, determinando o momento a partir do qual se consideram cessados os efeitos patrimoniais próprios que decorrem do casamento e que vinculam cônjuges, dos quais se destacam o regime de bens e a responsabilidade dos cônjuges pelas dívidas.

g) Os efeitos patrimoniais derivados da cessação do vínculo, nomeadamente quanto ao regime de bens e à responsabilidade dos cônjuges pelas dívidas, ganham, pois, pertinência desde a data da propositura da acção de divórcio, mas apenas e só quanto aos cônjuges, adquirindo realce quanto a terceiros a partir do registo da sentença.

h) Contudo, não se depreende das normas (n.°s 1 e 3 do artigo 1789.° do Código Civil) que a aquisição de bem imóvel ocorrida no âmbito da partilha judicial do património comum se mostre apta a configurar-se como direito de propriedade cuja constituição retroage à data do registo da sentença, e muito menos à data da propositura da acção de divórcio, e com efeitos perante terceiros.

i) Pois que aquilo que a norma pretende é, contrariamente ao pretendido pela douta sentença proferida, estabilizar os efeitos patrimoniais no que diz respeito às relações entre os cônjuges, e também com terceiros, e não atribuir retroactivamente a ex-cônjuges direitos que não tinham à data do divórcio.

j) A penhora em causa nos presentes autos efectivou-se por meio de registo (27/12/2015) em momento muito anterior à aquisição (por adjudicação em processo de partilha judicial) e subsequente registo da aquisição do imóvel pela embargante (24/11/2014 e 22/05/2015, respectivamente), sendo que até esse momento não era titular da propriedade plena do referido bem.

k) E, neste quadro fáctico, e atendendo à interpretação do artigo 1789.° do Código Civil que se impõe, a norma do artigo 819.° do Código Civil tem plena aplicação, pois que a aquisição derivada do bem pela embargante, e o registo de tal aquisição, são posteriores à penhora, mostrando-se por isso tal acto de disposição como ineficaz em relação à AT.

l) Efectivamente, “Consagra-se aqui como referiram os autores Pires de Lima/Antunes Varela, «...o princípio da ineficácia em relação ao credor dos actos de disposição ou oneração dos bens penhorados, ressalvadas as regras do registo»” e no “No que respeita à inoponibilidade dos factos sujeitos a registo o n.° 1 do artigo 5. ° do Código do registo predial (aprovado pelo Decreto-Lei n.° 224/84, de 06 de Julho), determina que «Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo» (cfr. Acórdão Tribunal da Relação do Porto de 18/11/2013, Processo 254/11.7TBPVZ-B.PI).

m) E continua o douto aresto “A partilha de bens constitui um acto oneroso e é, sem dúvida, como tal, um acto de «disposição de bens», pois implica a emissão de uma declaração de vontade por parte dos intervenientes nesse acto, que a lei tutela, e que determina a alteração do estatuto jurídico dos bens no que respeita à sua natureza patrimonial e titularidade. No caso, o acto de disposição é claro, pois o bem passou da titularidade de ambos os ex-cônjuges para a titularidade de um só, a ora Recorrente (sublinhado nosso)

n) Neste seguimento, atente-se ainda ao entendimento vertido no Acórdão do Supremo Tribunal Justiça proferido em 28/04/2009, no proc. 09A0667, de acordo com o qual, “I - Se, na ocasião, em que ocorre o registo do arresto, posteriormente convertido em penhora, que a autora pretende ver cancelado, o prédio penhorado pertencia ao património comum indiviso do casal, por ainda não haver sido adjudicado àquela, por sentença proferida no inventário para separação de meações, a alienação operada, em consequência desta, não goza de primazia em relação ao registo da penhora já efectuado. porquanto, em princípio, só os direitos reais com registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia prevalecem sobre a execução. ” (sublinhado nosso).

o) Assim, a adjudicação do imóvel à embargante, porquanto verificada em momento posterior ao registo da penhora efectuada pela Fazenda Nacional, mostra-se, enquanto acto de disposição, inoponível à execução, não gozando por isso de primazia em relação ao registo da penhora já efectuado.

p) Nestes termos, procede a douta sentença recorrida a errónea apreciação dos factos trazidos a juízo, e a um errado julgamento de direito em violação do disposto nas normas do artigo 819.° do Código Civil e dos n.°s 1 e 3 do artigo 1789.° do Código Civil.

Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso deve a decisão ser revogada e substituída por acórdão que julgue os embargos de terceiro totalmente improcedentes com as devidas consequências legais.

SENDO QUE EXAS. DECIDINDO FARÃO A COSTUMADA JUSTIÇA”.

A Recorrida apresentou contra-alegações, nas quais pugnou pelo não provimento do recurso apresentado.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do então art.º 289.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT) vem o processo à conferência.

É a seguinte a questão a decidir:

a) Há erro de julgamento, em virtude de a penhora ser anterior à adjudicação do imóvel à Recorrida?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“1- A Fazenda Publica instaurou execução fiscal com o nº150….., contra o executado D……., por dívidas de IRS do ano de 2011, no valor de € 6 725,09.- cfr Informação dos Serviços de fls 53 a 55, dos autos e “Autos de Execução” apenso.

2- No processo de execução referido supra, foi penhorado, em 27.12.2013, metade da fracção autónoma do prédio urbano descrito na 1ª C.R.P.de Cascais, sob a ficha nº 494……, sendo a fracção inscrita na matriz predial urbana sob o nº 12….., da freguesia de S. Domingos de Rana e registado na mesma C.R.P. de Cascais sob a Ap. 2…., da mesma data, dela constando a penhora efectuada a favor da Fazenda Nacional.( cfr Descrição do prédio urbano na 1º C.R.P. de Cascais de fls 82 v e 83, Auto de Penhora Electrónica constante de fls 83 v., dos autos.).

3- Em 01.06.2015, foi notificada a embargante, na qualidade de comproprietária do imóvel referido supra, da penhora da metade indivisa efectuada no processo de execução. – cfr “Oficio de notificação” de fls 85, dos autos.

4- Em 12.10.2000, transitou em julgado a sentença proferida de declaração de dissolução do casamento por divórcio entre a embargante e o executado no processo de execução supra indicado, a qual foi intentada em 27.01.99, tendo-se procedido a partilha judicial do bem imóvel referido supra, o qual foi adjudicado á embargante por decisão transitada em julgado em 24.11.2014. –cfr “ Certidão de Partilha de Bens em Casos Especiais”, constante de fls 10 a 40 e “Certidão da C.R.Civil de Oeiras, de fls 46 a 48, dos autos.

5- Após a data indicada em 4 a embargante registou a aquisição da fracção por partilha subsequente ao divórcio, em 22.05.2015.- cfr “Certidão Permanente” da 1ª C.R.P. de Cascais, de fls 85 v e 86, dos autos.

6- A presente petição de embargos foi apresentada junto do serviço de finanças competente em 01.06..- cfr “ Comprovativo de Entrega de Documentos” de fls 4, e Informação dos Serviços de fls 53 a 55, dos autos”.

II.B. Refere-se ainda na sentença recorrida:

“Dos factos constantes da oposição, todos objecto de análise concreta, não se provaram os que não constam da factualidade acima descrita”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“A decisão da matéria de facto efectuou-se com base no exame dos documentos e informações oficiais não impugnados, que dos autos constam, tudo conforme referido a propósito de cada uma das alíneas do probatório”.

II.D. Atento o disposto no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, acorda-se alterar a redação de parte da factualidade mencionada em II.A., em virtude de resultarem dos autos elementos documentais que exigem tal alteração(1).

Nesse seguimento, passa a ser a seguinte a redação do facto 1:

1- Foi instaurado, no Serviço de Finanças de Cascais 1, o processo de execução fiscal n.º 150….., contra o D….. e mulher, C...., por dívidas de IRS do ano de 2011, no valor de € 6 725,09.- cfr Informação dos Serviços de fls 53 a 55, dos autos e “Autos de Execução” apenso.

II.E. Atento o disposto no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, acorda-se aditar a seguinte matéria de facto provada:

7. Foi instaurado o processo n.º 955/04.6TBCSC, de inventário para partilha do acervo conjugal, proposto pela Embargante (cfr. documento n.º 1, junto com a petição inicial).

8. No âmbito dos autos referidos em 7., foi realizada conferência de interessados, a 20.02.2013, no âmbito da qual foi elaborado mapa de partilhas (cfr. documento n.º 1, junto com a petição inicial).

9. A Embargante e D….. casaram a 04.08.1985 (cfr. documento n.º 3, junto com a petição inicial).

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, uma vez que, em seu entender, tendo a adjudicação do imóvel sido feita e registada em momento ulterior ao da penhora, esta prevalece.

Antes de mais, refira-se que, ao longo das suas alegações, a Recorrente vai mencionando que não foram levados ao probatório determinados factos. No entanto, uma vez que não foram minimamente cumpridos os requisitos exigidos pelo art.º 640.º do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, não se interpreta o alegado como impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

Prosseguindo.

Nos termos do art.º 237.º do CPPT:

“1 - Quando o arresto, a penhora ou qualquer outro ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular um terceiro, pode este fazê-lo valer por meio de embargos de terceiro”.

O incidente de embargos de terceiro tem, pois, ínsita uma função preventiva ou repressiva (dependendo se a diligência ordenada já foi ou não realizada), visando acautelar direitos de terceiros e tutelar os seus interesses em situações em que tais direitos sejam ameaçados, na sequência de penhora ou apreensão(2).

Os embargos de terceiro supõem a qualidade de terceiro do embargante e que a penhora em relação à qual se reage ofenda a sua posse ou qualquer outro direito incompatível com a sua realização ou o seu âmbito.

O CPPT não nos faculta qualquer noção de terceiro, para efeitos de embargos, pelo que é de recorrer ao disposto no n.º 1 do art.º 342.º do CPC, nos termos do qual:

“Se a penhora, ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro”.

Assim, de uma leitura conjunta do art.º 237.º, n.º 1, do CPPT, com o mencionado art.º 342.º, n.º 1, do CPC, resulta que, no âmbito da execução fiscal, será terceiro, para efeitos de embargos de terceiros, quem não tenha a posição de parte no processo de execução fiscal, o que se afere, designadamente, quer porque a execução não foi, ab initio, contra ele instaurada, quer porque a própria diligência de ofensa da posse ou direito não é contra si dirigida. Ou seja, está aqui subjacente um conceito material de terceiro, porquanto este não será o destinatário dos efeitos jurídicos nem da diligência nem da execução.

Por outro lado, como referido, os embargos de terceiro supõem que a penhora ofenda a sua posse (cfr. art.º 1285.º do Código Civil) ou qualquer outro direito incompatível com a sua realização ou o seu âmbito.

Quanto ao conceito de posse, o mesmo decorre do disposto no art.º 1251.º do Código Civil, consubstanciando-se no exercício de poderes de facto sobre uma coisa em termos de um direito real (e não de um direito pessoal), comportando, num sistema subjetivista como o nosso(3), dois elementos fundamentais:

a) O corpus, o elemento empírico, que consiste na prática de poderes de facto, que se aferirão de acordo com a própria afetação concreta do bem; e

b) O animus, ou seja, a intenção de agir como beneficiário do direito, o elemento psicológico.

Logo, é possuidor quem exerce ou quem tem a possibilidade de exercer poderes de facto sobre uma coisa (corpus), com intenção de ser proprietário (animus dominii), possuidor (animus possidendi) ou de ter a coisa para si (animus sibi habendi)(4).

Caso estejamos perante o exercício de um poder de facto sobre a coisa, mas desprovido do animus nos termos referidos, estaremos perante uma mera detenção.

Como referido no art.º 1253.º do Código Civil:

“São havidos como detentores ou possuidores precários:

a) Os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito”.

Para que o terceiro possa ser reconhecido como possuidor, para efeitos dos embargos de terceiro, deve invocar e provar os elementos constitutivos da sua posse, isto é, corpus e animus, devendo ainda invocar o modo de aquisição dessa mesma posse.

No tocante à determinação de outros direitos incompatíveis com a realização ou o âmbito de penhora ou qualquer ato de apreensão, como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre(5), tal “… faz-se considerando a função e a finalidade concreta da diligência (…). // Assim, são incompatíveis com a penhora (…) o direito de propriedade e os demais direitos reais menores de gozo que, considerada a extensão da penhora, viriam a extinguir-se com a venda executiva (art. 824.º, nº2 CC), bem como, quando a penhora incida sobre um direito, a titularidade deste de que um terceiro se arrogue; mas não o são os direitos reais de gozo que a subsequente venda não extingue, os direitos reais de aquisição e de garantia que, como normalmente acontece, encontrem satisfação no esquema da ação executiva, nem os direitos pessoais de gozo e de aquisição, que são inoponíveis ao exequente ou, no caso especial do arrendamento, perduram para além da venda executiva”.

Há ainda que atender ao regime específico a considerar, quando estamos perante uma situação de dissolução do vínculo matrimonial, cumprindo olhar apenas para as situações em que estamos perante dívida exclusiva de um dos ex-cônjuges, como é o caso dos autos (IRS de 2011, relativo ao ex-cônjuge da Embargante e a sua então mulher).

Nos termos do art.º 1788.º do Código Civil:

“O divórcio dissolve o casamento e tem juridicamente os mesmos efeitos da dissolução por morte, salvas as exceções consagradas na lei”.

Significa isto que, quanto aos bens comuns do casal, após o divórcio, mas antes da adjudicação e partilha, o mesmo permanece em situação de indivisão, não detendo cada um dos ex-cônjuges uma quota dos bens em causa, detendo sim uma quota ideal do património globalmente considerado.

Como referido no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 18.05.2011 (Processo: 0973/09) [cfr. mais recentemente o Acórdão do mesmo Tribunal, de 18.11.2020 (Processo: 0185/16.4BESNT 01352/16)]:

“[A]pós o divórcio, o ex-cônjuge passa a deter, relativamente ao património comum um direito a uma quota ideal do valor do conjunto de bens que o integram, a meio caminho juridicamente entre a comunhão hereditária e a compropriedade, sem se poder completamente reconduzir a nenhuma das duas figuras jurídicas. Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 18/11/2008, no Proc. n.º 08A2620, embora em situação diversa da que vimos analisando mas cuja doutrina sufragamos, «na comunhão conjugal existe um património colectivo, ou seja, um património com dois sujeitos que do mesmo são titulares e que globalmente lhes pertence, sendo um dos traços característicos de tal património autónomo o facto de cada um dos seus membros não poder pedir a sua divisão enquanto não cessar a causa determinante da sua constituição. Essa massa patrimonial não se reparte entre os cônjuges como na compropriedade ou comunhão do tipo romano: antes, como na antiga comunhão de tipo germânico, pertence-lhes em bloco e só em bloco. (...). Porém, uma vez dissolvido o vínculo conjugal, «o património comum converte-se em comunhão ou compropriedade do tipo romano, podendo, então, qualquer dos consortes dispor da sua quota ideal ou requerer a divisão da massa patrimonial através da partilha. É uma situação semelhante à sucessão mortis causa, ou seja, a uma herança, e é entendimento pacífico que esta, antes da partilha, constitui uma universitas juris, um património autónomo, com conteúdo próprio. Até à partilha, os direitos dos herdeiros recaem sobre o conjunto da herança; cada herdeiro apenas tem direito a uma parte ideal da herança e não a bens certos e determinados (cfr. acórdão deste STJ de 17.04.1980, in BMJ 296º-298).

Como escreveu Rabindranath Capelo de Sousa (Lições de Direito das Sucessões, pág. 185), citado no referido acórdão, “nos casos em que haja lugar à partilha da herança, segundo a opinião dominante, o domínio e posse sobre os bens em concreto da herança só se efectivam após a realização da partilha, uma vez que até aí a herança indivisa constitui um património autónomo nada mais tendo os herdeiros do que o direito a uma quota-parte do património hereditário”.

O mesmo é o pensamento do Prof. Pereira Coelho (Direito das Sucessões, 2ª ed., 1966-1967), também aí citado, quando esclarece que “não se trata de uma vulgar compropriedade entendida como participação na propriedade de bens certos e determinados. Pelo contrário, a contitularidade do direito à herança significa tanto como direito a uma parte ideal, não de cada um dos bens de que se compõe a herança, mas sim da própria herança em si considerada”».

O que significa que uma vez dissolvido o casamento celebrado segundo algum regime de comunhão de bens, passa o respectivo património de mão comum, até à respectiva partilha, à situação de indivisão, detendo cada um dos contitulares uma quota ideal do património globalmente considerado e não uma quota dos bens que compõem esse património. O que obriga à penhora do direito a bens indivisos (direito à meação) nos termos previstos no artigo 826.º do CPC e 232.º do CPPT” (sublinhados nossos).

Nos termos do art.º 1789.º do Código Civil:

“1. Os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respetiva sentença, mas retrotraem-se à data da proposição da ação quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges.

2 - Se a separação de facto entre os cônjuges estiver provada no processo, qualquer deles pode requerer que os efeitos do divórcio retroajam à data, que a sentença fixará, em que a separação tenha começado.

3. Os efeitos patrimoniais do divórcio só podem ser opostos a terceiros a partir da data do registo da sentença”.

Apliquemos estes conceitos ao caso dos autos.

In casu, a Embargante foi casada com o executado entre 1985 e 2000. Em 1999, foi intentada ação de divórcio, cuja sentença que declarou a dissolução do casamento transitou em julgado em 12.10.2000.

Foi depois instaurado processo de inventário para partilha do acervo conjugal. No âmbito desse processo, houve pelo menos uma audiência de conferência de interessados, no âmbito da qual foi elaborado mapa de partilhas, do qual decorria que o imóvel em causa seria adjudicado à Embargante. O executado apresentou reclamação, que veio a ser indeferida. Foi proferida a 30.01.2014 sentença, transitada em julgado, na qual é adjudicado o imóvel em causa.

Portanto, é certo que a sentença de adjudicação acabou por ser proferida e transitada já em momento ulterior ao da realização da penhora pela administração tributária (AT) e respetivo registo – apesar de o registo da aquisição pela Embargante ter sido anterior à notificação que lhe foi feita da penhora (cfr. factos 3. e 5.).

Analisando a sentença ora recorrida, verifica-se que o Tribunal a quo se centra em dois pressupostos, um dos quais rigorosamente não vem posto em causa.

O primeiro dos pressupostos tem a ver com a titularidade dos bens por parte do executado (“no processo de execução fiscal só devem ser penhorados bens pertencentes ao executado no momento da penhora”).

O segundo, contra o qual se insurge a Recorrente, tem a ver com o facto de o Tribunal a quo ter entendido que a adjudicação em causa retroage os seus efeitos à data da propositura da ação de divórcio ou pelo menos à data do registo da sentença do divórcio.

Ora, como já referimos supra, a partir do momento em que é decretado o divórcio, e enquanto não é realizada a partilha dos bens comuns, estamos perante um património comum do ex-casal, em relação ao qual cada um deles tem direito a uma quota ideal e não a uma quota dos bens que compõem esse património.

É o direito a essa meação que pode ser penhorado, e não uma fração de algum ou alguns dos bens que integram esse património global.

Assim, como refere a Embargante na sua petição inicial, rigorosamente o executado não era proprietário do imóvel em causa.

O executado era, sim, mero titular de uma quota ideal daquele património comum.

Esta circunstância é suficiente para que se conclua pela improcedência da pretensão da Recorrente.

Com efeito, sendo o executado titular de uma quota ideal nos termos já referidos, nunca a penhora poderia ter incidido sobre a metade indivisa do prédio em causa.

Esta conclusão conduz a que resulte prejudicado o alegado quanto ao momento da adjudicação e respetivos efeitos, porquanto, a montante, a circunstância descrita permite concluir que foi penhorado um bem que não era do executado, independentemente do destino que veio a ser dado a esse bem.

Como tal, ainda que com a presente fundamentação, não assiste razão à Recorrente.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Negar provimento ao recurso;

b) Custas pela Recorrente;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 30 de setembro de 2021

[A relatora consigna e atesta que, nos termos do disposto no art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 01 de maio, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Desembargadores integrantes da formação de julgamento, os Senhores Desembargadores Susana Barreto e Vital Lopes]


Tânia Meireles da Cunha

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(1) Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 286.
(2) Cfr. Marco Carvalho Gonçalves, Embargos de Terceiro na Acção Executiva, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, pp. 13 e seguintes.
(3) Cfr. Manuel Henrique Mesquita, Direitos Reais, policop., Coimbra, pp. 66 e 67.
(4) Cfr. Marco Carvalho Gonçalves, ob. cit., p. 71.
(5) José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol 1.º, 3.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2014, p. 663.