Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:701/18.7BEALM
Secção:CT
Data do Acordão:05/04/2023
Relator:SUSANA BARRETO
Descritores:IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
IRC
DISPENSA DE PROVA TESTEMUNHAL
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
Sumário:I. Com os articulados devem ser disponibilizados os meios de prova dos fundamentos da ação e apresentados os documentos em que se aleguem os factos correspondentes.
II. O princípio da autorresponsabilidade das partes deve ser conjugado com o do inquisitório considerando-se que este último não dimensiona o suprimento por iniciativa do juiz da omissão de articulação de factos estruturantes da causa no momento processualmente adequado.
III. No procedimento tributário a administração tributária deve realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido (cf. artigo 58º da LGT), podendo os órgãos competentes, nos termos da lei, desenvolver todas as diligências necessárias ao apuramento da situação tributária dos contribuintes (artigo 63/1 LGT).
IV. Todavia, este princípio do inquisitório ou da descoberta da verdade material que deve nortear a atuação da Autoridade Tributária e Aduaneira na prossecução do interesse público, tem de conjugar-se com as regras da distribuição do ónus da prova.
Votação:Unanimidade
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:***


Acordam, em conferência, os juízes que constituem a 2ª Subseção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:


I - Relatório

A… – Comércio de Automóveis, Lda., não se conformando com a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, que julgou improcedente a impugnação judicial por si deduzida, contra as liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) e respetivos juros compensatórios, respeitantes aos exercícios de 2014, 2015 e 2016, no valor global de € 193 142,96, dela veio recorrer para este Tribunal Central Administrativo Sul.

Nas alegações de recurso apresentadas, a Recorrente, formula as seguintes conclusões:

A. «O presente recurso é interposto contra a Sentença proferida no dia 11 de Novembro de 2022, no âmbito dos autos de Impugnação Judicial que correram termos junto da Unidade Orgânica 2 do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra sob o n.º 701/18.7BEALM, que julgou improcedentes as pretensões da ora RECORRENTE e, em consequência, determinou a manutenção na ordem jurídica dos actos tributários impugnados, atinentes a IRC dos exercícios de 2014, 2015 e 2016, no montante total de € 193.142,96 (cento e noventa e três mil, cento e quarenta e dois euros e noventa e seis cêntimos).

B. Na Sentença proferida a 11 de Novembro de 2022, o Tribunal a quo julgou improcedente a Impugnação Judicial apresentada pela aqui RECORRENTE, determinando a manutenção das liquidações de IRC objecto dos presentes autos e condenando, em consequência, a RECORRENTE nas custas do processo.

C. Ora, não pode a RECORRENTE conformar-se com o entendimento perfilhado na Sentença recorrida, na exacta medida em que manteve na ordem jurídica os actos tributários impugnados, os quais, como se demonstrará, padecem de ilegalidade, devendo a Sentença ser revogada e substituída por outra conforme com as normas e princípios jurídicos aplicáveis.

D. Assim, como resultará das presentes Alegações, a Sentença recorrida padece, designadamente, de erro de julgamento, razão pela qual deverá ser revogada por este douto Tribunal.

E. Não obstante, a título prévio, vem a RECORRENTE, de acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 644.º do CPC ex vi artigo 281.º do CPPT, interpor recurso do Despacho proferido pelo Tribunal a quo no dia 15 de Setembro de 2022, que indeferiu a diligência de inquirição da testemunha arrolada pela aqui RECORRENTE na sua Impugnação Judicial, por também não se poder conformar com o sentido do mesmo.

F. Com efeito, tendo em consideração a jurisprudência mais recente dos Tribunais superiores portugueses, não cabe apelação autónoma, ao abrigo do disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 644.º do CPC ex vi artigo 281.º do CPPT, do despacho que dispensa a produção de prova testemunhal, como o Despacho proferido a 15 de Setembro de 2022, pelo Tribunal a quo, por tal não corresponder à rejeição de um meio de prova, razão pela qual a ora RECORRENTE não interpôs o competente recurso de apelação autónomo após a notificação do mesmo, tendo protelado a apresentação do mesmo para um eventual recurso de uma decisão final desfavorável que viesse a ser proferida nos presentes autos, como o que agora se apresenta.

G. Na petição inicial que deu origem aos presentes autos de Impugnação Judicial, a ora RECORRENTE arrolou como testemunha a Senhora B...., contabilista da RECORRENTE no momento da inspecção tributária que deu origem aos actos de liquidação objecto de impugnação nos presentes autos e durante os exercícios objecto da inspecção.

H. Já na pendência dos autos, e depois de indicar a matéria de facto a que a testemunha deveria ser ouvida, na sequência de Despacho do Tribunal a quo notificado para o efeito, a RECORRENTE foi notificada, por Ofício do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, datado de 22 de Setembro de 2022, do Despacho proferido a 15 de Setembro, que, quanto à inquirição das testemunhas arroladas, decide que “(…) considerando o pedido formulado pela Impugnante e os fundamentos respetivos, bem como os documentos juntos aos autos e a contestação apresentada, conclui-se que nos artigos apresentados pela Impugnante não são alegados quaisquer factos concretos suscetíveis de serem provados através de prova testemunhal, motivo pelo qual se indefere a diligência de prova.” .

I. Em face do exposto, não pode a RECORRENTE concordar com o teor de tal Despacho, porquanto interpõe agora recurso do mesmo.

J. Com efeito, relativamente aos factos invocados na petição inicial de Impugnação judicial, a prova testemunhal mostrar-se-á especialmente útil para a demonstração, plena e inequívoca, sobre a forma como a aqui RECORRENTE contabilizou as vendas dos seus veículos automóveis, designadamente as vendas que envolveram veículos de retoma, entregues pelos adquirentes dos veículos da RECORRENTE e, bem assim, sobre o modo de cálculo do IVA devido pelas vendas dos veículos, ao abrigo do regime de venda de bens em segunda mão, e as repercussões em sede de IRC, derivadas das correcções na base tributável de IVA, determinadas pela inspecção tributária, com a aplicação do regime geral de IVA às vendas dos veículos automóveis realizadas pela RECORRENTE nos exercícios de 2014, 2015 e de 2016.

K. Entende a RECORRENTE que só através da inquirição da testemunha arrolada – contabilista da RECORRENTE, tanto no momento da inspecção tributária como durante os exercícios objecto da inspecção – será possível esclarecer plenamente os factos alegados na petição inicial que deu origem aos presentes autos, uma vez que a testemunha arrolada possui conhecimentos técnicos que lhe permitiria depor com razão de ciência àqueles factos.

L. Destarte, apesar dos documentos juntos pela RECORRENTE, entende esta que os mesmos poderão não ser bastantes para a prova de tais factos, como o sentido da Sentença ora proferida o demonstra, devendo, para o efeito, ser feita a inquirição da testemunha indicada, pois considera a RECORRENTE que, sem a mesma, poderá não lhe ser possível efectuar prova bastante de tais factos.

M. Cabendo exclusivamente à RECORRENTE ajuizar da necessidade de prova dos factos invocados e da forma de prova, desde que respeitados os limites legais à respectiva produção, como o foram, in casu.

N. Tal como expendido no lapidar acórdão do venerando Supremo Tribunal Administrativo no Acórdão de 10/09/2008, no processo n.º 0435/08, como resulta do seguinte segmento: “O ónus da prova dos factos que configuram o fundamento de oposição invocado (ilegitimidade substantiva, por inexistência de responsabilidade subsidiária) recai sobre o Oponente (artigo 74° n.º 1 da Lei Geral Tributária). Assim sendo, a inquirição das testemunhas arroladas na petição de oposição é indispensável ao cabal desempenho daquele ónus”.

O. A RECORRENTE não pode correr o risco dos factos por si invocados não virem a ser dados como provados, em claro prejuízo da sua posição processual, o que justifica a interposição do presente recurso jurisdicional, uma vez que, como está à vista, os documentos juntos não vieram a ser considerados bastantes, o que poderia não ter sucedido, caso tivesse existido corroboração testemunhal.

P. Com efeito, o Tribunal a quo não podia dispensar a produção de prova testemunhal (sob pena de incorrer em grave violação do princípio do contraditório e de sujeitar as partes a decisões-surpresa, preterindo formalidades processuais expressamente prescritas na lei), sem antes dar ampla possibilidade às partes de, querendo, se pronunciarem sobre o enquadramento factual que pretende dar ao litígio.

Q. Neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 19/09/2008, proferido no recurso n.º 435/08, o qual se passa a transcrever, pela excelência nas palavras, com as necessárias adaptações ao caso concreto: “I - Decorre do disposto nos artigos 13.º, n.º 1 e 114.º do CPPT a atribuição ao juiz do poder de ordenar as diligências que entender necessárias para a descoberta da verdade. II - Recai sobre o Oponente o ónus da prova do fundamento de oposição (artigo 74.º, n.º 1 da LGT) e daí que não se possa considerar dispensável a inquirição das testemunhas aí arroladas tendo em vista a prova do não exercício da gerência de uma firma, a qual não se mostra condicionada em exclusivo pela prova documental.”.

R. Ao dispensar a produção de prova testemunhal o Tribunal a quo violou, por um lado, o princípio do contraditório ínsito no preceito aplicável do artigo 3.º do CPC, e, por outro, o disposto dos preceitos ínsitos nos artigos 114.º, 115.º e 118.º do CPPT, donde decorre impor-se a revogação do referido Despacho e a substituição por Acórdão que ordene a produção de prova testemunhal, isto é a inquirição da testemunha oportunamente arrolada pela ora RECORRENTE, assim se fazendo Justiça.

S. Mais se refira que a dispensa da inquirição da testemunha arrolada se consubstancia também numa violação do princípio do inquisitório, segundo o qual a investigação da verdade é da responsabilidade do juiz, uma vez que, para além do campo da recolha dos factos e da sua prova, assim como do da discussão do direito, a este cabe não só a direcção formal do processo, nos seus aspectos técnicos e de estrutura interna, como também a concessão de poderes tendentes a assegurar a regularidade da instância.

Se assim não se entender – o que não se admite e, por mero dever de ofício, se equaciona –, subsidiariamente, sempre se dirá o seguinte:

T. Corolário do princípio da legalidade e encontrando assento, além do mais, no artigo 58.º da LGT, o princípio do inquisitório impõe que a Administração tributária deva, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido.

U. E porque estes princípios se impõem também em sede de procedimento de inspecção (cfr. o art. 63.º da LGT e o art. 6.º do RCPIT), deve a Administração tributária procurar recolher «os elementos probatórios que possibilitem mais tarde fundamentar o acto tributário que venha a ser praticado», apurando o correcto cumprimento das obrigações fiscais por parte dos sujeitos passivos e «com base nessa investigação, recolher elementos que permitam apurar a eventual existência de irregularidades.». É um princípio «postulado pela natureza pública e indisponível da relação jurídico-tributária, abrangendo, por isso, os seus elementos de facto.» (cfr. José Maria Fernandes Pires e outros, Lei Geral Tributária Comentada e Anotada, Almedina, 2015, pp. 592/593; Diogo Leite de Campos e outros, Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, 3ª ed., Vislis Editores, 2003, p. 554.)

V. No caso vertente, verifica-se, contudo, que não houve, por parte da Administração tributária, a adopção das diligências investigatórias que lhe permitissem conhecer a verdade material, designadamente no que diz respeito ao valor atribuído às retomas, no momento da aquisição, limitando-se a aceitar a diferença entre o valor do financiamento concedido ao cliente e o valor atribuído à viatura automóvel vendida, em conformidade com os procedimentos da RECORRENTE.

W. No caso concreto, cumpre aludir que o que está aqui em causa não é propriamente definir qual o valor das retomas, mas sim o facto de as liquidações adicionais de IRC, objecto dos presentes autos, não terem tido em consideração as correcções levadas a cabo pela Administração tributária quanto às bases tributáveis apuradas para efeitos de liquidação do IVA a favor da RECORRENTE, e que eram superiores às correcções efectuadas pela Administração tributária em sede de IRC, o que, a ter sido feito, se traduziria no apuramento de prejuízos fiscais com a consequente anulação das liquidações de IRC objecto dos presentes autos.

X. De facto, as correcções efectuadas pela Administração tributária em sede de IVA têm implicações no IRC da aqui RECORRENTE dos mesmos exercícios – e que foram desconsideradas pela Administração tributária.

Y. Com efeito, no âmbito da acção inspectiva a que a RECORRENTE foi sujeita, foi corrigida a base tributável do IVA dos anos de 2014, 2015 e de 2016, atendendo a que a RECORRENTE determinou o IVA pelo regime especial de tributação dos bens em segunda mão (regime da margem) e a Administração tributária entendeu que deveriam ter sido aplicadas as regras do regime geral, retirando ao valor da venda o valor do IVA da margem (apurado por dentro), determinando, assim, o valor de uma base tributável diferente para efeitos de liquidação de IVA, com repercussão nas correcções efectuadas em sede de IRC e que, na presente sede, se contestam.

Z. Ora, tal facto originou que o imposto apurado pela Administração tributária por aplicação do regime geral, ao invés do regime da margem usado pela RECORRENTE, veio reduzir a base tributável do IVA e que conduziu a que o valor considerado para efeitos de apuramento dos proveitos em sede de IRC, deixasse de ser o valor da factura e passasse a ser um valor menor, estimado e determinado pela própria Administração tributária no âmbito do procedimento inspectivo aqui em apreço, em virtude de ter que se retirar, em cada operação, o valor do IVA correspondente.

AA. Em consequência, deveriam os lucros tributáveis dos exercícios de 2014, 2015 e de 2016 corrigidos pela Administração tributária ter sido alterados para prejuízos fiscais, nos montantes melhor descritos na petição inicial que deu origem aos presentes autos e no documento n.º 8 junto com a mesma.

BB. Na verdade, no entender da RECORRENTE, competia à Administração tributária, na fase do procedimento inspectivo, em cumprimento do princípio do inquisitório a que se encontra adstrita na sua actividade administrativa, realizar todas as diligências necessárias à descoberta da verdade material, de forma a que pudesse reunir todos os elementos e informações necessárias ao bom enquadramento e compreensão dos aspectos específicos da actividade da RECORRENTE, o que, como vimos, não fez.

CC. Concluindo, entende a RECORRENTE que a Administração tributária violou o princípio do inquisitório, o que acarreta a ilegalidade das liquidações objecto da presente Impugnação Judicial e a sua consequente anulação, com base no referido vício.

DD. Em face do exposto, deve ser concedido provimento ao presente Recurso, determinando-se a revogação da Sentença recorrida nos termos supra melhor explanados e a substituição por outra que aprecie e julgue procedente os argumentos invocados pela aqui RECORRENTE, determinando-se, em consequência, a anulação das liquidações de IRC objecto dos presentes autos, referentes aos exercícios de 2014, 2015 e de 2016, no valor de € 193.142,96 (cento e noventa e três mil, cento e quarenta e dois euros e noventa e seis cêntimos).

NESTES TERMOS, E NOS MAIS DE DIREITO APLICÁVEIS, SEMPRE COM O DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSA EXCELÊNCIA, DEVE SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, DETERMINANDO-SE A REVOGAÇÃO DO DESPACHO PROFERIDO, NO DIA 15 DE SETEMBRO DE 2022, PELO TRIBUNAL A QUO, QUE DECIDIU NÃO REALIZAR A AUDIÊNCIA DE INQUIRIÇÃO DA TESTEMUNHA OPORTUNAMENTE ARROLADA PELA ORA RECORRENTE E A SUBSTITUIÇÃO POR ACÓRDÃO QUE ORDENE A PRODUÇÃO DE PROVA TESTEMUNHAL, DILIGÊNCIA QUE SE MOSTRA ESSENCIAL PARA A DESCOBERTA DA VERDADE MATERIAL E A PROSSECUÇÃO DO INTERESSE PÚBLICO.

SE ASSIM NÃO SE ENTENDER – O QUE NÃO SE ADMITE E, POR MERO DEVER DE OFÍCIO SE EQUACIONA –, SUBSIDIARIAMENTE, DEVE SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, DETERMINANDO-SE A REVOGAÇÃO DA SENTENÇA RECORRIDA NOS TERMOS SUPRA MELHOR EXPLANADOS E A SUBSTITUIÇÃO POR OUTRA QUE APRECIE E JULGUE PROCEDENTE OS ARGUMENTOS INVOCADOS PELA AQUI RECORRENTE, DETERMINANDO-SE, EM CONSEQUÊNCIA, A ANULAÇÃO DAS LIQUIDAÇÕES DE IRC OBJECTO DOS PRESENTES AUTOS, REFERENTES AOS EXERCÍCIOS DE 2014, 2015 E DE 2016, NO VALOR DE € 193.142,96 (CENTO E NOVENTA E TRÊS MIL, CENTO E QUARENTA E DOIS EUROS E NOVENTA E SEIS CÊNTIMOS), POR VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS E NORMAS LEGAIS ENUMERADAS, COM TODAS AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS DAÍ DECORRENTES.»



Notificada para o efeito, a Recorrida, não apresentou contra-alegações.

O recurso foi admitido com subida imediata nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

O Ministério Público junto deste Tribunal, emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


II – Fundamentação

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, as quais são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, sendo as de saber se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento na seleção e apreciação dos factos e aplicação do direito.

Antes, porém, saber se se o Tribunal a quo errou quando dispensou a produção de prova testemunhal, nomeadamente, a inquirição da testemunha arrolada pelo Recorrente


II.1- Dos Factos

O Tribunal recorrido considerou como provada a seguinte factualidade:

1) «Em 22-02-2011 foi constituída a Impugnante com o objeto social de “Importação, exportação e comércio de veículos automóveis. Prestação de serviços no ramo automóvel”

2) Na mesma data a Impugnante foi enquadrada no regime geral de tributação em sede de IRC (cf. relatório de inspeção tributária (RIT) a págs. 69 a 111 de fls. 80 a 244 do SITAF);

3) Durante os anos de 2014, 2015 e 2016, a Impugnante procedeu à aquisição de diversos veículos ligeiros em segunda mão, procedentes de outros países membros da União Europeia (cf. RIT a págs. 69 a 111 de fls. 80 a 244 do SITAF e Anexos 11 e 12 ao mesmo, a fls. 247 a 4058 e págs. 1 a 276 de fls. 4061 a 4428 do SITAF);

4) A Impugnante emitiu as faturas de venda dos veículos descritos em 3) liquidando o IVA pelo regime da margem (cf. RIT a págs. 69 a 111 de fls. 80 a 244 do SITAF e Anexos 11 e 12 ao mesmo, a fls. 247 a 4058 e págs. 1 a 276 de fls. 4061 a 4428 do SITAF);

5) Durante os anos de 2014, 2015 e 2016, a Impugnante recebeu veículos de retoma dos seus clientes (cf. RIT a págs. 69 a 111 de fls. 80 a 244 do SITAF e Anexo 11 ao mesmo, a págs. 1 a 22 de fls. 247 a 575 do SITAF);

6) A Impugnante emitiu por cada veículo que recebeu de retoma, descritos em 5), um documento interno justificativo no qual consta a matricula, o valor atribuído e a fatura a que respeita (cf. RIT a págs. 69 a 111 de fls. 80 a 244 do SITAF e Anexo 11 ao mesmo, a págs. 1 a 22 de fls. 247 a 575 do SITAF);

7) O valor atribuído aos veículos de retoma, descritos em 5), era calculado pela Impugnante pela diferença entre o valor do financiamento concedido ao cliente e o valor atribuído à viatura vendida (cf. RIT a págs. 69 a 111 de fls. 80 a 244 do SITAF e Anexo 11 ao mesmo, a págs. 1 a 22 de fls. 247 a 575 do SITAF);

8) A Impugnante não faturou o valor da retoma dos veículos descritos em 5) (cf. RIT a págs. 69 a 111 de fls. 80 a 244 do SITAF e Anexo 11 ao mesmo, a págs. 1 a 22 de fls. 247 a 575 do SITAF);

9) No ano de 2016 a Impugnante contabilizou como gastos € 1.674,61 respeitantes a deslocações e estadas (cf. RIT a págs. 69 a 111 de fls. 80 a 244 do SITAF e Anexo 23 ao mesmo, a págs. 174 a 176 de fls. 4431 a 4644 do SITAF);

10) No ano de 2016 a Impugnante contabilizou como gastos € 57.760,16 respeitantes a faturas constantes do portal E-Fatura (cf. RIT a págs. 69 a 111 de fls. 80 a 244 do SITAF e Anexo 18 ao mesmo, a págs. 119 a 135 de fls. 4431 a 4644 do SITAF);

11) Em 10-02-2016 foram emitidas em nome da Impugnante as Ordens de Serviço n.ºs OI201600173 e OI201600174 para inspeção externa de âmbito parcial ao IRC e IVA dos exercícios dos anos de 2014 e de 2015 (cf. RIT a págs. 69 a 111 de fls. 80 a 244 do SITAF);

12) Em 31-12-2016 a sociedade C..., S.A., emitiu em nome da Impugnante a fatura n.º 1160555563, no valor de € 1.674,61, constando como descrição o seguinte:

“Pagamento Final referente a Exmo.(a) Sr(a) D...
Serviço Pacotes
Pestana Cidadela Cascais - Pousada and Art District
Data Início: 31-12-2016 Data Fim: 02-01-2017”

(cf. RIT a págs. 69 a 111 de fls. 80 a 244 do SITAF e Anexo 24 ao mesmo, a págs. 177 de fls. 4431 a 4644 do SITAF);

13) Em 03-02-2017 foi emitida em nome da Impugnante a Ordem de Serviço n.º OI201700125 para inspeção externa de âmbito parcial ao IRC e IVA do exercício do ano de 2016 (cf. RIT a págs. 69 a 111 de fls. 80 a 244 do SITAF);

14) Em 19-02-2018 os serviços da AT elaboraram em nome da Impugnante o RIT referente às inspeções descritas em 11) e 13) do qual resultaram correções em sede de IVA por aplicação do regime de tributação normal, tendo sido considerada a base tributável de acordo com a aplicação do regime da margem (cf. RIT a págs. 69 a 111 de fls. 80 a 244 do SITAF e Anexo 11 ao mesmo, a págs. 1 a 22 de fls. 247 a 575 do SITAF);

15) Do RIT descrito em 14) resultaram ainda as seguintes correções à matéria tributável em sede de IRC:




(cf. RIT a págs. 69 a 111 de fls. 80 a 244 do SITAF);

16) Em 22-02-2018 os serviços da AT emitiram em nome da Impugnante a demonstração de liquidação de IRC e juros compensatórios do exercício de 2014 n.º 2018 8310001777 no valor total de € 3.973,02 (cf. demonstração a págs. 10 de fls. 16 a 54 do SITAF);

17) Na mesma data os serviços da AT emitiram em nome da Impugnante a demonstração de liquidação de IRC e juros compensatórios do exercício de 2015 n.º 2018 8310001105 no valor total de € 73.922,76 (cf. demonstração a págs. 6 de fls. 16 a 54 do SITAF);

18) Ainda na mesma data os serviços da AT emitiram em nome da Impugnante a demonstração de liquidação de IRC e juros compensatórios do exercício de 2016 n.º 2018 8310001111 no valor total de € 115.247,18 (cf. demonstração a págs. 3 de fls. 16 a 54 do SITAF).»



Quanto a factos não provados, na sentença exarou-se o seguinte:

«a) O gasto no valor de € 1.674,61 respeita a despesas de representação com clientes.
Não foram alegados quaisquer outros factos passíveis de afetar a decisão de mérito, em face das possíveis soluções de direito, e que, por conseguinte, importe registar como provados ou não provados.»


E quanto à motivação da decisão de facto, consignou-se:

«A convicção do Tribunal relativamente à matéria de facto dada como provada, conforme discriminado nos vários pontos do probatório, resulta dos factos alegados pelas partes e da análise dos documentos por estas juntos, que não foram impugnados, dando-se por integralmente reproduzido o teor dos mesmos bem como o do PA apenso aos autos.

Quanto aos factos não provados, os mesmos resultam de não terem sido juntos aos autos quaisquer elementos no sentido pugnado.»


II.2 Do Direito

A Impugnante e ora Recorrente impugnou judicialmente as liquidações adicionais de IRC e respetivos juros compensatórios, relativas aos anos de 2014, 2015 e 2016.

Notificada da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, dela veio recorrer para este Tribunal Central Administrativo Sul.

Nas alegações de recurso apresentadas insurge-se não apenas contra a sentença proferida à qual imputa erro de julgamento mas impugna também o despacho que considerou desnecessária a inquirição da testemunha arrolada.

Vejamos, pois, em primeiro lugar quanto a este despacho que considerou desnecessária a produção de prova testemunhal, porquanto a eventual procedência do recurso nesta parte é suscetível, por si só, de alterar a decisão de mérito proferida na sentença recorrida.

Na petição inicial, a Impugnante e ora Recorrente arrolou como testemunha a Contabilista Certificada, responsável pela contabilidade da empresa nos anos aqui em causa e que acompanhou o procedimento de inspeção a que foi submetida.

Efetivamente, no processo de impugnação judicial, com a petição deve ser apresentada a prova, juntando-se os documentos e requerendo-se a realização das diligências que o impugnante pretende ver realizadas.

Assim, com os articulados devem ser disponibilizados os meios de prova dos fundamentos da ação e apresentados os documentos em que se aleguem os factos correspondentes.

O princípio da autorresponsabilidade das partes deve ser conjugado com o do inquisitório considerando-se que este último não dimensiona o suprimento por iniciativa do juiz da omissão de articulação de factos estruturantes da causa no momento processualmente adequado.

Como vimos já, no caso em análise, o Impugnante e ora Recorrente na parte final da impugnação judicial apresentada arrolou uma testemunha.

No despacho em causa atendeu-se à factualidade relevante alegada na petição e os meios de prova oferecidos com o articulado, ponderando sobre a necessidade da sua produção e/ou interesse da inquirição da testemunha oferecida aos factos alegados, tendo concluído pela sua desnecessidade da sua produção.

Vejamos:

O Impugnante e ora Recorrente apresentou a testemunha para prova dos factos contidos nos artigos 16.º, 18.º, 21.º e 24.º a 26.º da Petição Inicial.

É o seguinte o teor do despacho recorrido, com o qual não se conforma a Recorrente:

Conforme requerimento a fls. 4681 a 4682 do SITAF, indica a Impugnante a necessidade de inquirição da testemunha arrolada quanto aos factos vertidos nos artigos 16.º, 18.º, 21.º e 24.º a 26.º da petição inicial.
Porém, atenta a petição inicial, os referidos artigos incidem sobre considerações da Impugnante (artigos 16.º, 18.º e 21.º) e matéria de direito (artigos 24.º a 26.º).
Assim, compulsados os autos, considerando o pedido formulado pela Impugnante e os fundamentos respetivos, bem como os documentos juntos aos autos e a contestação apresentada, conclui-se que nos artigos apresentados pela Impugnante não são alegados quaisquer factos concretos suscetíveis de serem provados através de prova testemunhal, motivo pelo qual se indefere a diligência de prova.
Notifique.

Desde já diremos que tal como decidido, os artigos da petição inicial indicados pela Impugnante e ora Recorrente como contendo os factos aos quais pretendia que a testemunha fosse inquirida, ou são conclusivos ou não contêm factos suscetíveis de prova testemunhal.

Contra o decidido no despacho recorrido, alega o Impugnante e ora Recorrente que relativamente aos factos invocados na petição inicial de Impugnação judicial, a prova testemunhal mostrar-se-á especialmente útil para a demonstração, plena e inequívoca, sobre a forma como a aqui RECORRENTE contabilizou as vendas dos seus veículos automóveis, designadamente as vendas que envolveram veículos de retoma, entregues pelos adquirentes dos veículos da RECORRENTE e, bem assim, sobre o modo de cálculo do IVA devido pelas vendas dos veículos, ao abrigo do regime de venda de bens em segunda mão, e as repercussões em sede de IRC, derivadas das correcções na base tributável de IVA, determinadas pela inspecção tributária, com a aplicação do regime geral de IVA às vendas dos veículos automóveis realizadas pela RECORRENTE nos exercícios de 2014, 2015 e de 2016. [cf. conclusão J) das alegações de recurso].


As liquidações impugnadas resultaram de ação de inspeção externa que concluiu pela omissão de proveitos, respeitantes à forma como foram contabilizados os réditos relativos aos veículos automóveis entregues em retoma, corrigindo para mais o declarado em sede de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC) e de imposto sobre o valor acrescentado (IVA).

Em causa nos presentes autos estão apenas as liquidações adicionais de IRC, já não as liquidações adicionais de IVA que não foram aqui impugnadas.

Ora, da conclusão de recurso transcrita supra resulta que o depoimento da testemunha poderá (ou não) ser relevante em sede de impugnação de IVA, mas que, em sede de impugnação às liquidações adicionais de IRC, efetivamente, não são alegados factos suscetíveis de prova testemunhal, tal como decidido.

Mais além alega o Impugnante e ora Recorrente que o decidido importa violação do princípio do contraditório [cf. conclusão P) das alegações de recurso].

É inquestionável que todos têm direito a um processo justo e equitativo (due processo of law), enquanto corolário direto da ideia de Estado de direito democrático. É, pois, um subprincípio da tutela jurisdicional efetiva, sendo absolutamente estruturante na construção e aplicação do direito processual ou adjetivo.

Uma das manifestações do due process of law é precisamente o direito ao contraditório, materializado no artigo 3/3 CPC. Assim, o Juiz deve observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

O princípio do contraditório, é um princípio fundamental do direito processual, que assegura não só a igualdade das partes, como uma «garantia de participação efetiva das partes em todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que, em qualquer fase do processo, apareçam como potencialmente relevantes para a decisão» (Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, 4.ª Edição, Gestlegal, Coimbra, 2017, p. 127) .

Com efeito, os Juízes estão vinculados à obrigação de garantir, ao longo de toda a lide, uma verdadeira e efetiva igualdade substancial das partes.

Ora, antes de ser proferido o despacho que considerou desnecessária a produção de prova testemunhal, o Impugnante e ora Recorrente foi ouvido.

Com efeito, o ora Recorrente foi notificado para indicar os factos concretos da petição inicial que pretendia a que seja inquirida a testemunha arrolada, e advertido de que, em tal esclarecimento, deveria[m] ser tidos em conta os factos jaì constantes da prova documental, excluindo os conceitos de direito e juízos conclusivos.

E, foi perante a resposta do Impugnante e ora Recorrente que foi proferido o despacho transcrito e com o qual se não conforma.

Não vislumbramos, pois, sem maior densificação por parte do Recorrente, que o decidido importe violação do princípio do contraditório.

Termos em que improcede o recurso nesta parte.

Vejamos agora quanto ao alegado erro de julgamento.

Alega o ora Recorrente que a Autoridade Tributária e Aduaneira violou o princípio do contraditório não tendo efetuado as diligências investigatórias que lhe permitissem conhecer a verdade material, designadamente no que diz respeito ao valor atribuído às retomas [cf. conclusões T) a V) das alegações de recurso], porquanto, competia à Administração tributária, na fase do procedimento inspectivo, em cumprimento do princípio do inquisitório a que se encontra adstrita na sua actividade administrativa, realizar todas as diligências necessárias à descoberta da verdade material, de forma a que pudesse reunir todos os elementos e informações necessárias ao bom enquadramento e compreensão dos aspectos específicos da actividade da RECORRENTE, o que, como vimos, não fez [cf. conclusão BB) das alegações de recurso].

O Impugnante e ora Recorrente exerce como atividade principal a venda de veículos importados em estado de uso provenientes de países da União Europeia. Nessa atividade de venda de veículos, por vezes recebe em troca veículos com matrícula nacional de menor valor os quais são contabilizados pela diferença entre o valor de avaliação proposto ao comprador e o de financiamento. Estes veículos serão posteriormente revendidos, constituindo esta atividade de “retoma”, segundo apurado pela Autoridade Tributária e Aduaneira e vertido no relatório de inspeção, uma atividade secundária.

E é esta atividade secundária que dá origem à conclusão a que chegou a Autoridade Tributária e Aduaneira através dos Serviços de Inspeção Tributária de se verificarem omissões de réditos e a que corresponde a maior fatia das correções à matéria coletável declarada, com a qual não se conforma o Impugnante e ora Recorrente. Na verdade, foram efetuadas outras correções à matéria tributável, nomeadamente relativas a despesas de representação, mas que não são objeto do presente recurso.

Desde já adiantaremos que a sentença recorrida não merece a censura que lhe é feita pela Recorrente e pouco há a acrescentar ao que já se encontra explicitado, na sentença da 1ª instância, sobre a pretensa violação do princípio do inquisitório.

Vejamos o que se decidiu na sentença recorrida no segmento que aqui interessa:

Segundo a Impugnante, os serviços da AT teriam que ter apurado corretamente o valor da totalidade das retomas recebidas, com vista a demonstrar a alegada omissão de proveitos em sede de IRC, e consequentemente considerar a correção da base tributável para efeitos de IVA, sob pena de violação do principio da justiça, previsto no artigo 58.º da Lei Geral Tributária (LGT).
Mais alega que a conduta da AT é manifestamente violadora do princípio do inquisitório, uma vez que a mesma nunca se preocupou em saber qual o valor atribuído às retomas, no momento da aquisição, limitando-se a aceitar a diferença entre o valor do financiamento concedido ao cliente e o valor atribuído à viatura vendida, de acordo com os procedimentos da Impugnante.
Verificando, o princípio do inquisitório, estabelecido nos artigos 58.º da LGT e 56.º do CPA, determina que o responsável pela direção do procedimento deve procurar averiguar os factos cujo conhecimento seja adequado e necessário à tomada de uma decisão legal e justa, e ao princípio da imparcialidade, previsto no artigo 6.º deste último Código, que manda atender a todos os interesses relevantes no contexto decisório.
Há que considerar que a observância do disposto nos referidos artigos exige o exercício de valorações próprias da função administrativa, uma vez que cabe ao decisor administrativo ajuizar, perante o caso concreto, que diligências probatórias complementares se mostram ou não necessárias e adequadas, nos termos também previstos no artigo 104.º do CPA.
A determinação de quais as diligências necessárias e oportunas corresponde, assim, a uma decisão procedimental adotada com margem de discricionariedade, pelo que só poderá ser julgada ilegal na medida em que seja manifesta essa oportunidade e necessidade, sendo a decisão contrária desconforme ao princípio da justiça, previsto no artigo 55.º da LGT.
Assim, para que a não realização de tais diligências se mostrasse contrária ao disposto no artigo 58.º da LGT e, portanto, ao princípio do inquisitório, haveria de ser inequívoca a relevância dos factos alegados pela Impugnante para a tomada de uma decisão legal e justa.
Só esse caráter inequívoco permitiria afirmar que houve uma decisão ilícita da administração.
Ora, no caso concreto, a Impugnante afirma que a AT deveria ter procedido a diligências para determinar qual o valor real dos veículos que recebeu de retoma, conforme decorre dos factos provados em 5).
Todavia, não concretiza a Impugnante o motivo pelo qual o valor considerado pela AT não está correto, sendo certo, de acordo com o provado em 6) e 7), que a metodologia utilizada no RIT foi, precisamente, aquela que a Impugnante empregava também, ou seja, o valor dos veículos de retoma foi calculado pela diferença entre o valor do financiamento concedido ao cliente e o valor atribuído à viatura vendida.
Assim, se por um lado a realização de todas as diligências necessárias para a descoberta da verdade constitui um verdadeiro dever, como supra se expôs e nos termos do artigo 58.º da LGT, por outro lado, não cabe à AT recolher a informação contabilística das sociedades, mas apenas realizar as diligências necessárias à comprovação dessa mesma contabilidade, conforme prevê o artigo 17.º do Código do IRC (CIRC).
Do exposto, resulta que não tinha a AT a obrigação de proceder a diligências para comprovar valores que a Impugnante reputou como sendo os corretos e que nem esta esclarece porque devem, agora, ser considerados incorretos, pelo que não resulta dos autos a omissão de diligências indispensáveis para a descoberta da verdade material, não existindo, por isso, vício procedimental que acarrete a anulabilidade das liquidações impugnadas.

A sentença recorrida, como se vê do excerto transcrito, ponderou os argumentos da Impugnante ora Recorrente, e concluiu que a atuação dos Serviços não merecia a crítica que lhe foi feita.

Com efeito, no procedimento tributário a administração tributária deve realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido (cf. artigo 58º da LGT), podendo os órgãos competentes, nos termos da lei, desenvolver todas as diligências necessárias ao apuramento da situação tributária dos contribuintes (artigo 63/1 LGT).

Assim, no âmbito da atividade de inspeção tributária a Autoridade Tributária e Aduaneira tem de obedecer aos princípios enunciados no artigo 5º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária (RCPIT) aprovado pelo Decreto-Lei nº 413/98, de 31 de dezembro.

Diz o artigo 6.º do RCPIT, sob a epígrafe Princípio da verdade material:

“O procedimento de inspeção visa a descoberta da verdade material, devendo a administração tributária adotar oficiosamente as iniciativas adequadas a esse objetivo”.

Todavia, este princípio do inquisitório ou da descoberta da verdade material que deve nortear a atuação da Autoridade Tributária e Aduaneira na prossecução do interesse público, tem de conjugar-se com as regras da distribuição do ónus da prova.

Nos termos do nº 1 do artigo 74º da Lei Geral Tributária (LGT):
“O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”.

Ora, tal como decidido, não tendo sido postos em causa os valores das retomas contabilizados pela Impugnante e ora Recorrente, mal se compreende porque é que a Autoridade Tributária e Aduaneira teria de proceder oficiosamente a diligências para apuramento desses montantes e que, em todo o caso, o ora Recorrente não identifica.

Por fim, quanto ao alegado erro de quantificação da matéria coletável, resultante do reflexo das correções efetuadas em sede de IVA, também não merece censura o decidido na sentença recorrida.

Contabilisticamente, as vendas, representadas pela faturação, devem ser deduzidas do IVA e de outros impostos e incidências nos casos em que nela estejam incluídos (cf. Notas de enquadramento à Classe 7 elaboradas pela Comissão de Normalização Contabilística).

Com efeito, o Regime Especial de Tributação dos Bens em Segunda Mão (ou Regime da Margem) visa o apuramento do IVA, sendo que os réditos das vendas das viaturas são reconhecidas pelo justo valor da retribuição recebida ou a receber, e não pela margem da operação.

Assim sendo, as regras específicas deste regime na determinação do valor tributável em IVA não têm qualquer reflexo em termos de reconhecimento do rédito inerente à operação, que segue o disposto no normativo contabilístico aplicável.

Nesse sentido, veja-se o decidido no recente acórdão deste TCAS, de 2022.11.10, Proc nº 599/18.5BEALM, disponível em www.dgsi.pt, o qual foi subscrito pela relatora na qualidade de 2ª Adjunta.

De todo o modo, ainda se dirá que o Impugnante e ora Recorrente nada demonstrou quanto ao alegado excesso de quantificação da matéria tributável.


Em face do exposto a sentença que assim decidiu não padece do erro de julgamento que lhe é apontado, sendo, pois, de confirmar.



Sumário/Conclusões:

I. Com os articulados devem ser disponibilizados os meios de prova dos fundamentos da ação e apresentados os documentos em que se aleguem os factos correspondentes.

II. O princípio da autorresponsabilidade das partes deve ser conjugado com o do inquisitório considerando-se que este último não dimensiona o suprimento por iniciativa do juiz da omissão de articulação de factos estruturantes da causa no momento processualmente adequado.

III. No procedimento tributário a administração tributária deve realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido (cf. artigo 58º da LGT), podendo os órgãos competentes, nos termos da lei, desenvolver todas as diligências necessárias ao apuramento da situação tributária dos contribuintes (artigo 63/1 LGT).
IV. Todavia, este princípio do inquisitório ou da descoberta da verdade material que deve nortear a atuação da Autoridade Tributária e Aduaneira na prossecução do interesse público, tem de conjugar-se com as regras da distribuição do ónus da prova.


III - Decisão

Termos em que, face ao exposto, acordam em conferência os juízes da 2ª Subsecção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente que decaiu.

Lisboa, 4 de maio de 2023


Susana Barreto

Tânia Meireles da Cunha

Jorge Cortês