Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:505/20.7BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:08/31/2020
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:ASILO;
ITÁLIA;
COMPARAÇÃO COM PORTUGAL.
Sumário:I - Não constando dos autos qualquer facto notório ou uma alegação fáctica indiciária ou minimamente densificada de que, recente ou atualmente, em Itália, ocorre uma proteção internacional com um nível grave ou grosseiro de insuficiência no sentido do Regulamento (UE) n.º 604/2013, ou seja, como diz o TJUE, de que existem deficiências sistémicas ou generalizadas com um “nível particularmente elevado de gravidade” que permitam prever que o requerente correrá o risco sério de um “tratamento desumano ou degradante” no outro Estado-Membro, não podemos elencar, porque não existem, factos atuais ou recentes no sentido de Itália ter essa proteção internacional com um nível grave ou grosseiro de insuficiência. Itália, comparada ou não com Portugal por exemplo (aspeto omitido em geral: “campos de requerentes de asilo pré-fabricados com condições melhores do que certas prisões no estrangeiro”, ou eventuais “pensões-residenciais sobrelotadas e sem higiene em Portugal”?), não é um Estado da U.E. em que existam deficiências sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento do requerente, que implicam o risco de ser desrespeitado o direito absoluto de o requerente não ser sujeito a penas ou tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos.

II - Itália, um Estado democrático de Direito, notoriamente uma das economias mais ricas da rica U.E., não é, com base nos factos alegados e nos factos notórios, um Estado em que existam deficiências sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes que impliquem o risco de ser desrespeitado o direito dos requerentes a não serem sujeitos a penas ou tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos.

III - Enfim, (i) nas circunstâncias de facto provadas e (ii) nas circunstâncias de facto que são notórias, sendo a Itália o país aqui responsável ao abrigo do artigo 13º/1 do Regulamento cit., o Estado português atuou em conformidade com o Direito substantivo europeu e o Direito substantivo nacional, e proferiu decisão no sentido da inadmissibilidade do pedido do recorrente, nos termos do consabido art 19º-A/1-al. a) da Lei de Asilo portuguesa.

IV - Entender o contrário nestas circunstâncias (1º) seria, a final, ignorar frontalmente a factualidade provada e (2º) seria, ainda, pouco racional e incongruente com a “comunidade” de países com Estado democrático de Direito sujeita ao cit. Regulamento europeu, ademais se não se demonstrar que a situação portuguesa é muito melhor do que a do Estado Membro parceiro.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul

I – RELATÓRIO

Y..........., cidadão da Guiné Bissau, intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de LISBOA ação administrativa impugnatória urgente contra

MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA.

A pretensão formulada perante o tribunal a quo foi a seguinte:

- Anulação do despacho proferido pela Diretora Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (“SEF”), em 27 de janeiro de 2020, que considerou inadmissível o pedido de proteção internacional apresentado pelo Requerente e determinou a sua transferência para Itália.

Por sentença de 16-4-2020, o tribunal a quo decidiu absolver o MAI do pedido.

*

Inconformada, o autor interpôs o presente recurso de apelação contra aquela decisão, formulando na sua alegação o seguinte extenso quadro conclusivo:

1) O recurso é interposto contra a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, que julgou improcedente a impugnação jurisdicional apresentada contra o Despacho proferido pelo SEF, que julgou inadmissível o pedido de proteção internacional apresentado pelo ora Recorrente e confirmou a ordem de transferência do Requerente.

2) O SEF desencadeou o procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional e concluiu que “(...) de acordo com os critérios e mecanismos de determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional estabelecidos pelo Regulamento Dublin, a Itália é o Estado-Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional (...)”.

3) Consequentemente, ordenando a transferência do Recorrente para Itália.

4) O Impugnante invocou na sua impugnação que a decisão do SEF não teve em conta evidentes e conhecidos constrangimentos no acolhimento de refugiados em situações condignas e na sua permanência em Itália, pondo em risco uma violação do artigo 4.° da CDFUE e do artigo 3.º da CEDH, na medida em que poderá dar-se o caso de o Impugnante ser submetido a tratos desumanos ou degradantes.

5) Nesta medida, defendeu o Impugnante que a decisão do SEF deveria ser anulada.

6) O Tribunal a quo discordou dos argumentos invocados pelo Impugnante, mantendo a decisão do SEF.

7) Nesta impugnação jurisdicional não se discute a viabilidade ou a legalidade na concessão de Direito de Asilo.

8) Encontrando-se a análise dos litígios pelos Tribunais delimitada pelas questões suscitadas pelas partes (cfr. artigo 608.º, n.º 2 do CPC, ex vi art.º 1 do CPTA).

9) Ora, sem pertinência para a decisão do presente caso, o Tribunal começa a Fundamentação de Direito da sua sentença por “traçar um breve enquadramento jurídico relativamente ao direito de proteção internacional”, referindo-se às leis que definem os pressupostos do Direito de Asilo, designadamente o artigo 3.º n.ºs 1 e 2 da Lei do Asilo

10) Mas, destas normas não podem ser retiradas quaisquer consequências para o caso em apreço, nem tão pouco podem estar na base da formação da convicção do Tribunal a quo.

11) Na medida em que são irrelevantes para apreciar a decisão final do SEF proferida no âmbito do procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional.

12) Como resulta do n.º 2 do art.º 19.º-A da Lei n.º 27/2008, de 30.06, nos casos de inadmissibilidade imediata do pedido de proteção internacional prescinde-se da análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de proteção internacional.

13) Adicionalmente, por diversas vezes, o Tribunal a quo refere-se ao facto de o Impugnante em nenhum momento da instrução ter alegado que foi vítima de uma privação material extrema, que passou necessidades e que foi vítima de um tratamento desumano.

14) Ora, entendemos que esta afirmação do Tribunal a quo deveria, necessariamente, ter sido devidamente enquadrada na realidade social, cultural e financeira do sujeito, ora Recorrente.

15) A noção de “privação material extrema” que para o Tribunal a quo se resume na impossibilidade de o Recorrente alimentar-se, lavar-se e alojar-se, para a generalidade das pessoas que pedem asilo corresponde à real ameaça do seu Direito à vida.

16) E, como tal, não se queixam por não poderem alimentar-se, lavar-se ou alojar-se.

17) Queixam-se apenas quando podem ser mortos. Quando a sua vida está realmente ameaçada. Não se queixam da falta de uma vida condigna. Até porque não sabem o que isso significa. Como é que se pede o que nunca se teve?

18) Assim, andou mal o Tribunal a quo ao referir na sua sentença o seguinte:

“Com efeito, a instrução dos procedimentos administrativos importa o apuramento dos factos que se mostrem pertinentes para a concreta decisão a tomar: se a aplicação do disposto no artigo 3.º, n.º 2, 2.º parágrafo implica que se reconheça que o Requerente quedaria em situação de privação material extrema caso a transferência fosse executada e, simultaneamente, se o Requerente de proteção internacional alegou expressamente que lhe eram dadas determinadas condições em Itália, então não estava a Entidade Requerida obrigada a proceder a ulteriores diligências instrutórias para aquele efeito.”

19) Ora, dos factos dados como provados relevantes para a boa decisão da causa, não consta que o Requerente de proteção internacional, ora Recorrente, tenha referido expressamente que lhe “eram dadas determinadas condições em Itália”.

20) O mesmo também não consta das declarações prestadas junto do SEF.

21) Estes factos foram desconsiderados pelo Tribunal a quo na Fundamentação da matéria de facto da sua sentença e como tal não devem servir de fundamento à sua decisão final.

22) Na ponderação da natureza instrumental do processo e dos princípios da cooperação e adequação formal, as decisões que, no contexto adjetivo, relevam decisivamente para a decisão justa da questão de mérito, devem ser fundamentadas de modo claro e indubitável,

23) Pois só assim ficam salvaguardados os Direitos das partes, mormente, em sede de recurso da matéria de facto, habilitando ao cumprimento do ónus imposto ao recorrente impugnante da matéria de facto, mormente, quanto à concreta indicação dos pontos de facto considerados incorretamente julgados e os concretos meios de prova, nos termos das alíneas a) e b) do nº 1 do art. 640º do Código de Processo Civil, ex vi art.º 1.º do CPTA.

24) A situação dos migrantes e, mais concretamente, dos campos de refugiados em Itália é gravíssima, sobretudo no que respeita às condições diárias em que estas pessoas vivem.

25) Estas circunstâncias podem ser desconhecidas, mas reconheça-se que este é um desconhecimento consciente.

26) Ademais, o Recorrente na fase de instrução do processo afirmou que quando entrou na Europa, “não pedi[u] asilo porque queria vir para Portugal.”.

27) No entanto, ao atravessar a fronteira com a França era sempre obrigado a voltar para Itália.

28) O Recorrente esteve em França e em Espanha e em nenhum destes países solicitou um pedido de Direito de asilo.

29) Assim, parece-nos excessivo afirmar que podemos estar perante uma situação de utilização abusiva dos procedimentos de asilo, também designado asylum shopping, que consiste na apresentação de pedidos múltiplos pelo mesmo requerente em diversos Estados Membros, com o objetivo de neles prolongar a sua estadia.

30) Como tal, não concordamos com o conteúdo da decisão do Tribunal a quo, que enferma de um evidente erro de julgamento devendo, consequentemente, ser revogada a sentença.

31) Ora vejamos, o procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional rege-se pelos artigos 36.º e seguintes da Lei do Asilo e pelo Regulamento (UE) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, designado Regulamento Dublin.

32) De acordo com o disposto no artigo 3.º do Regulamento (UE) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, os Estados devem analisar os pedidos de proteção internacional que lhe são apresentados, nos termos legalmente previstos, lendo-se o seguinte:

“Os Estados-Membros analisam todos os pedidos de proteção internacional apresentados por nacionais de países terceiros ou por apátridas no território de qualquer Estado-Membro, inclusive na fronteira ou nas zonas de trânsito. Os pedidos são analisados por um único Estado-Membro, que será aquele que os critérios enunciados no Capítulo III designarem como responsável.”.

33) Neste mesmo Regulamento vem regulado o procedimento aplicável aos pedidos de retoma a cargo, ou seja, quando um Estado considerar que é um outro Estado o responsável pela análise do pedido de proteção internacional nos termos do Regulamento, poderá apresentar junto desse Estado Membro um “pedido de retomada a cargo”, lendo-se no artigo 23.º o seguinte:

“Se o Estado-Membro ao qual foi apresentado um novo pedido de proteção internacional pela pessoa referida no artigo 18.º, n.º 1, alíneas b), c) ou d), considerar que o responsável é outro Estado-Membro, nos termos do artigo 20.o, n.º 5 e do artigo 18.º, n.º 1, alíneas b), c) ou d), pode solicitar a esse outro Estado-Membro que retome essa pessoa a seu cargo.”

34)Efetivamente, o artigo 25.º do Regulamento Dublin presume a aceitação tácita dos pedidos de retoma a cargo, nos casos em que o Estado Membro requerido (neste caso, Itália) não decide expressamente o pedido no prazo de duas semanas.

35) No entanto, de acordo com o artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento Dublin, caso seja impossível transferir um requerente para o Estado-Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável prossegue à análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável.

36) Assim, neste caso, cumpre ao Estado onde foi apresentado o pedido de proteção internacional analisá-lo, lendo-se no último parágrafo do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento (UE) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, o seguinte:

“Caso não possa efetuar-se uma transferência ao abrigo do presente número para um Estado-Membro designado com base nos critérios estabelecidos no Capítulo III ou para o primeiro Estado-Membro onde foi apresentado o pedido, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável passa a ser o Estado-Membro responsável. Ora, resulta dos factos assentes que os serviços do SEF não procederam a nenhuma indagação acerca da existência de falhas sistémicas no tratamento do Requerente de proteção internacional. Por seu lado, o Tribunal a quo afirma que “em conformidade com o princípio de confiança mútua, existe a presunção de que o tratamento dado aos beneficiários de proteção internacional em cada Estado-Membro se mostra conforme às exigências da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, da Convenção de Genebra e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos – presunção que pode, naturalmente, ser ilidida.”.

37)Adicionalmente, imputa ao ora Recorrente o ónus de alegar que foi “alvo (ou estar em risco de o ser) de qualquer perseguição ou tratamento desumano ou degradante em Itália.”.

38) Na impugnação foi alegado que a transferência do ora Recorrente para Itália põe em risco uma violação do artigo 4.° da CDFUE e do artigo 3.º da CEDH, na medida em que poderá dar-se o caso de o Impugnante ser submetido a tratos desumanos ou degradantes. (cfr. artigos 30.º a 39.º da petição).

39) Ademais, é do conhecimento público, por terem sido noticiadas, a existência de problemas e muitas condicionantes associadas ao procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional em Itália, que se poderão enquadrar no conceito legal de “falhas sistémicas”, falhas essas que o Recorrente, é certo, não invocou nas declarações que prestou no SEF, embora sejam invocadas na petição inicial dos autos em apreço.

40) Em detrimento do princípio de confiança mútua entre Estados-Membros, entendemos que o caso em apreço deveria ser apreciado sob a égide do princípio da solidariedade entre os Estados Membros.

41) Importa realçar que desde julho de 2019 encontra-se em discussão entre 14 países da União Europeia, incluindo Portugal, um novo mecanismo de solidariedade em relação à migração, através do qual se pretende que a responsabilidade pelo acolhimento dos migrantes seja repartida pelos vários países Europeu.

42) Os Estados devem assumir uma postura de cooperação e colaboração recíprocas na resolução dos problemas mundiais – de saúde pública; de migrações; culturais; guerras; e terrorismo.

43) Quando estes casos são apresentados juntos dos Tribunais, é ao poder jurisdicional que cabe decidir numa análise casuística, mas consciente da realidade jurídica, social e mundial, sobre qual deverá ser a postura do Estado Português na análise dos pedidos de proteção internacional.

44) Assim como, ao abrigo de um poder discricionário que é concedido a cada Estado-Membro nos termos do art. 17.º, n.º 1 do Regulamento de Dublin, estes podem “decidir analisar um pedido de proteção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força dos critérios definidos no presente regulamento”. (cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proc. 557/19.2BELSB, 26.09.2019).

45) A jurisprudência dos Tribunais tem sido divergente em relação a esta matéria.

46) No entanto, os recentes acórdãos do Tribunal Central Administrativo do Sul proferido no proc. 557/19.2BELSB, em 26.09.2019 e no Acórdão n.º 1982/18.1BELSB, de 22-08-2019, deste TCA Sul, confirmam a existência de falhas sistémicas em Itália, que devem ser ponderadas na decisão do SEF.

47) A verdade é que, as falhas sistémicas no procedimento de asilo em Itália são manifestas, tendo levado à celebração de um acordo em 2018 entre Itália e a Líbia para parar o fluxo migratório, bem como a aprovação por unanimidade do Decreto Salvini sobre segurança e imigração.

48) Em suma, deveria, o SEF ter instruído oficiosamente o procedimento especial que lhe incumbia decidir, nele fazendo constar informação fidedigna e atualizada sobre o procedimento de asilo e condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional em Itália, por forma a verificar se, no caso concreto, existiam motivos que determinassem a impossibilidade da transferência do Recorrido, nos termos do art.º 3.º, n.º 2, do Regulamento de Dublin, recorrendo, para o efeito, a fontes credíveis, obtidas, designadamente, junto do Gabinete Europeu de Apoio em matéria de Asilo do ACNUR e de pertinentes organizações de direitos humanos.

49) Nada disso foi feito no procedimento em apreço, onde se decidiu sem antes averiguar acerca das indicadas condições no procedimento de asilo e no acolhimento no Estado-Membro responsável, in casu, Itália.

50) Em face do que, deverá ser anulada a sentença recorrida quanto admite a decisão do SEF nos termos em que foi proferida, ordenando-se a emissão de nova decisão, depois de instruir devidamente o procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional.

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Cumpridos que estão neste tribunal de apelação os demais trâmites processuais, vem o recurso à conferência para o seu julgamento.

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Delimitação do objeto da apelação - questões a decidir

Os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal a quo, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso. Esta alegação apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de Direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas.

Assim, tudo visto, cumpre a este tribunal de apelação resolver o seguinte:

-Erro de julgamento de direito quanto a o SEF ter de fazer a aferição (instrutória) da situação no país estrangeiro a que se refere o artigo 3º/2 do Regulamento U.E. 604/2013.

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II – FUNDAMENTAÇÃO

II.1 – FACTOS PROVADOS

O tribunal a quo fixou o seguinte quadro factual:


«imagens no original»


«imagens no original»





«imagem no original»


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II.2 – APRECIAÇÃO DO RECURSO

Tendo presente o exposto, passemos agora à análise dos fundamentos do presente recurso.

1.

Consta do Regulamento (UE) n.º 604/2013 (estabelece os critérios e mecanismos para a determinação do Estado-Membro responsável pela análise dos pedidos de proteção internacional apresentados num dos Estados-Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida) o seguinte:

Artigo 3º Acesso ao procedimento de análise de um pedido de proteção internacional

1. Os Estados-Membros analisam todos os pedidos de proteção internacional apresentados por nacionais de países terceiros ou por apátridas no território de qualquer Estado-Membro, inclusive na fronteira ou nas zonas de trânsito. Os pedidos são analisados por um único Estado-Membro, que será aquele que os critérios enunciados no Capítulo III (1) designarem como responsável.

2. Caso o Estado-Membro responsável não possa ser designado com base nos critérios enunciados no presente regulamento, é responsável pela análise do pedido de proteção internacional o primeiro Estado-Membro em que o pedido tenha sido apresentado.

Caso seja impossível transferir um requerente para o Estado-Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável.

Artigo 5º Entrevista pessoal

1. A fim de facilitar o processo de determinação do Estado-Membro responsável, o Estado-Membro que procede à determinação realiza uma entrevista pessoal com o requerente. A entrevista deve permitir, além disso, que o requerente compreenda devidamente as informações que lhe são facultadas nos termos do artigo 4.o.

3. A entrevista pessoal deve realizar-se em tempo útil e, de qualquer forma, antes de ser adotada qualquer decisão de transferência do requerente para o Estado-Membro responsável nos termos do artigo 26.o, n.o 1.

6. O Estado-Membro que realiza a entrevista pessoal deve elaborar um resumo escrito do qual constem, pelo menos, as principais informações facultadas pelo requerente durante a entrevista. Esse resumo pode ser feito sob a forma de um relatório ou através de um formulário-tipo. O Estado-Membro assegura que o requerente e/ou o seu advogado ou outro conselheiro que o represente tenha acesso ao resumo em tempo útil.

Capítulo III Critérios de determinação do estado-membro responsável

Artigo 7º Hierarquia dos critérios

1. Os critérios de determinação do Estado-Membro responsável aplicam-se pela ordem em que são enunciados no presente capítulo.

2. A determinação do Estado-Membro responsável em aplicação dos critérios enunciados no presente capítulo é efetuada com base na situação existente no momento em que o requerente tiver apresentado pela primeira vez o seu pedido de proteção internacional junto de um Estado-Membro.

Artigo 13º Entrada e/ou estadia

1. Caso se comprove, com base nos elementos de prova ou nos indícios descritos nas duas listas referidas no artigo 22.o , n.o 3, do presente regulamento, incluindo os dados referidos no Regulamento (UE) n.o 603/2013, que o requerente de asilo atravessou ilegalmente a fronteira de um Estado-Membro por via terrestre, marítima ou aérea e que entrou nesse Estado-Membro a partir de um país terceiro, esse Estado-Membro é responsável pela análise do pedido de proteção internacional. Essa responsabilidade cessa 12 meses após a data em que teve lugar a passagem ilegal da fronteira.

2. Quando um Estado-Membro não possa ser ou já não possa ser tido como responsável nos termos do n.o 1 do presente artigo e caso se comprove, com base nos elementos de prova ou indícios descritos nas duas listas referidas no artigo 22.o, n.o 3, que o requerente – que entrou nos territórios dos Estados-Membros ilegalmente ou em circunstâncias que não é possível comprovar – permaneceu num Estado-Membro durante um período ininterrupto de pelo menos cinco meses antes de apresentar o seu pedido de proteção internacional, esse Estado-Membro é responsável pela análise do pedido de proteção internacional.

Artigo 17º Cláusulas discricionárias

1. Em derrogação do artigo 3.o, n.o 1, cada Estado-Membro pode decidir analisar um pedido de proteção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força dos critérios definidos no presente regulamento.

Artigo 18º Obrigações do Estado-Membro responsável

1. O Estado-Membro responsável por força do presente regulamento é obrigado a:

a) Tomar a cargo, nas condições previstas nos artigos 21.o, 22.o e 29.o, o requerente que tenha apresentado um pedido noutro Estado-Membro;

b) Retomar a cargo, nas condições previstas nos artigos 23.o, 24.o, 25.o e 29.o, o requerente cujo pedido esteja a ser analisado e que tenha apresentado um pedido noutro Estado-Membro, ou que se encontre no território de outro Estado-Membro sem possuir um título de residência;

c) Retomar a cargo, nas condições previstas nos artigos 23.o, 24.o, 25.o e 29.o, o nacional de um país terceiro ou o apátrida que tenha retirado o seu pedido durante o processo de análise e que tenha formulado um pedido noutro Estado-Membro, ou que se encontre no território de outro Estado-Membro sem possuir um título de residência;

d) Retomar a cargo, nas condições previstas nos artigos 23.o, 24.o, 25.o e 29.o, o nacional de um país terceiro ou o apátrida cujo pedido tenha sido indeferido e que tenha apresentado um pedido noutro Estado-Membro, ou que se encontre no território de outro Estado-Membro sem possuir um título de residência.

Nos casos abrangidos pelo n.o 1, alínea d), se o pedido tiver sido indeferido apenas na primeira instância, o Estado-Membro responsável assegura que a pessoa em causa tenha, ou tenha tido, a oportunidade de se valer de recurso efetivo nos termos do artigo 46.o da Diretiva 2013/32/UE.

Artigo 23º Apresentação de um pedido de retomada a cargo em caso de apresentação de um novo pedido no Estado-Membro requerente

1. Se o Estado-Membro ao qual foi apresentado um novo pedido de proteção internacional pela pessoa referida no artigo 18.o , n.o 1, alíneas b), c) ou d), considerar que o responsável é outro Estado-Membro, nos termos do artigo 20.o, n.o 5, e do artigo 18.o, n.o 1, alíneas b), c) ou d), pode solicitar a esse outro Estado-Membro que retome essa pessoa a seu cargo.

2. O pedido de retomada a cargo é apresentado o mais rapidamente possível e, em qualquer caso, no prazo de dois meses após a receção do acerto do Eurodac, nos termos do artigo 9.o, n.o 5, do Regulamento (UE) n.o 603/2013.

Artigo 25º Resposta a um pedido de retomada a cargo

1. O Estado-Membro requerido procede às verificações necessárias e toma uma decisão sobre o pedido de retomar a pessoa em causa a cargo o mais rapidamente possível e, em qualquer caso, dentro do prazo de um mês a contar da data em que o pedido foi recebido. Quando o pedido se baseie em dados obtidos através do sistema Eurodac, o prazo é reduzido para duas semanas.

2. A falta de uma decisão no prazo de um mês ou no prazo de duas semanas referidos no n.o 1 equivale à aceitação do pedido, e tem como consequência a obrigação de retomar a pessoa em causa a cargo, incluindo a obrigação de tomar as providências adequadas para a sua chegada.

2.

Vimos a lei europeia.

Passemos à lei nacional.

O pedido de proteção internacional é considerado inadmissível, quando se verifique que está sujeito ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, previsto no capítulo IV da lei do asilo (artigo 19º-A/1-a) da Lei do Asilo).

Quando se considere que a responsabilidade pela análise do pedido de proteção internacional pertence a outro Estado membro, de acordo com o previsto no Regulamento (UE) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, o SEF solicita às respetivas autoridades a sua tomada ou retoma a cargo (artigo 37º/1, no capítulo IV).

Aceite a responsabilidade pelo Estado requerido, o diretor nacional do SEF profere, no prazo de cinco dias, decisão nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 19.º-A e do artigo 20.º, que é notificada ao requerente, numa língua que compreenda ou seja razoável presumir que compreenda, e é comunicada ao representante do ACNUR e ao CPR enquanto organização não governamental que atue em seu nome, mediante pedido apresentado, acompanhado do consentimento do requerente (artigo 37º/2).

3.

Para o que aqui interessa, o Tribunal Administrativo de Círculo entendeu que o SEF não agiu em défice instrutório, porque não existem factos a provar. Isto no âmbito (habitual) do artigo 3º/2 do Regulamento (U.E.) 604/2013 acima muito abordado. O recorrente discorda.

O presente caso é semelhante a dezenas de outros que este tribunal já apreciou (cf. o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 14-05-2020, processo nº 2199/19).

Ora, desde logo se adianta, porque notório, que não existem factos relevantes não instruídos, ou seja, não investigados pelo SEF. Tal como considerou o Tribunal Administrativo de Círculo.

Sobre a alegada violação do princípio do inquisitório (cf. artigo 58º o Código do Procedimento Administrativo) relativamente ao cit. 2º parágrafo do nº 2 do artigo 3º do Regulamento (UE) n.º 604/2013 – défice instrutório - já vimos o que disse o Tribunal Administrativo de Círculo. E as conclusões do recurso.

Ora, caso seja assim, trata-se de um alegado défice instrutório relacionado com o 2º parágrafo do nº 2 do artigo 3º do Regulamento (UE) n.º 604/2013.

impossível transferir um requerente para o Estado-Membro inicialmente designado responsável (i) por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, (ii) que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável (cf. artigo 3º/2 do Regulamento europeu cit.).

Isso exige que previamente se apure juridicamente em que circunstâncias – excecionais, como veremos - é que um Estado-Membro (supõe-se que modelar no asunto…) deverá apurar se existem aqueles motivos válidos para crer que há falhas sistémicas que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante, a propósito de outro Estado-Membro.

E isto é assim, porque há uma regra geral: "os Estados-Membros analisam todos os pedidos de proteção internacional apresentados por nacionais de países terceiros ou por apátridas no território de qualquer Estado-Membro, inclusive na fronteira ou nas zonas de trânsito. Os pedidos são analisados por um único Estado-Membro, que será aquele que os critérios enunciados no Capítulo III designarem como responsável” (nº 1 do artigo 3º do Regulamento).

Daqui e do princípio fundamental da confiança mútua entre os Estados-Membros resulta a excecionalidade do 2º parágrafo do nº 2 do artigo 3º do Regulamento (UE) n.º 604/2013.

O Regulamento (UE) n.º 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho, como já sucedia com o Regulamento (CE) n.º 343/2003, que estabelece os critérios e os mecanismos de determinação da responsabilidade da análise dos pedidos de proteção internacional apresentados nos Estados Membros, prossegue dois fins essenciais:

-por um lado, garantir um acesso efetivo aos procedimentos de determinação do estatuto de refugiado, sem comprometer a celeridade no tratamento dos pedidos de asilo e assegurando a certeza e segurança jurídicas ao nível da EU;

-e, por outro lado, impedir a utilização abusiva dos procedimentos de asilo, sob a forma de pedidos múltiplos apresentados pelo mesmo requerente em diversos Estados Membros, com o objetivo de neles prolongar a sua estadia, realidade comummente designada como asylum shopping.

Também de acordo com a Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, quando o órgão jurisdicional chamado a conhecer de um recurso de uma decisão de transferência ou de uma decisão que declara um novo pedido de proteção internacional inadmissível dispõe de elementos apresentados pelo requerente, ou que constituam factos notórios, para demonstrar a existência do risco de um trato desumano ou degradante no outro Estado-Membro, esse órgão jurisdicional deve apreciar a existência de deficiências, sistémicas ou generalizadas, ou que afetem certos grupos de pessoas. Ainda assim, de acordo com a mesma Jurisprudência, tais deficiências só são contrárias à proibição de tratamento desumano ou degradante se tiverem um nível particularmente elevado de gravidade, que depende do conjunto dos dados da causa.

É de bom senso nesta comunidade de Estados.

Assim, como já escrevemos em outros acs. deste tribunal:

- No procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, de acordo com os critérios previstos no capítulo III do Regulamento de Dublin e os artigos 3º e 17º, o que resulta da letra e do espírito desta lei europeia é que cada Estado-Administração não tem, sempre e oficiosamente, de analisar o que ocorre noutro Estado-membro da U.E. a propósito das condições legais e ou factuais da proteção internacional, salvo casos excecionais devidamente fundamentados ou notórios – cf. assim os Acs. do TJUE nº C-163/17, nº C-297/17, nº 318/17, nº C-319/17 e nº C-438/17-Magamadov, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 16-01-2020, proc. nº 02240/18, e o Acórdão deste Tribunal Central Administrativo Sul de 10-12-2019 proc. nº 1383/19...;

- O mesmo vale para os tribunais administrativos, por força da interpretação jurídica de tal Regulamento europeu e ainda do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e, em especial, do nuclear artigo 5º do Código de Processo Civil. Ou seja, os Estados-Membros da U.E. não têm, sempre e oficiosamente, de analisar o que ocorre noutro Estado-membro a propósito das condições legais e ou factuais da proteção internacional, salvo casos excecionais devidamente fundamentados ou notórios e no respeito pelas regras processuais nacionais;

- Não constando dos autos qualquer facto notório ou uma alegação fáctica indiciária ou minimamente densificada (é aqui o caso!) de que, recente ou atualmente, em Itália, ocorre uma proteção internacional com um nível grave ou grosseiro de insuficiência no sentido do Regulamento, ou seja, como diz o TJUE, de que existem deficiências sistémicas ou generalizadas com um “nível particularmente elevado de gravidade” que permitam prever que o requerente correrá o risco sério de um “tratamento desumano ou degradante” no outro Estado-Membro, não podemos elencar, porque não existem, factos atuais ou recentes no sentido de Itália ter essa proteção internacional com um nível grave ou grosseiro de insuficiência. Itália, comparada ou não com Portugal por exemplo (aspeto estranhamente omitido em geral: “campos de requerentes de asilo pré-fabricados com condições melhores do que certas prisões no estrangeiro”, ou “pensões-residenciais sobrelotadas e sem higiene em Portugal”?), não é um Estado da U.E. em que existam deficiências sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento do requerente, que implicam o risco de ser desrespeitado o direito absoluto de o requerente não ser sujeito a penas ou tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos.

Cf. assim os Acs. deste Tribunal Central Administrativo Sul:

- de 07-02-2019, processo 1635/18,

- de 13-02-2020, processo 1733/19,

- de 13-02-2020, processo 1708/19 e

- de 27-02-2020, processo 1718/19.

Aliás, sobre esta matéria, consta do comunicado de imprensa n.º 33/19 do Tribunal de Justiça da União Europeia, Luxemburgo, 19 de março de 2019, o seguinte:

“A existência de insuficiências no sistema social do Estado-Membro em causa não permite, em si mesma, concluir pela existência de um risco de tais tratos (desumanos ou degradantes); com os seus acórdãos de hoje, o Tribunal de Justiça recorda que, no quadro do sistema europeu comum de asilo, que repousa no princípio da confiança mútua entre os Estados-Membros, deve presumir-se que o tratamento dado por um Estado-Membro aos requerentes de proteção internacional e às pessoas a quem foi concedida proteção subsidiária está em conformidade com as exigências da Carta, da Convenção de Genebra, bem como da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

“Contudo, não se pode excluir que este sistema se depare, na prática, com grandes dificuldades de funcionamento num determinado Estado-Membro, de modo que existe um sério risco de os requerentes de proteção internacional serem tratados, nesse Estado, de modo incompatível com os seus direitos fundamentais e, nomeadamente, com a proibição absoluta de tratos desumanos ou degradantes.

“Assim, quando o órgão jurisdicional chamado a conhecer de um recurso de uma decisão de transferência ou de uma decisão que declara um novo pedido de proteção internacional inadmissível dispõe de elementos apresentados pelo requerente para demonstrar a existência do risco de um trato desumano ou degradante no outro Estado-Membro, esse órgão jurisdicional deve apreciar a existência de deficiências, sistémicas ou generalizadas, ou que afetem certos grupos de pessoas.

“Todavia, tais deficiências só são contrárias à proibição de tratos desumanos ou degradantes se tiverem um nível particularmente elevado de gravidade, que depende do conjunto dos dados da causa. Esse nível seria alcançado quando a indiferença das autoridades de um Estado-Membro tivesse como consequência que uma pessoa completamente dependente do apoio público se encontrasse, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais, numa situação de privação material extrema que não lhe permitisse fazer face às suas necessidades mais básicas, como, nomeadamente, alimentar-se, lavar-se e alojar-se, e que pusesse em risco a sua saúde física ou mental ou a colocasse num estado de degradação incompatível com a dignidade humana; o Tribunal de Justiça conclui que o Direito da União não se opõe a que um requerente de proteção internacional seja transferido para o Estado-Membro responsável ou a que um pedido de concessão do estatuto de refugiado seja declarado não admissível pelo facto de já ter sido concedida ao requerente proteção subsidiária noutro Estado-Membro, a menos que se demonstre que o requerente que se encontraria, nesse outro Estado-Membro, numa situação de privação material extrema, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais.”

Além disso, a grande pressão migratória que existiu em Itália não é sinónimo de deficiências sistémicas, nem de tratamento desumano ou degradante dos eventuais requerentes de asilo.

Assim, não constando aqui, do p.a. ou do processo jurisdicional (como logo se depreende do recurso), qualquer facto notório ou qualquer alegação fáctica indiciária ou minimamente densificada de que, recentemente ou atualmente, em Itália, ocorre uma proteção internacional que tenha um nível grave ou grosseiro de insuficiência no sentido do Regulamento, ou seja, como diz o TJUE, de que existem deficiências sistémicas ou generalizadas com um “nível particularmente elevado de gravidade” que permitam prever que o requerente correrá o risco sério de um “tratamento desumano ou degradante” no outro Estado-Membro, o resultado processual correto é só um: não podemos elencar, porque não existem, factos alegados ou notórios - atuais ou recentes - no sentido de Itália ter proteção internacional com um nível grave ou grosseiro de insuficiência.

É que não basta a expressão de um receio ou de uma incerteza subjetiva ou especulativa, seja por parte do interessado, seja por parte do tribunal.

Itália, um Estado democrático de Direito, notoriamente uma das economias mais ricas da rica U.E., não é, com base nos factos alegados e nos factos notórios, um Estado em que existam deficiências sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes que impliquem o risco de ser desrespeitado o direito dos requerentes a não serem sujeitos a penas ou tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos.

Enfim, (i) nas circunstâncias de facto provadas descritas atrás e (ii) nas circunstâncias de facto que são notórias, sendo a Itália o país aqui responsável ao abrigo do artigo 13º/1 do Regulamento cit., tendo aliás a aceite a retoma a cargo, o Estado português atuou em conformidade com o Direito substantivo europeu e o Direito substantivo nacional, e proferiu decisão no sentido da inadmissibilidade do pedido do recorrente, nos termos do consabido art 19º-A/1-al. a) da Lei de Asilo portuguesa.

Entender o contrário nestas circunstâncias (1º) seria, a final, ignorar frontalmente a factualidade provada e (2º) seria, ainda, pouco racional e incongruente com a “comunidade” de países com Estado democrático de Direito sujeita ao cit. Regulamento europeu.

Portanto, as circunstâncias excecionais em que um Estado-Membro deverá apurar se existem aqueles motivos válidos para crer que há falhas sistémicas, inexistentes no país que analisa, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante, a propósito de outro Estado-Membro são as seguintes:

-existência (i) de factos notórios (como definidos no Código de Processo Civil) ou (ii) de alegação fáctica indiciária minimamente densificada (iii) no sentido de o outro Estado-Membro ter uma proteção internacional com um nível grave ou grosseiro de insuficiência, (iv) quando comparada com Portugal.

É que devemos repetir que: (1º) não houve qualquer alegação fáctica indiciária minimamente densificada, nem há qualquer facto provado no sentido de que, recente ou atualmente, em Itália, ocorre, quando comparada com o nosso país, uma proteção internacional com um nível grave ou grosseiro de insuficiência; é certo que (2º) não podemos elencar, porque não existem, quaisquer factos notórios atuais ou recentes que conduzam à conclusão de Itália ter uma proteção internacional com um nível grave ou grosseiro de insuficiência (cf. artigo 412º/1 do Código de Processo Civil).

Pelo que, neste caso concreto, sem factos clamando por atuação proativa ou oficiosa de Portugal, sem a cit. alegação fáctica indiciária minimamente densificada no sentido de Itália, um rico Estado democrático de Direito, ter uma proteção internacional com um nível grave ou grosseiro de insuficiência, mesmo quando comparado com Portugal (aspeto estranhamente omitido em geral), devemos concluir que o tema especial do artigo 3º/2 cit. e do artigo 4º da CDFUE não era uma questão a suscitar oficiosamente pelo SEF neste caso concreto.

É ainda de mencionar aqui, em defesa desta posição já adotada por este tribunal desde 2019, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 16-01-2020, proc. nº 02240/18…:

“I - Apenas em casos devidamente justificados, ou seja, naqueles casos em existam motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes e que tais falhas implicam o risco de tratamento desumano ou degradante, nomeadamente por envolver tortura, é que se impõe ao Estado em causa diligenciar pela obtenção de informação atualizada acerca da existência de risco de o requerente ser sujeito a esse tipo de tratamentos;

II - A imigração ilegal, que ocorre por muitos e variados motivos, visando todos eles a melhoria das condições de vida do imigrante, não se pode confundir simplesmente com a situação do refugiado. Este, que em sentido amplo não deixa de ser imigrante, busca refúgio em país estrangeiro por recear, com razão, ser perseguido no seu país de origem em consequência de atividade exercida em favor da democracia, da liberdade social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana, ou em virtude da sua raça, nacionalidade, convicções políticas ou pertença a determinado grupo social.”.

Em síntese, o Tribunal Administrativo de Círculo, tal como o SEF, não violou o nº 2 do artigo 3º do cit. Regulamento.

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III - DECISÃO

Nestes termos e ao abrigo do artigo 202.º da Constituição e do artigo 1.º, nº 1, do EMJ (ex vi artigo 57.º do ETAF), os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul acordam em negar provimento ao recurso, por ser manifestamente infundado.

Sem custas.

Lisboa, 31-08-2020


Paulo H. Pereira Gouveia – Relator

Jorge Pelicano

Jorge Cortês