Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:06182/12
Secção:CT-2º JUÍZO
Data do Acordão:04/23/2015
Relator:CRISTINA FLORA
Descritores: PRINCÍPIO DA IRREPETIBILIDADE DAS INSPECÇÕES: ART. 63.º, N.º 3 DA LGT.
Sumário:I. O art. 63.º, n.º 3 da LGT (que corresponde ao actual n.º 4) consagra o princípio da irrepetibilidade do procedimento de fiscalização;
II. A tutela visada por aquela norma é a segurança jurídica e a estabilidade da relação fiscal;
III. A proibição sancionada naquele preceito legal encontra-se circunscrita ao procedimento externo de fiscalização (por oposição ao procedimento interno) aferindo-se a natureza (formal) externa ou interna do procedimento de acordo com a classificação constante nas alíneas a) e b) do art. 13.º do RCPIT;
IV. O art. 63.º, n.º 3 da LGT diz respeito à classificação do procedimento quanto ao “lugar” (art. 13.º do RCPIT), independentemente da sua classificação quanto ao “fim” (art. 12.º do RCPIT), “âmbito e extensão” (art. 14.º do RCPIT).
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:


PROCESSO N.º 6182/12

I. RELATÓRIO

A FAZENDA PÚBLICA vem recorrer da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Leiria, que julgou procedente a impugnação apresentada por……………………………, LDA, da liquidação adicional de IVA e juros compensatórios, referente ao ano de 2002.

A Recorrente Fazenda Pública apresentou as suas alegações, e formulou as seguintes conclusões:

A) O documento tido pela sentença como correspondendo à Ordem de Serviço n.º ………. é na realidade o Despacho n.º 25940, emitido nos termos e para os efeitos dos n.º 4 e 5 do art. 46° do RCPIT, sendo igualmente patente que o documento ali identificado como ordem interna n.º ……………… corresponde de facto à Ordem de Serviço n.º …………….., emitida nos termos e para os efeitos dos n.º 2 e 3 do mesmo artigo.

B) A correcta leitura dos referidos documentos não permite sustentar o entendimento de se referirem a dois procedimentos inspectivos externos de carácter e natureza idênticas, como erradamente se pretende na sentença recorrida.

C) Referindo-se o despacho a um procedimento destinado à recolha, consulta e cruzamento de elementos abarcando os exercícios de 2002 e 2003, com âmbito parcial) por imposição legal do n.º 2 do art. 14° do RCPIT) e que não originou qualquer definição da situação tributária (elaboração de relatório) para o ora Impugnante.

D) Por seu lado, foi o procedimento inspectivo externo, credenciado por ordem de serviço, destinado à confirmação e indagação da situação tributária da ………………… Lda (n.º 1 e al a) e b) do n.º 2 do art. 2° do RCPIT), com âmbito geral (al. a) do n.º 1do art. 14° do RCPIT) e extensão delimitada ao exercício de 2002 (n.º 3 do art. 14° do RCPIT) que originou as correcções propostas pela inspecção Tributária à matéria tributável em sede de IVA do ano de 2002, fundamento e causa directas das liquidações adicionais de imposto em crise.

E) Tratando-se de dois procedimentos inspectivos externos - por necessariamente realizados fora dos serviços da Administração Tributária -, mas de tipos e com fins, âmbitos e extensão distintos, nada nos autos legitima que se considere existir identidade entre ambos e, por essa única razão, determinar a sua invalidade com base no princípio da irrepetibilidade dos procedimentos inspectivos.

F) Por conter erros substanciais quanto à apreciação e valoração da prova documental carreada para os autos e também por carecerem do adequado suporte probatório as conclusões alcançadas no aresto recorrido, enferma este de erro na apreciação da matéria de facto e de insuficiência de fundamentação de facto.

G) Do mesmo passo, é gerador de erro na interpretação e aplicação do Direito procurar reconduzir a situação descrita na sentença recorrida à proibição vertida no n.º 3 do artigo 63° da LGT (actual n.º 4), relativa à ilegítima repetição de procedimento inspectivo externo dirigido ao mesmo contribuinte, o chamado princípio da irrepetibilidade das inspecções tributárias.

H) Para se subsumirem àquela proibição - em rigor limitação, pois admite derrogações -, é requisito que nos procedimentos inspectivos externos sob censura se verifiquem cumulativamente a identidade do inspeccionado, do âmbito das inspecções efectuadas e da sua extensão.

I) Ao invés, e é esse o caso concreto sob escrutínio na sentença recorrida, não proíbe o n.º 3 do art. 63° da LGT a possibilidade da realização, a um mesmo sujeito passivo, de tipos de procedimentos inspectivos externos distintos quanto aos fins, quanto ao âmbito ou quanto à extensão.

J) A ratio da norma procura garantir a proporcionalidade e a adequação entre os incómodos gerados ao sujeito passivo contribuinte pelos procedimentos inspectivos e os fins visados por tais procedimentos, com a necessidade daquele ver a sua situação definida pela tomada de posição da Administração Tributária.

K) Levando a concluir que padece a sentença do Tribunal de 1.ª Instância de erro de julgamento, quando interpreta o n.º 3 do art. 63° da LGT como impeditivo da realização de dois procedimentos externos de inspecção dirigidos ao mesmo inspeccionado, quando num deles não haja qualquer tomada de posição da Administração Tributária sobre a situação tributária daquele.

L) L Assente a irrepetibilidade dos procedimentos externos de inspecção, o n.º 3 do art. 63° da LGT não determina, de modo explícito, qual o sancionamento a recair sobre o acto tributário sequente à acção inspectiva em contravenção com o preceito.

M) Pelo que, padece também a sentença recorrida de omissão de fundamentação legal, ao cominar com anulabilidade e sem invocação da norma jurídica que termina tal efeito, as liquidações adicionais de IVA contendidas.

N) Motivos pelos quais merece censura a actuação da Administração Tributária e se deverá confirmar a valia e validade dos actos tributários impugnados, de igual modo promanando um juízo de censura à decisão recorrida, com o que fará esse Tribunal Central Administrativo, Justiça!

Finaliza com o seguinte pedido: “Nestes termos e nos restantes, que o douto entendimento do Colectivo entender convocar, defende a Representação da Fazenda Pública a procedência do presente recurso jurisdicional, revogando-se a sentença do Tribunal a quo e, julgando em substituição, decidir improcedente o pedido anulatório da impugnação judicial.”
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A Recorrida, não apresentou contra-alegações.
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Foram os autos a vista do Magistrado do Ministério Público que emitiu parecer no sentido do provimento do recurso.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, considerando que a tal nada obsta.
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As questões invocadas pela Recorrente nas suas conclusões das alegações de recurso, que delimitam o objecto do mesmo, e que cumpre apreciar e decidir são as seguintes:

_ Erro de julgamento de facto (erro na apreciação e insuficiência na matéria de facto) erro na interpretação e aplicação do direito, porquanto não foi violado o art. 63.º, n.º 3 da LGT [conclusões A) e K)];

_ Omissão de fundamentação legal da sentença recorrida por o disposto no n.º 3 do art. 63.º da LGT não cominar com a anulabilidade, e sem se ter invocado a norma jurídica que determina tal efeito [conclusão M)].

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Matéria de facto

A decisão recorrida deu como provada a seguinte matéria de facto:

A) No dia 16/01/2004, foi emitida a Ordem de Serviço n.º ……….., na qual foi determinado «Proceda-se à Inspecção Externa» da impugnante, abrangendo os exercícios de 2002 e 2003 e tendo por fim a consulta, recolha e cruzamento de dados – fls…

B) A impugnante tomou conhecimento do despacho referido na alínea antecedente em 26/01/2004, data em que o mesmo foi assinado pela sua contabilista – fls….

C) Em 10/03/2005 foi emitida a ordem Interna n.º ……………, que determinou a realização de um procedimento de inspecção externo à impugnante a incidir sobre o exercício de 2002 – fls. 170.

D) A referida ordem de serviço foi assinada pela contabilista da impugnante em 22/03/2005 – fls. 170

E) No âmbito da inspecção tributária determinada pela Ordem Interna referida em C) supra, foi elaborado o relatório final de fls. 173 a 288, que se dá por reproduzido.

F) Este relatório foi pessoalmente notificado à impugnante em 17/03/2006 – fls. 172.


G) Foram emitidas as liquidações de IVA e juros compensatórios referentes ao exercício de 2002, de fls. 166 a 169, que também se dá aqui por reproduzida.

H) A impugnante foi notificada da liquidação de mencionada na alínea antecedente em 21/04/2006 – fls. 168 a 169.


Com interesse para a decisão não se provaram outros factos.

A convicção do Tribunal baseou-se nos documentos referidos em cada uma das alíneas antecedentes.”
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Acorda-se dar como provado o seguinte facto, ao abrigo do preceituado no artigo 662.º do CPC, com relevo para a decisão do recurso:

I) A ordem de serviço mencionada na alínea C) foi emitida com fundamento no art. 46.º do RCPIT, com âmbito geral (cfr. documento de fls. 171 dos autos).

Altera-se o facto fixado na alínea A):

A) No dia 16/01/2004, foi proferido despacho n.º 25940, nos termos dos n.ºs 4 e n.ºs 5 do art. 46.º do RCPIT, pelo qual foi determinado «Proceda-se à Inspecção Externa» da impugnante, abrangendo os exercícios de 2002 e 2003 e tendo por fim a consulta, recolha e cruzamento de dados – (cfr. documento n.º 8 junto aos autos com a p.i.).

Completa-se a estruturação da alínea B), nos seguintes termos:

B) A impugnante tomou conhecimento do despacho referido na alínea antecedente em 26/01/2004, data em que o mesmo foi assinado pela sua contabilista (cfr. documento n.º 9 junto aos autos com a p.i.).

2. Do Direito

Conforme resulta dos autos, o TAF de Leiria julgou procedente a Impugnação Judicial da liquidação adicional de IVA do ano de 2002, com o fundamento, na parte com interesse para a apreciação do recurso, e em síntese, por violação do disposto no art. 63.º, n.º 4 da LGT, porquanto considerou terem ocorrido dois procedimentos inspectivos ao exercício de 2002.

A Recorrente, Fazenda Pública, não se conforma com a decisão proferida e invoca que o documentos tido pela sentença recorrida como ordem de serviço n.º ……….. é na realidade o Despacho n.º 25940, emitido nos termos do disposto nos n.º4 e 5 do art. 46.º do RCPIT, e que o documento ali identificado como ordem interna n.º……………. corresponde à ordem de serviço ………………., emitida nos termos dos n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo, pelo que se trata de dois procedimentos inspectivos externos, mas de tipos e com fins, âmbitos e extensão distintos, e portanto, não foi violado o art. 63.º, n.º 3 da LGT, e por conseguinte a sentença recorrida enferma de erro de julgamento de facto (erro na apreciação e insuficiência na matéria de facto) e de erro na interpretação e aplicação do direito [conclusões A) e K)].

Apreciando.

Relativamente à matéria de facto dada como provada, sublinhe-se que já se procedeu oficiosamente à alteração do facto dado como provado na alínea A), porquanto, a acção de inspecção externa mencionada nessa alínea é efectuada ao abrigo do despacho n.º 25940, proferido nos termos dos n.ºs 4 e n.ºs 5 do art. 46.º do RCPIT:

“A) No dia 16/01/2004, foi proferido despacho n.º 25940, nos termos dos n.ºs 4 e n.ºs 5 do art. 46.º do RCPIT, pelo qual foi determinado «Proceda-se à Inspecção Externa» da impugnante, abrangendo os exercícios de 2002 e 2003 e tendo por fim a consulta, recolha e cruzamento de dados – (cfr. documento n.º 8 junto aos autos com a p.i.).”

Por outro lado, aditou-se um facto que complementa o dado como provado na alínea C) da matéria de facto dada como provada, no sentido de se esclarecer que a ordem Interna n.º ……………….., que determinou a realização de um procedimento de inspecção externo à impugnante a incidir sobre o exercício de 2002, teve âmbito geral:

“I)A ordem de serviço mencionada na alínea C) foi emitida com fundamento no art. 46.º do RCPIT, com âmbito geral (cfr. documento de fls. 171 dos autos).”

Estabilizada a matéria de facto dada como provada, cabe então, saber se a sentença enferma de erro de julgamento, considerando estas duas acções de inspecção de natureza externa (a resultante do despacho n.º 25940 e a da efectuada na ordem Interna n.º …………….), os seus fins, âmbitos e extensões, que sendo distintos, considera a Recorrente, não estamos perante a previsão do disposto no n.º 3 do art. 63.º da LGT.

Entendeu-se, neste ponto, o seguinte na sentença recorrida:

“No caso vertente e quanto ao exercício de 2002, de facto, decorreram dois procedimentos inspectivos: um, a coberto da Ordem de Serviço n.º………, datada de 16/01/2004 e notificada à impugnante em 26/01/2004, destinado à consulta, recolha e cruzamento de elementos; outro, a coberto da Ordem de Serviço n.º …………, datada de 10/03/2005 e notificada à impugnante em 22/03/2005, do qual resultaram as correcções agora em análise. E, tendo em conta que ambos tiveram lugar nas instalações da impugnante, temos de concluir estarmos perante dois procedimentos externos de inspecção tributária.

Nem se diga que estamos face a procedimentos de tipos distintos, um orientado para a identificação de eventuais infracções e recolha de elementos para eventuais correcções à matéria tributável e, outro, para mera recolha de informações e dados para as situações específicas identificadas nas diversas alíneas do n.º 4 do Art. 46.º do RCPIT. Na verdade, a restrição prevista no n.º 4 do Art. 63.º da LGT, é estabelecida em função não do tipo ou fim do procedimento mas, sim, do local onde o mesmo deva ocorrer: a lei visa impedir os incómodos que as fiscalizações externas são susceptíveis de provocar ao sujeito passivo inspeccionado, assegurando, por essa via, a adequação e proporcionalidade entre tais incómodos e os fins que a inspecção visa prosseguir.
Não se trata, porém, de uma restrição absoluta pois que, como já foi mencionado, para obviar a esta limitação dos poderes de fiscalização da AT, consignada no transcrito n.º 4 do Art. 63.º da LGT, basta-lhe emitir um despacho fundamentado em factos novos.
Sucede que, no caso vertente, não foi proferido tal despacho, pois que o mesmo não consta dos autos nem, sequer, a Fazenda Pública lhe fez qualquer alusão. Do mesmo modo, a acção de recolha de elementos não visava a confirmação dos pressupostos de direitos invocados pela impugnante perante a AT. Daí que, salvo melhor entendimento, a AT não estava legalmente legitimada e habilitada para proceder à inspecção aqui em causa.
Nesta conformidade, o procedimento inspectivo de que tratamos é ilegal, por infracção ao Art. 63.º, nº 4, da LGT, vício que se estende às liquidações de IVA e juros compensatórios objecto destes autos que, por isso, devem ser anuladas.” (sublinhado nosso)

Ou seja, a sentença recorrida, para efeitos da aplicação do n.º 3 do art. 63.º da LGT (apesar de se referir ao n.º 4, à data dos factos, tratava-se do n.º 3) considerou que apenas releva a natureza externa de ambos procedimentos de inspecção.

Deste modo, desconsiderou-se a tese da Fazenda Pública, ora Recorrente, de não aplicabilidade daquele preceito legal por os fins, âmbitos e extensões dos procedimentos externos de inspecção serem distintos.

Como resulta da matéria de facto, com efeito, temos uma primeira acção de inspecção à Impugnante na sequência do despacho n.º 25940, proferido nos termos dos n.ºs 4 e n.ºs 5 do art. 46.º do RCPIT, pelo qual foi determinado «Proceda-se à Inspecção Externa» da impugnante, abrangendo os exercícios de 2002 e 2003 e tendo por fim a consulta, recolha e cruzamento de dados (alínea A) dos factos provados), pelo que estamos perante uma acção de inspecção externa.

Já a segunda acção de inspecção (também externa) é efectuada na sequência da ordem interna de serviço n.º ……………., emitida em 10/03/2005, que determinou a realização de um procedimento de inspecção externo à impugnante a incidir sobre o exercício de 2002 (alíneas C) e I) dos factos provados).

Aqui chegados, temos dois procedimentos externos de inspecção, cumprindo determinar se a situação dos autos está, ou não, abrangida pela previsão legal do disposto no n.º 3 do art. 63.º da LGT.

Vejamos então.

Dispõe o art. 63.º, n.º 3 da LGT (a que corresponde ao actual n.º 4, operada pela Lei n.º 37/2010 de 02/09) o seguinte:

“[o] procedimento da inspecção e os deveres de cooperação são os adequados e proporcionais aos objectivos a prosseguir, só podendo haver mais de um procedimento externo de fiscalização respeitante ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação mediante decisão, fundamentada com base em factos novos, do dirigente máximo do serviço, salvo se a fiscalização visar apenas a confirmação dos pressupostos de direitos que o contribuinte invoque perante a administração tributária e sem prejuízo do apuramento da situação tributária do sujeito passivo por meio de inspecção ou inspecções dirigidas a terceiros com quem mantenha relações económicas.” (sublinhado nosso)

Este preceito legal consagra o princípio da irrepetibilidade do procedimento de fiscalização, ou seja, estabelece a proibição de dois procedimentos inspectivos sucessivos, quando estejamos perante uma identidade de imposto, de período de tributação e do mesmo sujeito passivo, circunscrevendo a proibição ao procedimento externo de fiscalização.

O artigo 13.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária (RCPIT), sob a epígrafe “Lugar do procedimento de inspecção”, nas suas alíneas a) e b), procede à distinção da classificação do procedimento de inspecção em interno e externo (sublinhado nosso).

Deste modo, o procedimento é interno quando “os actos de inspecção se efectuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos” – alínea a), e é de ser classificado como externo “quando os actos de inspecção se efectuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso”.

Conforme se escreveu no acórdão do TCAS de 27/02/2014, proc. n.º 07343/14, em que o ora 2.º Adjunto nos presentes autos foi Relator “(…) a qualificação dada pela Administração Fiscal a um procedimento não tem carácter vinculativo, se vier a revelar-se que o conteúdo dos actos praticados for contrário à qualificação dada, isto é, a classificação formal do procedimento será, posteriormente, validada, ou não, pelos actos que a Administração Tributária efectivamente praticar. Numa situação em que os actos materialmente praticados revelam a existência de um procedimento distinto daquele que foi formalmente indicado pela Administração, ou seja, um procedimento externo “de facto”, embora formalmente qualificado como interno, os vícios referentes à falta de notificação prévia ao sujeito passivo exigida pelo artº.49, nº.1, do R.C.P.I.T., bem como a ausência de ordem de serviço exigida pelo artº.46, nº.2, do mesmo diploma, devem ter como consequência, nomeadamente, a invalidade de uma eventual liquidação que venha a realizar-se, assim levando à sua anulação (cfr. ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 10/07/2012, proc.5289/12; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 13/02/2014, proc.7026/13; Diogo Leite de Campos e Outros, Lei Geral Tributária anotada e comentada, 4ª. edição, Editora Encontro da Escrita, 2012, pág.385 e seg.; Joaquim Freitas da Rocha e Outro, R.C.P.I.T. anotado e comentado, 1ª. Edição, Coimbra Editora, 2013, pág.81 e seg.; João Fernando Damião Caldeira, O Procedimento Tributário de Inspecção - Um contributo para a sua compreensão à luz dos Direitos Fundamentais, Universidade do Minho, 2011, pág.91 e seg.) (…)”.

Em suma, a proibição sancionada no n.º 3 do art. 63.º do RCPIT encontra-se circunscrita ao procedimento externo de fiscalização (não estando em causa nos autos saber se o âmbito da norma poderá ou não ser alargado atendendo à substância dos actos), aferindo-se a natureza (formal) externa ou interna do procedimento de acordo com a classificação constante nas alíneas a) e b) do art. 13.º do RCPIT.

In casu, como já referimos, não se encontra controvertido que estejamos perante dois procedimentos de inspecção ou fiscalização externo [cfr. conclusão E) das alegações de recurso], mas importa determinar se a aplicação do disposto no art. 63.º, n.º 3 da LGT é afastada no caso de serem distintos os fins, âmbitos e extensões dos procedimentos.

A resposta não pode deixar de ser negativa (assim também se concluiu no Ac. do TCAS de 14/04/2015, proc. n.º 5674/12, referente à mesma Recorrida nos autos).

A aplicação do disposto no n.º 3 do art. 63.º da LGT não depende da identidade dos fins, âmbitos e extensões dos procedimentos de fiscalização, desde logo por tal restrição ao conceito de “procedimento externo” não resultar da previsão normativa, e portanto, considerar a interpretação restritiva pugnada pela Fazenda Pública colocaria em causa o princípio da segurança jurídica que a norma visa tutelar.

Com efeito, há que ter presente que a tutela visada por aquela disposição legal é a segurança jurídica e a estabilidade da relação fiscal, e não a protecção pelos “contratempos, embaraços e dificuldades provocados” na rotina comercial dos contribuintes, por uma acção de inspecção externa (nesse sentido, cfr. Gustavo Lopes Courinha, Irrepetibilidade das Inspecções, Um Contributo Jurisprudencial, Revista do IDEFF, Ano 7, N.º 1, p. 181).

Outras classificações do procedimento de fiscalização (fins, âmbitos e extensões) para além da “externa”, não se encontram previstas na hipótese legal, para que se possa ter em consideração como elemento restritivo do âmbito da previsão normativa.

Com efeito, a proibição sancionada no n.º 3 do art. 63.º do LGT encontra-se circunscrita ao procedimento externo de fiscalização (por oposição ao procedimento interno) e diz respeito à classificação do procedimento quanto ao lugar do procedimento (art. 13.º do RCPIT), independentemente da sua classificação quanto ao fim (art. 12.º do RCPIT), âmbito e extensão (art. 14.º do RCPIT).

No Capítulo III do RCPIT dispõe-se sobre as Classificações do procedimento de inspecção tributária”, e assim, temos o art.12.º “Fins do procedimento”, art. 13.º “Lugar do procedimento de inspecção”, art. 14.º “Âmbito e extensão” e 15.º “Alteração dos fins, âmbito e extensão do procedimento.”.
Ora, o legislador no n.º 3 do art. 63.º da LGT apenas se refere ao procedimento externo, cuja classificação, como já referimos, entronca no “Lugar do procedimento de inspecção” (art. 13.º). O legislador, naquele normativo não faz alusão a qualquer outra classificação prevista no Capítulo III do RCPIT, não faz qualquer subclassificação do procedimento externo por forma a restringir a previsão legal.

Assim sendo, razões não há para crer que quisesse restringir o âmbito do normativo daquele preceito legal às situações de identidade de fins, âmbito e extensão do procedimento, que implica necessariamente uma restrição derivada de subclassificações do procedimento externo, sem que se tenha feito referência expressa na norma legal, o que coloca em causa o princípio da segurança jurídica.

Face ao exposto, há que concluir pela improcedência das conclusões A) a N) das alegações de recurso.

Por fim, invoca a Recorrente Fazenda Pública a omissão de fundamentação legal da sentença recorrida por o disposto no n.º 3 do art. 63.º da LGT não cominar com a anulabilidade, e sem se ter invocado a norma jurídica que determina tal efeito [conclusão M)].

A este respeito a sentença recorrida concluído pela violação do disposto no art. 63.º, n.º 3 da LGT, e anulou a liquidação recorrida, não enfermando de falta de fundamentação a sentença, porquanto a anulação é a sanção regra para o vício de violação de lei.

De todo modo, sempre se dirá que, considerando que no âmbito do procedimento anterior à liquidação foi violado o disposto no art. 63.º, n.º 3 da LGT a liquidação enferma de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito, e nessa medida, a consequência jurídica dessa violação é a anulação, nos termos do disposto no art. 135.º do CPA (que corresponde ao actual n.º 1 do art. 163.º): “[s]ão anuláveis os actos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou normas jurídicas aplicáveis para cuja violação se não preveja outra sanção.”, e por conseguinte, improcede a conclusão M) das alegações de recurso.

Concluindo, improcedem, in totum, as conclusões das alegações de recurso, e nessa medida, o recurso não merece provimento, sendo de confirmar a sentença recorrida.

3. Sumário do acórdão

I. O art. 63.º, n.º 3 da LGT (que corresponde ao actual n.º 4) consagra o princípio da irrepetibilidade do procedimento de fiscalização;
II. A tutela visada por aquela norma é a segurança jurídica e a estabilidade da relação fiscal;
III. A proibição sancionada naquele preceito legal encontra-se circunscrita ao procedimento externo de fiscalização (por oposição ao procedimento interno) aferindo-se a natureza (formal) externa ou interna do procedimento de acordo com a classificação constante nas alíneas a) e b) do art. 13.º do RCPIT;
IV. O art. 63.º, n.º 3 da LGT diz respeito à classificação do procedimento quanto ao “lugar” (art. 13.ºdo RCPIT), independentemente da sua classificação quanto ao “fim” (art. 12.º do RCPIT), “âmbito e extensão” (art. 14.º do RCPIT).

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III. DECISÃO

Em face do exposto, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
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Custas pela Recorrente.
D.n.
Lisboa, 23 de Abril de 2015.

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Cristina Flora

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Cremilde Abreu Miranda

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Joaquim Condesso