Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:601/18.0BELRA-S2
Secção:CA
Data do Acordão:02/27/2020
Relator:ANA CELESTE CARVALHO
Descritores:RECURSO DO DESPACHO DE INDEFERIMENTO DA RECLAMAÇÃO APRESENTADA CONTRA O RELATÓRIO PERICIAL;
RECURSO DO DESPACHO DE INDEFERIMENTO DO REQUERIMENTO DA 2.ª PERÍCIA.
Sumário:I. Não se subsumindo o despacho de indeferimento da reclamação apresentada contra o relatório pericial em nenhuma das alíneas do n.º 2 do artigo 644.º do CPC, aplicável por força do disposto no artigo 140.º, n.º 3 do CPTA, não estão verificados os pressupostos para que caiba recurso de apelação imediato dessa decisão interlocutória.

II. Trata-se de decisão que apenas pode ser impugnada juntamente com a decisão final que, nos termos do artigo 644.º, n.º 1 do CPC, vier a ser proferida, como estabelecido no artigo 644.º, n.º 3 do CPC.

III. Os fundamentos da pertinência de uma segunda perícia devem ser ainda mais exigentes daqueles que se colocam em relação à realização da primeira perícia, de forma a obsta à realização de atos processuais inúteis ou dilatórios.

IV. Reconhecendo-se grande margem de apreciação ao juiz para decidir da pertinência da realização da segunda perícia, não se pode olvidar que está em causa um meio da prova, destinado ao apuramento e esclarecimento dos factos pertinentes da causa.

V. No domínio da prova, o processo civil e, ainda mais reforçadamente, o processo administrativo, assume claramente natureza inquisitória, em face do disposto no artigo 411.º do CPC e do artigo 90.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPTA.

VI. O juiz apenas pode recusar a utilização de certos meios de prova, quando o considere claramente desnecessário, segundo o disposto do artigo 90.º, n.º 3 do CPTA.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I – RELATÓRIO

E.......................SA, Autora na ação de contencioso pré-contratual instaurada contra a A......................, SA, inconformada, veio interpor recurso jurisdicional do despacho do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, datado de 05/12/2020, que indefere a reclamação contra o relatório pericial e o requerimento para a realização de segunda perícia.


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Formula a aqui Recorrente nas respetivas alegações, as seguintes conclusões que se reproduzem:

“1. O presente recurso jurisdicional vem interposto do Despacho que indeferiu (i) a reclamação apresentada contra o Relatório Pericial e, bem assim, (ii) a realização de segunda perícia.

2. A decisão em crise é recorrível, nos termos da alínea d) do n.º 2 do artigo 644.º do CPC, aplicável ex vi do n.º 3 do artigo 140.º do CPTA, porquanto a mesma consubstancia uma situação de indeferimento de meio de prova, no caso: realização de segunda perícia.

3. Ao mesmo tempo, resulta pacífico que o presente recurso jurisdicional tem efeito suspensivo, nos termos conjugados n.º 3 do artigo 140.º, do n.º 1 do artigo 143.º e do n.º 1 do artigo 140.º, todos do CPTA.

4. Ora, ao concluir pela não verificação dos pressupostos legais de admissão de relação do Relatório Pericial e de deferimento da realização de segunda perícia, a decisão recorrida padece de manifesto erro de direito, por incorreta interpretação e aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 485.º e no n.º 1 do artigo 487, ambos do CPC.

5. A um tempo, a concreta fundamentação da reclamação contra o Relatório Pericial e, bem assim, da necessidade da segunda perícia, assenta na manifesta deficiência do Relatório Pericial, por manifesta falta de representatividade das amostras de lamas recolhidas em resultado da desconformidade técnica e legal da metodologia adotada pelo ISQ e aceite pela APA, em cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 485.º do CPC.

6. Com efeito, a deficiência imputada ao Relatório Pericial, atingindo os respetivos pressupostos – ou seja, os resultados analíticos obtidos a partir das amostras recolhidas pelo ISQ cuja representatividade comprovadamente inexiste –, torna-o inviável, sendo inevitável a realização e uma segunda perícia que, garantindo a representatividade da amostra recolhida, permita dissipar as dúvidas que, como se referiu supra, a própria APA acaba por reconhecer.

7. Ou seja, não se trata, como erradamente concluiu a decisão em crise, de uma mera discordância quanto à metodologia adotada, mas, antes, manifesta deficiência do Relatório Pericial por falta de representatividade da amostra para aferir da fiabilidade da perícia.

8. Isto porque, atento o carácter imperativo da norma ínsita na subalínea i) da alínea a) da Parte C do ponto IV do Anexo IV ao RJDRA, a APA e o ISQ, aquando da realização das amostragens para efeitos da elaboração do Relatório Pericial, tinham a obrigação de ter desenvolvido um plano de amostragem que observasse o disposto na subalínea i) da alínea a) da Parte C do ponto IV do Anexo IV ao RJDRA, o que não sucedeu.

9. A outro tempo, a deficiência imputada ao Relatório Pericial, atingindo os respetivos pressupostos – ou seja, os resultados analíticos obtidos a partir das amostras recolhidas pelo ISQ cuja representatividade comprovadamente inexiste –, torna-o inviável, sendo inevitável a realização de uma segunda perícia que, garantindo a representatividade da amostra recolhida, permita dissipar as dúvidas que, como se referiu supra, a própria APA acaba por reconhecer.

10. Pelo que, resta concluir que o ónus de alegação fundamentada imposto pelo n.º 1 do artigo 487.º do CPC para efeitos do requerimento da segunda perícia se encontra verificado.

11. Por fim, acresce a total irrelevância da natureza urgente dos presentes autos, do facto de a entidade incumbida da realização da perícia ter sido livremente escolhida pelas partes ou do assegurar da autonomia e da independência dessa mesma entidade, argumentos estes vertidos na decisão ora em crise e que em nada relevam para aferir da verificação dos pressupostos de aplicação do n.º 2 do artigo 485.º e do n.º 1 do artigo 487, ambos do CPC.”.

Pede que o recurso seja julgado procedente, revogando-se o despacho recorrido e determinando-se a realização de segunda perícia.


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A Entidade Demandada, ora Recorrida, contra-alegou o presente recurso, assim tendo concluído:

1º. Veio a Autora/Recorrente interpor recurso i) da decisão que indeferiu a sua reclamação apresentada contra o relatório pericial e, bem assim, ii) da decisão que indeferiu a realização da segunda perícia.

2º. No que toca ao recurso interposto da decisão mencionada em i), o mesmo não deve ser admitido, porquanto, não se tratando de uma decisão que tenha rejeitado articulado ou meio de prova, da mesma não cabe apelação autónoma nos termos da alínea d) do número 2 do artigo 644.º do Código de Processo Civil, aqui aplicável por força do disposto no número 5 do artigo 142.º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos.

3º. Assim, aquela decisão deve ser impugnada no recurso a interpor da decisão final, devendo o objeto da presente apelação ser reduzido à questão vertida no ponto ii) supra mencionado.

4º. Sem prejuízo do supra exposto, e por mera cautela e dever de patrocínio, sempre se diga que nunca seria de aceitar a reclamação nos termos apresentados pela Recorrente, na medida em que esta se limita a apresentar uma razão de discordância quanto ao relatório pericial, discordância que suporta os dois pedidos formulados – ou seja, a reclamação e o pedido de realização da segunda perícia.

5º. A Recorrente não alcança assim que os dois mecanismos supra referidos são mecanismos diferentes e autónomos, com regimes distintos, não sendo de aceitar que a mesma alegação possa fundamentar ambos os pedidos, nem que os mesmos possam ser pedidos cumulativamente.

6º. No que respeita à reclamação apresentada, a Recorrente limita-se a referir que o alegado incumprimento de orientações emanadas pela Comissão Europeia na metodologia adotada pelo ISQ, e por consequência pela APA, na perícia realizada, tornam o relatório deficiente, e que essa deficiência fundamenta a reclamação, tratando a reclamação como se de uma impugnação se tratasse.

7º. Não lhe aponta a Recorrente o seu necessário e claro objetivo, ou seja, o que há a corrigir ou completar pelos Senhores Peritos naquela sede, limitando-se a concluir com a apresentação de questões que, quando muito, fundamentariam um pedido de esclarecimentos a prestar pelos Peritos.

8º. Pelo que, é desprovida de qualquer sentido lógico, e menos ainda de qualquer fundamentação de facto ou de direito, o pedido de reclamação apresentada, e menos ainda o pedido de realização de segunda perícia, sendo que isso mesmo revela a indiferenciação de argumentos no que toca a ambos os pedidos.

9º. Quanto à requerida realização de uma segunda perícia, a mesma também não foi devidamente fundamentada pela Recorrente.

10º. Nas suas alegações, a Recorrente diz que as Orientações Técnicas que resultam da Comunicação 2018/C 124/1 de 9 de Abril de 2018 estão contidas no Regime Jurídico da Deposição de Resíduos em Aterro, e que por isso são normas imperativas, e que por isso o seu não cumprimento inquina e compromete o relatório, o que não é verdade.

11º. Aquelas orientações técnicas são meras recomendações, sendo que o Regime Jurídico da Deposição de Resíduos em Aterro – único conjunto de normas aplicáveis – apenas define, na parte C do Anexo IV, os métodos a utilizar na amostragem e verificação dos resíduos que são depositados em aterro, em lado algum se definindo ou sugerindo o que quer que seja quanto à representatividade das amostras.

12º. A Recorrente baseia assim a sua alegação em meras conclusões extraídas de um relatório elaborado por uma entidade externa aos autos, num comportamento que configura aliás abuso de direito.

13º. Porquanto, e como bem decidiu o Tribunal a quo, quando confrontada com o pedido da aqui Recorrida para notificar a APA de que deveria atentar no previsto nas disposições legais aplicáveis quanto à metodologia a adotar, a Recorrente veio insurgir-se contra tal pedido, sustentando que tal era absolutamente desnecessário, dilatório e contrário ao objetivo da perícia, e que a indicação da metodologia a seguir mais não era do que condicionar a perícia.

14º. Pelo que, nunca a metodologia da amostragem suscitou quaisquer dúvidas à Recorrente que agora as levanta por conveniência e mera discordância com o resultado obtido.

15º. Faz crer a Recorrente que a APA reconhece a existência de dúvidas no que ao resultado obtido diz respeito, o que mais não é do que uma falácia de raciocínio, porquanto a APA responde aos três primeiros quesitos tendo por base o quadro legal e regulamentar em vigor e os resultados analíticos obtido, sendo perentória, clara e objetiva nas suas conclusões, ou seja, de que as águas residuais recebidas e tratadas nas ETAR’s da Recorrida são águas residuais urbanas, que os resíduos não têm quaisquer características de perigosidade, de que devem ser classificados como resíduos não perigosos com o código LER 19 08 05.

16º. Respostas que, mesmo sem ter por base a análise das lamas recolhidas no âmbito da perícia realizada, resolvem o thema decidendum nos autos, que mais não é do que saber se as Peças do Procedimento são ilegais por violar aquela classificação a dar às Lamas, resultando inequívoco dos autos que inexiste qualquer ilegalidade no Concurso em apreço.

17º. Na resposta ao quesito número 4 a APA tem também em consideração – e justifica isso adequadamente na sua resposta –, além das análises que efetuou, os resultados que se encontram nos autos e que foram entregues pelas partes, que o Tribunal desconhece como, quando e onde foram realizadas e que se encontram aliás impugnadas.

18º. Pelo que, a análise global feita pela APA, de forma alguma pode ser considerada como o surgimento de uma qualquer dúvida, atento que o relatório pericial é deveras claro e objetivo, não deixando qualquer margem para dúvida.

19º. Assim, e porque o pedido de realização de segunda perícia não é, nem pode ser, como bem entende a doutrina e jurisprudência, uma faculdade discricionária conferida às partes, tinha a Recorrente o ónus de apresentar, fundadamente, as razões pelas quais entende que o resultado deveria ser diferente, e onde se encontra a inexatidão do relatório existente.

20º. E em lado algum é apresentada pela Recorrente essa fundamentação, tratando-se este pedido de uma manobra meramente dilatória e de chicana processual, a que o Tribunal a quo, e muito bem, pôs cobro, na medida em que estamos perante um processo de natureza urgente, que caminha já e a passos largos, para uma pendência de dois anos, o que não se pode admitir.

21º. Nem a Recorrente apresentou uma fundamentação do seu pedido – limitando-se a sustentá-lo na mesma discordância em que se baseou para reclamar contra o relatório pericial – nem existe no Tribunal a quo qualquer dúvida séria ou qualquer fundamento sério que justifique lançar mão desse mecanismo.

22º. Assim, muito bem andou o Tribunal a quo ao indeferir o pedido de realização de segunda perícia, fundamentando adequadamente aquela sua decisão, que não merece censura.

23º. Assim, tem necessariamente de improceder o recurso apresentado pela Recorrente.”.

Pede que seja liminarmente indeferido o recurso relativo à decisão que indeferiu a reclamação apresentada contra o relatório pericial, reduzindo-se o recurso ao despacho relativo à decisão de indeferimento da realização da perícia e que este negado provimento a este recurso, mantendo-se a decisão recorrida.


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O Ministério Público junto deste Tribunal notificado nos termos e para efeitos do disposto no art.º 146.º do CPTA, não emitiu parecer.

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O processo tem vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, indo à Conferência para julgamento.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, 2 e 3, todos do CPC ex vi artigo 140.º do CPTA, não sendo lícito ao Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.

Acresce a questão colocada pela Entidade Recorrida nas suas contra-alegações, respeitante à inadmissibilidade parcial do recurso.

As questões suscitadas resumem-se, em suma, em analisar em relação ao despacho recorrido, o seguinte:

A. Recurso do indeferimento da reclamação deduzida contra o relatório pericial

1. Da admissibilidade do recurso sobre o indeferimento da reclamação deduzida contra o relatório pericial;

2. Da deficiência do relatório pericial por falta de representatividade das amostras de lama recolhidas.

B. Recurso do indeferimento da realização da segunda perícia

Irrelevância da natureza urgente dos autos, do facto de a entidade incumbida da realização da perícia ter sido livremente escolhida pelas partes ou do assegurar da autonomia e da independência dessa mesma entidade.

III. FUNDAMENTOS

DE FACTO

O despacho ora recorrido não deu como provados quaisquer factos.

DE DIREITO

Tendo presente a antecedente enunciação das questões a apreciar, cumpre apreciar.

A. Recurso do indeferimento da reclamação deduzida contra o relatório pericial

1. Da admissibilidade do recurso sobre o indeferimento da reclamação deduzida contra o relatório pericial

Vem a Recorrente a juízo interpor recurso contra o despacho datado de 05/12/2019, que incide sobre a reclamação apresentada pela Autora e sobre o requerimento de realização de segunda perícia, o que é posto em causa pela Entidade Recorrida, que defende que o recurso na parte em que se refere ao indeferimento da reclamação deduzida contra o relatório pericial deve ser liminarmente rejeitado.

Vejamos.

Como explicitado pela própria Recorrente, o recurso interposto tem por objeto um único despacho, nos termos antes delimitados, mas incidente sobre duas questões em si mesmas distintas, pois incide quer sobre a reclamação apresentada pela Autora, indeferindo-a, quer sobre o requerimento de realização de segunda perícia, recusando-a.

Para efeitos de recorribilidade e dos respetivos efeitos da interposição do recurso, a Recorrente trata o presente recurso como se tivesse por objeto apenas uma decisão recorrida.

Estando em causa duas decisões autónomas e distintas, importa aferir em relação a cada delas uma os requisitos da sua impugnação contenciosa.

A Recorrente subsume o recurso interposto contra ambas as decisões proferidas ao disposto na alínea d), do n.º 2 do artigo 644.º do CPC, o que não se afigura correto, tal como sustenta a Entidade Recorrida.

No que se refere ao indeferimento da reclamação apresentada contra o relatório pericial não estão verificados os pressupostos para que caiba recurso de apelação imediato dessa decisão interlocutória, por não se se subsumir a qualquer das previstas nas alíneas do n.º 2 do artigo 644.º do CPC, aplicável ao presente processo por força do disposto no artigo 140.º, n.º 3 do CPTA.

Por conseguinte, trata-se de decisão que apenas pode ser impugnada juntamente com a decisão final que, nos termos do artigo 644.º, n.º 1 do CPC, vier a ser proferida, como estabelecido no artigo 644.º, n.º 3 do CPC, dela não cabendo recurso de apelação com subida imediata e em separado, como aquele que se verifica.

Nestes termos, será de rejeitar, por inadmissibilidade legal, o recurso interposto contra o despacho recorrido na parte em que indeferiu a reclamação apresentada pela Autora contra o relatório pericial.


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Em consequência, fica prejudicado o conhecimento do objeto do recurso apresentado pela Recorrente contra o indeferimento da reclamação.

B. Recurso do indeferimento da realização da segunda perícia

Irrelevância da natureza urgente dos autos, do facto de a entidade incumbida da realização da perícia ter sido livremente escolhida pelas partes ou do assegurar da autonomia e da independência dessa mesma entidade

Na parte em que impugna o despacho recorrido que indefere a realização da segunda perícia, sustenta a Autora, ora Recorrente a pertinência da realização de uma segunda perícia, apontando deficiências ao relatório pericial apresentado por falta de representatividade das amostras de lamas e que a tal não obsta a natureza urgente do processo, nem o facto de a entidade incumbida da realização da perícia ter sido livremente escolhida pelas partes ou de se encontrar assegurada a autonomia e a independência dessa mesma entidade.

Alega a Recorrente que de acordo com a jurisprudência, o tribunal apenas poderá indeferir a realização de segunda perícia se considerar que o pedido se justifica, sendo que saber se os fundamentos invocados têm razão de ser é matéria que só depois de realizada a segunda perícia se pode colocar.

Defende que, encontrando-se minimamente fundamentada a discordância com o resultado da primeira perícia, o juiz só deve indeferir a segunda perícia se se afigurar que a mesma é meramente dilatória ou é impertinente.

Para tanto, alega a Recorrente a necessidade da produção de prova pericial para a confirmação ou infirmação dos factos alegados pela Autora, de que as lamas que resultam do tratamento das águas residuais das ETAR de Espinho e Cacia, sob gestão da ora Recorrida, por revelarem características de perigosidade, deviam ser classificadas como resíduos perigosos e como tal, objeto de tratamento adequado.

Por isso, alega que o presente processo não incide unicamente sobre uma questão de direito.

Entende a Recorrente que a deficiência imputada ao relatório pericial, aos resultados analíticos obtidos a partir das amostras recolhidas cuja representatividade inexiste, torna-o inviável, tornando inevitável a realização de uma segunda perícia.

Vejamos.

Compulsando o despacho ora recorrido, proferido conjuntamente com a apreciação do teor da reclamação apresentada pela Autora, dele decorre a invocação de várias razões para indeferir a realização da segunda perícia, conforme ora se transcreve:

Por seu turno, considerando, desde logo, que se trata de processo urgente; mais considerando que a entidade incumbida da realização da perícia foi livremente escolhida pelas partes, mediante mútuo acordo e mais atendendo, por fim, a que a reclamação em referência se funda em parecer de entidade terceira, estranha aos autos, parecer que, aliás, segue “orientações”, contidas em “Comunicação da Comissão”, e não normas imperativas cuja violação pudesse conduzir à invalidade do meio de prova, conclui-se não deve ser atendida a reclamação.

A tanto não será, de resto, alheia a posição manifestada pela autora nestes autos, quando, a requerimento da ré (fls. 1654), peticionando que se notificassem os senhores peritos para a observância das orientações por que agora pugna a autora, esta se manifestou no sentido da autonomia e independência da Agência Portuguesa do Ambiente para realização do exame, sem que pudesse estar sujeita a condicionalismos impostos pelas partes.

Exarou a autora, com efeito, em requerimento de 02.01.2019, de fls. 1687, o seguinte:

“(…) sempre se diga que a APA, enquanto autoridade nacional de resíduos, bem saberá em que moldes deverão ser realizadas as análises aos resíduos em questão, pelo que é absolutamente desnecessário e contrário aliás ao objetivo da perícia, condicionar a APA aos métodos que as partes consideram mais adequados”.

Tudo visto, há-de improceder forçosamente a reclamação apresentada.

Suportado, de resto, o requerimento de realização de segunda perícia exactamente nos mesmos pressupostos, não pode senão, pelos mesmíssimos fundamentos, improceder o requerido.”.

Decorrendo do despacho ora recorrido que a metodologia seguida e as preocupações manifestadas no processo para que os peritos observassem as orientações que a Recorrente ora pugna mereceu uma posição da Autora no sentido de se conferir autonomia e independência para a realização no exame, tal não obsta, no entanto, à pertinência de assegurar o cabal esclarecimento dos factos relevantes da causa, sobre os quais assentará a solução de direito, dissipando todas as dúvidas que sobre eles pairam.

Reconhecendo-se que não está em causa a admissão da realização de uma primeira perícia, os fundamentos da pertinência de uma segunda perícia devem ser ainda mais exigentes daqueles que se colocam em relação à realização da primeira perícia, de forma a obsta à realização de atos processuais inúteis ou dilatórios.

Além disso, não obstante se reconhecer grande margem de apreciação ao juiz para decidir da pertinência da realização da segunda perícia, não se pode olvidar que está em causa um meio da prova, destinado ao apuramento e esclarecimento dos factos pertinentes da causa.

Por isso, não pode deixar de se convocar a doutrina relativa ao direito à prova, como a que foi expressa no Acórdão deste TCAS, de 19/10/2017, Proc. n.º 1087/16.0BELRA-A.

Segundo o artigo 341.º do Código Civil, a prova destina-se à demonstração da realidade dos factos.

O direito à prova constitui uma trave mestra do processo, um direito estruturante da relação jurídica processual, que entronca com o princípio da tutela jurisdicional efetiva e com as condições de acesso ao direito e à justiça, tutelados no artigo 20.º da Constituição.

No domínio da prova, o processo civil e, ainda mais reforçadamente, o processo administrativo, assume claramente natureza inquisitória, em face do disposto no artigo 411.º do CPC e do artigo 90.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPTA, nos termos do qual se atribui ao juiz uma iniciativa probatória genérica, para além daquela que assiste às partes.

Extrai-se do disposto do artigo 90.º, n.º 3 do CPTA que o juiz pode recusar a utilização de certos meios de prova, quando o considere claramente desnecessário.

Não se questiona a relevância dos factos cuja prova está em causa, por ser manifesto que relevam para a boa decisão da causa a proferir pelo Tribunal, por se tratarem de factos que se integram no objeto do litígio.

Além disso é por serem factos controvertidos, carecidos de prova, que sobre eles foi admitida a prova pericial.

Não podem existir dúvidas quanto ao direito da Autora em apresentar ou requerer a produção de meios de prova e a sua admissibilidade pelo Tribunal.

Meios de prova esses que o Tribunal pode recusar apenas quando os considere claramente desnecessários.

Juízo esse que não se consegue formular no caso em apreço, nos termos aduzidos na alegação da ora Recorrente, que põe em crise a representatividade das amostras recolhidas e com isso todos os resultados obtidos no relatório pericial.

Acresce que, não obstante a prova pericial estar submetida ao princípio da livre apreciação da prova, segundo o artigo 489.º do CPC e o artigo 389.º do CC, nos termos do artigo 346.º do Código Civil, assiste o direito à contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos.

Assim, colocando a Autora, ora Recorrente, em causa a fiabilidade da representatividade das amostras colhidas com base nas quais assentou a análise pericial e a elaboração do respetivo relatório, fica a séria e fundada dúvida sobre o resultado pericial obtido.

Sendo o processo administrativo o meio através do qual se fazem valer as pretensões jurídico-substantivas em relações jurídico-administrativas, pautadas pela forte presença do interesse público, razão que determina a especial intensidade dos poderes inquisitórios do juiz na descoberta da verdade dos factos, não deve ser coartada a possibilidade do amplo esclarecimento dos factos pertinentes da causa, com base nos quais se encontrará a solução de direito.

A tal não obsta a natureza urgente do processo, considerando estar em causa um meio principal, que conhece integralmente de facto e de direito, sobre o mérito do litígio.

Tanto mais, por a segunda perícia ser requerida pela Autora, que teve o impulso processual da constituição da instância e a quem, prima facie interessa a resolução do litígio.

Assim, em face do exposto, afigura-se ser, senão necessária, pelo menos pertinente a realização de uma segunda perícia, de forma a assegurar o amplo e cabal esclarecimento dos factos controvertidos da causa, não sendo possível formular o juízo de a segunda perícia ser claramente desnecessária para o apuramento da verdade.


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Termos em que, será de conceder provimento ao recurso e em revogar o despacho recorrido, substituindo-o por outro que admita a realização da segunda perícia.

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Sumariando, nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do CPC, conclui-se da seguinte forma:

I. Não se subsumindo o despacho de indeferimento da reclamação apresentada contra o relatório pericial em nenhuma das alíneas do n.º 2 do artigo 644.º do CPC, aplicável por força do disposto no artigo 140.º, n.º 3 do CPTA, não estão verificados os pressupostos para que caiba recurso de apelação imediato dessa decisão interlocutória.

II. Trata-se de decisão que apenas pode ser impugnada juntamente com a decisão final que, nos termos do artigo 644.º, n.º 1 do CPC, vier a ser proferida, como estabelecido no artigo 644.º, n.º 3 do CPC.

III. Os fundamentos da pertinência de uma segunda perícia devem ser ainda mais exigentes daqueles que se colocam em relação à realização da primeira perícia, de forma a obsta à realização de atos processuais inúteis ou dilatórios.

IV. Reconhecendo-se grande margem de apreciação ao juiz para decidir da pertinência da realização da segunda perícia, não se pode olvidar que está em causa um meio da prova, destinado ao apuramento e esclarecimento dos factos pertinentes da causa.

V. No domínio da prova, o processo civil e, ainda mais reforçadamente, o processo administrativo, assume claramente natureza inquisitória, em face do disposto no artigo 411.º do CPC e do artigo 90.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPTA.

VI. O juiz apenas pode recusar a utilização de certos meios de prova, quando o considere claramente desnecessário, segundo o disposto do artigo 90.º, n.º 3 do CPTA.


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Por tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes do presente Tribunal Central Administrativo Sul, em:

1. Rejeitar o recurso interposto contra o indeferimento da reclamação apresentada contra o relatório pericial, por inadmissibilidade legal;

2. Conceder provimento ao recurso interposto contra o indeferimento da realização da segunda perícia, em revogar o despacho recorrido e deferir o pedido de realização da segunda perícia.

Custas em partes iguais pela Recorrente e pela Recorrida.

Registe e Notifique.


(Ana Celeste Carvalho)

(Pedro Marques)

(Alda Nunes)