Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:06817/10
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:12/19/2017
Relator:ANA CELESTE CARVALHO
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
OMISSÃO DE SINALIZAÇÃO
 ANIMAL NA VIA
NEXO DE CAUSALIDADE
Sumário:I. A responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos emana da prática de atos jurídicos e da realização de operações materiais, e pode decorrer quer de atos comissivos (por ação), quer omissivos (por omissão), segundo o artigo 486.º do CC.

II. Verifica-se a ilicitude, se os atos materiais ou as omissões ofendam direitos de terceiros ou disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, as “regras técnicas e de prudência comum” ou o dever geral de cuidado que devam ser tidos em consideração (artigo 6.º do D.L. n.º 48.051).

III. Apurando-se o aparecimento de um animal selvagem de grande porte na via de circulação automóvel, que embateu na viatura que aí circulava, determinando a sua imobilização e a produção de estragos na viatura, numa estrada municipal ladeada de um zona de caça de animais selvagens de grande porte, está em causa a imputação da omissão de sinalizar o perigo de animais na via pública, atento o risco de animais selvagens ocuparem e invadirem a faixa de rodagem e com isso, provocarem acidentes de viação.

IV. Decorre da normalidade dos factos e das regras de experiência comum que a existência de um animal na via, para mais um animal selvagem e de grande porte, que apareceu subitamente, constitui um fator que agrava o risco que em geral a condução automóvel comporta, além de o facto de a estrada ser ladeada por uma reserva de caça, esse risco além de ser real, apresentava-se ainda mais potenciado no caso concreto.

V. A existência de animais na via de circulação automóvel constitui um perigo ou um fator de risco acrescido para a circulação automóvel, pelo que esse perigo tem de estar devidamente sinalizado, por exigir cuidados especiais aos condutores.

VI. Apurando-se que foi o surgimento do animal selvagem de grande porte, atravessando a faixa de rodagem e embatendo na parte da frente do veículo, que determinou o embate ocorrido, tendo provocado danos na viatura que determinaram a sua imobilização, com impossibilidade de circular, em estrada municipal ladeada por uma zona de caça de animais selvagens, sem estar sinalizada quanto ao perigo de animais selvagens na via, determina a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Réu, Município.

VII. A perigosidade da existência de animais selvagens na via era agravada pelo facto de a estrada ser ladeada por uma reserva de caça, pelo que, está em causa um risco real e não apenas potencial para a condução.

VIII. Os danos causados na viatura são consequência do embate com o animal que apareceu subitamente na faixa de rodagem, sendo os prejuízos sofridos decorrentes de uma conduta omissiva, de no local do acidente não existir qualquer indicação ou sinalização do perigo existente na via – perigo de animais na via –, segundo o n.º 1 do artigo 5.º do Código da Estrada, que impõe a sinalização “nos locais que possam oferecer perigo para o trânsito ou em que este deva estar sujeito a restrições especiais e ainda quando seja necessário dar indicações úteis”.

IX. A existência de um animal selvagem de grande porte que veio a ocupar a faixa de rodagem, em local ladeado por uma reserva de caça, carece de sinalização, destinada a prevenir o perigo que aquele representava para os condutores.

X. Estando em causa uma estrada municipal, impendia ao Município o dever legal de, através dos seus órgãos e agentes, proceder à sinalização, pelos meios e forma adequados às circunstâncias da situação, ou seja, acautelar a circulação rodoviária, aumentando a segurança na via.

XI. Não sendo apurados quaisquer factos imputados ao condutor, nem que o animal tenha aparecido na via devido a facto fortuito, apurando-se a omissão ilícita da sinalização do perigo de animais selvagens na via, verifica-se a culpa inerente à omissão da atuação municipal, além de o Réu não ter ilidido a presunção de culpa que sobre ele incidia nos termos do n.º 1 do artigo 493.º,

XII. No respeitante ao nexo de causalidade importa saber se a concreta omissão negligente do dever de sinalização constitui causa direta e necessária da produção do resultado danoso ou, se pelo contrário, a omissão ilícita se mostrou de todo indiferente para a verificação do dano, tendo o dano sido provocado em virtude de circunstâncias excecionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que influíram no caso concreto.

XIII. Apurando-se que foi o aparecimento do animal na via que provocou o embate na viatura, causando a sua imobilização e sérios danos, estando o animal na origem do acidente, sem que exista qualquer outra causa direta ou indireta para a produção do acidente, sendo a estrada ladeada por uma zona de caça de animais selvagens, a omissão da sinalização do perigo de animais selvagens na via, tem a aptidão para a causa dos danos na viatura, sendo a atuação omissiva do Réu causa adequada do acidente ocorrido.

XIV. Tendo os danos provocados origem no aparecimento de um animal selvagem na via, tem de se entender que a omissão de sinalização de perigo de aninais selvagens constitui uma causa produtora e adequada dos danos provocados, sendo a omissão ilícita do Réu, Município, dos deveres de vigilância e de sinalização da via causa adequada do dano, segundo um critério imputacional da ação humana, tendo por referência o dever imposto e o risco associado.

XV. Segundo este critério, cabe ao lesado provar os factos de onde resulte que o resultado danoso foi causado pelo aparecimento do animal na via e pelo seu embate na viatura, que existiu violação de norma legal, regulamentar ou da legis artis aplicável, e que o resultado provocado se localiza no âmbito dos perigos que o escrupuloso cumprimento do dever pretende evitar, de modo que, se pela violação das normas legais ou técnicas aplicáveis é aumentado ou potenciado o risco do dano e se os danos ou lesão provocada se localiza no círculo dos perigos que as normas aplicáveis pretendem evitar, deve concluir-se pela prova da causalidade.

XVI. Ademais, apurando-se que a estrada municipal era ladeada por uma zona de caça, tem de afastar-se o caracter totalmente excecional, extraordinário, imprevisto, anómalo, anormal ou inusitado do aparecimento do animal selvagem na via.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I – RELATÓRIO

Maria ……………….. e marido, José ……………………….., devidamente identificados nos autos, inconformados, vieram interpor recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, datada de 24/05/2010, que, no âmbito da ação administrativa comum, sob a forma ordinária, para efetivação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, instaurada contra o Estado Português, o Município do Crato, a Junta de Freguesia de Crato e Mártires e a Associação de Caçadores das ……………………….. e Anexos, em que pedem a condenação solidária dos Réus a pagar uma indemnização no valor de € 7.357,65 em consequência dos danos patrimoniais decorrentes do embate produzido pelo javali, acrescida de juros calculados, à taxa legal, a partir da citação e até efetivo pagamento e nas custas e procuradoria condigna, absolveu da instância a Ré, Associação de Caçadores …………………………….e Anexos, e os demais Réus do pedido.

Formulam os aqui Recorrentes nas respetivas alegações (cfr. fls. 208 e segs. – paginação referente ao processo em suporte físico, tal como as referências posteriores), as seguintes conclusões que se reproduzem:

1ª. - Por reconhecimento da Direcção-Geral dos Recursos Florestais, à data da ocorrência dos factos, já tinha conhecimento que a Estrada Municipal n.º 1023, em particular, o local onde o embate se produziu, é hábito que javalis a atravessem;

2ª. - Independentemente da Estrada Municipal em causa estar ladeada por uma área de reserva de caça, impunha-se à Direcção-Geral dos Recursos Florestais, por ser a entidade que fiscaliza o ordenamento florestal e cinegético a advertência ao Município do Crato para a aposição do sinal A 19b;

3ª. - Maior imposição resulta ainda, da Direcção-Geral dos Recursos Florestais ter sido a entidade que deferiu o processo de reserva de caça que ladeia a Estrada Municipal n.º 1023, recaindo pois sobre ela, um dever especial de cuidado;

4ª. - O que aliás veio a fazer – concretamente, após ter tomado conhecimento do acidente destes autos, veio solicitar à Câmara Municipal do Crato a colocação do sinal, nos termos do disposto na legislação (o sublinhado e negrito são nossos – e referem-se ao último parágrafo do Doc. nº. 4 junto com a p.i.);

5ª. - Todavia, como acima já se disse, a Direcção-Geral dos Recursos Florestais actuou tarde, porque há já muito tempo que tinha conhecimento da alta probabilidade de naquela via de trânsito atravessarem animais selvagens;

6ª. - A sinalização de perigo (animais selvagens - indicação que a via pode ser atravessada por animais selvagens) permite dar conhecimento aos condutores da efectiva perigosidade, tendo obrigação de passar a circular com mais atenção, ou com atenção redobrada e, sendo o caso, reduzir a velocidade;

7ª. - Por outro lado, também sobre o Município do Crato, através da sua Câmara Municipal, recai a obrigação legal de proceder à conveniente sinalização das estradas municipais;

8ª. - Sendo do seu conhecimento a existência da área de reserva de caça, aliás, não o nega sequer na sua contestação, “empurra” é a responsabilidade pela advertência da colocação do sinal para a Direcção-Geral dos Recursos Florestais, a advertência ou solicitação que acabou por fazer mais tarde;

9ª. - A douta sentença ao se decidir pela absolvição do Estado Português (via Direcção­ Geral dos Recursos Florestais) e do Município do Crato violou toda a legislação a que faz alusão quando aprecia a questão de mérito relativa ao Estado Português e toda a legislação a que faz alusão quando aprecia a questão de mérito relativamente ao Município do Crato;

10ª. - Trata-se de uma mera questão de interpretação o que separa o entendimento dos Autores do que vem expresso na douta sentença - sendo certo que, efectivamente é na resposta às condições particularmente perigosas para o trânsito que imponham especial atenção e prudência dos condutores que reside a diferença, respondendo os Autores que sim, mas que a douta sentença responde que não, que a Estrada Municipal em causa, atentas todas as sua características não tinha que estar sinalizada pelo sinal A 19b;

11ª. - Revogando-se a douta decisão e substituindo-a por outra que condene aqueles dois Réus solidariamente a pagar aos Autores a quantia peticionada, está-se a fazer a costumada BOA JUSTIÇA!!!”.


*

O ora recorrido, Estado português, representado pelo Ministério Público notificado, apresentou contra-alegações (cfr. fls. 244 e segs.), tendo aí concluído do seguinte modo:

“1 - Inexiste acto ilícito de órgão ou agente do Estado Português, como inexiste nexo de causalidade entre o facto imputado pelos recorrentes à Direcção Geral dos Recursos Florestais e o dano por eles sofrido.

2 - Estando em causa dano originado por animal selvagem, não se verificam relativamente ao Estado os pressupostos de responsabilização mencionados nos artigos 493° e 502° do Código Civil.

3 - Deve o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a douta decisão recorrida”.


*

O Recorrido, Município do Crato, contra-alegou o recurso apresentado pelos Recorrentes, formulando as seguintes conclusões:

1) O javali apareceu de forma inesperada.

2) Sendo que tal espécie não se confina às reservas da cerca.

3) Só em condições extremamente perigosas se impunha a sinalização.

4) O que, in casu, não sucedia.

5) Nem os recorrentes alegam factos conducentes à imputação de qualquer falta ao Município do Crato.

6) Ao mesmo tempo que olvidam as suas responsabilidades.

7) Pelo que, a douta decisão recorrida deve ser mantida in totum, fazendo-se assim, a melhor Justiça.”.


*

O processo vai, com vistos, dos Exmos. Juízes-Adjuntos, à Conferência para julgamento.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelos Recorrentes, sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639º, n.º 1, 2 e 3, todos do CPC ex vi artigo 140.º do CPTA, não sendo lícito ao Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.

A questão suscitada resume-se, em suma, em determinar se a decisão judicial recorrida enferma de erro de julgamento no tocante à responsabilidade civil do Estado português, através da Direção-Geral dos Recursos Florestais, e do Município do Crato, por existirem condições particularmente perigosas para o trânsito na Estrada Municipal em causa, devendo por isso, estar sinalizada com o sinal A 19b, existindo uma omissão ilícita do dever de sinalização.

III. FUNDAMENTOS

DE FACTO

O Tribunal a quo deu como assentes os seguintes factos:

«§º) – Os autores alegam e pedem o seguinte, em petição inicial entrada em juízo em 18/12/2007 – cfr. p.i.:


01º.
No dia 26 de Dezembro de 2004, por cerca das 20 horas e 50 minutos, na Estrada Municipal nº. 1023, que liga Flor da Rosa à Estrada Nacional nº. 18, o Autor José ……………, conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros matrícula …………, veículo registado em nome da Autora Maria, mas propriedade de ambos, por serem casados no regime da comunhão de adquiridos (Doc. n°. 1);

02º.
Circulavam no sentido Flor da Rosa - Estrada Nacional nº. 18, pela meia faixa direita de rodagem atento o seu sentido de marcha, a uma velocidade não superior a 60/70 kms./hora, seguindo a Autora Maria como passageira no lugar da frente (Doc. n°. 1);

03º.
A certa altura do percurso, à aproximação do Km. 10 da referida Estrada Municipal, sem que ninguém o pudesse prever, súbita e inesperadamente, vindo do lado esquerdo atento o sentido de marcha (Doc. n°. 1),

04º.
Surgiu um javali de grande porte, atravessando a faixa de rodagem da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do veículo, indo embater na parte da frente do veículo automóvel (Doc. nº. 1),

05º.
Sem que o seu condutor pudesse evitar o embate, tal a surpresa e a forma repentina da situação que se lhe deparou.

06º.
Que acabou por determinar o embate, tendo como consequência directa e necessária, a morte do animal e avultados danos no veículo automóvel (Doc. n°s. 1 e 2).

07º.
O embate deu-se na meia faixa direita de rodagem atento o sentido de marcha do veículo automóvel (Doc. n°. 1);

08º.
O local de embate configura uma recta plana, era de noite, o tempo estava bom e o piso estava em boas condições de conservação (Doc. n°. 1);

09º.
A faixa de rodagem tem uma largura de 5,00 metros, dividida por duas hemi-faixas com 2,50 metros cada uma, ladeadas por bermas com 0,50 metros de largura (Doc. n°. 1);

10º.
O veículo automóvel após o embate ficou imobilizado na meia faixa esquerda de rodagem atento o seu sentido de marcha, com a sua parte lateral direita, a cerca de 3,80 metros de distância do marco quilométrico dos 10 Kms., em oblíquo imediatamente antes dele (Doc. n°. 1).

11º.
Como consequência directa e necessária do embate, resultaram no veículo automóvel os danos seguintes (Doc. n°. 2):
- Farolim de nevoeiro;
- Faróis;
- Pára-choques;
- Spoilers frente;
- Reforço;
- Forra guarda-lama;
- Grelha cromada;
- Emblema;
- Radiador ar condicionado;
- Radiador;
- Compressor;
- Anti-congelante;
- Travessa;
- Tampa;
- Conjunto blindage;
- Chapa de matrícula;
- Vidro pára-brisas;
- Kit pára-brisas;
- Friso pára-brisas;
- Kit cola vidros;
- Cinto segurança;
- Chicote cinto segurança;
- Computador;
- Air bag;
- Centro volante c/air;
- Sensores;
- Sensor air bag LA;
- Forra encosto;
- Moldado branco;
- Serviço de bate-chapas;
- Serviço de pintura;
- Serviço de estofador;
- Serviço de mecânica.

12º.
Danos que foram orçamentados pela quantia total de 7.357,65 € (Doc. nº. 2).

13º.
Tendo os Autores decidido transaccioná-lo pelo preço de 8.000,00 € no estado em que se encontrava (salvado), sofrendo um decréscimo de valor igual ao valor dos danos descritos no artigo anterior.

14º.
O embate deu-se por única e exclusiva responsabilidade do aparecimento repentino do javali, animal selvagem cuja guarda não pertence aos Réus, nem o mesmo é utilizado no seu próprio interesse.

15º.
Mas, a faixa de rodagem é ladeada por uma reserva de caça, demarcada pelo seu exterior com sinais apostos de cor vermelha, que indicam a sua existência, sinais cuja obrigação não têm os Autores e em concreto o Autor José de conhecer pois o mesmo não é caçador,

16º.
Como reserva de caça que é, os sinais existentes, indicam que o exercício da caça é limitado no sentido de não ser livre, mas sujeito a determinado regime.

17º.
A qual (reserva) é visível para todos os cidadãos, condutores ou não, independentemente também de serem ou não caçadores.

18º.
Os sinais referidos não prestam contudo quaisquer informações acerca da caça existente no local, concretamente, caça miúda ou caça grossa, de grande porte.

19º.
Tendo os Autores sido informados posteriormente que se trata de reserva de caça onde se pratica o exercício de caça grossa, ali se abatendo, em concreto javalis.

20º.
No momento em que o embate se deu, não existia em qualquer dos sentidos, E.N. n°. 18 - Flor da Rosa e em sentido contrário, qualquer sinal que indicasse a quem exercia por ali a condução a possibilidade real daqueles animais poderem aparecer na faixa de rodagem.

21º.
E se o animal em causa é selvagem e se sobre o 2°. Réu recai a atribuição legal de proceder à sinalização das estradas que estão sobre a sua alçada, podia o mesmo aparecer em qualquer uma, quer existisse ou não reserva de caça,

22º.
Considerando-se que não seria razoável nem exigível que em todas as estradas fossem colocados sinais avisadores da presença de animais selvagens, estando-se aqui a referir concretamente ao sinal de perigo quadro XXII, A l9b, “Animais Selvagens”, do Decreto Regulamentar nº. 22-A/98, de 01 de Outubro (Doc. n°. 3).

23º.
Resulta no entanto, da conjugação da existência no local de uma reserva de caça que, de ambos os lados ladeia a estrada, o inerente conhecimento das entidades públicas envolvidas no seu licenciamento e criação, de que se identificam a Direcção Geral dos Recursos Florestais, a Câmara Municipal do Crato e a Junta de Freguesia de Crato e Mártires (segundo a sua área geográfica).

24º.
A possibilidade de naquele local em concreto e não qualquer outro, aparecerem animais selvagens é maior do que em qualquer outra, recaindo sobre a Direcção Geral dos Recursos Florestais a obrigação de advertir a Câmara Municipal de colocar o sinal de trânsito, a esta, de materialmente o colocar por atribuição e competência legal, à Junta de Freguesia de Crato e Mártires, local onde geograficamente a reserva de situa, a obrigação de zelar pelo espaço em causa, também exigindo à Câmara Municipal que aja em consonância com a Lei e ali aponha o devido ou os devidos sinais para quem por ali circule esteja convenientemente informado e adequar a sua condução às condições concretas da estrada e seus envolventes.

25º.
Bastando que para isso a efectiva colocação do sinal de trânsito identificado no artigo 22°. Supra.

26º.
Na realidade, começa o processo de licenciamento de uma reserva de caça pela proposta formulada por determinado requerente, neste caso a 4ª Ré, na Direcção Geral dos Recursos Florestais.

27º.
Depois, é cruzada informação acerca da mesma, entre aquela Direcção e as Autarquias Locais envolvidas, designadamente, onde a reserva de caça se vai implantar.

28º.
E porque se está a falar de uma estrada municipal, é a Câmara Municipal onde mesma se situa, a quem legalmente está atribuída e a quem compete a colocação de sinais de trânsito, o que também deve ser exigido pela respectiva Junta de Freguesia.

29º.
E, se no caso concreto, todas as entidades envolvidas tivessem cumprido o dever legal que a lei lhes confere, é exigível que pelo menos, para os condutores que circulem numa estrada ladeada por ambos os lados por uma reserva de caça,

30º.
Estarem informados da possibilidade e do perigo da existência no local do aparecimento de animais selvagens.

31º.

O que acaba por ser aceite, na medida em que a Direcção Geral dos Recursos Florestais, após ter tido conhecimento do acidente dos Autores, nas circunstâncias já descritas, solicitou à Câmara Municipal do Crato a sinalização da zona nos termos do disposto na legislação (Doc. n°. 4).

32º.

Na problemática da responsabilidade civil da Administração, encontra-se em vigor o D.L. n.º 48.051, de 21.11.1967, que prevê o regime especial de responsabilidade civil da Administração pelos actos de gestão pública.

33º.
Estão abrangidos por esse regime especial os actos das pessoas colectivas de direito público que derivam do exercício do poder público, no âmbito de uma função pública e sob o domínio das normas de direito público (ainda que tais actos não envolvam meios coercivos ou poderes de autoridade).

34º.
Além da legislação já invocada, no que concerne aos 2°. e 3°. Réus, estão as autarquias enquadradas no D.L. n°. 169/99, de 18 de Setembro alterado pela Lei n° 5-A/2002, de 11 de Janeiro.

35º.
E por se revelar tão importante (gestão pública) também estão consagradas na Constituição da República Portuguesa, através dos artigos 22°., 266°., 271°., entre outros.

36º.
Por outro lado, na esteira do que diz o nº. 2 do art°. 493º., do Código Civil, incumbe à entidade que explora a reserva de caça fazer tudo quanto está ao seu alcance, tomar concretamente todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir danos pelo exercício de actividades perigosas.

37º.
A 4ª. Ré nada fez no que diz respeito à solicitação à 2ª Ré para que esta colocasse no local o sinal de trânsito em causa, quando é da sua obrigação minimizar o risco pelo exercício da caça, sobretudo, tendo em conta que a estrada é ladeada por essa reserva, sobretudo no exercício de caça grossa, com animais selvagens de grande porte.

38º.
É que, se o tivesse feito, teria o Autor condutor obrigação de circular com uma condução mais defensiva, sobretudo no que diz respeito à velocidade que imprimia, reduzindo-a substancialmente, por forma a poder evitar o embate no caso de aparecer algum anilam selvagem, sendo certo que na estrada em questão, o limite de velocidade é de 90 kms/hora.

39º.
Sentem-se pois os Autores com direito a serem ressarcidos pelo valor equivalente ao orçamento para reparação do veículo automóvel, no valor de 7. 357,65 €, a título de danos patrimoniais.

40º.
A serem pagos solidariamente pelos quatro Réus.
41º.

Sendo o 1°. Réu, parte legítima por a Direcção Geral dos Recursos Florestais estar organicamente enquadrada no Ministério da Agricultura do Governo da República Portuguesa; o 2°. Réu por à Câmara Municipal do Crato ser por lei atribuída legalmente a competência para colocar sinais de trânsito nas estradas municipais que se situam dentro do seu concelho; a 3ª. Ré, por localmente ser a autarquia onde o embate se verificou e a 4ª Ré, por ter sido a requerente do processo referente à reserva de caça.”.

DE DIREITO

1. O reexame da decisão recorrida, à luz dos fundamentos invocados no recurso jurisdicional, deverá ser feito com base na matéria de facto dada por assente.

Previamente impõe dizer que a fundamentação de facto constante da sentença recorrida não se mostra isenta de crítica, por no seu âmbito tanto se ter englobado matéria de facto, como de direito, tendo o Juiz a quo procedido a uma reprodução acrítica da matéria alegada pelos Autores na petição inicial.

O Tribunal a quo deveria ter selecionado a matéria de facto, distinguindo-a e expurgando-a da alegação de direito e, de entre os factos alegados, deveria ter dado por assentes ou provados os que relevem para a boa decisão da causa, com indicação da respetiva fundamentação de facto, indicando o concreto meio probatório que serviu à sua demonstração, o que não se mostra efetuado nos autos, por não existir qualquer expurgo entre a matéria de facto e a de direito, nem uma seleção entre os factos relevantes e os não relevantes para a decisão da causa.

Porém, como nenhuma das partes interpôs recurso contra o julgamento da matéria de facto, o Tribunal ad quem considerará do elenco fixado pelo tribunal, a matéria de facto com relevo para o conhecimento do fundamento do recurso, expurgada de quaisquer valorações ou juízos de direito.

2. A questão suscitada no presente recurso resume-se em determinar se a decisão judicial recorrida enferma de erro de julgamento no tocante à responsabilidade civil extracontratual do Estado português, através da Direção-Geral dos Recursos Florestais, e do Município do Crato, no tocante à indemnização pelos danos causados em consequência do acidente de viação que ocorreu em 2004, com intervenção de um javali de grande porte, que se atravessou na faixa de rodagem, embatendo na parte da frente do veículo, imobilizando-o e causando-lhe danos, com o fundamento alegado pelos Recorrentes de existir a omissão ilícita do dever de sinalização da estrada, por existirem condições particularmente perigosas para o trânsito na estrada municipal em causa, devendo por isso, estar sinalizada com o sinal A 19b.

Tendo a sentença recorrida absolvido da instância uma das partes demandadas e absolvido do pedido todas as demais demandadas, os ora Recorrentes vêm atacar a sentença recorrida apenas em relação ao julgamento relativo à absolvição do pedido do Estado português e do Município do Crato, conformando-se, por isso, quer com a decisão de absolvição da instância da Associação de Caçadores das Herdades da Coitadinha, Assiceira e Anexos, quer com a absolvição do pedido da Junta de Freguesia de Crato e Mártires.

Nestes termos, delimitando o objeto do recurso jurisdicional, está em causa aferir do erro de julgamento da sentença, que absolveu do pedido as demandadas, o Estado português e o Município do Crato.

Compulsada a sentença recorrida, dela decorre que foi julgado inexistir uma omissão ilícita do Estado português, faltando por isso, o pressuposto da ilicitude, com o fundamento de estar em causa um animal selvagem, cuja guarda não pertence aos réus, nem o animal ser utilizado no seu próprio interesse, afastando a aplicação do regime de responsabilidade civil por danos causados por animais, previsto nos artigos 493.º e 502.º do Código Civil (CC).

Com o fundamento de que inexiste qualquer imposição ou obrigação legal do Estado, mormente de advertência à Câmara Municipal através da Direção-Geral dos Recursos Florestais, a sentença recorrida julgou que não pode ser imputada uma omissão ilícita ao Estado.

No respeitante ao Município, foi decidido que lhe incumbe sinalizar a via, mas porque se entendeu que a estrada não se assume como particularmente perigosa para o trânsito, não sendo a existência de uma reserva de caça que determina essa condição, decidiu-se na sentença que não se impunha a sinalização invocada pelos Autores ou, mesmo que a verificar-se a apontada omissão de sinalização, entendeu-se que a mesma não se traduziria em ilicitude.

No julgamento constante da sentença recorrida resulta que além da ilicitude, falta ainda o pressuposto do nexo de causalidade, por se ter considerado que o aparecimento do animal na via constitui um caso fortuito ou de força maior, que determina a quebra do nexo causal.

Explanados sumariamente os fundamentos de direito da sentença recorrida importa agora considerar as razões invocadas pelos Recorrentes no presente recurso.

No presente recurso está em causa apreciar do invocado erro de julgamento em relação aos pressupostos da responsabilidade civil da ilicitude e do nexo de causalidade, julgados não verificados pela sentença recorrida.

3. Importa antes de mais atender à factualidade relevante, dada por assente na sentença recorrida, para com base nela proceder à aplicação do Direito.

Em 26/12/2004, cerca das 20H50, sendo de noite, na estrada municipal n.º 1023, que liga Flor da Rosa à Estrada Nacional n.º 18, o Autor conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, a uma velocidade não superior a 60/70 kms por hora, tendo subitamente aparecido um javali de grande porte, atravessando a faixa de rodagem da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do veículo, indo embater na parte da frente do veículo automóvel.

Não foi possível ao condutor evitar o embate, atenta a forma repentina com que o animal apareceu, o que causou avultados danos no veículo automóvel, como descrito no ponto 11.º da matéria de facto assente, orçamentados na quantia total de € 7.357,65.

Ficou demonstrado que o embate se deu por única e exclusiva responsabilidade do aparecimento repentino do javali e que a faixa de rodagem é ladeada por uma reserva de caça, demarcada pelo seu exterior com sinais apostos de cor vermelha, que indicam a sua existência, mas que o Autor não tem de conhecer pois não é caçador.
Os sinais em causa não prestam quaisquer informações acerca da caça existente no local, concretamente, se caça miúda, caça grossa ou de grande porte, nem alertam para a possibilidade de os animais poderem aparecer na faixa de rodagem.
No local pratica-se o exercício de caça grossa, ali se abatendo, em concreto javalis, enquanto atividade que se encontra licenciada.
Explanados os factos essenciais importa agora proceder à aplicação do Direito, no sentido de aferir do alegado erro de julgamento em relação aos pressupostos da responsabilidade civil.

4. Nos termos gerais, a responsabilidade civil ocorre quando uma pessoa deve reparar um dano sofrido por outra. A lei faz surgir uma obrigação em que o responsável é devedor e o lesado credor, vide Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 9ª ed. Almedina, 2001, pp. 473 e segs..

A lei constitucional, no que respeita à responsabilidade das entidades públicas, consagra no artigo 22.º da Constituição o princípio geral da responsabilidade do Estado e das demais entidades públicas e a regra da solidariedade entre a Administração e os seus funcionários ou agentes, por danos causados no exercício das suas funções, no sentido de o Estado servir como garante da reparação dos danos – a este respeito veja-se Jorge Miranda, in Manual de Direito Constitucional, Parte IV, Direitos Fundamentais, pp. 286 e segs..

No que respeita à delimitação do Direito aplicável, considerando a data dos factos, ocorridos em 26/12/2004, tem aplicação o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas públicas por atos de gestão pública, aprovado pelo D.L. n.º 48.051, de 21/11/1967, por ser o vigente à data, sendo a Lei n.º 67/2007, de 31/12 posterior no tempo e, por isso, inaplicável.

Prevê-se no artigo 1.º do D.L. n.º 48051 que a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas públicas no domínio dos atos de gestão pública rege-se pelo disposto no presente diploma, em tudo o que não seja previsto em leis especiais.

Posto isto, importa analisar os requisitos ou pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, que a sentença recorrida julgou não se verificarem.

No domínio dos atos de gestão pública, os requisitos da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas públicas, não diferem substancialmente dos previstos na lei civil, decalcados no artigo 483.º, n.º 1 do C.C., de verificação cumulativa, distintos e autónomos, a saber: o facto ilícito, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano (cfr. Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 9ª ed. Almedina, 2001, pp. 510).
A este respeito é firme a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo – vide, entre outros, os Acórdãos de 17/01/2002, proc. nº 44476; de 06/03/2002, proc. nº 48155; de 28/06/2002, proc. nº 47263 e de 09/07/2002, proc. nº 46385.

Cada um dos citados pressupostos desempenha uma função essencial e distinta no regime das situações geradoras do dever de reparação do dano.

4.1. Desde logo, em relação ao facto, há muito que a doutrina e a jurisprudência admitem a responsabilidade dos entes públicos decorrentes não só da prática de atos jurídicos, como da realização de operações materiais, pelo que o facto ilícito tanto pode consistir num ato jurídico, como num ato material.

Do mesmo modo, tanto pode estar em causa, a responsabilidade civil decorrente de atos, como de omissões, pois a conduta do agente geradora do dano tanto pode consistir num comportamento comissivo, como numa omissão, segundo o artigo 486.º do CC.

O citado regime abrange não só os atos materiais e omissões que ofendam direitos de terceiros ou disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, como ainda os atos ou omissões que ofendam as “regras técnicas e de prudência comum” ou o dever geral de cuidado que devam ser tidos em consideração.
Desde que exista o dever legal de atuar, a omissão dos atos devidos é suscetível de determinar a obrigação de reparar o dano causado.

No caso dos autos, efetuando o enquadramento normativo da factualidade dada por assente e segundo a alegação dos Autores, está em causa a omissão de sinalizar o perigo de animais na via pública, relativa a uma estrada municipal, ladeada por uma reserva de caça, atento o risco de animais selvagens ocuparem e invadirem a faixa de rodagem e com isso, provocarem acidentes de viação.

Estabelece o n.º 1 do artigo 2.º do D.L. n.º 48.051 sobre a responsabilidade das entidades públicas, no sentido de as mesmas responderem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de atos ilícitos culposamente praticados pelos respetivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício.

Sobre a responsabilidade dos titulares dos órgãos e agentes administrativos do Estado e demais pessoas coletivas públicas, dispõe o n.º 1 do artigo 3,º do citado diploma legal, no sentido destes responderem civilmente perante terceiros pela prática de atos ilícitos que ofendam os direitos destes ou as disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, se tiverem excedido os limites das suas funções ou se, no desempenho destas e por sua causa, tiverem procedido dolosamente.

Pelo que, não existem as menores dúvidas de estarmos perante uma atuação que é exigida e reclamada da Administração, através dos seus órgãos e dos respetivos funcionários ou agentes, no exercício de funções públicas e por causa desse exercício, sendo no caso imputada uma omissão às entidades demandada.

4.2. Concernente à ilicitude, o artigo 6.º do citado D.L. n.º 48.051 determina que para efeitos deste diploma, consideram-se ilícitos os atos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os atos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração.
Nos termos do probatório assente e conforme a antecedente explanação da matéria de facto, resulta apurado que o aparecimento súbito e repentino de um javali de grande porte em plena faixa de rodagem foi a causa direta do embate e dos danos provocados na viatura.
Assim, o que decorre da factualidade apurada é que o embate sofrido na viatura e os consequentes danos causados, ficaram a dever-se ao aparecimento súbito de um javali de grande porte em plena faixa de rodagem quando a viatura aí circulava.
Decorre da normalidade dos factos e das regras de experiência comum que a existência de um animal na via, para mais um animal selvagem e de grande porte, que apareceu subitamente, constitui um fator que agrava o risco que em geral a condução automóvel comporta, sendo certo que já por si se impõem aos condutores especiais precauções para circular em segurança.
A faixa de rodagem é ladeada por uma reserva de caça, pelo que, esse risco apresentava-se ainda mais potenciado no caso em apreço.

Como se disse no Acórdão do STA, n.º 0792/05, de 03/11/2005: “A boa circulação rodoviária está sempre dependente de dois factores distintos que se complementam, um físico-material, a via e o seu estado (leito, margens e sinalização) e outro, de carácter humano, traduzido na forma como os condutores a abordam. O acidente rodoviário, excepcionadas as situações inesperadas ou de força maior, é consequência de um desses factores ou da conjugação de ambos. Veja-se que o art.º 5 Código da Estrada (CE) impõe a sinalização dos locais e obstáculos que possam oferecer perigo a cargo daqueles que lhes tiverem dado causa (…)”.
A questão a decidir é a de saber se a existência do perigo de animais na via devia ou não no caso estar sinalizado, isto é, se existe uma omissão ilícita de sinalização.
Não nos suscita qualquer espécie de dúvidas e por isso podemos afirmar que independentemente de o animal ser ou não selvagem, um animal na via de circulação automóvel constitui, como os factos o demonstram, um perigo ou um fator de risco acrescido para a circulação automóvel, pelo que esse perigo tinha de estar devidamente sinalizado.
Para qualquer condutor automóvel a existência de um animal na faixa de rodagem, ainda que pequeno, exige cuidados especiais, pois tratando-se de um veículo em circulação, qualquer obstáculo na faixa de rodagem, consoante a suas características, poderá ser causador de uma perda da direção do veículo, podendo causar o embate ou o despiste na viatura, com os consequentes danos provocados.
E deve entender-se por condutor, para este efeito, como todo aquele que pode conduzir legalmente na via pública.
No caso, estamos na presença de um animal selvagem, de grande porte que apareceu subitamente na faixa de rodagem, provocando o embate na viatura que aí circulava, pelo que, forçoso se impõe dizer que a condução na estrada em causa oferece ainda maiores riscos ou cuidados especiais que as demais estradas, perante a proximidade da presença de animais selvagens de grande porte, cujo perigo é real e decorrente da existência de uma reserva de caça grossa a ladear a estrada municipal.
Como resulta da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, foi o surgimento do animal de grande porte, atravessando a faixa de rodagem e embatendo na parte da frente do veículo, que determinou o embate ocorrido, tendo provocado danos na viatura que determinaram a sua imobilização, com impossibilidade de circular.
No local não havia qualquer sinalização para alertar os condutores da presença do aludido perigo de animais na via, cuja perigosidade era agravada pelo facto de a estrada ser ladeada por uma reserva de caça, pelo que, um risco real e não apenas potencial.
Donde, não existirem dúvidas de que os danos causados na viatura são consequência do embate com o animal que apareceu subitamente na faixa de rodagem, pelo que, os prejuízos sofridos pelos Recorrentes derivam de uma conduta omissiva ou mais precisamente do facto de no local do acidente não existir qualquer indicação ou sinalização do perigo existente na via – perigo de animais na via – que acabou por determinar o acidente.
Com efeito, como decorre do artigo 6.º do D.L. n.º 48.051 a ilicitude consiste na violação de regras legais ou regulamentares ou ainda na violação de regras de ordem técnica e de prudência comum que deveriam ser tidas em conta.
Para o caso em apreço, existem normas legais, mais concretamente, as normas do Código da Estrada que impõem a sinalização.
Determinava o n.º 1 do artigo 5.º do Código da Estrada, na redação em vigor à data do acidente – 26/12/2004 –, aprovado pelo D.L. n.º 114/94, de 03/05, na redação da Lei n.º 20/2002, de 21/08, o seguinte:
Sinalização
1 – Nos locais que possam oferecer perigo para o trânsito ou em que este deva estar sujeito a restrições especiais e ainda quando seja necessário dar indicações úteis, devem ser utilizados os respectivos sinais de trânsito.”.
Ao contrário do decidido pela sentença recorrida, a existência de um animal na via, neste caso, a existência de um animal selvagem de grande porte que veio a ocupar a faixa de rodagem, em local ladeado por uma reserva de caça, carece de sinalização, destinada a prevenir o perigo que aquele representava para os condutores.
Para além do disposto no n.º 1 do artigo 2.º do D.L. n.º 48.051 aplicável a todas as entidades públicas, no que respeita especificamente à responsabilidade funcional das autarquias locais, estabelece o n.º 1 do artigo 96.º da Lei n.º 169/99, de 18/09, na redação vigente à data dos factos, que “as autarquias locais respondem civilmente perante terceiros por ofensa de direitos destes ou de disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultante de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes no exercício das suas funções e por causa desse exercício”.
Estando em causa uma estrada municipal, impendia ao Município do Crato o dever legal de, através dos seus órgãos e agentes, proceder à sinalização, pelos meios e forma adequados às circunstâncias da situação, ou seja, acautelar a circulação rodoviária, aumentando a segurança na via.
Considerando o perigo de animais na via, impunha-se no local a sua sinalização com o adequado sinal de perigo, nos termos do n.º 1 do artigo 1.º do Decreto Regulamentar n.º 22-A/98, de 01/10, segundo o qual:
Nos locais da via pública que possam oferecer perigo para o trânsito ou em que este esteja sujeito a precauções ou restrições especiais e sempre que se mostre aconselhável dar aos utentes quaisquer indicações úteis, são utilizados os sinais de trânsito constantes do presente Regulamento.”.
No caso impunha-se, tal como defendido pelos Recorrentes, o sinal de perigo “A19b – animais selvagens: indicação de que a via pode ser atravessada por animais selvagens” previsto no artigo 19.º do Decreto Regulamentar n.º 22-A/98, de 01/10 ou outro considerado adequado, sendo certo que no local não existia qualquer sinalização a alertar os condutores para o perigo que a existência da animais selvagens na via implicava para a circulação do trânsito automóvel.
Por outro lado, nos termos do n.º 1 do artigo 3º do Decreto Regulamentar n.º 22-A/98, “a instalação de sinais nas vias públicas só pode ser efectuada pelas entidades competentes para a sua sinalização ou mediante autorização destas entidades” ou seja, pelas entidades a quem compete a sua manutenção e gestão.
A sinalização do aludido perigo na via estava por conseguinte a cargo dos serviços do Réu, Município do Crato, já que se trata de uma via municipal, ou seja de uma via do domínio público da autarquia local.
Assim, estava o Réu legalmente obrigado a sinalizar adequadamente a situação de perigo de animais na via, pelo que, tendo esse dever sido omitido, não pode tal omissão deixar de lhe ser imputável, traduzindo-se numa omissão violadora das citadas disposições legais e por isso considerada ilícita face ao disposto no artigo 6.º do D.L. n.º 48.051.
É, por isso, possível extrair, quer do probatório apurado, quer das disposições legais aplicáveis, que o Réu, Município do Crato, estava legalmente obrigado a sinalizar o local onde veio a ocorrer o embate, tendo omitido esse dever de agir, sendo-lhe imputável uma omissão que viola as normas legais.
Reputa-se por via disso uma omissão ilícita nos termos do disposto no artigo 6.º do D.L. nº 48.051, que estipula que se consideram ilícitos os atos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios jurídicos aplicáveis e os atos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração.
Sobre a omissão ilícita na jurisprudência do STA, cfr. os Acórdãos de 25/03/1999, proc. nº 41297; de 13/05/1999, proc. nº 38081 e de 14/03/2002, proc. nº 48394.
Sobre a ilicitude da conduta, pronuncia-se Margarida Cortez, in Responsabilidade Civil da Administração por Actos Administrativos Ilegais e Concurso de Omissão Culposa do Lesado, 2000, Coimbra Editora, pp 52 e 53, no sentido de considerar tratar-se de uma antijuridicidade que se refere à conduta e não ao resultado, concordando com Gomes Canotilho que considera que o legislador apontou a violação de um dever de cuidado como dimensão ineliminável de um comportamento ilícito e pugnando que será no artigo 6.º do D.L. nº 48 051 que reside o fundamento da conceção subjetiva da ilicitude.
Sobre a ilicitude como pressuposto da responsabilidade civil, Antunes Varela, in Das Obrigações em geral, vol. I, 7ª edição, Almedina, pp. 578 e 579, propõe que a ilicitude considera a conduta objectivamente, como negação dos valores tutelados pela ordem jurídica (sublinhado nosso) e que a omissão é causa do dano, sempre que haja o dever jurídico especial de praticar um acto que, seguramente ou muito provavelmente, teria impedido a consumação desse dano (pp. 518).
Neste sentido o tem decidido o Supremo Tribunal Administrativo (STA), de entre outros, nos termos do Acórdão n.º 0134/05, de 15/11/2005, segundo o qual:
II – Por constituir um perigo ou um factor de risco para a circulação automóvel, a existência de um “lençol de gelo” numa via do domínio público deve ser devidamente sinalizado pela entidade a quem compete a manutenção e gestação dessa via, com a colocação do sinal de perigo A11 a que se alude no artº 19º do Dec. Regulamentar nº 22-A/98, de 1 de Outubro - “neve ou gelo: indicação de um troço de via em que o pavimento pode tornar-se escorregadio devido à possibilidade de ocorrência de neve ou gelo” (cfr. ainda artº 5º do C. E. aprovado pelo DL 114/94, de 3/5, em vigor à data do acidente).”.
Também como decidido no Acórdão do STA n.º 01743/13, de 06/03/2014:
I – Nos termos do art. 5º, n.º 1 do C. Estrada as vias públicas devem ser sinalizadas, além do mais, em quaisquer circunstâncias que imponham aos condutores cuidados especiais.
II – O referido dever de sinalizar recaia sobre os Municípios relativamente às vias públicas sob a sua jurisdição (art. 51º, n.º 4, al. e) do Dec. Lei 100/84, de 29/3).”.
E segundo o Acórdão do STA, 0648/05, de 23/11/2005:
I – De harmonia com o art. 5º do Código da Estrada, incumbe aos Municípios o dever de sinalizarem os obstáculos existentes nas vias municipais impeditivos de normal circulação de veículos.
II – Age ilicitamente e com culpa na produção de um acidente o Município que não remove, nem assinala a presença de um obstáculo sob a forma de bloco de betão em forma circular existente no eixo da via, não obstante ter sido, anteriormente, causa de vários outros acidentes de trânsito.”.
Com interesse vide ainda o Acórdão do STA n.º 0121/06, de 16/05/2006, sobre a matéria do dever de sinalização da via pública.
Assim, recaía sobre o Município do Crato o dever de fiscalizar e vigiar a via e de garantir a adequada sinalização, tendo violado o dever legal, que sobre si pendia, de sinalizar o perigo de animais na via pública, incorrendo, consequentemente, numa omissão ilícita.
Nestes termos, não se pode manter o julgamento constante da sentença recorrida em relação ao pressuposto da ilicitude, por verificação de uma omissão ilícita imputável ao Réu, Município do Crato.
2.3. No que se refere ao pressuposto da culpa, agir com culpa, significa atuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito.
A culpa exprime um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente: o lesante, em face das circunstâncias específicas do caso, devia e podia ter agido de outro modo. É um juízo que assenta no nexo existente entre o facto e a vontade do autor (Antunes Varela, obra cit., pp. 559).
Dispõe o n.º 1 do artigo 4.º do D.L. nº 48.051 que a culpa é apreciada nos termos do artigo 487.º do CC, ou seja, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.
O Código Civil consagra a propósito da responsabilidade extracontratual, a tese da culpa em abstrato ou em sentido objetivo, pelo modelo de um homem-tipo ou padrão de um sujeito ideal, a que os romanos davam a designação de bonus pater famílias, isto é, o tipo de homem normal que as leis têm em vista ao fixarem os direitos e deveres das pessoas em sociedade (Antunes Varela, obra cit., pp. 567).
No que concerne ao padrão do bom pai de família, o mesmo foi adaptado pela jurisprudência administrativa, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas, por ser tido inadequado, por insuficiente, para os titulares de cargos públicos.
Assim, foi a jurisprudência pacificamente considerado atender ao padrão não de um qualquer funcionário, mas antes associando-o ao comportamento exigível a um funcionário competente, zeloso, cumpridor da lei e dos seus deveres – cfr. Acórdãos do STA, de 27/09/1994 e de 25/03/1999, proc. nº 41297.
Ao utilizar-se este critério, facilitou-se, pois, a prova da culpa pelo lesado.
A jurisprudência e doutrina administrativas, no âmago dos atos de gestão pública, desenvolveram ainda o conceito de culpa do serviço, distinguindo-a em culpa anónima e culpa coletiva, sem imputação do comportamento censurável a um certo e determinado funcionário ou agente, pelo que apenas aplicável apenas às entidades públicas, aferindo-o tomando em consideração os standards de atuação e de rendimento, ou seja, aquilo que habitualmente se pode esperar dos serviços, na pressuposição de que funcionam normalmente e não desprezando as características próprias de cada serviço, designadamente a sua disponibilidade de meios pessoais, materiais e financeiros, sem, todavia, converter acriticamente esses fatores em argumentos de desresponsabilização (Margarida Cortez, obra cit., pp. 96).
Para a demonstração da culpa não é necessário comprovar a violação desses deveres por órgãos ou funcionários e agentes determinados, sendo bastante a falta do próprio serviço, globalmente considerado – a este respeito vide o Acórdão do STA de 26/11/2003, proc. nº 654/03.
Conforme jurisprudência consolidada, à responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas coletivas públicas, designadamente no que respeita à violação dos deveres de fiscalização e conservação das vias de trânsito, é aplicável a presunção de culpa prevista no artigo 493.º, n.º 1 do CC. – cfr. Acórdãos do STA, de 01/06/2000, proc. nº 46068; do Pleno de 25/10/2000, proc. 37510; de 20/03/2002, proc. nº 45831 e de 03/10/2002, proc. nº 45621.
Com efeito, a remissão contida no n.º 1, do artigo 4.º, do D.L. nº 48.051 abrange também o n.º 1, do artigo 487º, do C.C. e daí a admissão de presunções legais de culpa nos termos do n.º 1, do artigo 493º, do C.C., por parte das entidades públicas.
Pelo que, beneficiando os Autores da presunção de culpa do Réu Município, sobre quem recaía a obrigação de sinalização, aos Autores lesados apenas incumbe demonstrar a realidade dos factos que servem de base à presunção, ou seja, a ocorrência do facto causal dos danos, para que, não ilidindo o Réu Município a presunção de culpa, por não provar que a estrada em que ocorreu o acidente era fiscalizada e vigiada, sendo mantidas em corretas condições de segurança a via onde ocorreu o embate da viatura com o animal, ou que apesar de terem sido tomadas todas as medidas sempre ocorreria o acidente (v.g. por excesso de velocidade da viatura), considera-se provada a culpa do Réu, nos termos das regras legais de repartição do ónus da prova, segundo os artigos 349.º e 350.º, nºs. 1 e 2, do Código Civil.
Deste modo, é indiferente saber quem produziu a respetiva prova, pois impendendo sobre o Réu uma presunção legal de culpa, a respetiva ilisão (juris tantum) só é feita com a prova do contrário, não bastando a mera contraprova, pelo que, o non liquet prejudica a pessoa contra quem funciona a presunção – neste sentido, Acórdão do STA, de 30/11/2004, proc. nº 320/04.
No caso dos autos, nenhuns factos são demonstrados a respeito da culpa do condutor do veículo, nem logrou o Réu demonstrar que procedeu à sinalização da existência do perigo de animais selvagens na via, nem que o animal tenha aparecido na via devido a facto fortuito que afaste a responsabilidade do Município.
Pelo que, é inequívoco a culpa inerente à omissão da atuação municipal, no sentido de não ter conseguido o Réu ilidir a presunção de culpa que sobre ele incidia nos termos do n.º 1 do artigo 493.º, reconhecendo-se ter existido da sua parte uma omissão culposa, quer em função da presunção legal de culpa, quer em função de se encontrar provada a sua culpa, nos termos gerais, pois deveria ter existido determinada atuação quanto à colocação de sinalização que não houve, sendo por isso ilícita a omissão do dever funcional que lhe era exigível de sinalizar a existência de perigo de animais selvagens na via, enquanto fator impeditivo da segura circulação do veículo (artigo 5.º do Código da Estrada).
O Réu apenas afastaria a ilicitude da sua omissão se tivesse provado qualquer facto que tivesse excluído o dever de sinalização ou donde decorresse que esse dever não podia ter sido cumprido, isto é, que a omissão ilícita de falta de sinalização não decorreu da sua falta de organização, fiscalização e diligência, o que nos autos não logrou acontecer, pois que o Réu nem sequer alegou quaisquer factos a esse respeito, porventura suscetíveis de afastar a ilicitude da sua omissão.
Estando em causa danos causados por coisas ou atividades a respeito das quais existia o dever de vigilância, incumbe a quem tem esse dever provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua ou que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.
Assim, o comportamento omissivo, que constitui facto ilícito gerador dos danos sofridos pelos Autores, é também ele culposo, sendo censurável no plano ético, porquanto uma Administração zelosa e cumpridora teria atuado em conformidade com as normas que impõem a referida sinalização.
Em suma, não estando demonstrado que o condutor do veículo, nomeadamente através de eventual violação de alguma disposição do Código da Estrada, tivesse contribuído para a produção do acidente, temos de aceitar que o acidente se deveu ao facto de os agentes do Réu terem omitido o dever de proceder à devida sinalização da via, de modo a alertar os condutores para tomarem as adequadas e especiais precauções e perigos acrescidos quanto à possibilidade de animais na via.
Sendo, em princípio, ao lesado que invoca o direito a quem incumbe alegar e provar os factos constitutivos do direito que pretende fazer valer, nos termos do n.º 1 do artigo 342.º do CC, é sobre os Autores que impende o ónus de alegar e provar os factos relativos a todos os pressupostos da obrigação de indemnizar, designadamente, em relação à existência de culpa, salvo no caso de beneficiar de presunção de culpa.
Beneficiando dessa presunção, os Autores não precisavam de alegar ou provar os factos demonstrativos da existência de culpa dos Réus (cfr. artigos 349.º e 350.º do CC), cabendo antes ao Réu Município ilidir essa presunção, o que não logrou fazer.
Como se entendeu no Acórdão do STA, datado de 14/10/03, recurso n.º 736/03, “ocorrendo a situação da presunção de culpa prevista no art.º 493, n.º 1, do CC, o autor não terá que provar a culpa funcional do réu, o qual incorre por via da presunção legal ali estabelecida em responsabilidade civil extracontratual, pelos danos a que der causa resultantes de algum acto ilícito seu, salvo provando que nenhuma culpa lhe coube ou que os danos se teriam igualmente verificado na ausência dessa culpa”.
Nestes termos, forçoso se impõe concluir pela verificação do pressuposto da culpa em relação ao Réu Município.
2.4. No que respeita ao pressuposto do dano, quanto a saber quais os prejuízos indemnizáveis, diz expressamente o artigo 563.º do CC que a “obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”, ou seja a indemnização terá de se reportar aos danos derivados do facto ilícito que obriga à reparação, adotando-se para o efeito a “doutrina da causalidade adequada” na sua formulação negativa reiteradamente afirmada no STA, (cfr. a título de exemplo os de 27.06.2001, rec. n.º 37410, 06.03.2002, rec. n.º 48155, 27.6.2002, rec. n.º 479-02 e de 29.10.2002, rec. n.º 177-02), segundo a qual “parece razoável que o agente só responda pelos resultados, para cuja produção a sua conduta era adequada, e não por aqueles que tal conduta, de acordo com a sua natureza geral e o curso normal das coisas, não era apta para produzir e que só se produziram em virtude de uma circunstância extraordinária” (ac. Ac. do STA, de 02/11/2003, rec. 323/02).
Perante os factos dados como demonstrados, é patente que todos os montantes peticionados pelos Autores se reportam a danos ou prejuízos que advieram daquele acidente imputável aos respetivos serviços, estando em causa o ressarcimento dos danos patrimoniais traduzidos nos estragos causados na viatura.
2.5. Por último, em relação ao nexo de causalidade, resulta da sentença recorrida que o mesmo foi julgado não verificado, com o fundamento de existir a quebra do nexo causal, por se ter considerado que o aparecimento do animal na via se deveu a um facto fortuito ou de força maior.
A questão que importa analisar consiste em saber se a omissão do dever de sinalização, que se verifica independentemente da ocorrência de um concreto acidente, foi a causa do acidente em discussão nos autos, o que se prende com a aferição do pressuposto do nexo de causalidade.
Ou seja, se a concreta omissão negligente constitui causa direta e necessária da produção do resultado danoso ou, se pelo contrário, a omissão ilícita se mostrou de todo indiferente para a verificação do dano, tendo o dano sido provocado em virtude de circunstâncias excecionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que influíram no caso concreto.
In casu resulta da matéria de facto provada que foi o aparecimento do animal na via que provocou o embate na viatura, causando a sua imobilização e sérios danos, estando o animal na origem do acidente.
Não se apurou qualquer outra causa direta ou indireta para a produção do acidente.
Consagra o artigo 563.º do CPC, a teoria da causalidade adequada, adotando-se a sua formulação negativa proposta por Enneccerus-Lehman, nos termos da qual o facto que atuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente (…) para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excecionais, anormais extraordinárias ou anómalas que intercederam no caso concreto, convergindo a jurisprudência e a doutrina na sua adoção – cfr. a título meramente exemplificativo os Acórdãos de 06/03/2002, proc. nº 48 155; de 27/06/2001, proc. nº 37410 e de 22/10/2003, proc. nº 534/03.
De acordo com as regras de experiência comum, em abstrato, o aparecimento de um animal selvagem de grande porte na via, com as características como as apuradas em juízo e a omissão de sinalização do perigo de animais selvagens, tanto mais por a estrada ser ladeada de uma zona de caça, têm aptidão por si só para provocar o embate e os danos na viatura, pelo que, não existindo quaisquer outras circunstâncias que o justifiquem, é a atuação do Réu causa adequada do acidente ocorrido, verificando-se assim também o pressuposto do nexo de causalidade da responsabilidade civil do Réu.
Considerando que os danos provocados tiveram por origem o aparecimento de um animal selvagem na via, tem de se entender que a omissão de sinalização de perigo de aninais selvagens constitui uma causa produtora e adequada dos danos provocados, sendo a omissão ilícita do Réu, Município, dos deveres de vigilância e de sinalização da via causa adequada do dano.
Para tanto assume-se um critério imputacional da ação humana, tendo por referência o dever imposto e o risco associado.
Cabe ao lesado provar os factos de onde resulte que o resultado danoso foi causado pelo aparecimento do animal na via e pelo seu embate na viatura, que existiu violação de norma legal, regulamentar ou da legis artis aplicável, e que o resultado provocado se localiza no âmbito dos perigos que o escrupuloso cumprimento do dever pretende evitar.
Se pela violação das normas legais ou técnicas aplicáveis é aumentado ou potenciado o risco do dano e se os danos ou lesão provocada se localiza no círculo dos perigos que as normas aplicáveis pretendem evitar, deve concluir-se pela prova da causalidade entre a omissão e o dano.
Ademais, apurando-se que a estrada municipal em que o animal selvagem apareceu era ladeada por uma zona de caça grossa, tem de afastar-se o caracter totalmente excecional, extraordinário, imprevisto, anómalo, anormal ou inusitado do aparecimento do animal selvagem na via, sendo, por isso, in casu de recusar a verificação de um caso fortuito ou anormal.
Não pode, por isso, manter-se o julgamento do Tribunal a quo que afastou o pressuposto do nexo de causalidade, sob a invocação de quebra do nexo causal, pois em face das concretas circunstâncias de facto, foi o aparecimento do animal na via e o seu embate na viatura a causa direta dos danos, imputando-se à omissão ilícita de sinalização do perigo de animais selvagens na via, imposta pelo facto de a estrada ser ladeada por uma zona de caça grossa, a causa da produção do dano.
Deste modo, incorre a sentença recorrida em erro de julgamento de direito ao julgar não verificado o pressuposto do nexo de causalidade, procedendo as conclusões do presente recurso.

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Nestes termos, estão demonstrados todos os requisitos da responsabilidade civil extracontratual do Réu, Município do Crato, que determinam a sua condenação na obrigação de indemnizar, nos exatos termos peticionados pelos Autores, na quantia de € 7.357,65, a título de danos patrimoniais decorrentes do embate do javali com a viatura, acrescida de juros legais, a contar da citação, ocorrida em 27/12/2007, até efetivo pagamento, nos termos do n.º 3 do 805.º do Código Civil.
No tocante à responsabilidade civil do Réu, Estado português, a factualidade apurada não permite a sua responsabilização, não estando verificados os pressupostos de que de depende a sua condenação, pelo que, se tem de concluir pela improcedência do alegado.

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Sumariando, nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do CPC, conclui-se da seguinte forma:

I. A responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos emana da prática de atos jurídicos e da realização de operações materiais, e pode decorrer quer de atos comissivos (por ação), quer omissivos (por omissão), segundo o artigo 486.º do CC.

II. Verifica-se a ilicitude, se os atos materiais ou as omissões ofendam direitos de terceiros ou disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, as “regras técnicas e de prudência comum” ou o dever geral de cuidado que devam ser tidos em consideração (artigo 6.º do D.L. n.º 48.051).

III. Apurando-se o aparecimento de um animal selvagem de grande porte na via de circulação automóvel, que embateu na viatura que aí circulava, determinando a sua imobilização e a produção de estragos na viatura, numa estrada municipal ladeada de um zona de caça de animais selvagens de grande porte, está em causa a imputação da omissão de sinalizar o perigo de animais na via pública, atento o risco de animais selvagens ocuparem e invadirem a faixa de rodagem e com isso, provocarem acidentes de viação.

IV. Decorre da normalidade dos factos e das regras de experiência comum que a existência de um animal na via, para mais um animal selvagem e de grande porte, que apareceu subitamente, constitui um fator que agrava o risco que em geral a condução automóvel comporta, além de o facto de a estrada ser ladeada por uma reserva de caça, esse risco além de ser real, apresentava-se ainda mais potenciado no caso concreto.
V. A existência de animais na via de circulação automóvel constitui um perigo ou um fator de risco acrescido para a circulação automóvel, pelo que esse perigo tem de estar devidamente sinalizado, por exigir cuidados especiais aos condutores.
VI. Apurando-se que foi o surgimento do animal selvagem de grande porte, atravessando a faixa de rodagem e embatendo na parte da frente do veículo, que determinou o embate ocorrido, tendo provocado danos na viatura que determinaram a sua imobilização, com impossibilidade de circular, em estrada municipal ladeada por uma zona de caça de animais selvagens, sem estar sinalizada quanto ao perigo de animais selvagens na via, determina a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Réu, Município.
VII. A perigosidade da existência de animais selvagens na via era agravada pelo facto de a estrada ser ladeada por uma reserva de caça, pelo que, está em causa um risco real e não apenas potencial para a condução.
VIII. Os danos causados na viatura são consequência do embate com o animal que apareceu subitamente na faixa de rodagem, sendo os prejuízos sofridos decorrentes de uma conduta omissiva, de no local do acidente não existir qualquer indicação ou sinalização do perigo existente na via – perigo de animais na via –, segundo o n.º 1 do artigo 5.º do Código da Estrada, que impõe a sinalização “nos locais que possam oferecer perigo para o trânsito ou em que este deva estar sujeito a restrições especiais e ainda quando seja necessário dar indicações úteis”.
IX. A existência de um animal selvagem de grande porte que veio a ocupar a faixa de rodagem, em local ladeado por uma reserva de caça, carece de sinalização, destinada a prevenir o perigo que aquele representava para os condutores.
X. Estando em causa uma estrada municipal, impendia ao Município o dever legal de, através dos seus órgãos e agentes, proceder à sinalização, pelos meios e forma adequados às circunstâncias da situação, ou seja, acautelar a circulação rodoviária, aumentando a segurança na via.
XI. Não sendo apurados quaisquer factos imputados ao condutor, nem que o animal tenha aparecido na via devido a facto fortuito, apurando-se a omissão ilícita da sinalização do perigo de animais selvagens na via, verifica-se a culpa inerente à omissão da atuação municipal, além de o Réu não ter ilidido a presunção de culpa que sobre ele incidia nos termos do n.º 1 do artigo 493.º,
XII. No respeitante ao nexo de causalidade importa saber se a concreta omissão negligente do dever de sinalização constitui causa direta e necessária da produção do resultado danoso ou, se pelo contrário, a omissão ilícita se mostrou de todo indiferente para a verificação do dano, tendo o dano sido provocado em virtude de circunstâncias excecionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que influíram no caso concreto.
XIII. Apurando-se que foi o aparecimento do animal na via que provocou o embate na viatura, causando a sua imobilização e sérios danos, estando o animal na origem do acidente, sem que exista qualquer outra causa direta ou indireta para a produção do acidente, sendo a estrada ladeada por uma zona de caça de animais selvagens, a omissão da sinalização do perigo de animais selvagens na via, tem a aptidão para a causa dos danos na viatura, sendo a atuação omissiva do Réu causa adequada do acidente ocorrido.
XIV. Tendo os danos provocados origem no aparecimento de um animal selvagem na via, tem de se entender que a omissão de sinalização de perigo de aninais selvagens constitui uma causa produtora e adequada dos danos provocados, sendo a omissão ilícita do Réu, Município, dos deveres de vigilância e de sinalização da via causa adequada do dano, segundo um critério imputacional da ação humana, tendo por referência o dever imposto e o risco associado.
XV. Segundo este critério, cabe ao lesado provar os factos de onde resulte que o resultado danoso foi causado pelo aparecimento do animal na via e pelo seu embate na viatura, que existiu violação de norma legal, regulamentar ou da legis artis aplicável, e que o resultado provocado se localiza no âmbito dos perigos que o escrupuloso cumprimento do dever pretende evitar, de modo que, se pela violação das normas legais ou técnicas aplicáveis é aumentado ou potenciado o risco do dano e se os danos ou lesão provocada se localiza no círculo dos perigos que as normas aplicáveis pretendem evitar, deve concluir-se pela prova da causalidade.
XVI. Ademais, apurando-se que a estrada municipal era ladeada por uma zona de caça, tem de afastar-se o caracter totalmente excecional, extraordinário, imprevisto, anómalo, anormal ou inusitado do aparecimento do animal selvagem na via.


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Por tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes do presente Tribunal Central Administrativo Sul, em conceder provimento ao recurso, em revogar a sentença recorrida e em julgar a ação procedente, condenando o Município do Crato no pedido de pagamento de indemnização, em consequência dos danos patrimoniais sofridos, no valor de € 7.357,65, acrescida de juros legais, a contar da citação, ocorrida em 27/12/2007, até efetivo pagamento, e absolver o Estado português do pedido, por quanto a ele não se verificarem os pressupostos da responsabilidade civil.

Custas pelo Réu, Município do Crato.

Registe e Notifique.


(Ana Celeste Carvalho - Relatora)

(Pedro Marchão)

(Helena Canelas)