Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:05931/10
Secção:CA-2º JUÍZO
Data do Acordão:04/24/2013
Relator:ANA CELESTE CARVALHO
Descritores:LEVANTAMENTO DE SIGILO PROFISSIONAL DE ADVOGADO, LEGITIMIDADE.
Sumário:I. Decorre das alíneas a) e d), do nº 1 do artº 81º do EOA, de forma expressa e inequívoca, o dever de o advogado guardar segredo profissional, no que respeita “A factos referentes a assuntos profissionais que lhe tenham sido revelados pelo cliente ou por sua ordem ou conhecidos no exercício da profissão” e ainda “A factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo amigável e que sejam relativos à pendência.”.

II. Consagrada no nº 1 a regra relativa à obrigação de sigilo profissional, estabelece o disposto no nº 4 as circunstâncias em que “cessa a obrigação de segredo profissional”, não obstante o nº 6 do artº 81º do EOA prever que, ainda nesses casos, “o advogado pode manter o segredo profissional”.

III. Quanto aos interesses e valores subjacentes a estes normativos, inseridos nas regras relativas à deontologia do advogado, decorre que os mesmos visam tutelar, por um lado, a defesa da dignidade do advogado, por lhe ser concedida a última palavra quanto à manutenção do segredo e, por outro, a confiança que os cidadãos em geral e todos os que com ele tenham contactado no exercício da sua profissão, em especial os seus clientes, nele devem depositar.

IV. Apenas perante a verificação das circunstâncias previstas no nº 4, isto é, quando for absolutamente necessário para a defesa da dignidade e dos direitos e dos interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, pode ser autorizada a cessação desse sigilo.

V. Têm legitimidade para recorrer da decisão que autorize a dispensa do sigilo profissional, impugnando a verificação dos pressupostos para o levantamento do segredo, quer o próprio advogado, quer o cliente ou o seu representante, quer ainda aqueles a quem a dispensa do sigilo profissional possa directamente prejudicar.

VI. A tutela do dever de segredo, enquanto concretização da deontologia profissional do advogado, abrange quer os assuntos relativos ou revelados pelo cliente, quer os relativos à parte contrária, cujo conhecimento tenha ocorrido no exercício da profissão, designadamente, cujos factos tenha obtido durante negociações, nos termos das citadas alíneas a) e d), do nº 1, do art. 81º do EOA.

VII. Tal amplitude prende-se com a relevância pública que é conferida à profissão de advogado, cujo exercício assenta na relação de confiança que se estabelece entre o cliente e o advogado, na vertente da sua competência técnica e profissional, mas também na garantia ou segurança que decorre da própria consagração do dever de segredo profissional

VIII. Impedir que a parte contrária, directamente afectada pelo levantamento do segredo profissional, não possa suscitar a reapreciação dessa decisão, traduzir-se-ia numa forte limitação, quer dos direitos de participação dos cidadãos na formação das decisões que lhes digam respeito, quer do direito de impugnação contra decisões administrativas lesivas, em violação do que estabelecem, respectivamente, os nº 5 do artº 267º e nº 4 do artº 268º, da Constituição.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:


I. RELATÓRIO

A Ordem dos Advogados, devidamente identificada nos autos, inconformada, veio interpor recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, datada de 13/10/2008, que no âmbito da ação administrativa especial instaurada por António ……………………. e Pedro ……………., julgou a ação procedente, declarando ilegal a decisão impugnada, que não admitiu o recurso apresentado, por falta de legitimidade dos autores e condenando em conformidade.

Formula a aqui recorrente nas respetivas alegações (cfr. fls. 296 e segs. – paginação referente ao processo em suporte físico, tal como as referências posteriores), as seguintes conclusões que se reproduzem:

“a) Discute-se nos presentes autos a interpretação da norma contida no art. 81º do anterior Estatuto da Ordem dos Advogados, no sentido de apurar a quem é que a citada disposição legal pretendeu atribuir legitimidade para interpor recurso gracioso da decisão proferida em primeira instância pelo Conselho Distrital.

b) Ao contrário do defendido pelo MM Juiz a quo, a correcta interpretação do citado art. 81º, n.º 4 do E.O.A., à luz da sua ratio e em conjugação com o disposto no art. 53° do C.P.A., não poderá deixar de ir no sentido de que só ao Advogado que solicita o pedido de dispensa de sigilo assiste tal legitimidade. Senão veja-se:

c) De harmonia com o disposto no art. 81°, n.º 4 do anterior E.O.A. “cessa a obrigação de segredo profissional em tudo quanto seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do Conselho Distrital respectivo, com recurso para o presidente da Ordem dos Advogados”.

d) Ao atribuir à Ordem dos Advogados o dever de pronúncia em cada caso concreto de cessação do dever de sigilo profissional, mais não fez o legislador do que elevar “(...) o segredo profissional à categoria de dogma inerente ao interesse público dominante, que é o interesse da justiça na sua mais lata acepção” (vide acórdão do STA, de 15/12/04, in www.dgsi.pt ).

e) Assim, mais do que uma dimensão pessoal inter-individual, o segredo profissional encerra em si uma dimensão institucional supra-individual, relacionada com a garantia da relação de confiança da generalidade dos cidadãos na classe profissional dos advogados.

f) Daí que, enquanto dever basilar do exercício da advocacia, o legislador tenha procurado limitar a casos absolutamente excepcionais a possibilidade de o advogado se desvincular do dever de guardar sigilo.

g) Nessa medida, a determinação da legitimidade para a intervenção no âmbito do recurso a que alude o artigo 81°, n.º do anterior E.O.A. não poderá deixar de ser feita à luz do carácter excepcional da norma contida nesse preceito normativo e da dimensão supra-individual atribuída ao dever de sigilo.

h) De harmonia com o disposto no art. 53° do CPA “têm legitimidade para iniciar o procedimento administrativo e para intervir nele os titulares de direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos”, sendo que a averiguação da existência de um interesse em intervir, no âmbito do procedimento administrativo, pressupõe a análise das normas e respectivo âmbito de protecção que o procedimento se destina a aplicar.

i) Nesse sentido, conforme avança Mário Esteves de Oliveira, deve exigir-se que o interesse que legitima alguém para intervir no procedimento, atenta a função da norma a cuja aplicação o mesmo tende, seja um interesse directo.

j) Ora, através da análise interpretativa do âmbito de protecção da norma contida no art. 81°, n.º 4 (adoptando como válida a teoria do fim da protecção da norma enunciada supra), facilmente poderemos chegar à conclusão de que, com tal disposição, se pretendeu única e exclusivamente salvaguardar os direitos do Advogado detentor do sigilo e do seu cliente ou representantes e, bem assim, o interesse público inerente à realização da justiça.

k) E se assim, nos pedidos de levantamento do sigilo podem ser admitidos a intervir a própria Ordem dos Advogados, na defesa do interesse da própria profissão que impõe o sigilo como regra (salvaguardando o cumprimento de um dever que é de interesse público) e o próprio advogado que pede a dispensa, como titular dos interesses que estão subjacentes às excepções àquela regra.

l) Nenhum outro interesse directo é descortinável, pelo que, nenhuma legitimidade pode ou deve ser reconhecida a terceiros, contrariamente ao defendido na douta sentença recorrida.

m) Donde, não se poderá considerar que, no caso em apreço, os agora recorridos, invocando um mero interesse indirecto ou reflexo na não dispensa de sigilo, possam ver reconhecida legitimidade para interporem o recurso previsto no art. 81°, n.º 4 do E.O.A.

n) Na verdade, não impõe o mencionado preceito normativo qualquer ponderação de interesses, nomeadamente de um eventual interesse reflexo ou indirecto da parte contrária na não divulgação dos factos sujeitos a sigilo, para que seja concedida a dispensa requerida, mas tão só que a mesma seja essencial à defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do seu cliente.

o) Por outro lado, a particular natureza da matéria em apreço e a unipessoalidade do órgão deliberativo [o Presidente do Conselho Distrital ou o Vogal a quem tenha sido delegada a competência para o efeito, como sucedeu no caso dos autos] reforçam a conclusão de que a mesma se deve revestir de compreensível confidencialidade – e, até, inevitavelmente de algum subjectivismo – o que não se compadece com a prévia audição de terceiros eventualmente interessados.

p) Conforme se deixou dito no Parecer do Conselho Geral, aprovado em 30/11/84 (publicado na Revista da Ordem dos Advogados, ano 44, Dezembro de 1984, III, pág. 735 e ss) “doutra forma estaríamos a introduzir inaceitáveis condicionantes exógenas à apreciação dos pedidos de dispensa com eventual publicidade na notificação de 10 terceiros para sobre eles se pronunciarem, na notificação das decisões de primeira instância aos supostos interessados para efeitos de recurso, na própria discussão de quais os factos lesivos da dignidade e direitos do Advogado”.

q) Termos em que se terá de concluir que a douta sentença recorrida violou, por errada interpretação e aplicação, as normas contidas no artigo art. 84°, n.º 1, alínea a) e 4 do E.O.A., aprovado pelo D.L. n.º 84/84, de 16 Março, na redacção dada pela Lei n.º 80/2001, de 20 de Julho.”.

Termina pedindo que seja concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida.


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Os ora recorridos, notificados, não apresentaram contra-alegações.

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O Ministério Público junto deste Tribunal notificado nos termos e para efeitos do disposto no artº 146º do CPTA, não emitiu parecer.

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Colhidos os vistos legais foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir a questão colocada pela recorrente, sendo certo que o objeto do recurso se acha delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos arts. 660º, n.º 2, 664º, 684º, nºs 3 e 4 e 690º, n.º 1 todos do CPC ex vi artº 140º do CPTA.

A questão suscitada resume-se, em suma, em determinar se a decisão judicial recorrida enferma de erro de julgamento de Direito, em violação do artº 81º, nºs. 1, alínea a) e 4, do anterior Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo D.L. nº 84/84, de 16/03, na redacção dada pela Lei nº 80/2001, de 20/07, quanto à legitimidade para interpor recurso gracioso da decisão proferida pelo Conselho Distrital, que autoriza a dispensa de sigilo profissional.

III. FUNDAMENTOS

DE FACTO

O Tribunal a quo deu como assentes os seguintes factos:

“a) Os contra-interessados “CG - Companhia d……………..., Lda.”, Tiago………………..e Pedro …………………… intentaram, no ano de 2003, nas Varas Cíveis de Lisboa, contra os aqui autores e ainda contra “R……….. - Vestuário …………….., Lda.”, uma acção declarativa de condenação, com processo ordinário - (doc. 1 e instrutor a fls. 4 e sgs.).

b) Essa acção foi distribuída à 1ª Secção da 12ª Vara Cível de Lisboa, tendo sido atribuído ao processo o n° 9211/03.6 TVLSB (idem doc. 1).

c) Devidamente citados os ali RR. e aqui autores, por eles foi apresentada contestação (ibidem doc. 1).

d) Após isto, os ali autores apresentaram réplica, como também /citado doc. 1)

e) Findos os articulados, procedeu-se à audiência preliminar, tendo o Tribunal proferido despacho saneador, prolatado despacho sobre a matéria que nessa altura entendeu como assente e organizado a base instrutória (doc. 1)

f) Notificadas as partes para requererem e apresentarem as provas, os ali autores apresentaram seu rol de testemunhas, tendo arrolado como tal a aqui contra- interessada, a Dra. Rita ………, Advogada (doc. 1).

g) Marcada a data de 2004.10.27 para a audiência de discussão e julgamento, nesta compareceu a referida Dra. Rita ………….., com vista a prestar depoimento, sendo que a mesma se fazia acompanhar de decisão, datada de 24 de Agosto de 2004, do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, decisão pela qual este Conselho conferiu à mesma dispensa de sigilo profissional para depor, como testemunha arrolada pelos ali AA., à matéria constante dos três quesitos que compunham a base instrutória daquele identificado processo n° 9211/03.6 TVLSB (doc. 1 e instrutor).

h) Os ali réus, aqui autores, não prescindiram do prazo para se pronunciarem sobre esse documento emanado pelo CDL da Ordem dos Advogados, motivo porque a audiência foi suspensa, para continuar em 3 de Novembro de 2004.

i) Em 28 de Outubro de 2004 o mandatário dos ali autores notificou o mandatário dos ali réus (aqui autores), dos documentos comprovativos do requerimento e da concessão de dispensa de sigilo profissional em questão (fls. 40 a 61, anexas ao doc, n° 1).

j) Reiniciada a audiência de discussão e julgamento no dia 3 de Novembro de 2004, pelas 14 horas, os ali réus, aqui autores, opuseram-se à decisão proferida pelo Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados e bem assim opuseram-se igualmente ao depoimento da testemunha, tendo manifestado desde logo a intenção de recorrerem daquela decisão da Ordem dos Advogados (fls. 62 a 67, anexas ao doc. n° 1).

k) O juiz da causa entendeu não assistir razão aos ali réus, aqui autores, motivo porque permitiu o depoimento da testemunha, Dra. Rita ………, à matéria constante dos três artigos da BI. (fls. 62 a 67, anexas ao doc, n° 1).

l) Discutida a causa, daquela acção n° 9211/03.6 TVLSB, foi dada resposta à matéria de facto, tendo para a convicção do julgador sido determinante o depoimento da dita testemunha (fls. 68 a 76, anexas ao doc. n° 1).

m) Após isto, foi proferida sentença de condenação de todos os RR., como se vê de fls. 78 a 94, anexas à certidão ora junta (doc. 1).

n) Dessa sentença interpuseram os RR., aqui demandantes, recurso de apelação, o qual foi depois admitido (fls. 96 a 98, anexas ao doc. n° 1), estando o processo no Tribunal da Relação de Lisboa para apreciação daquele recurso.

o) Os aqui autores interpuseram em 05.11.2004, recurso do despacho que deferira o pedido de dispensa de sigilo profissional formulado pela Sra. Dra. Rita ..................para o Presidente do Conselho Superior da Ordem dos Advogados (fls. 99 a 110, anexas ao doc. n° 1, e fls. 44 e sgs. do instrutor).

p) Por despacho de 20.12.2004, subscrito pela Exma. Sra. Vogal do CDL da OA, por delegação do Presidente do mesmo CDL, não foi admitido o recurso, por falta de legitimidade dos recorrentes (fls. 111, anexa ao doc. 1, e fls. 43 do instrutor).

q) Não se conformando com esta decisão, os aqui autores recorreram desse despacho de não admissão do recurso e dele reclamaram, tudo para o Exmo. Sr. Presidente do Conselho Superior da OA, por requerimento entrado a 29.12.2004 (fls. 112 e sgs. do doc. 1 e fls. 68 e 68 e 71 do instrutor).

r) Por despacho de 2005.01.21, proferido pelo Presidente do CDL da OA, foi revogado o despacho que não tinha admitido o recurso, por se entender que a questão da legitimidade dos recorrentes era matéria a decidir pelo Órgão para o qual se havia recorrido, tendo-se admitido o recurso e ordenado a subida dos autos ao Exmo. Sr. Bastonário (fls. 121, anexa ao doc. n° 1, e fls. 82 do instrutor).

s) Recebido o recurso no Conselho Geral da OA, a Exma. Relatora, por delegação do Exmo. Bastonário, proferiu despacho fixando ao recurso o efeito suspensivo da decisão proferida pelo CDL e ordenando a notificação da ilustre Advogada requerente da dispensa de sigilo, Dra. Rita ……………., para responder à matéria do recurso (fls. 123, do doc. 1, e fls. 88 do instrutor).

t) Em 12 de Maio de 2005 foi, pela Exma. Relatora, Vogal do Conselho Geral, por delegação do Exmo. Bastonário, proferido despacho pelo qual se indeferiu o recurso apresentado pelos aqui demandantes, com o fundamento na sua falta de legitimidade para recorrer (fls. 125 a 127, do doc. 1 junto e fls. 117-119 do instrutor.”.

DO DIREITO

Constitui fundamento único do presente recurso apurar se incorre a sentença recorrida no invocado erro de julgamento de Direito, relativo à interpretação do disposto do artº 81º, nºs. 1, alínea a) e 4, do anterior Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo D.L. nº 84/84, de 16/03, na redacção dada pela Lei nº 80/2001, de 20/07, quanto à legitimidade para interpor recurso gracioso da decisão proferida pelo Conselho Distrital de Lisboa, da Ordem dos Advogados, que conferiu dispensa de sigilo profissional a advogado.

Segundo a Ordem dos Advogados, tais normas legais apenas atribuem legitimidade para interpor recurso da decisão que concedeu a dispensa de sigilo profissional ao próprio advogado que solicitou a dispensa, denegando-a a qualquer outra pessoa, como os ora recorridos.

Procedendo ao enquadramento da matéria de facto do litígio em presença, resulta que foi requerida a dispensa de sigilo profissional por parte de uma advogada e que essa dispensa foi concedida pela Ordem dos Advogados, com isso viabilizando a sua inquirição como testemunha em certo processo judicial.

Discordando da decisão que pela Ordem dos Advogados foi proferida, os autores e ora recorridos interpuseram recurso gracioso dessa decisão.

Por despacho da Relatora Vogal do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, por delegação do respectivo Bastonário, foi indeferido o recurso, com fundamento na falta de legitimidade dos recorrentes.

É essa decisão que vem impugnada no âmbito do presente processo, tendo a sentença recorrida decidido em sentido favorável à pretensão dos autores, isto é, reconhecendo a sua legitimidade activa para interpor o recurso gracioso da decisão que deferiu o pedido de dispensa de sigilo profissional, admitindo o recurso que foi interposto e impondo o seu conhecimento de fundo, se outro motivo não obstar.

Perante o enquadramento fáctico descrito, passemos à interpretação e aplicação do Direito.

Integrado no Capítulo V, epigrafado “Deontologia Profissional”, consagra o artº 81º do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), o dever do segredo profissional, com o seguinte teor, que ora se reproduz:

1 – O advogado é obrigado a segredo profissional no que respeita:

a) A factos referentes a assuntos profissionais que lhe tenham sido revelados pelo cliente ou por sua ordem ou conhecimento no exercício da profissão;

b) A factos que, por virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados, qualquer colega, obrigado quanto aos mesmos factos ao segredo profissional, lhe tenha comunicado;

c) A factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do cliente ou pelo respectivo representante;

d) A factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo amigável e que sejam relativos à pendência.

2 – A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que directa ou indirectamente tenham qualquer intervenção no serviço.

3 – O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo.

4 – Cessa a obrigação de segredo profissional em tudo quanto seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo, com recurso para o presidente da Ordem dos Advogados.

5 – Não podem fazer prova em juízo as declarações feitas pelo advogado com violação de segredo profissional.

6 – Sem prejuízo do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.”.

Decorre assim, de forma expressa e inequívoca, o dever de o Advogado guardar segredo profissional, designadamente, no que respeita “A factos referentes a assuntos profissionais que lhe tenham sido revelados pelo cliente ou por sua ordem ou conhecidos no exercício da profissão” e ainda “A factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo amigável e que sejam relativos à pendência.” – alíneas a) e d), do nº 1 do artº 81º do EOA.

O nº 3 do citado preceito inclui no âmbito do dever de sigilo os documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo”, em sintonia com o que dispõem os artºs. 59º e 60º do EOA, relativos à imposição de selos, arrolamentos e buscas em escritório de advogado e à apreensão de documentos na posse de advogado.

Consagrada no nº 1 a regra relativa à obrigação de sigilo profissional, estabelece o disposto no nº 4 as circunstâncias em que “cessa a obrigação de segredo profissional”, não obstante o nº 6 do citado artº 81º do EOA prever que, ainda nesses casos, “o advogado pode manter o segredo profissional”.

Quanto aos interesses e valores subjacentes a estes normativos, inseridos nas regras relativas à deontologia do advogado, decorre que os mesmos visam tutelar, por um lado, a defesa da dignidade do Advogado, por lhe ser concedida a última palavra quanto à manutenção do segredo e, por outro, a confiança que os cidadãos, em geral, e todos os que com ele tenham contactado no exercício da sua profissão, em especial, os seus clientes, nele devem depositar.

Apenas perante a verificação das circunstâncias previstas no nº 4, isto é, quando for absolutamente necessário para a defesa da dignidade e dos direitos e dos interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, pode ser autorizada a cessação desse sigilo.

Assim, não devem existir dúvidas de que, à luz do disposto no nº 4 do artº 81º do EOA, terão legitimidade para requerer o levantamento do sigilo, o próprio advogado e o seu cliente ou representantes, quando tal seja absolutamente necessário.

Por isso, no caso de recusa do pedido de levantamento do sigilo, terá o próprio advogado legitimidade para recorrer desse despacho, assim como o seu cliente ou representantes legais, na defesa do seu interesse.

A questão que se coloca é se alguém fora deste universo, designadamente, aqueles a quem a dispensa do sigilo profissional possa prejudicar ou afectar a sua posição jurídica subjectiva, têm legitimidade para recorrer dessa decisão, impugnando a verificação dos pressupostos para o levantamento do segredo.

Como decorre do preceito supra transcrito, a tutela do dever de segredo, enquanto concretização da deontologia profissional do Advogado, abrange quer os assuntos relativos ou revelados pelo cliente, quer os relativos à parte contrária, cujo conhecimento tenha ocorrido no exercício da profissão, designadamente, cujos factos tenha obtido durante negociações, nos termos das citadas alíneas a) e d), do nº 1, do art. 81º do EOA.

Tal amplitude prende-se com a relevância pública que é conferida à profissão de advogado, cujo exercício assenta na relação de confiança que se estabelece entre o cliente e o advogado, na vertente da sua competência técnica e profissional, mas também na garantia ou segurança que decorre da própria consagração do dever de segredo profissional

Quer a lei constitucional, quer a lei ordinária, nos termos do Estatuto da Ordem dos Advogados, reconhecem a relevância pública e social da profissão de advogado, inclusivamente no âmbito do sistema de justiça (cfr. artº 208º da Constituição e Acórdão do TCAS, sob nº 08736/12, datado de 10/05/2012).

Neste contexto se justifica a consagração de outras normas estatutárias do advogado, o qual, como servidor da justiça e do direito, está sujeito aos deveres de independência e de isenção, aos deveres para com a comunidade em geral, para com a sua respectiva ordem profissional, a Ordem dos Advogados e, como não poderia deixar de ser, para com o cliente, nos termos dos artºs. 76º, 78º, 79º e 83º do EOA.

Tais deveres, em muitos casos, funcionam como garantias do exercício da profissão.

Reconhece-se que interessa à Ordem dos Advogados, enquanto “instituição representativa dos licenciados em Direito que, em conformidade com os preceitos deste Estatuto e demais disposições legais aplicáveis, exercem a advocacia”, a quem estão acometidas as atribuições, entre outras, de “defender o Estado de direito e os direitos e garantias individuais e colaborar na administração da justiça”, de “regulamentar o exercício da respectiva profissão”, de “zelar pela função social, dignidade e prestígio da profissão de advogado e promover o respeito pelos respectivos princípios deontológicos”, de “defender os interesses, direitos, prerrogativas e imunidades dos seus membros”, de “exercer jurisdição disciplinar exclusiva” e, de entre outras, “exercer as demais funções que resultem das disposições deste Estatuto ou de outros preceitos legais”, aferir da verificação dos pressupostos para o levantamento do segredo profissional (cfr. artºs. 1º, nº 1 e 3º, nº 1, alíneas a), b), c), d) e f), do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo D.L. nº 84/84, de 16/03, na redacção dada pela Lei nº 80/2001, de 20/07).

De resto, é a própria lei, no artº 81º, nº 4 do EOA, que confere essa competência aos órgãos da Ordem dos Advogados.

Porém, não se deve vedar aos titulares de direitos e interesses contrapostos ao levantamento do sigilo profissional, o poder de suscitar a reapreciação da decisão que tenha sido tomada, pois o legislador na própria norma que consagra a obrigação de sigilo profissional, não ignorou os factos relativos à “parte contrária do cliente ou respectivos representantes”, como decorre do teor da alínea d) do nº 1 do artº 81º do EOA.

Por outras palavras, no âmbito da norma que consagra o dever profissional, o legislador não só acautelou o segredo quanto aos factos relativos ao cliente, como os referentes à parte contrária do cliente, pelo que, se deverá entender que não só o cliente, como a parte contrária do cliente, encontram-se abrangidas pelo âmbito de protecção da norma.

O artº 81º do EOA ao consagrar e impor ao advogado o dever de segredo profissional, confere a esse dever uma relevância que é muito mais vasta e excede o interesse decorrente do exercício do mandato forense, abrangendo para além do advogado e o seu cliente, também a parte contrária do seu cliente, a cujos factos o advogado acedeu ou tomou conhecimento no exercício da sua profissão.

Por este motivo, não tendo o legislador esquecido ou ignorado os factos referentes à parte contrária do seu cliente, não se poderá à mesma recusar legitimidade (activa) para impugnar a decisão tomada pelos órgãos da Ordem dos Advogados, em matéria de levantamento do sigilo profissional.

Se o advogado, no exercício do mandato forense ou da sua profissão, tomou conhecimento de factos relativos à parte contrária do seu cliente, que estão a coberto do sigilo profissional, por força da alínea d), do nº 1 do artº 81º do EOA, não os podendo revelar livremente sem antes pedir a dispensa ou o levantamento do sigilo, então é de reconhecer à parte contrária, que é directamente afectada ou prejudicada por essa decisão administrativa da Ordem dos Advogados, por isso, contra-interessada nessa decisão, que possa dela recorrer, em caso de discordância.

Tal entendimento mais não decorre das regras, quer de participação, quer de legitimidade que decorrem, em termos gerais, dos artºs. 8º e 53º do CPA, segundo as quais, deve ser assegurada a participação dos particulares na formação da decisões que lhes digam respeito e ainda que têm legitimidade para intervir no procedimento administrativo os titulares de direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos.

Por isso, o advogado que, verificadas as circunstâncias enunciadas no nº 4 do artº 81º do EOA, destinadas à defesa da sua dignidade ou do seu cliente ou representante, for autorizado a revelar factos ou informações que sejam relativos à parte contrária, maxime, quando lhe sejam prejudiciais, deve ser admitido a reagir contra essa decisão.

Isto traduz que, tal como bem entendeu a sentença recorrida, deva ser reconhecida a legitimidade à parte contrária ou aos seus representantes a que respeitam os factos sobre que incidiu o levantamento do sigilo profissional, ou seja, que lhes assiste legitimidade para sindicar a bondade da decisão do levantamento, interpondo recurso para o Bastonário da Ordem dos Advogados, tal como se refere no nº 4 do artº 81º do EOA.

Acresce, não ser posto em crise nos autos que os factos sobre que respeita o pedido de levantamento do segredo profissional são do conhecimento da advogada requerente em decorrência do exercício das suas funções de advogada e nessa qualidade.

Além disso, defender o contrário, impedindo que a parte contrária, que será directamente afectada pelo levantamento do segredo profissional, não possa suscitar a reapreciação dessa decisão, traduzir-se-ia numa forte limitação, quer dos direitos de participação dos cidadãos na formação das decisões que lhes digam respeito, quer do direito de impugnação contra decisões administrativas lesivas, em violação do que estabelecem, respectivamente, os nº 5 do artº 267º e nº 4 do artº 268º, ambos da Constituição.

A tese que perpassou no teor do acto impugnado, ignora em absoluto os interesses contrapostos em presença, limitando os direitos de quem é directamente prejudicado pela decisão proferida, o que não é de conceder.

Por outro lado, a decisão que recusa a legitimidade aos ora recorridos, dificilmente se pode harmonizar com os princípios deontológicos do advogado e com o princípio da confiança que neles deve ser depositada, quer pelo cliente, quer pela parte contrária do cliente ou pela comunidade em geral, a que as normas dos artºs 83º, nº 1, alínea e) e 86º, nº 1, alínea e), não deixam de reflectir.

Nestes termos e em face de todo o exposto, improcede o erro de julgamento de direito que foi dirigido contra a sentença recorrida, tendo a mesma procedido a uma correcta interpretação e aplicação das normas legais.


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Em suma, será de negar provimento ao recurso e em manter a sentença recorrida na ordem jurídica.

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Sumariando, nos termos do nº 7 do artº 713º do CPC, conclui-se da seguinte forma:

I. Decorre das alíneas a) e d), do nº 1 do artº 81º do EOA, de forma expressa e inequívoca, o dever de o advogado guardar segredo profissional, no que respeita “A factos referentes a assuntos profissionais que lhe tenham sido revelados pelo cliente ou por sua ordem ou conhecidos no exercício da profissão” e ainda “A factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo amigável e que sejam relativos à pendência.”.

II. Consagrada no nº 1 a regra relativa à obrigação de sigilo profissional, estabelece o disposto no nº 4 as circunstâncias em que “cessa a obrigação de segredo profissional”, não obstante o nº 6 do artº 81º do EOA prever que, ainda nesses casos, “o advogado pode manter o segredo profissional”.

III. Quanto aos interesses e valores subjacentes a estes normativos, inseridos nas regras relativas à deontologia do advogado, decorre que os mesmos visam tutelar, por um lado, a defesa da dignidade do advogado, por lhe ser concedida a última palavra quanto à manutenção do segredo e, por outro, a confiança que os cidadãos em geral e todos os que com ele tenham contactado no exercício da sua profissão, em especial os seus clientes, nele devem depositar.

IV. Apenas perante a verificação das circunstâncias previstas no nº 4, isto é, quando for absolutamente necessário para a defesa da dignidade e dos direitos e dos interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, pode ser autorizada a cessação desse sigilo.

V. Têm legitimidade para recorrer da decisão que autorize a dispensa do sigilo profissional, impugnando a verificação dos pressupostos para o levantamento do segredo, quer o próprio advogado, quer o cliente ou o seu representante, quer ainda aqueles a quem a dispensa do sigilo profissional possa directamente prejudicar.

VI. A tutela do dever de segredo, enquanto concretização da deontologia profissional do advogado, abrange quer os assuntos relativos ou revelados pelo cliente, quer os relativos à parte contrária, cujo conhecimento tenha ocorrido no exercício da profissão, designadamente, cujos factos tenha obtido durante negociações, nos termos das citadas alíneas a) e d), do nº 1, do art. 81º do EOA.

VII. Tal amplitude prende-se com a relevância pública que é conferida à profissão de advogado, cujo exercício assenta na relação de confiança que se estabelece entre o cliente e o advogado, na vertente da sua competência técnica e profissional, mas também na garantia ou segurança que decorre da própria consagração do dever de segredo profissional

VIII. Impedir que a parte contrária, directamente afectada pelo levantamento do segredo profissional, não possa suscitar a reapreciação dessa decisão, traduzir-se-ia numa forte limitação, quer dos direitos de participação dos cidadãos na formação das decisões que lhes digam respeito, quer do direito de impugnação contra decisões administrativas lesivas, em violação do que estabelecem, respectivamente, os nº 5 do artº 267º e nº 4 do artº 268º, da Constituição.


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Por tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes do presente Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso e em manter a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.


(Ana Celeste Carvalho - Relatora)

(Maria Cristina Gallego Santos)

(António Paulo Vasconcelos)