Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2712/15.5 BELSB
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:04/29/2022
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:CONFLITO
INCOMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZO ADMINISTRATIVO COMUM
JUÍZO DE CONTRATOS PÚBLICOS
Sumário:
Votação:DECISÃO SUMÁRIA
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: DECISÃO

I. Relatório

A Senhora Juíza do Juízo administrativo comum do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa veio, ao abrigo do disposto na alínea t) do n.º 1 do artigo 36.º do ETAF e artigos 110.º, nº 2 e 111.º, n.ºs 1 e 3, ambos do CPC, requerer oficiosamente junto deste Tribunal Central Administrativo Sul a resolução do conflito negativo de competência, em razão da matéria, suscitado entre si e a Senhora Juíza do Juízo de contratos públicos. Ambas as Senhoras Magistradas dos referidos juízos se atribuem, mutuamente, competência, negando a própria, para conhecer da acção administrativa que a sociedade T………S…………… – D …………………., S.A., intentou no TACL contra o TURISMO DE PORTUGAL, I.P.

Neste TCA Sul foi cumprido o disposto no artigo 112.º, n.º 1, do CPC, nada tendo sido dito.

Os autos foram com vista ao Digno. Procurador-Geral Adjunto, conforme dispõe o artigo 112.º, n.º 2, do CPC, que emitiu pronúncia no sentido de a competência material caber ao Juízo administrativo comum do TAC de Lisboa.



I. 1. QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR:

A questão colocada consiste em saber qual o tribunal materialmente competente para apreciar e decidir a presente acção administrativa: se o juízo administrativo comum do TAC de Lisboa ou se o juízo administrativo de contratos públicos.

II. Fundamentação

II.1. De facto

Para julgamento do presente conflito, julgam-se relevantes as seguintes ocorrências processuais (documentalmente comprovadas):

1. Em 9.12.2015, T………. S……. – D …………………….., S.A. intentou no TAC de Lisboa contra Turismo de Portugal, I.P., uma acção administrativa de impugnação, na qual pede a anulação da decisão final do Conselho Directivo daquele instituto, notificada a coberto do ofício com refª nº …………….., datado de 4.09.2015, que determina a resolução do contrato de concessão de incentivos financeiros celebrado entre ambos em 30.11.2009, no âmbito do Sistema de Incentivos à Inovação aprovado pelo FEDER - Proc. SI Inovação 6862- e ordena a devolução, no prazo de 30 dias, contados a partir da recepção deste oficio, da quantia total de EUR 4.634.980,37 - capital e respectivos juros (cfr. o r.i e os 14 documentos juntos, a p. n/numeradas destes autos).

2. Consta do requerimento de 18.02.2016 apresentado pela Autora: “Caso não haja esta reponderação com base no parecer da Comissão Europeia, reserva-se a A. no direito, de vir a suscitar, caso seja necessário, o mecanismo do reenvio prejudicial com vista à colocação ao Tribunal de Justiça da questão da interpretação do artigo 8º da Directiva 2004/18/CE transposto para o Direito Português para o artigo 275º do CCP” (art. 25.º do req.; consulta do SITAF).

3. Pelo despacho nº4/2020, do Juiz Desembargador Presidente do TAC de Lisboa, os presentes autos “foram atribuídos em Lote” em 3.09.2020 a uma das Magistradas afectas ao Juízo de contratos públicos (cfr. consulta ao SITAF).

4. Por sentença datada de 21.04.2021, a Senhora Juíza do juízo de contratos públicos a quem os autos foram distribuídos, excepcionou a incompetência em razão da matéria daquele juízo e determinou a remessa dos autos ao juízo administrativo comum do mesmo Tribunal, por entender ser esse o juízo competente para apreciar a presente acção (idem).

5. Nessa sequência, o Magistrado do juízo administrativo comum do TAC de Lisboa por decisão datada de 18.11.2021, declarou aquele juízo igualmente incompetente, em razão da matéria, cometendo a competência para apreciar a acção ao juízo dos contratos públicos (idem).

6. Em 3.03.2022, a Senhora Juíza do juízo administrativo comum TACL, requereu a este Tribunal Superior a resolução do conflito negativo de competência aberto entre si e a Senhora Juíza do juízo de contratos públicos (idem).

7. As decisões em conflito transitaram em julgado (cfr. consulta do SITAF).



II.2. DE DIREITO

Nos termos do artigo 36.º, n.º 1, alínea t) do ETAF, compete ao Presidente de cada Tribunal Central Administrativo “conhecer dos conflitos de competência entre tribunais administrativos de círculo, tribunais tributários ou juízos de competência especializada, da área de jurisdição do respectivo tribunal central administrativo”, sendo que no âmbito do contencioso administrativo, os conflitos de competência jurisdicional e de atribuições se encontram regulados nos artigos 135.º a 139.º do CPTA.

Estabelece-se no n.º 1 do artigo 135.º do CPTA que a resolução dos conflitos “entre tribunais da jurisdição administrativa e fiscal ou entre órgãos administrativos” seguem o regime da acção administrativa, com as especialidades resultantes das diversas alíneas deste preceito, aplicando-se subsidiariamente, com as necessárias adaptações, o disposto na lei processual civil (cfr. artigos 109.º e s. do CPC).

Por sua vez, o artigo 136.º do mesmo diploma estatui que “a resolução dos conflitos pode ser requerida por qualquer interessado e pelo Ministério Público no prazo de um ano contado da data em que se torne inimpugnável a última das decisões”. Este preceito corresponde ao artigo 111.º do CPC, que dispõe o seguinte: “1 – Quando o tribunal se aperceba do conflito, deve suscitar oficiosamente a sua resolução junto do presidente do tribunal competente para decidir. 2 – A resolução do conflito pode igualmente ser suscitada por qualquer das partes ou pelo Ministério Público, mediante requerimento dirigido ao presidente do tribunal competente para decidir”.

Continuando, sob a epígrafe “[c]onflito de jurisdição e conflito de competência” estatui o artigo 109.º do CPC, aqui aplicável “ex vi” artigo 135º do CPTA, que:

1 – Há conflito de jurisdição quando duas ou mais autoridades, pertencentes a diversas actividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão: o conflito diz-se positivo no primeiro caso e negativo no segundo.

2 – Há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.

3 – Não há conflito enquanto forem susceptíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência.

O legislador do ETAF plasmou no artigo 44.º-A, aditado pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, e para os casos em que tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, os critérios de eleição para determinar a sua habilitação funcional. De acordo com o citado artigo 44.º-A do ETAF, sob a epígrafe “Competência dos juízos administrativos especializados”, passou a dispor-se o seguinte:

1- Quando tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, nos termos do disposto no artigo 9.º, compete:

a) Ao juízo administrativo comum conhecer de todos os processos do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que incidam sobre matéria administrativa e cuja competência não esteja atribuída a outros juízos de competência especializada, bem como exercer as demais competências atribuídas aos tribunais administrativos de círculo;

b) Ao juízo administrativo social, conhecer de todos os processos relativos a litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação, ou relacionados com formas públicas ou privadas de proteção social, incluindo os relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;

c) Ao juízo de contratos públicos, conhecer de todos os processos relativos à validade de atos pré-contratuais e interpretação, à validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes, e à sua formação, incluindo a efetivação de responsabilidade civil pré-contratual e contratual, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;

d) Ao juízo de urbanismo, ambiente e ordenamento do território, conhecer de todos os processos relativos a litígios em matéria de urbanismo, ambiente e ordenamento do território sujeitos à competência dos tribunais administrativos, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei.

2- Quando se cumulem pedidos entre os quais haja uma relação de dependência ou subsidiariedade, deve a ação ser proposta no juízo competente para a apreciação do pedido principal.

Daqui resulta que o juízo administrativo comum funciona como juízo de competência material residual: caso as matérias em dissídio não estejam incluídas no âmbito dos juízos especializados, a competência para as apreciar cabe ao juízo administrativo comum. A competência material especializada prevalece, assim, sob a competência material comum, precisamente porque esta é residual.

E na delimitação de competências entre o juízo comum e os diferentes juízos especializados dos tribunais administrativos (e estes entre si), afigura-se-nos evidente que o legislador atendeu ao objecto material das causas, relevando as especificidades que decorrem do direito substantivo que regula as correspondentes relações jurídicas, associando, no que aqui importa, as áreas de competência do juízo de contratos públicos, a execução de um contrato de procura pública com interesse concorrencial. Por isso o legislador utilizou a expressão “contratação pública”, para o que nos remete para o Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro, que aprovou o Código dos Contratos Públicos (CCP).

A competência, como medida de jurisdição atribuída a cada tribunal para conhecer de determinada questão a ele submetida, e enquanto pressuposto processual, determina-se pelos termos em que a acção é proposta; isto é, pelos pedidos e causas de pedir.

É entendimento generalizado da Jurisprudência dos Tribunais Superiores e da Doutrina que a competência do tribunal “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)” (…) A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor compreendidos aí os respectivos fundamentos, não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão” (cfr. MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 91 e, por todos, o acórdão do Tribunal de Conflitos de 4.07.2006, proc. n.º 11/2006).

Em suma, a competência afere-se pela substância do pedido formulado e pela relação jurídica subjacente ou factos concretizadores da causa de pedir. E em conformidade com o disposto no artigo 13º do CPTA, o seu conhecimento é oficioso e precede o conhecimento das demais questões.

Feito este enquadramento inicial, vejamos o caso concreto, devidamente recortado pela factualidade que deixámos fixada.

Recorde-se que na presente acção administrativa a Autora, T …….. S ………… – ……………………, S.A. veio pedir ao tribunal que anule o acto administrativo, consubstanciado na decisão/deliberação do Conselho Directivo do Instituto de Turismo de Portugal, I.P. - notificada a coberto do ofício com refª nº ……………, datado de 04.09.2015 – que na sequência de uma auditoria efectuada na sequência da intervenção e análise da Autoridade de Auditoria do QREN e da Autoridade de Gestão do Programa de financiamento em causa, a auditora nomeada, a Inspecção-Geral de Finanças, detectou no âmbito de verificação do “bom funcionamento dos sistemas de gestão e controlo dos programas operacionais, efetuada ao abrigo do art.º62º, do Regulamento (CE) nº1083/2006, do Conselho, de 11 de julho, e do artigo 21º do DL nº 312/2007, de 17 de setembro, alterado pelos DL nº 74/2008, de 22 de abril, e DL nº 99/2009, de 28 de abril.” (artigo 11º da contestação) um eventual incumprimento culposo das obrigações contratuais vertidas nas alíneas a) d) i) e j) da cláusula oitava do contrato de concessão o que determinou a resolução do contrato de concessão em causa e a ordem de devolução da quantia de EUR 4.634,980,37, sendo destes EUR 3.425.730,51, a título de capital e EUR 1.209.249,86, a título de juros de mora.

Nessa avaliação a Autoridade de Gestão, verificou que a ora Autora, celebrou dois contratos de empreitada com a empresa M………………, S. A.: construção do hotel e spa, em 1.10.2009, no montante de EUR 5.144.000,00; e retificação e ampliação do hotel e spa, em 2.05.2011, no montante de EUR 6.336.587,50.

E, concluiu-se no referido relatório, que foi notificado à Autora para efeitos de audiência prévia, que: «a) Em matéria de contratação pública — artigo 275º º do CCP — de acordo com a memória descritiva do projeto de alterações de arquitetura apresentado junto da Câmara Municipal de …………… e dos respetivos termos de responsabilidade da Arq. J …………….. em Agosto de 2009 e «o beneficiário tinha já decidido alterar o projeto. Esse momento e anterior ao da decisão de candidatura (30/9/2009), não tendo essa informação sido incorporada na análise da proposta do TP nem na deliberação da AG, dado o promotor não ter informado as entidades dessa alteração.

(…)

c) Atendendo à condição imposta pelo IGF no Relatório Final em que se deve apurar o momento (...) em que o beneficiário teve conhecimento das alterações ao projeto” pode concluir-se que o beneficiário alterou o projeto em momento anterior ao da decisão e ao da celebração do contrato de financiamento, sabendo que o valor contratado era insuficiente para concluir a obra. Nesse sentido, e reportando-nos exclusivamente ao enquadramento no artigo 275º do CCR conclui-se que o beneficiário não apresentou toda a informação necessária para análise da candidatura, sendo que o valor necessário para a construção do hotel seria superior ao limiar comunitário aplicável para as empreitadas de construção civil (5.150.000€). (…)”

Da fundamentação do Relatório retira-se como fundamento o incumprimento de várias das obrigações contratualmente estipuladas na cláusula oitava do contrato celebrado: nomeadamente “não foram cumpridos os normativos em sede de contratação pública, quando a empreitada associada ao projeto ultrapassou os limiares comunitários estabelecidos e a comparticipação efetuada, face ao valor de projeto apresentado a financiamento, ultrapassou os 50% legalmente previstos.”. O que determinou a resolução do contrato em causa, nos termos do n.º 1 da sua Cláusula 12ª.

Também a Autora, como constante de 2. do probatório, veio requerer, ainda que subsidiariamente, que sobre a matéria fosse efectuado um pedido de reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça, precisamente para apurar da aplicabilidade, ou não, do artigo 275.º do CCP.

Resulta, assim, no caso concreto destes autos, que o contrato (e o acto objecto da impugnação), é susceptível de se encontrar sujeito ao regime da contratação pública, nos termos previstos naquele artigo 275.º do Código dos Contratos Públicos. Regime jurídico expressamente convocado para regular a situação e que a A. também vem discutir nos autos.

Pelo que, no caso, se terá que concluir que a competência para decidir a causa está cometida ao Juízo de Contratos Públicos do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.

Em face do que fica dito, perante o teor da alínea c) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF e tendo presente o objecto do litígio (v. supra), a competência material para apreciar a natureza da relação em conflito não cabe ao juízo administrativo comum do TAC de Lisboa, mas sim ao juízo de contratos públicos integrado nesse Tribunal, por força da conjugação do disposto nos artigos 9.º, nºs 4 e 5 e 44.º-A, n.º1, alínea c) do ETAF (na versão que lhe foi dada pela Lei nº 114/2019, de 12 de Setembro), artigo 2º do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de Dezembro e artigo 1.º, alínea a), da Portaria n.º121/2020, de 22 de Maio.





III. Decisão

Pelo exposto, decide-se o presente conflito pela atribuição de competência para a tramitação e decisão do processo ao Juízo de Contratos Públicos do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.

Sem custas.
Notifique.

O Juiz Presidente do TCA Sul

Pedro Marchão Marques