Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:24/18.1BEFUN
Secção:CA
Data do Acordão:01/24/2019
Relator:PEDRO NUNO FIGUEIREDO
Descritores:MANDADO JUDICIAL PARA ENTRADA NO DOMICÍLIO
ARTIGO 95.º DO RJUE
VÍCIO DE INCONSTITUCIONALIDADE ORGÂNICA
Sumário:I – Qualquer restrição ao direito à inviolabilidade do domicílio é da exclusiva competência da Assembleia da República, a quem cabe legislar em matéria de direitos, liberdades e garantias, salvo autorização ao Governo, nos termos previstos no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP.
II – A Lei n.º 110/99, de 3 de agosto, que autorizou o Governo a legislar, no âmbito do desenvolvimento da Lei de Bases do Ordenamento do Território e do Urbanismo, em matéria de atribuições das autarquias locais no que respeita ao regime de licenciamento municipal de loteamentos urbanos e obras de urbanização e de obras particulares, não autorizou o Governo a legislar no âmbito da referida matéria, pelo que as normas constantes do artigo 95.º, n.os 2 e 3, do RJUE, na redação em vigor à data da decisão recorrida, padeciam do vício de inconstitucionalidade orgânica.
III - A assunção parlamentar de norma idêntica a norma constante de decreto-lei não autorizado, que equivale a uma novação da fonte normativa, afasta a inconstitucionalidade orgânica originária.
IV - O artigo 327.º da Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro, limitou-se a conferir ao Governo autorização legislativa para alterar a subsecção I da secção V do capítulo III do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, que estabelece o regime jurídico da urbanização e edificação, com vista à definição do regime de entrada no domicílio de qualquer pessoa sem o seu consentimento, após obtenção de prévio mandado judicial, no âmbito da atividade de fiscalização prevista no artigo 93.º daquele regime, não ocorrendo aqui a assunção parlamentar de normas idênticas às normas constantes do RJUE então em vigor, e o afastamento da referida inconstitucionalidade orgânica originária.
V – Uma vez que a alteração promovida pelo Governo através do Decreto-Lei n.º 121/2018, de 28 de dezembro, ao artigo 95.º do RJUE, é posterior à data de aplicação das normas em questão, entendendo-se como tal a data da decisão recorrida, deve ser recusada a sua aplicação, por padecerem do vício de inconstitucionalidade orgânica.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul

I. RELATÓRIO
……………………………….., na qualidade de Presidente da Câmara Municipal do Funchal, instaurou ação administrativa, com processo urgente, ao abrigo do disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 95.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), contra António …………………. e cônjuge Teresa ……………………. e José ………………….. e cônjuge Teresa ………………………… , na qual apresentou pedido de emissão de mandado judicial para entrada no domicílio destes sem o seu consentimento.
Alega, em síntese, que o Réu António …………………….. construiu clandestinamente um abrigo automóvel e uma churrasqueira num terreno que lhe pertence e à Ré Teresa …………………., obras essas insuscetíveis de legalização, pelo que foi ordenada a sua demolição, apenas cumprida quanto à churrasqueira; acrescenta que para executar coercivamente a ordem de demolição é necessário aceder ao prédio urbano onde o abrigo está edificado, passando por um prédio contíguo, composto por duas frações urbanas onde habitam os Réus, que não autorizam a passagem dos funcionários municipais responsáveis; conclui ser imperativo obter mandado judicial, por forma a poder ser cumprida a medida de tutela da legalidade urbanística.
Citados os Réus, apresentaram contestação na qual alegam, em síntese, que não realizaram qualquer obra ilegal e, desse modo, o Município do Funchal não tem o direito de invadir e ocupar a sua propriedade, atuando com abuso de direito.
Foi proferida sentença no dia 24/03/2018, na qual se julgou procedente a presente ação e, em consequência, determinou-se a emissão de mandado judicial a autorizar a entrada dos funcionários municipais responsáveis pela fiscalização de obras, no domicílio dos Réus, com a finalidade de execução da medida de tutela da legalidade urbanística em causa, tendo os Réus sido condenados nas custas.
Inconformados, os Réus interpuseram recurso desta decisão, pugnando pela respetiva revogação, com absolvição dos recorrentes do pedido em que foram condenados, terminando as alegações com a formulação das conclusões que se transcrevem:
“1. Por douto despacho do Vereador da Câmara Municipal do Funchal foi ordenado ao recorrente António …………………… a demolição do abrigo automóvel e da churrasqueira efetuados clandestinamente e insuscetíveis de legalização.
2. Essas obras a demolir foram realizadas no prédio urbano, terreno destinado a construção, que constitui o lote n.º 2 do alvará de loteamento nº 19/74, propriedade dos recorrentes António ……………. e Teresa ………………..
3. O Presidente da Câmara Municipal do Funchal intentou a presente ação alegando que precisava de aceder ao prédio urbano onde o " Abrigo Auto " está edificado, sendo necessário para esse efeito passar pelo prédio contíguo ao mesmo, o qual constitui o lote n.º 8 do alvará de loteamento nº 23/96.
4. O prédio contíguo por onde os funcionários municipais deviam entrar até chegar ao local onde estava a obra a demolir, é composto por duas frações urbanas habitacionais (A e B) que pertencem aos recorrentes.
5. Os recorrentes não autorizaram a passagem dos funcionários municipais responsáveis pela fiscalização de obras, de modo a poderem executar coercivamente a ordem de demolição.
6. O tribunal a quo, ao abrigo do disposto no art. 95.º, n.º 2 e n.º 3 , do RJUE, autorizou a entrada dos funcionários municipais, no domicílio dos recorrentes, sem o consentimento destes.
7. Acontece que o art. 95.º, n.º 2 e 3, do RJUE é inconstitucional (inconstitucionalidade orgânica), por violação da alínea b), do n.º 1, do art. 165.º da Constituição, uma vez que o Governo não estava habilitado a legislar sobre a violação do direito dos cidadãos à inviolabilidade do seu domicílio.”
O recorrido não apresentou contra-alegações.
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II. FUNDAMENTOS
II.1 DECISÃO DE FACTO

Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1. Em 14/07/2014, o Réu António ……………………… foi notificado do despacho do Vereador com o Pelouro do Urbanismo, datado de 25/06/2014, que aqui se dá por integralmente reproduzido, para dar início à demolição das construções de um abrigo auto e churrasqueira erigidos no lote 2 do alvará de loteamento urbano n.º …./74.
2. As construções referidas em 1. supra foram realizadas no lote 2 do alvará de loteamento n.º ……/74, sito no Caminho …………., ……. Funchal, propriedade dos Réus António ………… e cônjuge Teresa ……….., inscrito na matriz predial sob o artigo ……/Santo António e descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o n.º ……. da freguesia de Santo António.
3. O lote 2 referido em 2. supra, onde foram realizadas as construções de um abrigo auto e de uma churrasqueira não tem acesso pela via pública.
4. O Réu António …………… procedeu à demolição da churrasqueira referida em 1. supra.
5. O acesso ao lote 2 do alvará de loteamento n.º …../74 é feito pelo prédio contíguo que constitui o lote n.º 8 do alvará de loteamento n.º …../96, atualmente composto por duas frações urbanas A e B, respetivamente, propriedade dos Réus José …………………. e cônjuge Teresa ………………………. e dos Réus António …………….. e Teresa …………….
Além destes factos, encontra-se provado, por acordo das partes, o facto seguinte:
6. Os Réus habitam nas frações que compõem o lote n.º 8 a que alude o ponto n.º 5.
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II.2 APRECIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

A questão a decidir neste processo, tal como vem delimitada pelas alegações de recurso, cinge-se a saber se as normas contidas nos n.os 2 e 3 do artigo 95.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (doravante RJUE), então vigente, são organicamente inconstitucionais, por violação do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 165.º, da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), implicando a revogação da decisão recorrida.
Trata-se de questão não suscitada perante o juiz de primeira instância, mas cujo conhecimento se impõe a este Tribunal, porquanto as questões de inconstitucionalidade são de conhecimento oficioso, conforme decorre do disposto no artigo 204.º da CRP.
Na sua redação originária, conferida pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, o referido artigo 95.º previa o seguinte:
“1 - Os funcionários municipais responsáveis pela fiscalização de obras ou as empresas privadas a que se refere o n.º 5 do artigo anterior podem realizar inspeções aos locais onde se desenvolvam atividades sujeitas a fiscalização nos termos do presente diploma, sem dependência de prévia notificação.
2 - O disposto no número anterior não dispensa a obtenção de prévio mandado judicial para a entrada no domicílio de qualquer pessoa sem o seu consentimento.
3 - O mandado previsto no número anterior é concedido pelo juiz da comarca respetiva a pedido do presidente da câmara municipal e segue os termos do procedimento cautelar comum.”
O Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro, veio alterar o n.º 3 deste artigo, que passou a ter a seguinte redação:
“3 - O mandado previsto no número anterior é requerido pelo presidente da câmara municipal junto dos tribunais administrativos e segue os termos previstos no código do processo nos tribunais administrativos para os processos urgentes”.
Esta alteração veio dar corpo ao entendimento jurisprudencial já então definido, de que este pedido de emissão do mandado judicial se inseria no âmbito de um procedimento administrativo, sendo a jurisdição administrativa a competente para dele conhecer (cf. acórdão do Tribunal de Conflitos de 05/07/2012, proc. n.º 6/11, e o acórdão deste TCAS de 08/08/2012, proc. n.º 09046/12, ambos disponíveis em http://www.dgsi.pt/).
Questionam então os recorrentes a validade das referidas normas, n.os 2 e 3 do artigo 95.º, do RJUE, às quais apontam o vício de inconstitucionalidade orgânica, por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP.
De acordo com este preceito constitucional, é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar em matéria de direitos, liberdades e garantias, salvo autorização ao Governo.
Está em causa a entrada de funcionários municipais no domicílio dos recorrentes, autorizada pelo tribunal a quo.
O direito à inviolabilidade do domicílio encontra-se plasmado no artigo 34.º da CRP, enquadrado no Capítulo I, Direitos, liberdades e garantias pessoais, do Título II, Direitos, liberdades e garantias, da Lei Fundamental.
Ali se prevê, designadamente, a inviolabilidade do domicílio (n.º 1), e que a entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstas na lei (n.º 2).
Não suscita dúvidas, pois, que qualquer restrição àquele direito se enquadra no âmbito da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República. E que, consequentemente, para poder legislar nessa sede, carecia o Governo de uma lei de autorização, que definisse o objeto, o sentido, a extensão e a duração da autorização, conforme decorre do n.º 2 do artigo 165.º da CRP.
Sobre a matéria em questão já se debruçou o Tribunal Constitucional, nos termos aqui sufragados pelos recorrentes.
Assim, no Acórdão n.º 145/2009, de 24/03/2009 (proc. n.º 558/08, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), foi julgada inconstitucional a norma do artigo 95.º, n.º 3, do RJUE, na redação anterior ao Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro, ao atribuir competência ao juiz da comarca para conceder mandado para entrada de funcionários municipais, no domicílio de pessoa que não dê o seu consentimento, nos termos e para os efeitos da fiscalização prevista em tal diploma.
Para tanto, considerou então o Tribunal Constitucional que a Lei n.º 110/99, de 3 de agosto, que autorizou o Governo a legislar, no âmbito do desenvolvimento da Lei de Bases do Ordenamento do Território e do Urbanismo, em matéria de atribuições das autarquias locais no que respeita ao regime de licenciamento municipal de loteamentos urbanos e obras de urbanização e de obras particulares, não continha “credencial parlamentar bastante para o Governo editar norma que atribuísse ao juiz da comarca competência para a concessão de mandado para entrada em domicílio de pessoa que não dê o seu consentimento, no qual se desenvolvam atividades sujeitas a fiscalização por parte de funcionários municipais”.
E que o “Governo dispôs, pois, em matéria de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República sem a necessária autorização parlamentar, o que dita, em princípio, um vício de inconstitucionalidade orgânica (artigo 165.º, n.º 1, alínea p), da CRP).”
Seguindo o entendimento do Tribunal Constitucional que a afirmação da inconstitucionalidade orgânica implica não só a existência de produção normativa não autorizada do Governo em determinado domínio onde este órgão só poderia intervir com credencial parlamentar bastante, mas também a demonstração que tais normas criaram um ordenamento diverso do então vigente, no referido acórdão assinalou-se em seguida “que, anteriormente à entrada em vigor do RJUE, não existia qualquer preceito que regulasse a possibilidade e os termos da restrição a operar no direito à inviolabilidade do domicílio, por força da atividade inspetiva em análise”, concluindo pelo caráter inovatório da norma em questão, “carecendo, por isso, de específica credencial parlamentar, que não foi concedida pela Lei n.º 110/99, de 3 de agosto, quanto à admissibilidade de restrição ao direito à inviolabilidade do domicílio.”
Mais se concluiu que, à data de aplicação da norma, não tinha ocorrido a sanação do vício de inconstitucionalidade, por força de lei posterior da Assembleia da República, tendo a republicação do Decreto-Lei n.º 555/99 em anexo à Lei n.º 60/2007 natureza instrumental e não inovadora, na medida em que não produziu qualquer alteração ao artigo 95.º em questão.
No mesmo sentido se pronunciou o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 160/2012, de 28/03/2012 (proc. n.º 830/11, igualmente disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), concluindo que a norma constante do artigo 95.º, n.º 3, do RJUE, é inconstitucional, por ter sido adotada por decreto-lei, sem que beneficiasse da correspondente autorização parlamentar, em violação da alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP.
Professando ainda o mesmo entendimento, veio mais recentemente o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 195/2016, de 13/04/2016 (proc. n.º 901/13, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), julgar a norma extraída do artigo 95.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de outubro (RJUE), na parte em que permite a realização de inspeções ao domicílio de qualquer pessoa, sem o seu consentimento, nos termos e para os efeitos do referido diploma, ainda que sem a dispensa de prévio mandado judicial, organicamente inconstitucional, por violação do disposto na alínea b), do n.º 1 do artigo 165.º, da Constituição da República Portuguesa.
Não encontramos razão para divergir do entendimento que vem sendo sufragado pelo Tribunal Constitucional.
Com efeito, seja na redação originária do RJUE, seja na redação conferida ao n.º 3 do artigo 95.º pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro, está em causa a entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade, ou seja, uma restrição ao direito à inviolabilidade do domicílio, que apenas pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstas na lei.
Como a nossa Lei Fundamental enquadra no âmbito da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República qualquer restrição àquele direito, afigurava-se inequívoca a necessidade de uma lei de autorização deste órgão, que permitisse ao Governo introduzir legislação nesse sentido.
Uma vez que da Lei n.º 110/99, de 3 de agosto, a qual autorizou o Governo a legislar, no âmbito do desenvolvimento da Lei de Bases do Ordenamento do Território e do Urbanismo, em matéria de atribuições das autarquias locais no que respeita ao regime de licenciamento municipal de loteamentos urbanos e obras de urbanização e de obras particulares, nada consta quanto à possibilidade de restrição ao direito à inviolabilidade do domicílio, verifica-se a apontada inconstitucionalidade orgânica dos n.os 2 e 3 do artigo 95.º do RJUE.
Outrossim, não se encontram razões para divergir do entendimento do Tribunal Constitucional quanto ao caráter inovatório destes normativos, posto que criaram um ordenamento diverso do então vigente.
Assim como, do que se conclui nos citados arestos quanto à ausência de sanação do vício de inconstitucionalidade, por força de lei posterior da Assembleia da República, no que concerne à republicação do Decreto-Lei n.º 555/99 em anexo à Lei n.º 60/2007, posto que a mesma teve claramente natureza instrumental e não inovadora, na medida em que não produziu qualquer alteração ao artigo 95.º em questão.
Quanto a esta possibilidade de sanação do vício da inconstitucionalidade orgânica, entendeu o Tribunal Constitucional em pelo menos duas ocasiões, Acórdão n.º 485/2010, de 09/12/2010, proc. n.º 366/10, e Acórdão n.º 397/2011, de 22/09/2011, proc. n.º 831/10 (ambos disponíveis in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), a propósito de norma relativa à realização coativa de exame ao sangue para deteção de álcool (artigo 153.º, n.º 8, do Código da Estrada, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 44/2004, de 23 de fevereiro), que a assunção parlamentar de norma idêntica a norma constante de decreto-lei não autorizado equivale a uma novação da fonte normativa, que afasta a referida inconstitucionalidade orgânica originária.
Com relevância para o caso em análise, temos que o artigo 327.º da Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro, veio conferir ao Governo autorização legislativa para alterar a subsecção I da secção V do capítulo III do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, que estabelece o regime jurídico da urbanização e edificação, com vista à definição do regime de entrada no domicílio de qualquer pessoa sem o seu consentimento, após obtenção de prévio mandado judicial, no âmbito da atividade de fiscalização prevista no artigo 93.º daquele regime.
Em cumprimento desta autorização, o Governo veio legislar nesta matéria, através do Decreto-Lei n.º 121/2018, de 28 de dezembro, decretando a alteração ao regime jurídico da urbanização e edificação, passando o artigo 95.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, a ter a seguinte redação:
“1 - Os fiscais municipais ou os trabalhadores das empresas privadas a que se refere o n.º 5 do artigo anterior, podem realizar inspeções aos locais onde se desenvolvam atividades sujeitas a fiscalização nos termos do presente diploma, sem dependência de prévia notificação.
2 - Os fiscais municipais e os trabalhadores das empresas mencionados no número anterior podem fazer-se acompanhar de elementos das forças de segurança e do serviço municipal de proteção civil, sempre que haja fundadas dúvidas ou possa estar em causa a segurança de pessoas, bens e animais.
3 - Na inspeção de operações urbanísticas sujeitas a fiscalização nos termos do presente diploma é necessária a obtenção de prévio mandado judicial para a entrada no domicílio de qualquer pessoa sem o seu consentimento.
4 - (Anterior n.º 3.)
5 - Para as operações urbanísticas em curso, a falta de consentimento decorre de ser vedado o acesso ao local por parte do proprietário, locatário, usufrutuário, superficiário, ou de quem se arrogue de outros direitos sobre o imóvel, ainda que por intermédio de alguma das demais pessoas mencionadas no n.º 2 do artigo 102.º-B, ou de ser comprovadamente inviabilizado o contacto pessoal com as pessoas antes mencionadas.
6 - Para as operações urbanísticas concluídas, a falta de consentimento decorre de o proprietário não facultar o acesso ao local, quando regularmente notificado.
7 - A entrada e a permanência no domicílio devem respeitar o princípio da proporcionalidade, ocorrer pelo tempo estritamente necessário à atividade de inspeção, incidir sobre o local onde se realizam ou realizaram operações urbanísticas e a prova a recolher deve limitar-se à atividade sujeita a inspeção.”
O referido decreto-lei entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, ou seja, em data posterior à da decisão recorrida, e também em data posterior à da entrada dos presentes autos neste Tribunal.
Afigura-se inelutável que o regime atualmente em vigor já não padece do vício de inconstitucionalidade orgânica.
Todavia, podemos questionar se, com a entrada em vigor da Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro, ocorreu a assinalada novação da fonte normativa, que permitiria considerar sanada a inconstitucionalidade orgânica das normas do RJUE, então vigente.
A alteração destas normas apenas veio a ser concretizada através do Decreto-Lei n.º 121/2018, de 28 de dezembro.
Conquanto a Lei n.º 114/2017 se limitou a conferir ao Governo autorização legislativa para alterar a subsecção I da secção V do capítulo III do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, que estabelece o regime jurídico da urbanização e edificação, com vista à definição do regime de entrada no domicílio de qualquer pessoa sem o seu consentimento, após obtenção de prévio mandado judicial, no âmbito da atividade de fiscalização prevista no artigo 93.º daquele regime.
Não ocorre aqui a assunção parlamentar de normas idênticas às normas constantes do RJUE então em vigor, decreto-lei não autorizado, mas tão-só uma autorização para o Governo definir no futuro um determinado regime.
Pelo que não se pode considerar aqui afastada a referida inconstitucionalidade orgânica originária.
Por outro lado, a alteração promovida pelo Governo através do Decreto-Lei n.º 121/2018, de 28 de dezembro, ao artigo 95.º do RJUE, é posterior à data de aplicação das normas em questão, entendendo-se como tal a data da decisão recorrida.
Pelo que se deve limitar este Tribunal a reconhecer o vício de inconstitucionalidade orgânica de que então padeciam as normas constantes dos n.os 2 e 3 do artigo 95.º do RJUE, o que implica a recusa da sua aplicação e, consequentemente, a revogação da decisão sob recurso.

Em conclusão, é de recusar a aplicação das normas constantes dos n.os 2 e 3 do artigo 95.º do RJUE, na redação anterior à do Decreto-Lei n.º 121/2018, de 28 de dezembro, por padecerem do vício de inconstitucionalidade orgânica, e haverá como tal que conceder provimento ao recurso, revogar a sentença e, conhecendo em substituição, absolver os demandados do pedido.
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III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença e, conhecendo em substituição, absolver os demandados do pedido.
Custas a cargo do Autor/Recorrido.

Lisboa, 24 de Janeiro de 2019.

(Pedro Nuno Figueiredo)


(Carlos Araújo)


(Paulo Pereira Gouveia)