Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:182/16.0BEFUN
Secção:CT
Data do Acordão:07/14/2022
Relator:PATRÍCIA MANUEL PIRES
Descritores:INIMPUGNABILIDADE
LESIVIDADE DO ATO
LIQUIDAÇÃO
ATO INTERLOCUTÓRIO
ERRO NA IDENTIFICAÇÃO DOS MEIOS DE DEFESA
Sumário:I-O recurso aos métodos indiretos representa uma “ultima ratio fisci”, na medida em que só deve ser utilizado quando configure a única solução para se chegar à determinação da matéria coletável efetiva.
II-Da interpretação conjugada dos artigos 86.º, nº3 da LGT e 54.º do CPPT, resulta que, em regra, só é possível impugnar o ato final do procedimento tributário, porquanto só esse ato lesa, efetiva e imediatamente, a esfera jurídica do sujeito passivo, sendo que no contencioso tributário o critério da impugnabilidade dos atos é o da sua lesividade objetiva, imediata, atual e não meramente potencial.
III-A liquidação é o ato final do procedimento, donde só esta é diretamente impugnável, e não o ato interlocutório que sanciona o indeferimento da pretensão da Reclamante e a manutenção das correções por métodos presuntivos.
IV- A ratio da regulamentação do efeito suspensivo da liquidação constante no artigo 91.º, nº2, da LGT é, tão-só, a interdição de emissão de liquidação sem estar esgotada a possibilidade de alteração da matéria coletável por meios administrativos.
V-Se a Recorrente depositou confiança quanto à possibilidade de poder ser, diretamente, impugnado o ato de indeferimento, e se essa informação na qual depositou confiança, e na qual deveria, efetivamente, poder confiar, não foi idónea, acertada e correta, então, o facto não lhe é imputável, não podendo, por isso, coartarem-se direitos de defesa, sob pena de lesão princípio da confiança, tendo, por isso, de apelar-se ao consignado no artigo 37.º, nº4 do CPPT.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I-RELATÓRIO




G…, LDA, (doravante Recorrente) veio interpor recurso jurisdicional dirigido a este Tribunal tendo por objeto a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal que julgou verificada a exceção dilatória de inimpugnabilidade da decisão de correção da matéria tributável de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) e de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) relativa aos exercícios de 2011 e 2012, determinada por métodos indiretos, com a consequente absolvição da Fazenda Pública da instância.

A Recorrente, apresenta as suas alegações de recurso nas quais formula as conclusões que infra se reproduzem:

Vem o presente recurso interposto da douta sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal que julgou verificada a exceção dilatória de inimpugnabilidade da decisão sindicada e, em consequência, absolveu a Fazenda Pública da instância.

No entender da Recorrente, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, ao ter feito uma apreciação e valoração inapropriada e incorreta do Direito aqui aplicável, uma vez que:

a) ficou provado que, no dia 06/11/2015, a Recorrente deduziu, nos termos do artigo 91.º da Lei Geral Tributária, pedido de revisão da matéria colectável dos anos 2011 e 2012 (Facto Assente 5);

b) ficou demonstrado que o pedido de revisão viria a ser indeferido pela Administração Fiscal por decisão notificada à Recorrente no dia 16/03/2016 (Factos Assentes 6 e 7);

c) ficou comprovado que, por não concordar com essa decisão de indeferimento, a Recorrente deduziu, no dia 14/06/2016, impugnação judicial contra aquela decisão (Facto Assente 14);

d) nenhuma liquidação, quer de IRC quer de IVA, podia ser emitida até ao trânsito em julgado da decisão que recaiu sobre o referido pedido de revisão da matéria coletável da Recorrente;

e) só após o trânsito em julgado daquela decisão, a matéria coletável dos exercícios de 2011 e 2012 ficaria definitivamente assente e não mais poderia ser contestada;

f) nos termos do n.º 2 do artigo 91.º da LGT o pedido de revisão da matéria coletável “tem efeito suspensivo da liquidação do tributo”;

g) de acordo com o disposto nos artigos 91.º e 92.º da LGT, as liquidações de IRC ou IVA apenas podiam ser emitidas em caso de acordo entre os peritos quanto à matéria coletável ou em caso de decisão do pedido de revisão da matéria coletável transitada em julgado;

h) ao não respeitar aquelas disposições legais, a Administração Fiscal agiu em clara violação à lei e aos princípios que norteiam o ordenamento jurídico fiscal português;

i) as liquidações de IRC e IVA dependiam diretamente da decisão transitada em julgado que recaísse sobre o pedido de revisão da matéria coletável;

j) a pendência do processo de revisão da matéria coletável constituía causa prejudicial que impedia a emissão das liquidações de IRC e IVA;

k) o artigo 91.º n.º 2 da LGT não refere que o pedido de revisão da matéria coletável tem efeito suspensivo da liquidação do tributo apenas até ao esgotamento dos meios administrativos;

l) o artigo 86.º n.º 3 da LGT não podia ser aplicado ao caso concreto, tendo em conta que o processo de revisão da matéria coletável tinha efeito suspensivo da liquidação, nos termos do artigo 91.º n.º 2 da LGT;

m) não é verdade que nenhuma decisão de avaliação indireta é susceptível de impugnação contenciosa direta, salvo quando não dê origem a qualquer liquidação;

n) note-se, por exemplo, que as decisões de avaliação da matéria colectável com recurso a métodos indiretos, nos termos do artigo 89.º-A da LGT, são suscetíveis de impugnação direta e também têm efeito suspensivo;

o) a própria Administração Fiscal admitiu a possibilidade de impugnação das decisões dos pedidos de revisão da matéria coletável ao conceder à Recorrente a prerrogativa de impugnar diretamente, nos termos do artigo 99.º e ss do CPPT, aquela decisão (facto assente n.º 8);

p) a decisão sub judice era efetivamente impugnável, nos termos da lei;

q) o douto Tribunal a quo errou no seu julgamento, ao ter feito uma apreciação e valoração inapropriada e incorreta do Direito aqui aplicável, valoração essa que deveria ter conduzido a uma decisão diversa da encontrada, designadamente, à admissão e julgamento da impugnação sub judice, com todas as consequências legais.

Termos em que, dando-se provimento ao presente recurso e com o douto suprimento

de V. Exas., deve a douta Sentença recorrida ser revogada, com todas as consequências legais, assim se fazendo a tão acostumada JUSTIÇA!!!”


***


A Recorrida, devidamente notificada optou por não apresentar contra-alegações.

***


O Digno Magistrado do Ministério Público (DMMP) emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.

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Colhidos os vistos legais, vem o processo submetido à conferência desta Secção do Contencioso Tributário para decisão.

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II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:

“Com interesse para a decisão da presente exceção dilatória, importam os seguintes factos dados como provados:

1. Pela ordem de serviço externa n.º OI201400019, datada de 07 de janeiro de 2014, com o código de atividade 1221110207 (Controlo de Divergências do VIES) e despacho de 31 de agosto de 2015, foi realizada ação inspetiva à Impugnante, de âmbito geral e extensão aos exercícios de 2011 e 2012 – cfr. fls. 50 e 51 do Processo Administrativo (PA) apenso.

2. No dia 05 de outubro de 2015, foi emitido relatório de inspeção tributária relativo ao procedimento inspetivo efetuado a coberto da ordem de serviço n.º OI201400019, no qual se concluiu pelo acréscimo, de forma indireta, à matéria tributável de IRC para o ano de 2011 de € 137.694,42 e de € 43.230,63 para o exercício de 2012, e se apurou IVA em falta, também por recurso a métodos indiretos de tributação, nos montantes de € 77.305,92 para 2011 e de € 29.660,28 para 2012 – cfr. fls. 59 a 73 do PA apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

3. Sobre o relatório de inspeção mencionado no ponto anterior recaiu despacho de concordância do Diretor de Serviços da Inspeção Tributária, datado de 06 de outubro de 2015 – cfr. fls. 60 do PA apenso.

4. A sociedade Impugnante foi notificada, na pessoa do seu mandatário constituído, das correções resultantes da ação de inspeção efetuada a coberto da ordem de serviço n.º OI201400019, por ofício n.º 9.287, rececionado a 09 de outubro de 2015 (data de assinatura do aviso de receção relativo ao registo CTT RD 6343 5332 6 PT) – cfr. fls. 56 a 58 do PA apenso e doc. n.º 1 junto com a petição inicial.

5. No dia 06 de novembro de 2015, a Impugnante apresentou pedido de “revisão da matéria coletável” fixada em sede inspetiva por recurso a métodos indiretos para os exercícios de 2011 e 2012 – cfr. fls. 763 a 777 do PA apenso e doc. n.º 2 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

6. Por despacho do Diretor Regional dos Assuntos Fiscais de 14 de março de 2016, em concordância com anterior informação n.º 21 LN, foi o pedido de revisão da matéria tributável mencionado no ponto antecedente indeferido, com fundamento de que “a administração fiscal fundamentou a decisão de tributação pelos métodos indiretos (cf. n.º 4 do artigo 77.º da LGT), pelo que encontra-se provada a verificação dos requisitos legais que lhe permitiram a utilização dos métodos indiretos, por estarem reunidos os pressupostos da alínea b), n.º 1 do artigo 87.º e da alínea a) do artigo 88.º, ambos da LGT […], pelo que se deverão manter-se as correções que foram levadas a cabo através da ordem de serviço externa n.º OI201400019” – cfr. fls. 701 a 712 do PA apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

7. A sociedade Impugnante foi notificada, na pessoa do seu mandatário, da decisão de indeferimento do pedido de revisão da matéria tributável, por ofício n.º 3.519, rececionado a 16 de março de 2016 (data de assinatura do aviso de receção relativo ao registo CTT RD 7468 2438 2 PT) – cfr. fls. 731 a 733 do PA apenso e doc. n.º 3 junto com a petição inicial.

8. No ofício mencionado no ponto anterior foi consignado que a Impugnante ficava, de igual modo, notificada de que poderia “reclamar desta decisão através de impugnação judicial, conforme previsto nos artigos 99º e ss do CPPT” – cfr. fls. 731 do PA apenso e doc. n.º 3 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

9. Na sequência das correções apuradas em sede inspetiva, foram elaborados “documento(s) de correção” em sede de IRC e IVA para 2011 e 2012, com despacho de 21 de março de 2016 – cfr. fls. 644 a 700 do PA apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

10. Em 21 de março de 2016, tendo por base os documentos de correção elaboradas na sequência da ação inspetiva realizada sob a ordem de serviço n.º OI201400019, foram emitidas em nome da Impugnante as liquidações de IRC n.ºs 2016 8910032888 (2011) e 2016 8910032894 (2012), nas quais se apuraram montantes de imposto de € 24,94 e € 0,00, respetivamente – cfr. fls. 39, 40, 43 e 44 do PA apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

11. As demonstrações das liquidações de IRC mencionadas no ponto antecedente foram enviadas e entregues na caixa postal eletrónica do Via CTT da Impugnante em 22 e 23 de março de 2016, respetivamente – cfr. fls. 42 e 46 do PA apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

12. Por sua vez, também em 21 de março de 2016, na sequência dos documentos de correção mencionados no ponto 9., foram emitidas as seguintes liquidações adicionais de IVA em nome da Impugnante:

- n.º 16002269, referente ao período 2011/03T, no valor de € 18.192,26;

- n.º 16002271, referente ao período 2011/06T, no valor de € 28.606,76;

- n.º 16002273, referente ao período 2011/09T, no valor de € 11.385,23;

- n.º 2016 7015291190, referente ao período 2011/12T, no valor de € 1.919,42;

- n.º 2016 7015291206, referente ao período 2012/03T, no valor de € 23.681,32;

- n.º 2016 7015291223, referente ao período 2012/06T, no valor de € 12.558,29;

- n.º 2016 7015291247, referente ao período 2012/09T, no valor de € 7.216,26;

- n.º 2016 7015291265, referente ao período 2012/12T, no valor de € 5.508,96

– cfr. fls. 135 a 152 dos autos (suporte digital), cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

13. As demonstrações das liquidações de IVA n.ºs 16002269, 16002271 e 16002273, bem como as demonstrações de acerto de contas das restantes liquidações mencionadas no ponto anterior, foram enviadas e entregues na caixa postal eletrónica do Via CTT da Impugnante em 22 de março de 2016 – cfr. fls. 135 a 152 dos autos (suporte digital), cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

14. No dia 14 de junho de 2016, a sociedade Impugnante apresentou a presente impugnação judicial – cfr. fls. 01 e ss. dos autos (suporte digital).


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O Tribunal a quo consignou como factualidade não provada o seguinte:

“Inexistem factos não provados, com interesse para a solução da exceção em apreciação.”


***

A motivação da matéria de facto assentou “[n]o exame dos documentos e informações oficiais constantes dos autos e do processo administrativo apenso, conforme o especificado nos vários pontos da factualidade dada como provada, que não foram impugnados e que, pela sua natureza e qualidade, mereceram a credibilidade do tribunal.”


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III-FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

In casu, a Recorrente não se conforma com a decisão que julgou verificada a exceção dilatória de inimpugnabilidade da decisão de correção da matéria tributável de IRC e IVA, relativa aos exercícios de 2011 e 2012, determinada por métodos indiretos, com a consequente absolvição da Fazenda Pública da instância.

Em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso.

Assim, ponderando o teor das conclusões de recurso cumpre aferir se o Tribunal a quo, incorreu em erro de julgamento por errónea interpretação dos pressupostos de facto e de direito ao ter sentenciado a inimpugnabilidade contenciosa do ato impugnado, porquanto a decisão sub judice era, desde logo, suscetível de impugnação contenciosa direta tendo, ademais, sido desrespeitado o efeito suspensivo da liquidação do tributo, consignado no artigo 91.º, nº2 da LGT. Competindo, in fine, e sendo caso disso, extrair as devidas cominações do teor da notificação que faculta a apresentação de impugnação judicial.

Vejamos, então.

A Recorrente começa por evidenciar que resultando do probatório que foi deduzido pedido de revisão da matéria coletável dos anos 2011 e 2012 , a 06 de novembro de 2015, e que o mesmo foi objeto de indeferimento a 06 de março de 2016, a Recorrente teria, necessariamente, de deduzir impugnação judicial desse ato, até porque face ao consignado no artigo 91.º, nº2, da LGT, nenhuma liquidação, quer de IRC, quer de IVA, pode ser emitida até ao trânsito em julgado da decisão que recaiu sobre o referido pedido de revisão da matéria coletável da Recorrente, constituindo, de resto, causa prejudicial.

Sublinhando, neste particular, que da interpretação conjugada dos artigos 91.º e 92.º da LGT, as liquidações de IRC ou IVA apenas podem ser emitidas em caso de acordo entre os peritos quanto à matéria coletável ou em caso de decisão do pedido de revisão da matéria coletável transitada em julgado.

Ademais, advoga que fazendo um paralelismo com as situações consignadas no artigo 89.º-A da LGT, as mesmas são suscetíveis de impugnação direta e com efeito suspensivo, logo igual procedimento se terá de arrogar no caso vertente.

Enfatiza, a final, que foi a própria AT que admitiu a possibilidade de impugnação contenciosa da decisão de indeferimento do pedido de revisão da matéria coletável ao conceder à Recorrente a prerrogativa de impugnar diretamente a visada decisão, nos termos do artigo 99.º e seguintes do CPPT, conforme resulta inequívoco do probatório.

Apreciando.

Comecemos por atentar na fundamentação jurídica que esteou a aduzida inimpugnabilidade do ato.

Com efeito, o Tribunal a quo entendeu quanto à inimpugnabilidade que “[a]tendendo a que a decisão de fixação da matéria tributável por métodos indiretos impugnada nos presentes autos esteve na génese da emissão das liquidações de IRC e IVA mencionadas nos pontos 10. e 12. dos factos provados, as quais foram validamente notificadas à sociedade Impugnante nos termos dos artigos 38.º, n.º 9 e 39.º n.ºs 9 e 10 do CPPT (este último na redação concedida pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, aplicável à data dos factos), forçoso será concluir que tal ato de avaliação indireta se mostra inimpugnável nos termos do n.º 3 do art. 86.º da LGT. (…)”

Mais sublinhando que, “[t]al conclusão não sai beliscada pela previsão contida no art. 91.º, n.º 2 da LGT - segundo o qual o pedido de revisão da matéria tributável fixada por métodos indiretos “tem efeito suspensivo da liquidação do tributo”.

Vejamos, então, se o aludido entendimento é de validar e manter.

Atentemos, ab initio, como funciona o procedimento de avaliação indireta e as formas de reação e de sindicância do seu apuramento.

Resulta do disposto no artigo 86.º, nº5, da LGT, que, em caso de erro na quantificação ou nos pressupostos da determinação indireta da matéria tributável, a impugnação judicial da liquidação depende de prévia reclamação nos termos dos artigos 91.º a 94.º da mesma Lei.

Também nos termos do artigo 117.º, n.º 1, do CPPT, “salvo em caso de regime simplificado de tributação ou quando da decisão seja interposto, nos termos da lei, recurso hierárquico com efeitos suspensivos da liquidação, a impugnação dos atos tributários com base em erro na quantificação da matéria tributável ou nos pressupostos de aplicação de métodos indiretos depende de prévia apresentação do pedido de revisão da matéria tributável.”

O pedido de revisão da matéria coletável encontra-se, por seu turno, regulado no artigo 91.º da LGT, o qual dispunha, na redação à data aplicável, e na parte que, ora, releva:

“1 - O sujeito passivo pode, salvo em caso de aplicação de regime simplificado de tributação, solicitar a revisão da matéria tributável fixada por métodos indiretos em requerimento fundamentado dirigido ao órgão da administração tributária da área do seu domicílio fiscal, a apresentar no prazo de 30 dias contados a partir da data da notificação da decisão e contendo a indicação do perito que o representa.
2 - O pedido referido no número anterior tem efeito suspensivo da liquidação do tributo.
3 - Recebido o pedido de revisão e se estiverem reunidos os requisitos legais da sua admissão, o órgão da administração tributária referido no n.º 1 designará no prazo de 8 dias um perito da administração tributária que preferencialmente não deve ter tido qualquer intervenção anterior no processo e marcará uma reunião entre este e o perito indicado pelo contribuinte a realizar no prazo máximo de 15 dias.
4 - No requerimento referido no n.º 1, pode o sujeito passivo requerer a nomeação de perito independente, igual faculdade cabendo ao órgão da administração tributária até à marcação da reunião referida no n.º 3.
(…)
14 - As correções meramente aritméticas da matéria tributável resultantes de imposição legal ou que possam ser objeto, de acordo com as leis tributárias, de recurso hierárquico com efeito suspensivo da liquidação e as questões de direito, salvo quando referidas aos pressupostos da determinação indireta da matéria coletável, não estão abrangidas pelo disposto neste artigo.(…)”.

Mais consignava o artigo 92.º da LGT sob a epígrafe de “procedimento de revisão”, o seguinte:

“1 - O procedimento de revisão da matéria coletável assenta num debate contraditório entre o perito indicado pelo contribuinte e o perito da administração tributária, com a participação do perito independente, quando houver, e visa o estabelecimento de um acordo, nos termos da lei, quanto ao valor da matéria tributável a considerar para efeitos de liquidação.
2 - O procedimento é conduzido pelo perito da administração tributária e deve ser concluído no prazo de 30 dias contados do seu início, dispondo o perito do contribuinte de direito de acesso a todos os elementos que tenham fundamentado o pedido de revisão.
3 - Havendo acordo entre os peritos nos termos da presente subsecção, o tributo será liquidado com base na matéria tributável acordada.
4 - O acordo deverá, em caso de alteração da matéria inicialmente fixada, fundamentar a nova matéria tributável encontrada.
5 - Em caso de acordo, a administração tributária não pode alterar a matéria tributável acordada, salvo em caso de trânsito em julgado de crime de fraude fiscal envolvendo os elementos que serviram de base à sua quantificação, considerando-se então suspenso o prazo de caducidade no período entre o acordo e a decisão judicial.
6 - Na falta de acordo no prazo estabelecido no n.º 2, o órgão competente para a fixação da matéria tributável resolverá, de acordo com o seu prudente juízo, tendo em conta as posições de ambos os peritos.
7 - Se intervier perito independente, a decisão deve obrigatoriamente fundamentar a adesão ou rejeição, total ou parcial, do seu parecer.
8 - No caso de o parecer do perito independente ser conforme ao do perito do contribuinte e a administração tributária resolver em sentido diferente, a reclamação graciosa ou impugnação judicial têm efeito suspensivo, independentemente da prestação de garantia quanto à parte da liquidação controvertida em que aqueles peritos estiveram de acordo.”

Sob a epígrafe de “impugnação unitária”, é ainda de chamar à colação o plasmado no artigo 54.º do CPPT, segundo o qual: “salvo quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente, não são suscetíveis de impugnação contenciosa os atos interlocutórios do procedimento, sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida.”

Estatuindo, ainda neste particular, o já citado artigo 86.º, da LGT, no seu nº3 que:

“A avaliação indireta não é suscetível de impugnação contenciosa direta, salvo quando não dê origem a qualquer liquidação.”

Atentando nos aludidos normativos resulta, desde logo, que o recurso aos métodos indiretos só deve ser utilizado quando configure a única solução para a determinação do valor da matéria tributável efetiva. Assume, portanto, a natureza subsidiária e residual. Uma “ultima ratio fisci”, para que a AT possa cumprir o poder/dever que lhe está cometido de diligenciar no sentido de que todos os contribuintes paguem os impostos devidos.

Dimanando, outrossim, da interpretação conjugada dos citados artigos 86.º, nº3 da LGT e 54.º do CPPT que, em regra, só é possível impugnar o ato final do procedimento tributário, porquanto só esse ato lesa, efetiva e imediatamente, a esfera jurídica do sujeito passivo, sendo que, como é consabido, no contencioso tributário o critério da impugnabilidade dos atos é o da sua lesividade objetiva, imediata, atual e não meramente potencial (1).

Com efeito, os atos interlocutórios do procedimento não são, em princípio, imediatamente lesivos, daí que a sua ilegalidade só possa ser sindicada aquando da eventual impugnação deduzida contra o ato final lesivo, ressalvadas as situações em que os atos interlocutórios cuja sindicância judicial imediata e autónoma se encontre expressamente prevista na lei (são os denominados atos destacáveis, que na falta de impugnação direta se fixam na ordem jurídica, com a inerente preclusão da discussão da sua legalidade) ou de atos que, pese embora inseridos no procedimento tributário e anteriores à decisão final, sejam imediatamente lesivos, facultando-se, assim, a impugnação imediata, sem prejuízo de a sua ilegalidade poder, ainda, ser suscitada na impugnação que venha a ser interposta contra o ato final.

Sendo que, quanto à concreta discussão da legalidade dos pressupostos da determinação da matéria coletável por recurso a métodos indiretos, só pode, por um lado, ser discutida na impugnação judicial dos atos de liquidação, e, por outro lado, está dependente de prévia reclamação nos termos dos artigos 91.º a 94.º da LGT.

Feitos estes considerandos, regressemos ao caso dos autos.

No caso vertente, não há dúvida que a determinação da matéria coletável ocorreu por via dos métodos indiretos, e também não há dúvida que a Recorrente apresentou pedido de revisão da matéria coletável ao abrigo do artigo 91.º da LGT, o qual foi objeto de decisão de indeferimento e motivou a presente impugnação.

Mas, a verdade é que transpondo os considerandos supra expendidos, para o caso vertente, ter-se-á de concluir que a decisão impugnada consubstancia um ato interlocutório do procedimento de avaliação da matéria tributável logo, insuscetível, conforme ajuizado pelo Tribunal a quo, de impugnação contenciosa direta.

Note-se que, conforme preceitua, expressamente, o citado normativo 86.º, nº3, da LGT, a ressalva excecional só sucede quando inexistirem atos de liquidação -sob pena de lhe ser cerceada a tutela jurisdicional- o que, como visto, não se traduz na situação sub judice, conforme dimana, perentoriamente, dos pontos 12 e 13 do probatório.

Neste particular, convoque-se o doutrinado por José Maria Fernandes Pires (2), segundo o qual “[o] nº3 do artigo 86.º da LGT estabelece a regra da impossibilidade de impugnação judicial que tenha por objecto a avaliação indirecta da matéria tributável. Está, portanto, em perfeita concordância com o princípio da impugnação unitária (cfr. artigo 54º do CPPT), que determina que não são susceptíveis de impugnação contenciosa os actos interlocutórios do procedimento, como é o caso da determinação da matéria tributável. (…) Ou seja, a regra (onde se enquadram a maioria das situações), quer nos casos da avaliação indirecta, é a de impossibilidade de a avaliação da matéria tributável ser o objecto da impugnação, será, então, o objecto da impugnação, podendo aí arguir-se os vícios da avaliação, que foi acto interlocutório do procedimento de liquidação. Ou seja, em regra, o objecto da impugnação é a liquidação (…). Como excepção à regra indicada no ponto anterior, a determinação da matéria tributável por métodos indirectos pode ser impugnada directamente se não existir liquidação subsequente.” (destaques e sublinhados nossos).

Significa, portanto, que a liquidação é o ato final do procedimento, donde só esta é diretamente impugnável, e não o ato interlocutório que sanciona o indeferimento da pretensão da Reclamante e a manutenção das correções por métodos presuntivos.

Não logrando, por conseguinte, mérito o paralelismo propugnado pela Recorrente com o regime das manifestações de fortuna, porquanto ainda que o aludido regime integre, igualmente, um procedimento de avaliação indireta, a verdade é que não é comparável com o dos autos, na medida em que se encontra regulamentado um contencioso próprio, plasmado no artigo 89.º A, nº7 da LGT, assumindo-se, desde logo, como um ato de natureza destacável, e sem o pressuposto e condição de procedibilidade de prévia apresentação de pedido de revisão da matéria coletável.

E bem assim a interpretação que advoga quanto ao efeito suspensivo da liquidação constante no artigo 91.º, nº2, da LGT, na medida em que a suspensão regulamentada pelo legislador coaduna-se com o procedimento, donde, até à sua conclusão. Não podendo, de todo, configurar a existência-de resto, não substanciada- de causa prejudicial.

Com efeito, a ratio do aludido normativo coaduna-se com a insusceptibilidade da AT emitir quaisquer atos de liquidação enquanto estiver a decorrer o procedimento de revisão da matéria tributável determinada por métodos indiretos, ou seja, a intenção do legislador é a interdição de emissão de liquidação sem estar esgotada a possibilidade de alteração da matéria coletável por meios administrativos (3).

Em bom rigor, o legislador pretendeu regulamentar a inibição de emissão do ato de liquidação após a conclusão da ação inspetiva, e emissão do competente Relatório Inspetivo, tendo, por isso, a AT que aguardar, primeiramente, o decurso do prazo de trinta para apresentação do pedido de revisão, sendo que fruída tal faculdade, a liquidação só poderá ser emitida aquando a conclusão do procedimento, ou seja, após a prolação da decisão de acordo com o procedimento plasmado no artigo 92.º da LGT (4).

Destarte, prescrevendo-se no artigo 91.º, n.º 2, da LGT que o pedido de revisão da matéria coletável tem efeito suspensivo da liquidação do tributo, a conclusão a extrair é, tão-só, a de que até estar esgotado o prazo para o contribuinte efetuar tal pedido ou até ser proferida decisão sobre ele, não pode ser praticado ato de liquidação que corporize a matéria coletável fixada por recurso aos métodos indiretos. Não sendo, de todo, defensável a posição da Recorrente no sentido de aguardar-se pelo seu trânsito em julgado, justamente face à natureza de ato interlocutório e, bem assim, porque tal transferiria, sem fundamento legal, a emissão do ato de liquidação para uma fase posterior, subvertendo a ratio e inclusive a coerência do sistema jurídico.

E por assim ser, secundamos o ajuizado pelo Tribunal a quo quanto à inimpugnabilidade da decisão sub judice, e à interpretação preconizada quanto ao efeito suspensivo da liquidação.

Subsiste, então, por aferir se há que extrair qualquer cominação face ao, expresso, reconhecimento da possibilidade de impugnação, plasmado no ofício de notificação da visada decisão.

Como visto, a Recorrente convoca, em sua defesa, o teor do ofício de notificação do ato impugnado, relevando que é a própria AT que confere a possibilidade do ato de indeferimento ser objeto de impugnação judicial, visando, com isso, legitimar a impugnabilidade do ato em contenda.

Vejamos, então.

Atentando na notificação corporizada no ponto 8) do probatório resulta, efetivamente, que a AT indicou, de forma expressa, que da decisão de fixação da matéria coletável, “poderá reclamar desta decisão através de impugnação judicial, conforme previsto nos artigos 99º e ss do CPPT.”

Ora, se é certo que tal expressa menção-errónea, como vimos-não pode, per se, legitimar a adoção do meio processual de impugnação judicial, porquanto contrário à lei, é, igualmente, certo que o contribuinte não pode ser penalizado por uma errónea indicação na notificação, sob pena inclusive de violação do princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito, plasmado no artigo 2.º da CRP.

Daí que, a errada indicação ao administrado, aquando da sua notificação, do meio de defesa e do prazo para o exercer, não poderá afetar o exercício desse meio de defesa. Com efeito, se a Recorrente depositou confiança quanto à possibilidade de poder ser, diretamente, impugnado o ato de indeferimento, e se essa informação na qual depositou confiança, e na qual deveria, efetivamente, poder confiar, não foi idónea, acertada e correta, então, o facto não lhe é imputável, não podendo, por isso, coartarem-se direitos de defesa, sob pena de lesão do referido princípio constitucional, tendo, por isso, de apelar-se ao consignado no artigo 37.º, nº4 do CPPT.

Ademais, se a AT exerce as suas atribuições na prossecução da justiça, mesmo no uso dos seus poderes vinculados e se, “não há direito sem justiça”, então a “[a]dministração não está subordinada a uma legalidade meramente formal, devendo consagrar-se uma «ideia de direito» (5)” regulada pelos princípios da justiça, igualdade e boa-fé.

Até porque, “O princípio da justiça aponta para a necessidade de a Administração pautar a sua actividade por certos critérios materiais ou de valor, constitucionalmente plasmados (….). A observância destes princípios materiais de justiça permitirá à Administração a obtenção de uma ‘solução justa’ relativamente aos problemas concretos que lhe cabe decidir (6)”.

Neste sentido, vide, designadamente, os Arestos prolatados neste Tribunal no âmbito dos processos nºs 1879/14, de 29 de abril de 2021 e 265/16, de 25 de junho de 2020 e TCA Norte, no processo nº 00077/10, datado de 30 de setembro de 2015.

É, portanto, neste sentido que alinhamos e fundamentamos o nosso entendimento impondo-se, por isso, o reconhecimento, expresso, de erro na notificação dos meios de reação contra o ato notificado -não obstante o Tribunal a quo, tenha aludido ao citado normativo não estabeleceu uma expressa assunção do erro de notificação em conformidade com o plasmado no normativo citado- o que permite à Recorrente exercer o meio adequado de reação no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão judicial, nos termos do artigo 37.º, nº 4 do CPPT, facultando-lhe a necessária e requerida tutela.

Assim, mantém-se integralmente a decisão recorrida quanto à inimpugnabilidade do ato impugnado, reconhecendo-se, expressamente, o erro na notificação dos meios de reação concedendo-se, assim, a possibilidade de impugnação dos atos de liquidação, no prazo consignado no citado artigo 37.º, nº4 do CPPT.


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IV. DECISÃO

Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SEGUNDA SUBSECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste Tribunal Central Administrativo Sul em NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO manter a sentença recorrida no atinente à inimpugnabilidade do ato, com expresso reconhecimento da existência de erro na notificação, nos moldes já evidenciados em III), e com todas as legais consequências.

Custas a cargo da Recorrente.
Registe. Notifique.


Lisboa, 14 de julho de 2022

(Patrícia Manuel Pires)

(Cristina Flora)

(Luísa Soares)



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(1) Vide neste sentido, designadamente, Acórdão do STA, proferido em 23.06.2010.
(2) e Gonçalo Bulcão, José Ramos Vidal e Maria João Menezes, Lei Geral Tributária comentada e anotada, Almedina, julho de 2015, pág.885.
(3) Neste sentido, vide, designadamente, Acórdão do STA prolatado no âmbito do processo nº 655/09, de 07.10.2009 e TCAS 0435/10, de 24.05.2011.
(4) Vide, designadamente, José Maria Fernandes Pires, e out, Ob. Cit, pág. 963.
(5) Conforme defende Maria da Glória Ferreira Pinto, Considerações sobre a Reclamação Prévia ao Recurso Contencioso, CTF, nº268/279, citada in ob.cit. de Paulo Marques, p.117
(6) Gomes Canotilho e Vital Moreira-Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª Ed. revista, Coimbra Editora, Coimbra, 1993, p. 925