Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:5/07.0BELSB
Secção:CT
Data do Acordão:11/25/2021
Relator:PATRÍCIA MANUEL PIRES
Descritores:PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
AUTOLIQUIDAÇÃO
ERRO INFORMÁTICO E CONTABILÍSTICO
PRINCÍPIO DA ESPECIALIZAÇÃO DOS EXERCÍCIOS
PRINCÍPIO DA JUSTIÇA
INTERESSE PÚBLICO DA TRIBUTAÇÃO
Sumário:I-O princípio do inquisitório é um poder/dever do Juiz, não podendo, contudo, desvirtuar o ónus probatório que existe, a montante, sobre as partes. A intervenção ativa do julgador tem de ser sempre balizada pela igualdade processual das partes, e com o respeito pela justa repartição do ónus da prova.

II-O princípio da especialização dos exercícios encontra-se consagrado no artigo 18.º do CIRC e tem uma densidade vinculativa elevada, não tolerando, fora dos casos expressamente consignados na lei, qualquer margem de manobra do contribuinte na afetação temporal dos movimentos económico-financeiros da empresa, devendo, no entanto, ser ponderado e contrabalançado com os demais princípios constitucionais basilares, mormente, da justiça.

III-Existindo um erro do sistema informático, adveniente da migração de registos contabilísticos na sequência do processo de fusão/entrada de ativos para outra entidade bancária, o qual não desfez a periodificação de juros do dia imediatamente anterior, e que acarretou uma duplicação de proveitos, é passível de qualificação como totalmente imprevisível e apenas cognoscível no exercício subsequente, donde subsumível no artigo 18.º, nº2, do CIRC.

IV-Se o princípio da especialização dos exercícios deve ser sopesado com o princípio da justiça, no limite, numa situação em que resulta provada a duplicação de proveitos e que a única forma de repor a verdade e eliminar a dupla tributação é a assunção da regularização da contabilização no exercício de 2004, e consequente expurgo no quadro 221, sempre se teria de validar a procedência decretada pelo Tribunal a quo, por inexistir qualquer interesse público subjacente à tributação.

Votação:Unanimidade
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I-RELATÓRIO

O DIGNO REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA (doravante Recorrente ou DRFP), com os demais sinais nos autos, veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida contra o ato de indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada do ato de autoliquidação de IRC nº 2005.2910283385, referente ao exercício de 2004, no montante de €447.809,97.

A Recorrente veio apresentar as suas alegações, formulando as conclusões que infra se reproduzem:

“A. Visa o presente recurso reagir contra a douta sentença que julgou procedente a impugnação judicial à margem identificada, deduzida pelo B. P., S.A., NIPC 98.., contra o ato de indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada do ato de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas («IRC») n.º 2005. 2005.2910283385, referente ao exercício de 2004, no montante de € 447.809,97.

B. Dos factos provados, deveria constar provado que a Impugnante não reclamou da autoliquidação de 2003, conforme referido no art.37.º da Contestação, apresenta-se de enorme relevância, por demonstrar que a Impugnante não exerceu o seu respetivo direito de reclamação contra o ato devido, e em respeito pelo princípio da especialização dos exercícios, nos termos do art.18.º do CIRC.

C. Na douta sentença, de que ora se recorre, julgando tratar-se de uma duplicação de proveitos, e consequentemente duplicação de IRC, assente num erro informático detetado em 2004, após o encerramento das contas de 2003, que é motivo justificador para corrigir no ano de 2004, o Tribunal a quo, julgou procedente, por provada, a impugnação, determinando a anulação da liquidação de IRC do ano de 2004, na parte em que desconsiderou como custo o montante de € 288.978,58.

D. Não pode a Fazenda Pública, com o devido respeito, que é muito, conformar-se com o assim decidido, por ser seu entendimento que, in casu, a liquidação de IRC do ano 2004, na parte em que desconsiderou como custo do montante de € 288.978,58, não padecerem do enquadramento legal que lhes vem apontado pela sentença recorrida, designadamente, face à correção dos proveitos contabilizados em duplicado no ano de 2003, não se vislumbra onde possa a Impugnante requerer uma diminuição do resultado fiscal do exercício de 2004, tendo em consideração que o procedimento foi o correto e o respeito pelo princípio da especialização dos exercícios, previsto no art.18.º do CIRC.

E. Quanto à duplicação de proveitos relativos a juros assenta num erro informático na migração de registos contabilísticos, e atento o trilho percorrido na sentença, o Tribunal a quo considerou como líquido a existência de um erro informático na migração de registos contabilísticos, designadamente do método “faz-desfaz” e que sobre as divergências e insuficiência de elementos apontadas pela AT aos elementos contabilísticos, era à AT que competia a respetiva correspondência entre o teor da contabilidade e a realidade, assim como as respetivas diligências e apuramento das insuficiências.

F. Conforme referido em sede de contestação, vulgo art.38.º e seguintes, os extratos de conta corrente do ano de 2003, das diversas subcontas da classe 8, verifica-se que não é possível confirmar a contabilização em duplicado dos proveitos, espelham insuficiência de informação que não permitem confirmar os valores reclamados pela Impugnante, de forma clara, direta e simples,

a. Os extratos não têm títulos, pelo que não se sabe a que corresponde cada coluna;

b. Os lançamentos têm todos os mesmos códigos, não sendo possível individualizar os lançamentos, sendo diferenciados apenas no valor lançado, que muitas vezes coincide com outros;

c. Nos extratos de conta corrente são identificados os valores que a Impugnante diz não terem sido anulados, contudo, não é percetível a forma como se chega a esta conclusão;

d. A Impugnante apenas apresenta os extratos de conta corrente das subconta da classe 8, não se sabendo qual foi a contrapartida destes movimentos;

e. Assim não demonstra que o proveito foi contabilizado em duplicado, pois nada garante que a contrapartida dos valores que diz não terem sido anulado não foi uma conta de custos;

G. Atenta as incongruências apontadas pela AT, que subjazem a uma efetiva e real correspondência sobre os valores apresentados e a desconformidade dos mesmos, por falta de imputação direta, não se pode aceitar a simples invocação dos art.58.º da LGT e art.100.º do CPPT, acusando de insipiente a atuação da AT, para aceitar como verdadeiras e suficientes os elementos apresentados pela Impugnante.

H. Pelo contrário, não olvidando as prerrogativas da AT, importa atentar que em sede judicial, vigoram os poderes inquisitórios do Tribunal, para oficiosamente diligenciar o que achar necessário para descobrir a verdade material, designadamente sobre o que as partes tragam ao processo e que se verifique uma necessidade de mais diligências.

I. Realce-se, que do ora aduzido, não está em causa a existência ou não do erro informático, e a sua respetiva explicação assente na informatização da contabilização do juro, mas antes a questão dos elementos dos autos não espelharem os valores derivados da duplicação de proveitos.

J. Ora, importa gizar que a apreciação jurisdicional tem de considerar os sintomas de verdade numa determinada situação, em respeito pela tutela jurisdicional e verdade material, recorrendo ao princípio da inquisitório sempre que necessário, independentemente dos cânones do ónus da prova, e em qualquer situação de facto, em que por vezes a prova recolhida não é plena e inabalável, o que obriga a uma apreciação global e conjugação de todos os elementos disponíveis, e sempre novas diligências, designadamente indiciária.

K. No caso dos autos, a decisão jurisdicional não pode ficar refém dos elementos dos autos, designadamente, quando assim existem indícios que ofuscam a verdade material, como por exemplo repetição de códigos, extratos sem títulos, desconhecimento de contrapartida de movimentos da conta corrente, deve lançar mão das suas ferramentas, designadamente, do seu poder oficioso de encetar todas as diligências que considere pertinentes, ao abrigo do princípio do inquisitório, como por exemplo, pedir novos esclarecimentos concretizadores sobre a situação de facto à contabilidade da sociedade, e no limite a intervenção oficiosa de peritos.

L. Assim, pensamos que melhor teria andado, em respeito por no contencioso tributário vigorar o princípio do inquisitório (e da investigação), segundo o qual o tribunal deve realizar ou ordenar oficiosamente todas as diligências que se lhe afigurem úteis para conhecer a verdade relativamente aos factos alegados ou de que oficiosamente pode conhecer, nos termos do artigo 99º da LGT e artigo 13º do CPPT.

M. Quanto à questão em torno do princípio da especialização dos exercícios, em suma, entendemos que o Tribunal a quo incorreu em erro na sua interpretação deste princípio à luz da situação em apreço, assim como da aplicação do disposto no art.131.º do CPPT.

N. De acordo com o princípio da especialização dos exercícios, os proveitos e custos, assim como outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao exercício a que digam respeito (artigo 18.º, n.º 1 do CIRC).

O. Aquele princípio vale assim para os casos em que os custos são contabilizados num exercício, mas em que a despesa efetiva só é suportada noutro, como para os casos em que o ganho ainda que contabilizado num exercício, só é, de facto, recebido noutro.

P. Ora em tais situações, em que existe desencontro entre a contabilização dos custos e dos proveitos e a sua efetiva concretização, a Lei ordena que os mesmos sejam contabilizados à medida que sejam obtidos e suportados, e não à medida que o respetivo recebimento ou pagamento ocorram.

Q. O Ilustre Tribunal a quo incorreu, com a devida vénia, em erro de julgamento, porquanto, a Impugnante não poderia ter corrigido no exercício de 2004, como o fez, mas antes deveria ter lançado mão do mecanismo previsto art.131.º do CPPT, ou seja, a impugnação da autoliquidação de IRC de 2003, com prévia apresentação de reclamação graciosa.

R. Conforme decorre dos factos provados D), a alegada duplicação de proveitos terá ocorrido com a primeira migração de registos contabilísticos datada de 03.11.2003, que não anulou a periodificação de juros do dia imediatamente anterior, pelo que, para os devidos efeitos, a duplicação de proveitos aconteceu em 03.11.2003.

S. Atento o disposto no art.18.º do CIRC e o princípio da especialização dos exercícios, considerando que a duplicação de proveitos aconteceu no ano 2003, o ato que deve ser corrigido é o exercício de 2003, e considerando que já teria ocorrido o encerramento de contas, a Impugnante teria que reclamar graciosamente da liquidação de IRC de 2003, e caso não fosse atendida a sua pretensão, vir subsequentemente, impugnar a referida liquidação à luz do previsto no art.131.º do CPPT.

T. Desde logo, porque essa é a base da previsão legal da instituição do art.131.º do CIRC, para situações em que o sujeito passivo deteta a existência de um erro, quer nos factos em que assentou a liquidação, quer na aplicação das normas legais respetivas.

U. Portanto, atento o referido quando ao previsto nos art.18.º do CIRC e art.131.º do CPPT, entendemos que mal andou o Tribunal a quo, na justificação de que o erro informático não poderia ser corrigido e que a Impugnante ficaria prejudicada em benefício da AT, sendo certo, que o referido erro, vertido numa duplicação de proveitos em 2003, corrigia-se com a reclamação da autoliquidação de 2003, e caso esta não fosse atendida, com a respetiva impugnação judicial, nos termos do art.131.ºCPPT.

V. Se a lei prevê este mecanismo, da correção em 2003, então deixa de fazer sentido a regularização efetuada pela Impugnante em 2004, porque deixa de estar açambarcada pela exceção do princípio da especialização dos exercícios para situações de erro/omissões involuntárias, designadamente a coberto do n.º2 do art.18.º do CIRC.

W. Como tal, no caso dos autos, o princípio da especialização dos exercícios não tem de ser interpretado de acordo com o princípio da justiça, nos termos da citado Acórdão do STA de 14.03.2018, e nos termos do explanado na sentença, porquanto não existe a necessidade de imputação ao exercício de 2004, em virtude da correção poder ser efetuada no exercício de 2003, por via da utilização do mecanismo do art.131.º do CPPT.

X. E ainda, se a Impugnante fica prejudicada, é porque não utilizou o meio próprio para repor a situação real, por via do art.131.º do CPPT, pelo que não se pode vir a coberto da justificação do erro e da sobreposição do princípio da justiça sobre o princípio da especialização dos exercícios, repor uma situação errada imputável à Impugnante, ou seja, partindo do considerando que o erro informático não constitui qualquer intenção ou omissão voluntária da Impugnante, o mesmo raciocínio já não se pode aproveitar à não utilização do meio próprio para corrigir a situação, vulgo art.131.º do CPPT.

Y. Por fim, quanto ao referido no final da douta sentença, a Impugnante fica prejudicada porque não empreendeu o meio próprio para corrigir a situação, ou, por outras palavras, por não ter acionado corretamente as garantias previstas na lei de salvaguarda dos interesses dos contribuintes, vulgo, por via do art.131.º do CPPT.

Z. Acresce que, à AT não advém qualquer benefício, sem causa, antes advém a defesa da verdade material, da igualdade, e no dever fundamental de pagar impostos, e nesse sentido, se o nosso ordenamento jurídico compreende mecanismos de resolução de situações de erros nas autoliquidações, in casu, jamais se pode aceitar que a todos contribuintes seja previsto a resolução destes problemas por via da utilização do art.131.º CPPT, e depois vir aceitar que alguns contribuintes efetuem regularizações em anos diferentes, em violação do princípio da especialização dos exercícios, a coberto de uma sobreposição do princípio da justiça, com a justificação de erro involuntário, mas sempre do próprio e da sua esfera de atuação.

AA. Concluindo-se, deste modo, a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento, ao aceitar a regularização efetuada em 2004, da duplicação de proveitos referente a 2003, violando o previsto no art.18.º do CIRC, razão pela qual se impõe a sua revogação e substituição por Acórdão que declarando improcedente, por não provada, a impugnação, mantenha vigentes, por legais, no ordenamento jurídico tributário, a liquidação de IRC impugnada.

BB. Razão pela qual, se impõe a revogação da condenação da AT em restituir o montante pago, e será a Recorrida, como parte vencida, que deverá suportar o pagamento das custas, impondo-se, portanto, também neste segmento, a reforma da sentença recorrida.

Termos em que, com o mui douto suprimento de V. Exas., e em face da motivação e das conclusões atrás enunciadas, deve ser dado provimento ao presente recurso, e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida, e substituída por Acórdão que julgue improcedente, por não provada, a impugnação judicial, e, em consequência, mantenha, vigentes no ordenamento jurídico tributário, por legais, quer os atos de retenção na fonte impugnados quer o despacho de indeferimento proferido no pedido de revisão oficiosa.

Todavia, Decidindo, Vossas Excelências farão, como sempre, a costumada Justiça!”


***

A Recorrida, devidamente notificada para o efeito, apresentou contra-alegações, tendo concluído como se descreve infra:

“1.ª A douta sentença recorrida julgou procedente a impugnação judicial deduzida contra o ato de indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada do ato de autoliquidação de IRC de 2004;

2.ª O Tribunal a quo entendeu: (i) que se verificou duplicação de proveitos por falha no sistema informático do Recorrido, o qual em 31.10.2003 não efetuou o estorno dos juros no valor de € 288.978,58; (ii) que a contabilidade do Recorrido não é posta em causa pela administração tributária, que não alegou nem demonstrou a falta de correspondência entre a contabilidade e a realidade e (iii) que o princípio da especialização dos exercícios deve ceder perante o princípio da justiça e da tributação pelo lucro real e, por conseguinte, deve admitir-se a contestação da declaração Modelo 22 de IRC do exercício de 2004;

3.ª A Recorrente deduz o presente recurso arguindo que o Tribunal a quo incorre em erro de julgamento da matéria de facto, por não ter dado como provado que o Recorrido não apresentou reclamação graciosa da autoliquidação de IRC de 2003;

4.ª Todavia, salvo o devido respeito, não assiste razão à Fazenda Pública, uma vez que, como resulta do disposto no artigo 607.º, n.º 2 e n.º 4 do CPC, aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e), do CPPT, o juiz não é obrigado a pronunciar-se sobre todos os factos invocados pelas partes;

5.ª Sem prejuízo, ainda que se conclua que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, no que não se concede, tal erro de julgamento não terá a virtualidade de alterar o decidido, porquanto como concluiu – e bem – o Tribunal a quo “(…) o princípio da especialização de exercícios não pode prevalecer sobre o princípio da justiça, nem mesmo sobre o princípio da tributação pelo lucro real (…)” (cf. p. 9 da sentença).

6.ª Por outro lado, a Fazenda Pública invoca ainda que o Tribunal incorreu em erro de julgamento da matéria de direito, referindo, em suma, (i) que o Tribunal a quo não atuou ao abrigo do princípio do inquisitório, uma vez que se cingiu à prova documental e testemunhal produzida nos autos de impugnação judicial e (ii) que à luz do princípio da especialização dos exercícios e do artigo 131.º do CPPT, deveria ter sido apresentada reclamação graciosa do ato de autoliquidação de IRC do exercício de 2003 e não do exercício de 2004;

7.ª Quanto à alegada violação do princípio do inquisitório pelo Tribunal a quo, o Tribunal formou a sua convicção com base na prova testemunhal e documental produzida nos autos de impugnação judicial (cf. extratos contabilísticos, balancete analítico a 31.12.2004 e declaração Modelo 22 de IRC de 2004), tendo concluído que algumas das incongruências apontadas pela Recorrente se prendem com o facto de estarmos perante a “(…) convergência e integração contabilística de 2 bancos, que agregam milhares de contas (como referiu a testemunha da Impugnante), acompanhada da complexidade jurídica associada à própria operação societária, bem como à tecnicidade do sistema informático, o que de si, envolve uma dificuldade acrescida na disponibilização e compreensão da contabilidade (…)” mas que é percetível ao Tribunal, pela prova aduzida, que houve duplicação de proveitos (cf. p. 7 da sentença);

8.ª Não se aceita que o Tribunal devesse ter diligenciado mais no sentido da descoberta da verdade material, do que fez, porquanto os documentos juntos aos autos e a prova testemunhal produzida nos mesmos constituem elementos suficientes para que o mesmo percecione, tal como ocorreu, as operações em causa, bem como o erro informático em que incorreu o Recorrido e os respetivos valores em juízo, pelo que não merece qualquer censura a sentença recorrida;

9.ª À luz do princípio do inquisitório, previsto no domínio do processo civil, cabe ao juiz assumir uma postura ativa no sentido da descoberta da verdade material e da justa composição do litígio (cf. artigos 411.º do CPC e 114.º do CPPT; ABRANTES GERALDES, et. al., in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, Almedina, 2018, p. 484; LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2, 3.ª Edição, Almedina, 2017, p. 208);

10.ª Contudo, o princípio do inquisitório tem de ser compatibilizado com o princípio do dispositivo, de acordo com o qual o pedido e a causa de pedir são fixadas pelas partes, não podendo o juiz na sua apreciação pronunciar-se para além do fixado pelas partes ou sobre outro pedido ou causa de pedir (cf. artigos 5.º, 574.º e 264.º do CPC; acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19.01.2017 (proc. n.º 873/10.9T2AVR.P1.S1) e de 07.05.2015 (proc. n.º 4572/09.6YYPRT-A.P2.S1));

11.ª É por demais evidente que a Fazenda Pública está a impor ao Tribunal um ónus que o mesmo não tem, pois se é verdade que cabe ao Tribunal a busca pela verdade material, menos verdade não é que o Tribunal não se pode substituir às partes pelo que tendo sido apresentados pelo Recorrido meios de prova suficientes para aferir da ilegalidade do ato tributário sub judice, os quais não foram tampouco contestados pela administração tributária ou pela Fazenda Pública, não merece qualquer censura a atuação do Tribunal a quo;

12.ª Impunha-se à administração tributária que tivesse indagado sobre a legalidade da autoliquidação em apreço, no procedimento de reclamação graciosa, solicitando os elementos necessários e fiscalizando em pormenor no sentido da descoberta da verdade material, o que não aconteceu (cf. artigo 58.º da LGT; artigo 266.º da CRP; PEDRO VIDAL MATOS in “O Princípio Inquisitório no Procedimento Tributário”, Coimbra Editora, 1ª Edição, Outubro de 2010, pp. 48, 50 e 53; DIOGO LEITE DE CAMPOS et. al., in “Lei Geral Tributária Comentada e Anotada”, 3º Edição, 2003, anotação 3; JOSÉ PIRES, et. al., in “Lei Geral Tributária – Comentada e Anotada”, Almedina, 2015, p. 592; acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 27.10.2016 (proc. n.º 00957/09.6BEVIS));

13.ª A Recorrente não cumpriu o ónus da prova que sobre si recaía de provar em que medida os elementos juntos aos autos não permitem alcançar o valor referido pelo Recorrido a título de juros contabilizados em duplicado, tampouco logrou provar que o Tribunal valorou indevidamente a prova produzida ou sequer que a mesma se revelava insuficiente para decidir como decidiu e, por isso, não se aceita que esta se escuse de investigar se o ato tributário sub judice é o ou não legal, transferindo o seu dever de investigação para o Tribunal, pelo que deverá ser mantida a sentença recorrida;

14.ª Não se verifica a alegada violação ao princípio da especialização dos exercícios, segundo o qual os rendimentos/gastos são imputados ao período de tributação em que sejam obtidos/suportados (cf. artigo 18.º, n.º 1 do Código do IRC e acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 02.04.2008 (proc. n.º 0807/07)) pois o artigo 18.º, n.º 2 do Código do IRC permite a imputação do valor declarado em duplicado em 2003 ao exercício de 2004, já que esta duplicação era manifestamente desconhecida à data do encerramento das contas do exercício de 2003 (cf. artigo 59.º das alegações de recurso da Recorrente);

15.ª Ainda que não se aplique o artigo 18.º, n.º 2 do Código do IRC, o que não ocorre in casu, tem entendido a jurisprudência que o princípio da especialização dos exercícios deve ser compatibilizado com o princípio da justiça, prevalecendo o segundo desde que não tenham havido omissões voluntárias ou intencionais com vista à transferência de resultados entre exercícios (cf. artigo 55.º da LGT; artigo 266.º, n.º 2 da CRP; acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 25.06.2008 (proc. n.º 0291/08); DIOGO LEITE DE CAMPOS et. al, in “Lei Geral Tributária anotada”, 3.ª edição, pp. 242 e 243);

16.ª Entende a doutrina e a jurisprudência que em situações como a sub judice em que o contribuinte ficou prejudicado pelo seu próprio erro – i.e. ter declarado rendimento em excesso e, por conseguinte, suportado indevidamente imposto –, não tendo ocorrido prejuízo para a administração tributária, a qual recebeu imposto em excesso, e não se verificando qualquer omissão voluntária ou intencional, deverá admitir-se a correção por ser manifestamente injusta a manutenção do ato, à luz do princípio da justiça, o qual prevalece face ao princípio da especialização dos exercícios (cf. acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 13.11.1996 (recurso n.º 20.456), 23.02.2000 (recurso n.º 24.039), 25.06.2008 (proc. n.º 0291/08), 05.02.2009 (proc. n.º 01648/02), 25.01.2006 (recurso n.º 0830/05) e 14.03.2018 (proc. n.º 0807/07), decisão arbitral de 31.03.2017 (proc. n.º 422/2016-T));

17.ª O princípio da especialização dos exercícios deve compatibilizar-se igualmente com o princípio da tributação pelo lucro real, e in casu, a duplicação de proveitos incorrida por lapso em 2003 não traduz o rendimento real obtido nesse exercício, pelo que deverá afastar-se o primeiro em prol do segundo (cf. artigo 104.º, n.º 2 da CRP; acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 14.02.2019 (proc. n.º 74/01.7 BTLRS));

18.ª Não merece, por isso, censura a sentença recorrida quando afirma que os princípios da justiça e da tributação pelo lucro real deverão prevalecer sobre o princípio da especialização dos exercícios porquanto resulta provado que a duplicação de proveitos decorreu de um erro informático em virtude da operação de fusão, o qual apenas foi identificado no exercício de 2004 e que prejudicou unicamente o Recorrido, pelo que ao não se admitir a sua correção ficaria o mesmo prejudicado em beneficio, injustificado, da administração tributária (cf. p. 9 da sentença);

19.ª Quanto à necessidade de apresentação de reclamação graciosa do ato de autoliquidação de IRC do exercício de 2003 (cf. artigo 131.º do CPPT), tendo em conta que o lapso foi identificado em 2004 e que o Recorrido pretende a correção do valor tributável, da matéria coletável e do IRC da declaração do exercício de 2004, é por demais evidente que bem andou o mesmo ao apresentar reclamação graciosa contra a autoliquidação do exercício de 2004, isto porque a duplicação de proveitos ocorreu no exercício de 2003, por ter sido considerado duas vezes o mesmo valor a título de proveitos e, no exercício de 2004, a título de “correções relativas a exercícios anteriores”;

20.ª Acresce que, cabia à administração ter efetuado, sem ser necessário qualquer impulso do Recorrido, a correção da duplicação de proveitos à luz dos princípios da justiça e da tributação pelo lucro real, ex. vi. artigos 55.º da LGT, 266.º, n.º 2 da CRP e 104.º, n.º 2 da CRP (cf. JOSÉ PIRES, et. al., in “Lei Geral Tributária – Comentada e Anotada”, Almedina, 2015, p. 592);

21.ª Ainda que se assim não se entenda, o que apenas por dever de prudente patrocínio se cogita, sempre deverá entender-se que se admite que a correção ocorra no exercício de 2004, à luz do princípio da justiça, conforme supra referido;

22.ª Isto posto, deverá manter-se a sentença recorrida porquanto é legal e ser julgado improcedente o recurso da Recorrente.

Por todo o exposto, e o mais que o ilustrado juízo desse Tribunal suprirá, deve o presente recurso ser julgado improcedente, por não provado, e, nessa medida, manter-se a sentença recorrida, assim se cumprindo com o DIREITO e a JUSTIÇA!”


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O Digno Magistrado do Ministério Público (DMMP) neste Tribunal Central Administrativo Sul emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

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Colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

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II - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

“Com relevo para a decisão da causa, dão-se como provados os factos a seguir indicados:

A) A Impugnante, sucursal em Portugal do B. P., encontrava-se sujeita ao regime geral de IRC (cfr. Doc. 2 junto com a p.i.);

B) No âmbito da sua actividade, e no que respeita à rotina de periodificação dos juros, o registo contabilístico era diário e baseava-se no método “faz-desfaz”, ou seja, num dia regista-se o montante de juros, no dia seguinte, anula-se o referido montante e regista-se o novo valor correspondente àquele mais um dia de juros (cfr. artigo 14º da p.i., Docs. 5 a 11 e reiterado pelo depoimento da testemunha);

C) Em 31.10.2003, a Impugnante foi objecto de uma operação de fusão, na modalidade de entrada de activos para o então BN. – B. N., S.A. (posteriormente B. P. ,S.A. e actualmente integrado no S. T.), no âmbito da qual foi efectuada a migração de registos contabilísticos, sendo integradas milhares de contas na contabilidade da instituição beneficiária (cfr. artigo 10º da p.i., não controvertido, e reiterado pelo depoimento da testemunha);

D) No dia 03.11.2003, primeiro dia útil após migração de registos contabilísticos, o sistema informático não anulou a periodificação de juros do dia imediatamente anterior (cfr. artigo 14º c) da p.i., não controvertido; depoimento da testemunha);

E) O encerramento de contas do exercício de 2003 ocorreu na primeira semana de Janeiro de 2004 (depoimento da testemunha);

F) O erro informático que se faz menção na alínea D) antecedente foi detectado no decorrer do exercício de 2004, após uma revisão analítica/auditoria interna para apuramento de origem de saldos contra-natura, tendo-se procedido a movimentos de regularização por contrapartida da conta #6718 – Custos de exercícios anteriores, no total de € 288.978,58 (cfr. artigo 11º, 15º e 16º da p.i.; Docs. 4 a 11 e depoimento da testemunha);

G) Em 31.05.2005, a Impugnante apresentou declaração Modelo 22 do IRC referente ao exercício de 2004, fazendo constar:

- Da linha 224 (a acrescer) – “Correcções relativas a exercícios anteriores” o montante de € 494.945,80, correspondente ao saldo total da conta #6718 – Custos de exercícios anteriores (que, conforme resulta da alínea antecedente inclui o montante de € 288.978,58);

- Dos quadros 09 e 10, o seguinte:

(Cfr. Docs. 2 e 3 juntos com a p.i.).

H) Em 26.05.2006, a Impugnante apresentou reclamação graciosa junto da Direcção de Finanças de Lisboa, da autoliquidação de IRC referente a 2004 (cfr. fls. 83 e seguintes do PAT apenso).


***

A decisão recorrida consignou como factualidade não provada:

“Inexistem factos não provados com interesse para a decisão da causa.”


***

A motivação da matéria de facto constante da sentença recorrida é a seguinte:

“Quanto aos factos provados, a convicção do Tribunal fundou-se na análise da prova documental constante dos autos e do PAT apenso, conforme especificado em cada uma das alíneas supra, bem como no depoimento da testemunha E. J. C. G.

A testemunha, empregado bancário, técnico na área da fiscalidade, a exercer funções há 10 anos, mostrou conhecimento da actividade da Impugnante, dos procedimentos contabilísticos utilizados, bem como da operação de fusão a que foi sujeita, depondo de forma espontânea e que ao Tribunal mostrou ser credível.

O seu depoimento serviu para melhor explicitar o tratamento contabilístico dado à periodificação dos juros, reforçando e corroborado os factos elencados nas alíneas B) a F) supra.”


***

III-FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO


In casu, a Recorrente, não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida contra o ato de indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada do ato de autoliquidação de IRC, referente ao exercício de 2004.

Em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso.

Assim, ponderando o teor das conclusões de recurso cumpre aferir se o Tribunal a quo:

Ø Incorreu em erro de julgamento de facto, por não ter ponderado factualidade reputada relevante para a lide e bem assim por ter valorado erroneamente a prova produzida nos autos, competindo, nessa medida, aferir do preenchimento dos requisitos consignados no artigo 640.º do CPC;

Ø Ao decidir pela anulação do ato incorreu em violação do princípio do inquisitório;

Ø Incorreu em erro de julgamento, por errónea interpretação dos pressupostos de facto e de direito, ao preterir o consignado no artigo 131.º do CPPT, e o princípio da especialização de exercícios consignado no artigo 18.º do CIRC.

Comecemos, então, pelo erro de julgamento de facto.

A Recorrente, convoca, in casu, um aditamento por complementação ao probatório e sindica a errada valoração quanto à assunção da contabilização, em duplicado, dos proveitos.

Para o efeito, importa, então, começar por aferir se a Recorrente cumpriu os requisitos consignados no artigo 640.º do CPC.

Preceitua o aludido normativo que:

“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”

Com efeito, no que diz respeito à disciplina da impugnação da decisão de 1ª. Instância relativa à matéria de facto, a lei processual civil impõe ao Recorrente um ónus rigoroso, cujo incumprimento implica a imediata rejeição do recurso, quanto ao fundamento em causa. Ele tem de especificar, obrigatoriamente, na alegação de recurso, não só os pontos de facto que considera incorretamente julgados, mas também os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizadas, que, em sua opinião, impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da adotada pela decisão recorrida(1).

Sendo que quanto à prova testemunhal tem de existir uma indicação exata das passagens de gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, porquanto além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova.

In casu, conforme se extrai do teor das alegações recursivas e suas conclusões, dimana que a Recorrente não cumpriu o ónus a que estava adstrita.

Senão vejamos.

A Recorrente começa por evidenciar que deveria constar como provado que a Recorrida não reclamou da autoliquidação de 2003, face ao alegado no artigo 37.º da contestação.

Ora, pese embora a Recorrente evidencie um aditamento ao probatório e convoque a redação que o mesmo deve contemplar, a verdade é que não convoca qual o meio probatório que permite alicerçar tal factualidade. Acresce que, do teor do artigo 37.º da contestação apenas se retira uma interrogação sem qualquer alusão ou remissão para o meio probatório atinente ao efeito.

Ademais e sem embargo do exposto, o juiz não está vinculado à fixação de toda a factualidade alegada na sua petição inicial, mas, tão-só, a valorar e ponderar aquela que tenha relevo para a presente lide. Noutra formulação, dir-se-á que nem todos os factos alegados pelas partes, ainda que provados, carecem de integrar a decisão atinente à matéria de facto, porquanto apenas são de considerar os factos cuja prova (ou não prova) seja relevante face às várias soluções plausíveis de direito. Por outro lado, cumpre distinguir entre factos provados e meios de prova, sendo que uns não se confundem com os outros.

Com efeito, cabe ao julgador formular livremente a sua convicção, sopesando as provas apresentadas pelas partes, dando a cada uma o relevo que entender que lhe cabe, que pode ser total ou nenhum, assim como às razões e argumentos formulados pelas partes.

Sendo que, no caso vertente, e conforme veremos em sede própria, a assunção de tal factualidade em nada permitiria retirar os efeitos almejados pela Recorrente, carecendo, por isso, da competente relevância em termos de acervo fático dos autos.

Prosseguindo.

Ainda no domínio do erro de julgamento de facto, advoga que a prova junta aos autos não permite concluir pela contabilização em duplicado dos proveitos, porquanto, conforme já aduzido na contestação, os elementos carreados são insuficientes, não permitindo a validação dos valores em causa.

Mas também nesta sede, não há o cumprimento dos requisitos contemplados no artigo 640.º do CPC, porquanto pese embora convoque uma errada valoração da factualidade, aludindo ao já alegado em sede de contestação, concretamente ao vertido em 39.º, a verdade é que não requer, nesse concreto particular, qualquer aditamento, alteração ou supressão ao probatório, não evidenciando qualquer alínea do acervo que careça de correção e concreta alusão aos meios probatórios que permitam alicerçar o aduzido erro.

Aduza-se, em abono da verdade, que não são permitidos, recursos genéricos contra a matéria de facto assente pelo tribunal recorrido: o recurso não pode ser genérico atacando a matéria de facto no seu conjunto sem precisar os pontos concretos, nem pode ser genérico apontando para a prova em geral produzida no processo(2).

Não sendo suficiente, neste e para este efeito, as evidências contempladas em F) das conclusões, sem, de resto, se verificar qualquer concretização e densificação, conforme exigência legal.

Note-se, ademais, que a prova constante no probatório foi fixada mediante a concatenação de duas provas, concretamente, prova testemunhal e prova documental, sendo que no domínio da primeira, a Recorrente nada controverte, não sindicando, por reporte contextualizado e pormenorizado aos depoimentos legais, porque motivo se teria de valorar distintamente a prova, e mais ainda qual o sentido que deveria ficar plasmado no probatório, o que, per se e sem mais, implicaria a manutenção do acervo nos exatos moldes contemplados.

Questão diferente é se, face à matéria contemplada no probatório, era possível decidir no sentido apontado pelo Tribunal a quo, contudo tal já radica em erro de julgamento por errónea interpretação dos pressupostos de facto e de direito, e que será apreciado ulteriormente.

E por assim ser, não se verifica o apontado erro de julgamento de facto.

Uma vez dirimida a questão e estabilizada a matéria de facto, vejamos, então, se o Tribunal a quo incorreu em violação do princípio do inquisitório.

Como já evidenciado anteriormente, a Recorrente ajuíza que tendo sido convocado, na decisão recorrida, um deficit de instrução, mormente, de elementos carreados aos autos, o Tribunal a quo estava investido de indagar, diligenciar e instruir em ordem, desde logo, ao inquisitório, contemplado no artigo 99.º da LGT e 13.º do CPPT.

No entanto, assim o não entendemos, afigurando-se, inclusive, que tal esteira de entendimento assenta, desde logo, em confusão conceptual. Vejamos, porquê.

Comecemos por convocar, neste âmbito, o quadro normativo que para os autos releva.

Preceitua, desde logo, o artigo 99.º da LGT sob a epígrafe “Princípio do Inquisitório e direitos e deveres de colaboração processual” que:

“1 - O tribunal deve realizar ou ordenar oficiosamente todas as diligências que se lhe afigurem úteis para conhecer a verdade relativamente aos factos alegados ou de que oficiosamente pode conhecer.

2 - Os particulares estão obrigados a prestar colaboração nos termos da lei de processo civil.

3 - Todas as autoridades ou repartições públicas são obrigadas a prestar as informações ou remeter cópia dos documentos que o juiz entender necessários ao conhecimento do objeto do processo.”

Mais importa ter presente o disposto no artigo 13.º, nº1, do CPPT, que relativamente aos “poderes do juiz” preceitua:

“1 - Aos juízes dos tribunais tributários incumbe a direção e julgamento dos processos da sua jurisdição, devendo realizar ou ordenar todas as diligências que considerem úteis ao apuramento da verdade relativamente aos factos que lhes seja lícito conhecer.”

É pacífico na jurisprudência e na doutrina o entendimento de que os citados normativos, conferem ao Juiz o poder de ajuizar da necessidade ou não da produção das provas oferecidas sobre os factos alegados, pois mesmo que se considerem como factos instrumentais nada impede que o Tribunal indague sobre eles.(3)

Com efeito, como doutrinado no Acórdão do STA, proferido no processo nº 0388/13, de 23 de outubro de 2013: “não impondo a lei ao juiz que proceda sempre à produção dos meios de prova oferecida pelas partes, antes estabelecendo que este pode e deve dispensá-la se considerar que pode conhecer imediatamente do pedido (cfr. o artigo 113.º do CPPT)” a verdade é que atento “o princípio do inquisitório, a omissão de diligências de prova quando existam factos controvertidos que possam relevar para a decisão da causa, pode afectar o julgamento da matéria de facto, acarretando, consequentemente, a anulação da sentença por défice instrutório.”

No entanto, se é certo que o inquisitório é um poder/dever do Juiz a verdade é que o mesmo não pode desvirtuar o ónus probatório que existe, a montante, sobre as partes.

E de facto, in casu, não aquiescemos que se verifica a arguida preterição do inquisitório, desde logo, porque não se afigura que os autos padeçam de qualquer deficit que pudesse demandar uma atuação distinta por parte do julgador, e a requerer diligências adicionais. Aliás, a Recorrente nem, tão-pouco, densifica, em concreto, quais seriam as diligências reputadas em falta e que levariam a decisão contrária, apenas faz menção genérica à requisição de elementos adicionais e a uma, eventual, perícia sem, contudo, especificar o seu âmbito e objeto.

Com efeito, atentando na decisão recorrida nada permite inferir que o Tribunal a quo tenha equacionado um deficit que merecesse uma postura ativa. Contrariamente ao sustentado pela Recorrente, nada permite concluir no sentido da insuficiência probatória, sendo que as dúvidas e incompletudes a que a decisão faz alusão circunscrevem-se na esfera e posição da AT, não demonstrando, por conseguinte, a mesma qualquer incerteza quanto ao por si ajuizado. De resto, o probatório espelha tais asserções, as quais-conforme veremos adiante- legitimam a clara e acertada fundamentação vertida na decisão sindicada, e a manter a cominação de anulabilidade.

Por forma a atestar-se o supra expendido, atente-se, designadamente, na seguinte transcrição da decisão recorrida:

“Contudo, e se bem entendemos a tese da Fazenda Pública, embora reconhecendo genericamente o erro de contabilização de 2003, manifesta dúvidas quanto ao montante de € 288.978,58 e à duplicação dos proveitos, alegando que há divergências entre os lançamentos e os extractos e que há várias insuficiências que não possibilitam essa confirmação já que, a título de exemplo, os extractos não têm títulos, os lançamentos têm todos o mesmo código e apenas se apresenta os extractos da conta 8.

Ora, quanto a este conspecto, importa não esquecer que se está perante a convergência e integração de contabilidades de 2 bancos, que agregam milhares de contas (como referiu a testemunha da Impugnante), acompanhada da complexidade jurídica associada à própria operação societária, bem como à tecnicidade do sistema informático, o que de si, envolve uma dificuldade acrescida na disponibilização e compreensão da contabilidade.

Não obstante, da documentação junta – no qual se incluem alguns extractos de contas –, é perceptível ao Tribunal o método “faz-desfaz” e o não estorno de determinados montantes, conclusão para a qual não se demonstra essencial quer o título das contas, quer os códigos de lançamentos.

Acresce, por outro lado, que a AT não coloca em causa a contabilidade da Impugnante.”

É certo que mais adiante a decisão recorrida sustenta que “[a] AT parece referir-se mais à falta de elementos, mas nesse aspecto deveria ter solicitado o que entendesse relevante e fiscalizado em pormenor em sede de reclamação graciosa ou acção de inspecção, detendo plena legitimidade para o efeito.”

Para depois concluir que “[a] Fazenda Pública não pode escusar-se é a corrigir um erro na autoliquidação, escudando-se no facto de não ter informação contabilística suficiente, tanto mais que está obrigada a actuar de acordo com o princípio da legalidade, da boa fé e do inquisitório.”

Mas a verdade é que, se por um lado, tais alegações em nada permitem almejar o efeito pretendido pela AT, por outro lado, anuímos, inteiramente, com o seu teor, e isto porque “O princípio do inquisitório, não pode servir para as partes se eximirem do seu ónus probatório. A intervenção ativa do julgador tem de ser sempre balizada pela igualdade processual das partes, e com o respeito pela justa repartição do ónus da prova.(4)

De relevar, in fine, que não logra provimento a argumentação da Recorrente no sentido de que “não se pode aceitar a simples invocação dos artigos 58.º da LGT e 100.º do CPPT” para fundar a procedência, porquanto, como é bom de ver, de uma leitura atenta da decisão recorrida não se vislumbra, de todo, uma fundamentação conclusiva no sentido apontado pela Recorrente, bem pelo contrário.

E por assim ser, improcede, na íntegra, a preterição do inquisitório.

Vejamos, ora, se procede o erro de julgamento por errada apreciação dos pressupostos de facto e de direito, por preterição, desde logo, do consignado no artigo 131.º do CPPT, e do princípio da especialização de exercícios consignado no artigo 18.º do CIRC.

A Recorrente, neste particular, advoga que o Tribunal a quo, incorreu em novo erro de julgamento, concretamente na interpretação deste princípio à luz da situação em apreço, e bem assim no regulado no artigo 131.º do CPPT.

Concretiza, neste particular, que a Recorrida não poderia ter corrigido no exercício de 2004, como o fez, mas antes deveria ter lançado mão do mecanismo previsto artigo 131.º do CPPT, ou seja, a impugnação da autoliquidação de IRC de 2003, com prévia apresentação de reclamação graciosa.

Concluindo, nessa medida, que tendo a duplicação de proveitos ocorrido em 03 de novembro de 2003, face ao consignado no artigo 18.º do CIRC e no princípio da especialização dos exercícios, a Recorrida teria que reclamar graciosamente da autoliquidação de IRC de 2003, e caso não fosse atendida a sua pretensão, vir subsequentemente, impugnar à luz do previsto no artigo 131.º do CPPT.

Dissente a Recorrida relevando, desde logo, que não procede a argumentação da Recorrente atinente à necessidade de apresentação de reclamação graciosa do ato de autoliquidação de IRC do exercício de 2003, e isto porque, por um lado, o lapso foi identificado em 2004 e, por outro lado, o Recorrido pretende a correção do valor tributável, da matéria coletável e do IRC da declaração do exercício de 2004.

Vejamos, então.

Ab initio, e para efeitos de apreciação da questão inerente à preterição do meio consignado no artigo 131.º do CPPT, é premente aquilatar o que resulta do acervo fático dos autos.

Do probatório resulta que, no âmbito da sua atividade, e no que respeita à rotina de periodificação dos juros, a Recorrida adota o registo contabilístico diário, consubstanciado no método “faz-desfaz”, ou seja, num dia regista o montante dos juros, no dia seguinte, anula o referido montante e procede a novo registo do valor correspondente a mais um dia de juros.

Resultando, no atinente ao exercício de 2003, que a 31 de outubro de 2003, a Recorrida foi objeto de uma operação de fusão, na modalidade de entrada de ativos para o, à data, B. – B., S.A., no âmbito da qual foi efetuada a migração de registos contabilísticos, com a inerente integração de milhares de contas na contabilidade da instituição beneficiária.

Contudo, por erro do sistema informático, no primeiro dia útil após a migração de registos contabilísticos, concretamente, no dia 03 de novembro de 2003, não foi, como regra, anulada a periodificação de juros do dia imediatamente anterior, sendo que o encerramento de contas do exercício de 2003 ocorreu na primeira semana de Janeiro de 2004.

Dimanando, outrossim, provado que tal erro informático apenas foi constatado no decurso do exercício de 2004, na sequência de uma revisão analítica/auditoria interna para apuramento de origem de saldos contra-natura, razão pela qual a Recorrida procedeu a movimentos de regularização por contrapartida da conta #6718 – Custos de exercícios anteriores, no total de € 288.978,58.

Tendo, ulteriormente, a 31 de maio de 2005, apresentado a competente declaração Modelo 22 do IRC referente ao exercício de 2004, nela declarando, designadamente, na linha 224 (a acrescer) – “Correcções relativas a exercícios anteriores” o montante de €494.945,80, correspondente ao saldo total da conta #6718 – Custos de exercícios anteriores, o qual englobava o montante de € 288.978,58.

Promanando, in fine, que após constatação do erro cometido no acréscimo supra identificado, apresentou a 26 de maio de 2006, reclamação graciosa junto da Direção de Finanças de Lisboa, da autoliquidação de IRC, referente ao exercício de 2004.

Logo, como é bom de ver, a Recorrente ao pretender expurgar o acréscimo de €288.978,58 declarado, no quadro 07, linha 224, constante na Declaração de Rendimentos Modelo 22 de IRC, do exercício de 2004, teria de lançar mão da reclamação de autoliquidação referente ao exercício de 2004 e não de 2003.

Noutra formulação, dir-se-á que se a Recorrida aquando da deteção do erro procede à sua regularização contabilística nas contas 5 e 8, e regista o valor de €288.978,58 na conta 6718,o qual, por sua vez, é anulado por via do acréscimo na linha 224, levando a uma inequívoca duplicação de proveitos, então essa mesma retificação, concretamente, a visada anulação da duplicação de proveitos, ter-se-á de obter por via da reclamação da autoliquidação desse exercício e não do anterior.

E por assim ser, tendo a Recorrida optado por esse expediente processual, inexiste qualquer omissão ou errónea adequação do meio atinente ao efeito visado.

Questão diferente-e também sindicada e arguida pela Recorrente- é se ocorrendo o erro informático no exercício de 2003 a admissão da regularização contabilística apenas poderia ser materializada no mesmo, acarretando, nessa medida, a anulação decretada pelo Tribunal a quo, uma violação do princípio da especialização dos exercícios.

O Tribunal a quo convocando jurisprudência dos Tribunais Superiores que reputou aplicável ao caso vertente, esteou a procedência relevando, designadamente, o seguinte:

“Com efeito, o princípio da especialização de exercícios não pode prevalecer sobre o princípio da justiça, nem mesmo sobre o princípio da tributação pelo lucro real, conforme constitucionalmente consagrado no artigo 104º, nº 2 da CRP, tanto mais que, no caso vertente, fica comprovado que a duplicação de proveitos decorreu de erro de processamento informático numa situação específica, de migração de registos contabilísticos, por efeito de uma operação de fusão/entrada de activos.

Tendo tal lapso sido apenas conhecido no decurso do exercício de 2004, após o encerramento de contas de 2003 [cfr. alíneas E) e F) do probatório], tal é motivo bastante para justificar o registo na conta #6718 – “custos de exercícios anteriores”, em 2004.

Face à factualidade assente e ao que vem sendo dito, não se vislumbra qualquer intenção ou omissão voluntária por parte da Impugnante tendente à transferência de resultados entre exercícios, mas apenas o desígnio de corrigir um erro.

Caso não seja corrigido tal erro, ficaria prejudicado o contribuinte em benefício, sem causa, da administração tributária, o que não é legalmente admissível.”

E, mais uma vez, entende-se que a decisão recorrida não merece a censura que lhe é endereçada.

Mas vejamos porque assim o ajuizamos, começando por atentar no quadro normativo e nos considerandos que reputamos relevantes para o caso sub judice.

Por imposição constitucional, a tributação das pessoas coletivas obedece ao princípio da tributação do rendimento real efetivo, ou seja, o imposto deve incidir sobre o rendimento efetivamente obtido (artigo 104.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa - CRP).

Em obediência a este princípio, determina-se no artigo 16.º, n.º 1 do CIRC que a matéria tributável é, por regra, determinada com base na declaração do contribuinte, sem prejuízo do controlo que a Administração Tributária (AT) venha a fazer da mesma.

O IRC incide, então, sobre o “lucro das sociedades comerciais”, sendo que, conforme estabelece o n.º 2 do artigo 3.º do CIRC “o lucro consiste na diferença entre os valores do património líquido no fim e no início do período de tributação, com as correcções estabelecidas no código”.

O lucro tributável das pessoas coletivas, de acordo com o artigo 17.º do CIRC, é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do exercício e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas nesse mesmo período e não refletidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos daquele Código.

Mais se refira, com particular interesse para os presentes autos, que vigora, neste âmbito, o princípio da especialização dos exercícios, ou seja, “os proveitos e custos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao exercício que digam respeito”, sendo que “as componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a exercícios anteriores só são imputáveis ao exercício quando na data de encerramento das contas daquele a que deveriam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas” (cfr. artigo 18.º, n.ºs 1 e 2 do CIRC).

Conforme refere Rui Duarte Morais, em sede de IRC, “[h]á, (…), que dividir a vida da empresa em períodos, A cada um desses períodos deverão ser imputados determinados ganhos e perdas (incluindo variações patrimoniais), dos quais decorrerá o cálculo do lucro desse exercício. (…) A imputação de um proveito ou custo a certo exercício obedece a um critério económico (e não a um critério financeiro), ou seja, as operações nele efectuadas afectam o respectivo resultado, independentemente do recebimento ou pagamento do respectivo preço ou outra contrapartida. Contabilizam-se créditos e débitos e não pagamentos e recebimentos".(5)

Para os efeitos deste preceito legal, o exercício corresponde ao ano fiscal, o qual, por seu turno, coincide com o ano civil.(6)

Como sobredito, o princípio da especialização dos exercícios encontra-se consagrado no artigo 18.º do CIRC e tem uma densidade vinculativa elevada, não tolerando, fora dos casos expressamente consignados na lei, qualquer margem de manobra do contribuinte na afetação temporal dos movimentos económico-financeiros da empresa, devendo, no entanto, ser sopesado com os demais princípios constitucionais basilares, mormente, da justiça.

Vistos os considerandos de direito que relevam para o caso vertente, regressemos ao caso dos autos.

In casu, não há dúvida que ocorreu um erro do sistema informático da Recorrida, adveniente da migração de registos contabilísticos na sequência do processo de fusão/entrada de ativos para o B., SA, o qual não desfez a periodificação de juros do dia imediatamente anterior, e que acarretou uma duplicação de proveitos.

Ajuíza-se, desde já, que o erro em contenda, conforme resulta do probatório, -não impugnado eficazmente- sendo totalmente imprevisível e apenas cognoscível no exercício subsequente, é subsumível na regra contemplada no nº2 do normativo que vimos analisando.

Como doutrinado, no Aresto do STA a propósito da dimensão conferida ao consignado no nº2 do citado normativo que “[o] legislador complementa depois esta regra com uma regra especial adicional - apta a imprimir a flexibilidade necessária para neutralizar injustiças flagrantes -, segundo a qual se admite que possam ainda ser imputados a um exercício componentes positivas ou negativas respeitantes a exercícios anteriores, desde que, na data de encerramento das contas dos exercícios a que deveriam ser imputadas, as mesmas sejam imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas (actual n.º 2 do artigo 18.º do CIRC). Esta regra adicional confirma uma das dimensões essenciais do princípio da especialização dos exercícios: a de que só podem ser imputados a um exercício proveitos e gastos efectivos ou previsíveis, excluindo-se os hipotéticos, incertos e imprevisíveis, que, a ocorrerem, hão-de ser imputados nesse respectivo exercício.” (destaques e sublinhados nossos).

In casu, a duplicação de proveitos motivada por um erro informático, totalmente involuntário e imprevisível, e apenas cognoscível no exercício subsequente, legitima a imputação do valor declarado em duplicado em 2003, no exercício de 2004.

Aliás, “[a] solução que o direito contabilístico aplica, consiste em realizar um acerto ao exercício posterior conforme vimos anteriormente (quando o erro é considerado materialmente relevante), ou quando o erro se demonstra imaterial este é consentido, isto é, a contabilidade nada faz em relação ao erro, por este não ter impactos materiais nas suas contas.(7)

Com efeito, se o erro só é detetado quando o exercício de 2003 já se encontra encerrado, e já no decurso de 2004, inferindo-se, portanto, que após aprovação e publicação das demonstrações financeiras, então, as correções desses erros materiais teriam de ser efetuadas no período corrente, ou seja, 2004. Note-se que, existindo erros contabilísticos nas demonstrações financeiras de períodos anteriores, que sejam materialmente relevantes, a correção desses erros materiais deve ser efetuada nas demonstrações financeiras do período corrente, através da reexpressão retrospetiva.

De resto, e sem embargo de todo o exposto, sempre a argumentação da Recorrente não poderia lograr o efeito almejado, porquanto, como já densificado anteriormente, o aludido princípio da especialização dos exercícios deve ser sopesado com o princípio da justiça, sendo que numa situação em que resulta provada a duplicação de proveitos e que a única forma de repor a verdade e eliminar a dupla tributação é a assunção da regularização da contabilização no exercício de 2004, e consequente expurgo no quadro 221, então ter-se-á de validar a procedência decretada pelo Tribunal a quo.

Ademais, no caso vertente, não se verifica sequer qualquer interesse público na procedência da pretensão da AT, não relevando o aduzido em Y) e Z)- desde logo, face aos considerandos já tecidos quanto ao 131.º do CPPT- porquanto, in casu, não está em causa a obtenção de um imposto devido, inexistindo, como visto, qualquer intuito de defraudar o Estado, sendo certo que a manutenção dos valores autoliquidados traduz, tão-só, um prejuízo para a esfera jurídica da Recorrida.

Note-se que, inexiste uma falta de declaração dos proveitos no exercício de 2003, mas sim uma duplicação de tributação dos mesmos, pretendo a Recorrida apenas repor a verdade, eliminando-os.

Acresce que, “[a] salvaguarda do interesse público, ao nível tributário, não passa ou não se reduz ao interesse na mera arrecadação de receitas, configurando-se, sim, como salvaguarda desse interesse, uma atuação em respeito pelos princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da celeridade e em respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributários (cfr. art.º 55.º da LGT.(8)

Com efeito, como doutrinado no Aresto do STA, proferido no processo nº 0716/13, de 14 de março de 2018:

“O princípio da especialização dos exercícios, do qual resulta uma segmentação da vida das empresas em períodos de certo modo independentes entre si, correspondentes ao ano civil, tem em vista tributar a riqueza gerada em cada exercício, respondendo também a necessidades de natureza económica, contabilística e de gestão.

A periodização anual do imposto implica que tanto os rendimentos como os gastos (e as variações patrimoniais fiscalmente relevantes) sejam imputados a cada período de tributação. Esta imputação resulta essencialmente da aplicação das normas contabilísticas, justamente porque o legislador entendeu que as regras de periodização aí previstas oferecem um sistema coerente, fiável e eficaz também para efeitos fiscais (Vide António Rocha Mendes, IRC e as Reorganizações Empresariais, ed. da Universidade Católica, pag. 72.).(…)

Constitui no entanto jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal que a rigidez deste princípio tem de ser colmatada ou temperada com a invocação do princípio da justiça, nas situações em que, estando já ultrapassados todos os prazos de revisão do acto tributário e não havendo prejuízo para o Estado, se deve evitar cair numa injustiça não justificada para o administrado – vide, neste sentido, acórdãos da Secção de Contencioso Tributário de 19.11.2008, recurso 325/08, de 02.04.2008, recurso 807/07, de 19.05.2010, recurso 214/07, de 25.06.2008, recurso 291/08, de 09.052012, recurso 269/12 e de 02.03.2016, recurso 1204/13.(…)

Numa situação destas, em que não seja possível a “correcção simétrica”, por razões de tempestividade, a doutrina (Neste sentido Lei Geral Tributária Anotada, Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, 4ª edição, Encontro da Escrita, pag. 454 e Rui Duarte Morais, ob. citada, pag. 70.) e a jurisprudência supracitadas vêem afirmando que o custo, ainda que indevidamente contabilizado, deve ser aceite, nomeadamente quando a respectiva imputação não tenha resultado de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar transferência de resultados entre exercícios.

De facto, como ficou sublinhado no referido Acórdão 214/07, «no caso do referido art. 18, n.º 1, do CIRC resulta uma vinculação para a Administração, que, em regra, deve aplicar o princípio da especialização dos exercícios na sua actividade de controle das declarações apresentadas pelos contribuintes.

Mas, o exercício deste poder de controle, predominantemente vinculado, pode conduzir a uma situação flagrantemente injusta e, nessas situações, é de fazer operar o princípio da justiça, consagrado nos arts. 266, n.º 2, da CRP e 55 da LGT, para obstar a que se concretize essa situação de injustiça repudiada pela Constituição.

Na ponderação dos valores em causa (por um lado o princípio da especialização dos exercícios que é uma regra legislativamente arbitrária de separação temporal, para efeitos fiscais, de um facto tributário de duração prolongada e, por outro lado, o princípio da justiça, que reflecte uma das preocupações nucleares de um Estado de Direito), é manifesto que, numa situação de incompatibilidade se deve dar prevalência a este último princípio.»

Neste contexto haveremos de concluir que serão de considerar anuláveis, por vício de violação de lei, actos de correcção da matéria tributável que, como no caso subjudice, conduzam a situações injustas deste tipo.

Pelo que é de aceitar, para efeitos fiscais, a contabilização efectuada pela recorrida já que não estão alegados ou provados factos através dos quais se demonstre que houve a intenção deliberada de proceder à transferência de resultados de exercício ou de fuga à tributação.”

Destarte, transpondo a fundamentação expendida no Aresto citado, para o caso vertente, sempre se teria de propugnar pela anulação do ato, porquanto a AT teria em seu poder um imposto a que manifestamente não teria direito, o que conduz a uma situação flagrantemente injusta.(9)


De relevar, ainda neste conspecto, que carece de qualquer relevância, donde pronúncia, o expendido em M) a P), por mais não representarem que alegações teóricas e genéricas atinentes ao princípio visado.

Assim, tudo visto e ponderado, ter-se-á de validar o sentenciado pelo Tribunal a quo, no sentido da procedência do peticionado pela Recorrida, daí dimanando que ao lucro tributável declarado (€ 2.164.347,54) seja deduzido o montante de € 288.978,58, cifrando-se, nessa medida, a matéria coletável em €1.838.470,01, a coleta em €459.617,50, a derrama em €45.961,75 e o IRC a pagar de €368.340,85, com as devidas consequências legais, mormente, reembolso à Recorrida do montante pago em excesso.

***




IV. DECISÃO

Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SEGUNDA SUBSECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste Tribunal Central Administrativo Sul em:
NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO.

Custas pela Recorrente.
Registe. Notifique.


Lisboa, 25 de novembro de 2021

(Patrícia Manuel Pires)

(Cristina Flora)

(Luísa Soares)









1) António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5ª edição, pp 165 e 166; José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, CPC anotado, Volume 3º., Tomo I, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 2008, pág.61 e 62; Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª. edição, Almedina, 2009, pág.181; Vide, designadamente, Acórdão do TCA Sul, proferido no processo nº 6505/13, de 2 de julho de 2013.
2)Vide Acórdão do TCA Norte, proferido no processo nº 02324/04.9 BEPRT, datado de 31 de maio de 2012 e bem assim Aresto do TCA Sul, proferido no processo nº 618/10.3 BELRS de 07 de junho de 2018.
3) ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual, págs. 412 a 417.
4) Como aduzido no Aresto prolatado no processo nº 1478/06, de 14.11.2019, relatado pela, ora, Relatora.
5) Apontamentos ao IRC, Almedina, Coimbra, 2009, pág. 64
6) Vide, designadamente, o Acórdão do STA, proferido no processo n.º 0291/08, de 25.06.2008.
7)Sara Isabel Bonifácio Macedo, Os erros na contabilidade e a violação do Princípio da Especialização dos Exercícios, Faculdade de Direito, Escola do Porto, 2019, p.27, https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/30272/1/Disserta%C3%A7%C3%A3o-Sara%20Macedo.pdf.
8) In Acórdão do TCAS, proferido no processo nº 41/06, de 11.11.2021
9) Neste sentido, vide Diogo Leite Campos, e outros, LGT anotada, 3.ª edição, pp. 242, 243.