Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:01918/07
Secção:CT - 2.º JUÍZO
Data do Acordão:06/26/2014
Relator:CRISTINA FLORA
Descritores:PROVA LEGAL PLENA; DISPENSA DA AUDIÊNCIA PRÉVIA; CONCEITO DE DECLARAÇÃO DO CONTRIBUINTE; APROVEITAMENTO DO ACTO
Sumário:
I. Nos termos do disposto no art. 363.º, n.º 2 do Código Civil (C.C.) a escritura pública têm natureza de documento autêntico. Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora (art. 371.º, n.º 1 do C.C.). A prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto (art. 347.º do C.C.);

II. A dispensa de audição do contribuinte em caso de a liquidação se efectuar com base na sua declaração é admitida nos termos do n.º 2 do art. 60.º da LGT (in casu, na redacção anterior à Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro) sendo uma excepção à obrigatoriedade da audição dos contribuintes, prevista do n.º 1 daquele preceito legal;

III. Apenas é de dispensar a audição quando a liquidação for efectuada de acordo com os elementos factuais e jurídicos que decorre da declaração do contribuinte;

IV. A expressão “com base na declaração do contribuinte” não abrange todas e quaisquer declarações, mas apenas as prestadas pelo contribuinte no âmbito do procedimento tributário;


V. Uma escritura pública de compra e venda com base na qual é liquidado oficiosamente imposto de Sisa não pode servir de fundamento à dispensa do direito de audição com base no n.º 2 do art. 60.º da LGT;
VI. A omissão da audição do contribuinte, nos termos do art. 60.º da LGT constitui preterição de uma formalidade legal conducente à anulabilidade da decisão, a menos que, ao abrigo do princípio do aproveitamento do acto administrativo, seja manifesto que a decisão tributária em abstracto, não podia ser outra da que foi tomada no caso concreto, e por isso se impunha, o seu aproveitamento;

VII. A possibilidade de aplicação do princípio do aproveitamento do acto deve ser apreciada casuisticamente através da análise das circunstâncias particulares do caso concreto;

VIII. Julgado verificado o erro sobre os pressupostos de facto na quantificação do imposto apurado, tanto basta para concluirmos que, in casu, está manifestamente afastada a possibilidade de aplicação do princípio do aproveitamento do acto, pois é manifesto que, se o contribuinte tivesse sido ouvido, tal erro poderia ter sido corrigido no âmbito do procedimento, ou seja, que significa que a decisão administrativa poderia ser outra, influenciada pela audição do contribuinte.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:


PROCESSO N.º 01918/07

I. RELATÓRIO

...– EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS E TURÍSTICOS, LDA, vem recorrer da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Beja, que julgou parcialmente improcedente a impugnação apresenta da liquidação de Sisa, no montante de 148.074,56€ e respectivos juros compensatórios no montante de 97.753,55€.

A Recorrente apresentou as suas alegações, e formulou as seguintes conclusões:

A) - Por escritura de cessão de créditos de 22 de Janeiro de 1997, a Caixa Económica Montepio Geral cedeu à impugnante o crédito no montante de Esc. 70.000.000$00 de que era titular sobre ....

B) - Em 17 de Abril de 1997, o Montepio Geral não era credor de qualquer quantia junto da vendedora dos prédios objecto da liquidação recorrida.

C) -A matéria tributável da liquidação recorrida não poderia ter incidido sobre o valor da hipoteca no montante de Esc. 70.000.000$00.

D) - A liquidação recorrida não deveria ter sido efectuada sem prévia notificação para efeitos de audição prévia.

E) - Com efeito, o valor tributável sobre que foi liquidada a sisa deveria ter sido expurgado do valor de Esc. 70.000.000$00, valor este que representava uma duplicação de uma só dívida ao Montepio Geral, questão esta não esclarecida pela recorrente e cuja sede própria para o efeito é o direito de audição prévia.

F) - O valor tributável sobre que foi liquidada a sisa deveria ter sido expurgado do valor de Esc. 70.000.000$00, valor este correspondente à cessão de créditos do Montepio Geral à ora recorrente, questão esta não esclarecida pela recorrente e cuja sede própria para o efeito é o direito de audição prévia.

G) - A douta sentença recorrida fez errada aplicação do n ° 2 do artigo 60 da LGT e da alínea h) do artigo 19° do Código da Sisa.
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A Recorrida, Fazenda Pública, não apresentou contra-alegações.
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Foram os autos a vista do Magistrado do Ministério Público que emitiu parecer no sentido de que não assiste razão à Recorrente, relativamente a inclusão do valor da hipoteca no preço, mas foi preterido o direito de audição prévia.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, considerando que a tal nada obsta.
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As questões a apreciar e decidir são as seguintes:

I. Aferir se a decisão recorrida enferma de erro de julgamento na parte em que decidiu não haver erro na determinação do valor tributável sujeito a imposto, face ao disposto na alínea h) do artigo 19.º do Código da Sisa - conclusões A) a C) e G);
II. Conhecer do invocado erro de julgamento da decisão recorrida, na parte em que entendeu que não se verificava a preterição de formalidade legal por violação do direito de audição prévia, violando-se o disposto no n ° 2 do artigo 60 da LGT - conclusões D) a G).

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Matéria de facto

1.1. A decisão recorrida deu como provada a seguinte matéria de facto:

“1) Como se verifica pelo ofício de 16/10/2002, constante de fls. 12 e ss. dos autos, a ora impugnante foi notificada para pagamento de liquidação oficiosa de sisa, respeitante a bens adquiridos por escritura de compra e venda realizada em 17/4/1997, no cartório notarial de Leiria- liquidação no montante global de €245.828,11 (€148.074,56 de imposto e o restante de juros compensatórios).
2) A notificação foi efectuada em razão da não alienação, no prazo de 3 anos, dos prédios urbanos sitos na freguesia de Nossa Senhora do Bispo, inscritos na matriz sob os artigos 959 e 961, e dos prédios rústicos inscritos sob os n.ºs 1 e 2, ambos da Secção U da mesma freguesia.
3) A liquidação do imposto teve em conta, além da não alienação no prazo acima indicado, que conduziu à perda da isenção de Sisa, os montantes de aquisição mencionados nas escrituras, bem como os montantes das hipotecas a favor do Montepio Geral. Quanto aos juros compensatórios, foram os mesmos liquidados com base na taxa de 12% vigente à data.
4) A impugnante deduziu a presente impugnação em 9/1/2003.
5) Foi realizada inquirição de testemunhas em 25/11/2003, como se pode verificar pela respectiva acta, a fl. 107 dos presentes autos.
Factos não provados:
Constituindo "matéria [...] relevante" para a solução da "questão de direito" - art. 511.º, n.º 1, do Código de Processo Civil-, nenhum.”

1.2. Acorda-se em alterar a decisão de facto, oficiosamente, ao abrigo do preceituado no artigo 662.º do CPC nos seguintes termos:

_ O n.º 3 passa a ter a seguinte redacção: “A liquidação do imposto de sisa teve em conta, além da não alienação no prazo acima indicado, os montantes de aquisição mencionados na escritura, respectivamente, Esc. 85.000.000$00 e 145.000.000$00, bem como as inscrições hipotecárias a favor do Montepio Geral, nos montantes de Esc. 70.000$00 e 70.000$00” (cfr. demonstração da liquidação de fls. 7 e ss dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
_ Elimina-se o n.º 5) do probatório por se tratar de ocorrência processual e não de matéria de facto;
_ Renumera-se o facto dado como provado juntamente com outro no n.º 3) que passa agora ser autonomizado no n.º 5:
5) Os juros compensatórios foram liquidados com base na taxa de 12% vigente à data (cfr. demonstração da liquidação de fls. 7 e ss dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
_ Aditando-se a seguinte matéria de facto, constante de prova documental junta aos autos e com relevância para a decisão:
6) Em 17/04/1997 o Recorrente outorgou escritura pública de compra e venda, no 1.º Cartório Notarial de Leiria, na qualidade de 2.º Outorgante, pela qual declarou comprar para revenda os prédios urbanos inscrito na matriz predial sob os artigos 959 e 961 e os prédios rústicos inscritos nos artigos n.ºs 1 e 2 ambos da secção U, pertencentes à freguesia de Nossa Senhora do Bispo, Concelho de Montemor-o-Novo, e mais declarou que “os imóveis são adquiridos com os encargos supra referidos e inscritos na Conservatória do Registo Predial” e pelo 1.º Outorgante foi declarado que vende à 2.ª Outorgante aqueles prédios, pelo preço global de 230.000 contos, montante esse já recebido (cfr. escritura pública junta aos autos a fls. 19 e ss, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
1.3. Do erro da sentença no julgamento sobre a matéria de facto
Da leitura das alegações do recurso agora em apreciação resulta inequívoco que a Recorrente impugna o julgamento feito pelo Juiz a quo no que concerne à matéria de facto. Entende que deve ser alterado a matéria de facto n.º 3) da sentença nos seguintes termos: “3. A liquidação do imposto de sisa teve em conta, além da não alienação no prazo acima indicado, que conduziu à perda da isenção de Sisa, os montantes de aquisição mencionados na escritura, respectivamente, Ec. 85.000.000$00 e 145.000.000$00”.
Ora, a matéria de facto que se mostra essencial à decisão da causa já consta da sentença recorrida, com a ampliação oficiosa a que se procedeu anteriormente, que acolhe a pretensão do Recorrente.

2. Do Direito

I. A Recorrente, nas suas conclusões de recurso, vem imputar à decisão recorrida erro de julgamento, na parte em que decidiu não haver erro na determinação do valor tributável sujeito a imposto, face ao disposto na alínea h) do artigo 19.º do CIMSISSD.

Considera a Recorrente que foi considerado indevidamente na matéria colectável o montante referente ao valor da hipoteca, porquanto, à data da escritura, não estava, efectivamente, a onerar os prédios objecto de transmissão, considerando que naquela data “a dívida que se declarou existir por parte da vendedora [ora Recorrente] ao Montepio Geral e que se encontrava garantido por hipoteca voluntária, já não existia. (…) [Q]uando na escritura de compra e venda de 17 de Abril de 1997, é declarado pela impugnante e vendedora que sobre os prédios transmitidos incide uma hipoteca voluntária a favor do Montepio Geral garantindo capital inferior ao preço representa uma declaração inexacta”.

Conforme resulta dos autos, a liquidação impugnada surge na sequência do não cumprimento dos termos da isenção que beneficiava, relativamente à aquisição de dois imóveis, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 11.º e 13.º do CIMSISSD, ou seja, não alienou no prazo de 3 anos dois prédios urbanos que haviam sido adquiridos para revenda, e não procedeu ao pedido de liquidação da respectiva Sisa nos termos do disposto no n.º 1 do art. 16.º, n.º 5 do art. 115.º, ambos do CIMSISSD.

A decisão recorrida julgou parcialmente improcedente a impugnação (procedente na parte referente à invocada errónea determinação e quantificação dos juros compensatórios e na parte da alegada duplicação indevida do valor da hipoteca), por não verificado, para além do mais, do invocado erro de determinação do valor tributável sujeito a imposto, face ao disposto na alínea h) do artigo 19.º do Código da Sisa que se encontra sindicado no presente recurso.

A decisão recorrida, quanto a este fundamento, secundando a posição do Magistrado do Ministério Público, entendeu que “[n]ão assiste razão à ora impugnante quanto à invocada errónea determinação do valor tributável sujeito a imposto, uma vez que, como bem nota o Digno Magistrado do Ministério Público, no seu parecer final, apesar de ter sido junta prova da cessão de créditos, "menos certo não é que: - não existe qualquer prova de ter sido descontado o valor na venda [apesar de a testemunha inquirida referir que ao valor dos prédios "foi abatido a quantia de 90 mil contos em resultado do pagamento da hipoteca por parte da impugnante", o certo é que nenhuma prova documental dessa dedução foi apresentada, nem na escritura é referida tal dedução]; -a hipoteca estava registada à data da escritura;
- a mesma é mencionada como transmitida para a adquirente nessa mesma escritura.
[Pelo que] não cumpria mais à AT senão, com base na declaração da própria impugnante, constante na escritura, efectuar a liquidação, o que fez.
O que é conforme com o que dispõe o art. 19.º do CIMSISSD, uma vez que aí se determina que a Sisa incidirá sobre "o valor por que os bens forem transmitidos", sendo que o valor dos bens "será o preço convencionado pelos contratantes ou o valor patrimonial, se for maior" e se considera preço, isolado ou cumulativamente, "quaisquer encargos a que o comprador fica legal ou contratualmente obrigado." [vd. ai. h)]. Assim sendo, a liquidação, ao considerar o valor da hipoteca, não merece qualquer censura.”

Apreciando.

O art. 19.º do Código do Imposto Municipal de SISA e Imposto sobre Sucessões e Doações (CIMSISSD) sob a epígrafe “[m]atéria colectável da sisa” dispõe que “[a] sisa incidirá sobre o valor por que os bens forem transmitidos”, acrescentando-se, no § 2º do mesmo preceito legal que “[n]os outros casos, o valor dos bens será o preço convencionado pelos contratantes ou o valor patrimonial, se for maior. Considerar-se-á preço, isolado ou cumulativamente: (…) h) Em geral, quaisquer encargos a que o comprador fica legal ou contratualmente obrigado (Decreto-Lei nº 223/82, de 7 de Junho)”.

Nas conclusões das alegações de recurso, que delimitam o objecto do presente recurso, não é colocada em causa a aplicação deste preceito legal, mas tão-somente a existência de hipoteca à data da escritura, cujo valor foi indevidamente considerado, na perspectiva da Recorrente, no apuramento da matéria colectável nos termos da alínea h) do §2 do art. 19.º do CIMSISSD.

Atentando à decisão recorrida, esta não coloca em causa a cessão de créditos, não obstante, entende, e bem, como veremos, que cumpria à Impugnante a prova de ter sido descontado o valor da hipoteca na venda, considerando o constante da escritura de compra e venda, não enfermando a sentença de erro de julgamento da matéria de facto, nem da de direito.

A Recorrente apresenta como justificação para a disparidade do que consta na escritura e do que é alegado, o facto de o texto da escritura de compra e venda conter “uma imprecisão e uma inexactidão”.

Nos termos do disposto no art. 363.º, n.º 2 do Código Civil (C.C.) a escritura pública têm natureza de documento autêntico.

Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora (art. 371.º, n.º 1 do C.C.).

A escritura pública faz, assim, prova plena, salvo demonstração do contrário da declaração que, nesse acto, haja sido produzida pelos outorgantes.

Deste modo, a prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto (art. 347.º do C.C.).

In casu, resulta da escritura, através da qual se formalizou a compra e venda dos prédios em questão, a Recorrente, na qualidade de segundo Outorgante declarou que os imóveis são adquiridos com os encargos nela referidos e inscritos na Conservatória do Registo Predial. Por outro lado, a primeira Outorgante declarou que vende à segunda os prédios pelo preço aí declarado e já recebido.
Assim sendo, tais declarações fazem prova plena de que, para além dos imóveis serem adquiridos com os encargos, o preço recebido pela primeira Outorgante pela venda foi o declarado.

Cumpria à Recorrente fazer prova de que não eram verdadeiros os factos declarados na escritura. Designadamente, cumpria à Recorrente fazer prova de o preço declarado recebido pela primeira Outorgante não foi aquele, mas antes, aquele descontado do valor da cessão de créditos, tal como alega.

Sucede que não o fez, tal como foi considerado na sentença recorrida, não se verificando qualquer erro de julgamento.

O juiz a quo, considerou que não obstante a prova testemunhal produzida, tal prova não seria suficiente, sendo necessária prova documental, uma vez que na escritura não é feita qualquer referência de que ao valor de venda tenha sido deduzido o valor da hipoteca.

Repare-se que o juiz a quo não colocou em causa a outorga da escritura de cessão de créditos da Caixa Económica Montepio Geral e respectiva hipoteca à Recorrente, mas sim que o montante relativo à essa cessão tenha sido deduzido ao preço recebido pois o declarado na escritura, que faz prova plena, contraria tal alegação.

Por outro lado, não se vislumbra que a apreciação da prova feita pelo juiz a quo mereça censura, pois não foi apresentada prova documental que comprovasse a dedução do valor da hipoteca ao preço recebido pela primeira Outorgante, e julgando-se insuficiente a prova testemunhal produzida, o juízo está em conformidade com a prova produzida.

Por conseguinte, não merece provimento o recurso quanto a este fundamento de recurso.

II. A Recorrente imputa, de igual modo, erro de julgamento à sentença recorrida, na parte em que entendeu que não se verificava a preterição de formalidade legal por violação do direito de audição prévia.

Quanto a esta questão, a decisão recorrida julgou que não se verifica a invocada preterição de formalidade legal por violação do direito de audição prévia.

O juiz a quo, entendeu, em síntese, que estávamos perante uma situação de dispensa do direito de audição prévia prevista no n.º 2 do art. 60.º da LGT, porquanto “a liquidação teve na sua origem a escritura de compra e venda dos imóveis, na qual (…) os representantes da ora impugnante mencionaram o facto constitutivo da sujeição a imposto”.

Apreciando.

Conforme resulta dos autos, a liquidação impugnada surge na sequência de uma liquidação oficiosa, em 2002, com o fundamento no não cumprimento dos termos da isenção que a Recorrente beneficiava relativamente à aquisição de dois imóveis, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 11.º e 13.º do CIMSISSD, ou seja, não alienou no prazo de 3 anos dois prédios urbanos que haviam sido adquiridos para revenda, e não procedeu ao pedido de liquidação da respectiva Sisa, nos termos do disposto no n.º 1 do art. 16.º, n.º 5 do art. 115.º, ambos do CIMSISSD.

Por outro lado, os montantes apurados na liquidação foram calculados com base nos valores constantes da escritura de compra e venda referente à aquisição dos prédios objecto do imposto liquidado.

Cumpre, então, saber se a decisão recorrida enferma de erro de julgamento ao considerar aplicável ao caso sub judice o disposto no n.º 2 do art. 60.º da LGT, preceito legal que permite a dispensa da audição do contribuinte nos casos em que a liquidação se efectuar com base na sua declaração.

O art. 60.º n.º 1 da LGT consagra, a nível ordinário, o princípio da participação dos contribuintes na formação das decisões que lhe digam respeito, em consonância com o desiderato constitucional consubstanciado no direito de participação dos cidadãos na formação das decisões administrativas que lhes disserem respeito, consagrado no art.º 267.°, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Nos termos do n.º 2 do art. 60.º da LGT, na redacção anterior à Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro (redacção aplicável ao caso dos autos), [é] dispensada a audição em caso de a liquidação se efectuar com base na declaração do contribuinte ou a decisão do pedido, reclamação, recurso ou petição lhe for favorável.”.

Trata-se de uma excepção à obrigatoriedade da audição dos contribuintes, prevista do n.º 1 daquele preceito legal.

A questão que agora se levanta é a de saber qual o sentido a dar à expressão “com base na declaração do contribuinte” constante daquela previsão legal.
Ora, é certo que a expressão deve ser interpretada no sentido de que apenas é de dispensar a audição quando a liquidação for efectuada de acordo com os elementos factuais e jurídicos que decorre da declaração do contribuinte (Nesse sentido, cfr. Jorge Lopes de Sousa, in Código de Procedimento e de Processo Tributário- anotado e comentado, Vol. I, 6.º Ed., Áreas Editora, 2011, p. 429).

Com efeito, quando a liquidação for efectuada exclusivamente com base na declaração do contribuinte e por aplicação das normas que decorrem necessariamente dessa declaração, poderá haver lugar à dispensa da audição do contribuinte, mas assim já não será se naquela liquidação forem tomados em consideração quaisquer outros elementos para além dos que constam do declarado ou for dado diferente enquadramento jurídico do que decorreria daquela declaração.

Mas será que, uma escritura pública de compra e venda com base na qual é liquidado oficiosamente imposto de Sisa subsume-se ao conceito de “declaração do contribuinte” para efeitos da dispensa do direito de audição previsto no n.º 2 do art. 60.º da LGT?

Tal como referimos, a regra em matéria de participação dos contribuintes no procedimento tributário é a sua audição, sendo a excepção a sua dispensa, donde parece resultar que não poderá ser toda e qualquer “declaração” susceptível de integrar a previsão normativa e conduzir à dispensa daquele direito.

A inserção sistemática do art. 60.º da LGT no “Procedimento Tributário” indicia que a “declaração” a que se refere esse preceito legal é a que é prestada no procedimento tributário e já não as fora deste procedimento perante autoridades públicas ou privadas.

Por outro lado, a expressão “com base na declaração do contribuinte” (sublinhado nosso) revela que não são todas e quaisquer declarações, mas tão-somente aquelas que são prestadas pelo próprio contribuinte, qualidade que pressupõe, necessariamente, uma relação jurídico-tributária.

Deste modo, não serão todas e quaisquer declarações prestadas pelo contribuinte que poderão conduzir à dispensa do direito de audição prévia, mas tão-somente as prestadas no âmbito do procedimento tributário.

Aliás, este entendimento está em plena consonância com direito de participação consagrado no art. 267.º, n.º 5 da CRP e com princípio da máxima efectividade das normas constitucionais que impõe a interpretação dos preceitos legais de acordo com o sentido que der maior eficácia aos normativos constitucionais, que in casu, consubstancia-se na restrição do sentido da expressão “declaração do contribuinte” às prestadas no âmbito do procedimento tributário.

No recentíssimo Ac. do STA de 14/05/2014, processo n.º 01491/13, que pese embora verse sobre uma situação fáctica diferente da em causa nos presentes autos, adopta uma interpretação restritiva da expressão “com base na declaração do contribuinte”, entendendo-se que “o mero pedido de liquidação de IMT pelo contribuinte não pode, em princípio, ter o alcance de apresentação da declaração tributária para efeitos da dispensa da audição prévia antes da audição prévia antes da liquidação imposta pelo artigo 60 da LGT”.

Mais se escreveu que a dispensa do direito de audição prevista no n.º 2 do art. 60.º da LGT justifica-se “[q]uando a liquidação assenta nos elementos constantes da declaração obrigatoriamente apresentada pelo contribuinte porque o seu conteúdo goza da presunção legal de veracidade nos termos do preceituado no artigo 75 da LGT e a Administração nesse caso está obrigada a apurar o imposto de acordo com os elementos fornecidos a audição do declarante torna-se desnecessária”.

Ou seja, uma das razões invocadas naquele acórdão para a dispensa da audição do contribuinte nos termos do n.º 2 do art. 60.º da LGT diz respeito à presunção legal de veracidade das declarações dos contribuintes que vem previsto no art. 75.º, n.º 1 da LGT: “Presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei (…)”, pelo que, também por esta razão não é de admitir que declarações prestadas fora do âmbito do procedimento tributário possam fundamentar a dispensa da audição do contribuinte, pois encontram-se manifestamente excluídas daquela presunção.

Em suma, a expressão “com base na declaração do contribuinte” não abrange todas e quaisquer declarações, mas apenas as prestadas pelo contribuinte no âmbito do procedimento tributário. Deste modo, uma escritura pública de compra e venda com base na qual é liquidado oficiosamente imposto de Sisa, não pode servir de fundamento à dispensa do direito de audição com base no n.º 2 do art. 60.º da LGT.

Em face do exposto, há que concluir que, in casu, verifica-se a violação do direito de audiência prévia previsto no art. 60.º, n.º 1 alínea a) da LGT.

Não obstante a preterição desta formalidade legal, a omissão da audiência nem sempre conduz à anulação do acto tributário, designadamente quando se determine em tribunal que “se ela tivesse sido realizada, o interessado não teria a possibilidade de apresentar elementos novos nem deixou de pronunciar-se sobre questões relevantes para determinar o conteúdo da decisão final, ou acabou por ter oportunidade de pronunciar-se, e procedimento de segundo grau (reclamação graciosa ou recurso hierárquico), sobre questões sobre as quais foi indevidamente omitida a audiência no procedimento de primeiro grau.” (Diogo Leite de campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária – Anotda e Comentada, 4.ª ed., Vislis, 2012, p. 515).

O Supremo Tribunal Administrativo tem reiteradamente afirmado que a omissão da audição do contribuinte, nos termos do art. 60.º da LGT constitui preterição de uma formalidade legal conducente à anulabilidade da decisão, a menos que, ao abrigo do princípio do aproveitamento do acto administrativo, seja manifesto que a decisão tributária em abstracto, não podia ser outra da que foi tomada no caso concreto, e por isso se impunha, o seu aproveitamento (cfr. por todos, Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA de 22/01/2014).

Ao abrigo deste princípio, o tribunal tem o poder de não anular um acto inválido quando a decisão administrativa não pode ser outra, uma vez que em execução do efeito repristinatório da sentença não existe “alternativa juridicamente válida” que não seja a de renovar o acto inválido, embora sem o vício que determinou a anulação (cfr. Acórdão do STA de 31/01/2012, Proc. n.º 017/12).

“[A] audiência prévia dos interessados não é um mero rito procedimental, a formalidade em causa (essencial) só se podia degradar em não essencial (não invalidante da decisão) se essa audiência não tivesse a mínima probabilidade de influenciar a decisão tomada, e se se impusesse, por isso, o aproveitamento do acto – utile per inutile non viciatur.” (Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA de 22/01/2014, Proc. n.º 0441/13).

A possibilidade de aplicação do princípio do aproveitamento do acto deve ser apreciada casuisticamente através da análise das circunstâncias particulares do caso concreto. Há que aferir se no caso sob análise se a decisão do procedimento não poderia de forma alguma ser influenciada pela audição do contribuinte.

Aplicando a jurisprudência supra citada ao caso dos autos, não será de aplicar tal princípio de modo a aproveitar o acto de liquidação.

Com efeito, há que não olvidar que a decisão recorrida julgou parcialmente improcedente a impugnação, julgando-a procedente, portanto, na parte referente à alegada duplicação indevida do valor da hipoteca (sendo certo que, nessa parte, a decisão já transitou em julgado, pois não constitui objecto do presente recurso), o que significa que julgou verificado um erro sobre os pressupostos de facto na quantificação do imposto apurado.

Entendeu a decisão recorrida nesta parte que “[e]m consonância com o defendido pela impugnante a fls. 9 dos autos, apenas deve acrescer ao valor das transacções o valor da hipoteca que incide sobre ambos os imóveis, e não o valor da hipoteca repetido sobre cada um dos dois imóveis, dado que foi constituída uma única hipoteca que onerou dois imóveis (…)”.

Julgado verificado o erro sobre os pressupostos de facto na quantificação do imposto apurado, tanto basta para concluirmos que, in casu, está manifestamente afastada a possibilidade de aplicação do princípio do aproveitamento do acto, pois é manifesto que, se o contribuinte tivesse sido ouvido, tal erro poderia ter sido corrigido no âmbito do procedimento, ou seja, que significa que a decisão administrativa poderia ser outra, influenciada pela audição do contribuinte.

Se a audiência se tivesse realizado, o Recorrente teria a possibilidade de se pronunciar sobre a quantificação da liquidação e apresentar novos elementos ainda na fase do procedimento, tal como veio a suceder no âmbito do presente processo, e que está na base da procedência da acção na 1.ª instância quanto a esse fundamento.

Por conseguinte, in casu, não se pode afirmar que a decisão tributária em abstracto, não podia ser outra da que foi tomada no caso concreto, e por isso se impunha, o seu aproveitamento, e deste modo, não é aplicável o princípio do aproveitamento do acto, o que conduz à conclusão de que a liquidação deve ser anulada.

Em suma, o recurso merece provimento quanto a este fundamento, e deste modo, a sentença recorrida enferma de erro de julgamento na parte em que julgou improcedente a impugnação.
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3. Sumário do acórdão

I. Nos termos do disposto no art. 363.º, n.º 2 do Código Civil (C.C.) a escritura pública têm natureza de documento autêntico. Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora (art. 371.º, n.º 1 do C.C.). A prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto (art. 347.º do C.C.);

II. A dispensa de audição do contribuinte em caso de a liquidação se efectuar com base na sua declaração é admitida nos termos do n.º 2 do art. 60.º da LGT (in casu, na redacção anterior à Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro) sendo uma excepção à obrigatoriedade da audição dos contribuintes, prevista do n.º 1 daquele preceito legal;

III. Apenas é de dispensar a audição quando a liquidação for efectuada de acordo com os elementos factuais e jurídicos que decorre da declaração do contribuinte;

IV. A expressão “com base na declaração do contribuinte” não abrange todas e quaisquer declarações, mas apenas as prestadas pelo contribuinte no âmbito do procedimento tributário;


V. Uma escritura pública de compra e venda com base na qual é liquidado oficiosamente imposto de Sisa não pode servir de fundamento à dispensa do direito de audição com base no n.º 2 do art. 60.º da LGT;
VI. A omissão da audição do contribuinte, nos termos do art. 60.º da LGT constitui preterição de uma formalidade legal conducente à anulabilidade da decisão, a menos que, ao abrigo do princípio do aproveitamento do acto administrativo, seja manifesto que a decisão tributária em abstracto, não podia ser outra da que foi tomada no caso concreto, e por isso se impunha, o seu aproveitamento;

VII. A possibilidade de aplicação do princípio do aproveitamento do acto deve ser apreciada casuisticamente através da análise das circunstâncias particulares do caso concreto;

VIII. Julgado verificado o erro sobre os pressupostos de facto na quantificação do imposto apurado, tanto basta para concluirmos que, in casu, está manifestamente afastada a possibilidade de aplicação do princípio do aproveitamento do acto, pois é manifesto que, se o contribuinte tivesse sido ouvido, tal erro poderia ter sido corrigido no âmbito do procedimento, ou seja, que significa que a decisão administrativa poderia ser outra, influenciada pela audição do contribuinte.
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III. DECISÃO

Em face do exposto, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, em conceder provimento ao recurso interposto, revogando a decisão recorrida na parte em que julgou improcedente a impugnação.
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Sem custas em ambas as instâncias, por delas estar a Fazenda Pública isenta - art.º 3.º, n.º 1, al. a), do Regulamento das Custas dos Processos Tributários, e art.º 9.º, do DL n.º 29/98, de 11 de Fevereiro, que aprovou tal Regulamento.
D.n.
Lisboa, 26 de Junho de 2014.


(Cristina Flora)

(Joaquim Condesso)

(Catarina Almeida e Sousa)