Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2191/12.9BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:03/25/2021
Relator:MÁRIO REBELO
Descritores:TAXA;
ISENÇÃO;
SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA.
Sumário:Não tendo o legislador ordinário revogado expressamente a norma constante do artigo 13º, al. a) do DL n.º 40397 de 24.11.1955, nem resultando que a mesma colida com norma hierarquicamente superior, conclui-se que a mesma se encontra plenamente vigente na ordem jurídica e, consequentemente, que os Municípios devem abster-se de emitir quaisquer taxas urbanísticas que tenham por fundamento de direito uma suposta revogação daquela norma legal.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

RECORRENTE: CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA
RECORRIDOS: SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA
OBJECTO DO RECURSO:
Sentença proferida pelo MMº juiz do Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou procedente acção administrativa especial intentada pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, impugnando o acto praticado pela Vereadora da Municipal de Finanças da Câmara Municipal de Lisboa, com o pelouro das Finanças, datado de 9 de Maio de 2012, que indeferiu o pedido de isenção do pagamento das taxas urbanísticas no âmbito dos processos n.° 127/EDI/2008, 893/EDI/2008 e 441/OTR/2009, pedindo a sua anulação e a condenação à prática do acto devido i.e. reconhecimento à Autora do direito à isenção das taxas e licenças urbanísticas.

CONCLUSÕES DAS ALEGAÇÕES:
1 - Julgou o tribunal a quo na douta sentença de que ora se recorre, totalmente procedente a presente acção, por provada, e, em conformidade, condenou o R a reconhecer o direito da Autora à isenção das respectivas taxas urbanísticas liquidadas no âmbito dos processos administrativos n.°s 127/EDI/2008, 893/EDI/2008 e 441/OTR/2009.
II - O ora Recorrente não se conforma e repudia o teor e fundamentos da douta sentença.
III - O Decreto - Lei n° 40397 de 24 de Novembro de 1955 que determinava que a Misericórdia de Lisboa gozava de isenção de impostos, contribuições, taxas ou licenças do Estado ou corpos administrativos foi expressamente revogado há 20 anos pelo Decreto - Lei n° 322/91 de 26 de Agosto que aprovou os então novos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia.
IV - Aquela norma de isenção foi porém mantida em vigor por força do artigo 34° daquele Decreto - Lei n° 322/91, que estabelecia que "Mantêm-se, a favor da Misericórdia de Lisboa, todas as isenções que lhe foram conferidas por lei.”.
V - Posteriormente, o Decreto-Lei n° 235/2008 de 3 de Dezembro que entrou em vigor em 2 de Janeiro de 2009, veio aprovar os novos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia, tendo no seu artigo 4°, e sem qualquer ressalva, procedido à expressa revogação do Decreto-Lei n° 322/91. 
VI - Tal revogação expressa não deixa qualquer dúvida quanto ao desaparecimento do ordenamento jurídico da isenção ora invocada pela A que apenas mantinha a sua vigência enquanto estivesse em vigor o artigo 34° do Decreto-lei n°322/91.
VII - Logo, desde a entrada em vigor do Decreto-lei n° 235/2008, as isenções de taxas municipais para a A, passaram a ser exclusivamente apreciadas no âmbito e de acordo com as disposições regulamentares municipais aplicáveis às taxas municipais em causa.
VIII - A sentença recorrida sufragou uma interpretação diversa que o Recorrente repudia e contraria, invocando a alteração constitucional de 2001 e a sucessão de diplomas legais em especial a nova LFL e o RGTAL que em 2007 vieram concretizar o princípio da autonomia financeira das autarquias na sua vertente de atribuição de poderes tributários às autarquias consagrado no n.° 4 do artigo 238.° da CRP.
IX - Com efeito e contrariamente ao que o tribunal a quo defende, ao legislador ordinário, por força daquele n.° 4 do artigo 238.° da CRP e dos diplomas legais que lhe vieram dar execução, encontra-se vedada a atribuição de isenções de taxas municipais criadas pelos municípios.
X - Tal impossibilidade é aliás também, em parte, defendida por SÉRGIO VASQUES na sua obra citada na douta sentença, Regime das Taxas Locais - Introdução e Comentário, 2008, Almedina, na media em que “O que sempre se haverá de exigir do legislador, naturalmente, e porque o princípio da equivalência não se fundamenta simplesmente no RTL mas representa uma projecção do princípio da igualdade tributária consagrado no artigo 13.° da Constituição da República, é que também estas isenções estabelecidas por lei se mostrem necessárias, adequadas e proporcionadas em face dos objectivos extrafiscais que estejam em causa, um exame que deve ser feito com especial rigor sempre que revistam carácter subjectivo. ”.
XI - E mesmo defendendo uma interpretação restritiva do princípio da autonomia financeira das autarquias com faz o tribunal a quo e o supra citado autor, não poderá ainda assim, deixar-se de aceitar a limitação imposta pelo princípio da igualdade tributária também constitucionalmente consagrado, em especial, tratando-se de isenções subjectivas como nos lembra o ilustre autor e como é o caso da isenção sub iudice.
XII - A interpretação defendida pelo ilustre Professor SALDANHA SANCHES vai também no sentido do entendimento de que os poderes tributários das autarquias se lhes encontram reservados por via da articulação do disposto no n° 4 do artigo 238.° da CRP e da previsão legal dos mesmos na LFL e no RGTAL, ao dizer-nos que " No sistema constitucional português, os municípios dispõem de uma estrutura organizativa que conduz a uma larga autonomia em matéria financeira. Uma autonomia que inclui o exercício de poderes tributários: como escreve SÉRVULO CORREIA. A “administração autárquica possui uma legitimação democrático-representativa que não seria compatível com uma simples actividade de execução da lei”. De onde conclui que o princípio da autonomia administrativa, traduzida numa autónoma normação autárquica, se encontra numa relação não de contradição, mas antes de integração do princípio da legalidade”. Essa integração passou a ser feita, depois da última revisão constitucional mediante a interacção entre os n.°s 3 e 4 do artigo 238.° da Constituição e a legislação ordinária. ”O n.° 4 do artigo 238.°, introduzido na última revisão constitucional prevê a atribuição aos municípios, na aplicação de princípios como os que acima formulamos, de poderes tributários sem qualquer restrição de ordem material; ainda que sob a condição de uma formulação específica do conteúdo desses poderes por lei. 
XIII - No âmbito do seu poder tributário e das competências que lhe foram constitucional e legalmente atribuídas, o Município de Lisboa, através de deliberação da Assembleia Municipal, aprovou o Regulamento Municipal de Taxas Relacionadas com a Actividade Urbanística e Operações Conexas (publicado no DR - 2a Série, n° 129 de 7 de Julho de 2009), atribui de forma geral e abstracta, isenções, conforme se encontra previsto no RGTAL, aplicáveis a todas as entidades que, à semelhança da Recorrida, sejam associações públicas, pessoas coletivas de utilidade pública, instituições particulares de solidariedade social ou outras associações sem fins lucrativos, que prossigam fins culturais, sociais, religiosos, desportivos ou recreativos”
XIV - Atribuindo assim uma isenção de carácter subjectivo mas cujos potenciais sujeitos passivos são abstractamente descritos, não se permitindo assim a verificação de desigualdades na atribuição de isenções tributárias que claramente tem lugar com a aplicação da alínea a) do artigo 13.° do Decreto-Lei n.° 40397.
XV - As entidades previstas no artigo 6° n°1 daquele Regulamento, beneficiam de uma redução de 30% do valor das taxas urbanísticas ali previstas, não se vislumbrando qualquer justificação para que a Recorrida beneficie de uma isenção total das mesmas taxas quanto às quais, v.g., a Igreja Católica e a Fundação de Assistência Médica Internacional (AMI) - também elas pessoas colectivas de utilidade pública que prestam assistência social e de saúde aos mais desprotegidos -, apenas possam beneficiar de 30% de redução, antes se lobrigando a verificação da violação do princípio da igualdade que resulta da interpretação restrita do princípio da autonomia financeira das autarquias contido no artigo 238.° da CRP, ao defender-se a manutenção e determinar a sua aplicação da norma legal de 1955.
XVI - Assim, sob pena de violação do princípio da igualdade constitucionalmente 
consagrado e do princípio da autonomia financeira das autarquias, não é constitucional e legalmente defensável que a A benficíe de uma isenção total de taxas municipais quanto às quais outras entidades que prossigam fins estatutários idênticos e tão meritórios quanto os seus, apenas beneficiem de uma redução de 30%.
XVII - Através da transcrição parcial do Acórdão n.° 285/2006 do Tribunal Constitucional, invoca-se na douta sentença recorrida que quanto à norma que importa apreciar nos presentes autos é de afirmar que estão em causa interesses que transcendem o âmbito das autarquias locais, ultrapassando o universo dos interesses específicos das comunidades locais, atendo aos fins estatutários e ao âmbito territorial da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (artigos 2.° e 4.° dos Estatutos aprovados pelo Decreto-Lei n.° 322/91). Nomeadamente, por esta pessoa colectiva de utilidade pública administrativa prosseguir humanitária e benemerentemente fins de acção social, prestações de cuidados de saúde, de educação e cultura e de promoção da qualidade de vida, sobretudo em proveito dos mais desprotegidos (artigos 1.°, n.° 1, e 2.°, n.°1, dos Estatutos), com clara relevância constitucional...”.
XVIII - Ora, conforme resulta do artigo 3° dos seus Estatutos (aprovados pelo Decreto Lei n.° 235/2008 de 3 de Dezembro) “a SCML prossegue as suas atribuições na área do município de Lisboa, podendo alargar a sua actividade a outras áreas do território nacional para a realização dos seus fins estatutários”, restringindo-se assim, essencialmente a sua actuação à área do município de Lisboa, sendo que, como é consabido, existem outras “santas casas da misericórdia” que actuam nas restantes áreas do país, como é o caso das Santa Casa da Misericórdia de Cascais; do Porto; de Coimbra; de Faro; de S Pedro do Sul, etc.
XIX - O Município de Lisboa, que também exerce as suas atribuições e competências, obviamente na área do município de Lisboa, à semelhança dos restantes municípios do país, tem atribuições previstas no artigo 13.° da Lei n° 159/99, de 14 de Setembro, das quais se realçam as nos domínios da educação, património, cultura e ciência, tempos livres e desporto, saúde, acção social, habitação, protecção civil, ambiente e saneamento básico, atribuições estas que lhe determinam que prossiga e proteja, afinal os mesmos interesses que o legislador pretetendeu que a Recorrida também prosseguisse.
XX - Logo, não se poderá concluir que os interesses que a Misericórdia de Lisboa prossegue transcendem o âmbito das autarquias locais, porquanto estas, para além das suas restantes atribuições e competências, os prosseguem também.
XXI - Pelo contrário, o interesse público prosseguido pelo Município de Lisboa, esse sim transcende os interesses prosseguidos pela Misericórdia de Lisboa, porquanto, conforme resulta da supracitada Lei, são-lhe confiadas pelo legislador, para além das coincidentes com os fins estatutários da SCML, muitas outras atribuições e competências, nomeadamente no que se refere à área urbanística e, em especial à realização e manutenção de infra-estruturas urbanísticas, essenciais à população não só residente na cidade de Lisboa mas também da que pelos mais variados motivos diariamente beneficia dessas mesmas infra-estruturas.
XXII - Sendo muito meritória a actividade desenvolvida e os interesses prosseguidos e protegidos pela Misericórdia de Lisboa e indiscutível a relevância do seu papel na sociedade, esta não é a única entidade que os prossegue, e nessa esteira, o Município de Lisboa atribui a isenção geral e abstracta supra referida, entre cujos destinatários se encontra a Recorrida a par de outras entidades que prossigam fins igualmente meritórios (como é o caso da AMI), no estrito cumprimento do princípio da igualdade tributária que, conforme acima descrito não é respeitado pela alínea a) do artigo 13.° do Decreto-Lei n.° 40397.
XXIII - Conforme nos diz Jorge Miranda “a superveniência da nova Constituição ou de uma sua revisão, acarreta ipso facto, pela própria função e força de que está investida, o desaparecimento das normas de Direito ordinário anterior com ela desconformes”
XXIV - Assim, com a superveniência da norma constitucional que veio atribuir tais poderes tributários às autarquias através de previsão legal, previsão esta que veio a suceder em 2007, aquela norma de 1955, encontrando-se prevista num diploma legal emanado pelo Governo sem qualquer intervenção da autarquia local respectiva, resulta supervenientemente inconstitucional, devendo cessar a sua vigência desde a entrada em vigor daqueles diplomas legais de 2007.
XXV - Encontra-se assim a douta sentença recorrida ferida de ilegalidade em virtude de condenar o ora Recorrente à prática de um acto que consistiria na aplicação de uma norma legal revogada ou ferida de inconstitucionalidade superveniente que determina a ilegalidade da sua aplicação.
XXVI - Mesmo que assim se não entenda, o que por mera cautela de patrocínio se admite, sempre se dirá que, mesmo que se defenda que a norma contida no artigo 13.° do Decreto-Lei n.° 40397 de 24 de novembro de 1955 se encontra vigente, nunca a decisão contida na douta sentença recorrida, poderia ser no sentido que foi, na medida em que condena a ED a reconhecer um benefício fiscal que a lei dispensa de reconhecimento.
XXVII - E assim sendo, consistindo a isenção invocada pela A numa isenção cuja natureza, na douta sentença se defende, através das palavras de Nuno Oliveira Garcia, ser (i) subjectiva; (ii) permanente; (iii) total; e (iv) absoluta, a mesma seria “...não condicionada, por a sua eficácia não ter ficado dependente da verificação de qualquer pressuposto acessório”.
XXVIII - Quer isto dizer que isenção invocada pela A, a par das restantes características ali indicadas e também em consequência delas, é uma isenção de aplicação automática, não lhe sendo aplicável o procedimento de reconhecimento de benefícios fiscais previsto no artigo 65.° do CPPT, pelo que à administração tributária apenas restaria não proceder sequer à liquidação do tributo a que a Autora se encontra sujeita, não sendo necessário qualquer impulso procedimental da A para que a isenção seja em concreto aplicada.
XXIX - A decisão de condenação da ED a reconhecer tal benefício fiscal, padece do vício de ilegalidade por violação do disposto no mesmo artigo 13.° do Decreto Lei n.° ‘40397, que determina a sua aplicação automática sem qualquer prévio acto de reconhecimento, determinando outrossim esta norma, a não liquidação de qualquer taxa à Autora e consequentemente, determinando a ilegalidade das liquidações de taxas que venham a ser emitidas.
XXX - A haver lugar à condenação da ED, esta sempre seria a de anulação das liquidações objecto dos presentes autos, e não a um acto de reconhecimento de um benefício fiscal que afinal não tem previsão legal, conforme a própria douta sentença refere, através das palavras de Nuno Oliveira Garcia,
Deverá assim ao presente recurso ser concedido provimento e, em consequência ser revogada a douta sentença ferida de ilegalidade por violação das normas constitucionais e legais supra referidas.
Nestes termos e nos mais de direito, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência ser revogada a sentença ora recorrida, por não se encontrar em vigor a norma contida na alínea a) do artigo 13° do Decreto-Lei n° 40397 de 24 de Novembro de 1955, quer por ter sido revogada pelos Decretos-Lei n°s 322/91, de 26 de Agosto e 235/2008, de 3 de Dezembro, quer por se verificar a sua inconstitucionalidade superveniente por violação do n.° 4 do artigo 238.° da CRP e do princípio da igualdade tributária previsto no artigo 13.° da CRP, e consequentemente, mantendo-se assim o acto impugnado pela Recorrida com todas as demais consequências legais.

Ou mesmo que assim se não entenda, o que apenas por mera cautela de patrocínio se admite, deverá ser substituído o teor da decisão da douta sentença não se condenando a ED a praticar um acto de reconhecimento de benefício fiscal que não tem previsão legal.

CONTRA-ALEGAÇÕES.
A Recorrida contra alegou e concluiu:
1° - A questão subjacente à discussão do mérito da causa assenta na pretensa revogação, alegada pela Recorrente, do disposto na alínea a) do artigo 13°, do Decreto-Lei n° 40.397, de 24 de Novembro de 1955, que confere à Recorrida o direito à isenção de impostos, contribuições, taxas ou licenças do Estado sejam de que natureza forem.
2° - A Recorrida é, de acordo com o previsto no art.° 1° dos Estatutos aprovados pelo Decreto- Lei n.° 235/2008, de 3 de Dezembro, uma pessoa colectiva de direito privado e utilidade pública administrativa.
3° - Dada a sua natureza jurídica e os fins por ela prosseguidos, sempre existiu legislação especial a conferir à Recorrida determinados direitos e benefícios, nomeadamente no âmbito tributário e fiscal, destacando-se, entre tais normas, o estatuído no citado artigo 13°, alínea a), do Decreto-Lei n° 40.397, de 24 de Novembro de 1955.
4° - Isto mesmo tem sido, pacificamente, reconhecido pela jurisprudência, defendendo, a propósito da interpretação da invocada al. a) do art.° 13.° do Decreto-Lei n.° 40.397, a total irrelevância jurídica da natureza dos actos e operações em questão: "... Independentemente da natureza jurídica da denominada tarifa de conservação de esgotos torna-se irrelevante, na situação concreta dos presentes autos, determinar se estamos perante uma tarifa ou taxa pois que merecerá o mesmo tratamento jurídico quer se trate de uma ou outra realidade já que a mencionada isenção de impostos, contribuições, taxas ou licenças do Estado ou corpos administrativos, seja de que natureza forem, sempre englobará, a quantia liquidada em apreciação nos presentes autos ainda que a mesma fosse de qualificar como tarifa" (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 2002.10.09, Proc. 0793/02).
5ª - De referir que a discutida norma até já foi objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional, tendo este concluído que esta norma "que isenta a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa de taxas .... não ofende o disposto nos n°s. 1 e 3 do artigo 238° da CRP" (cf. Acórdão de 2006.05.03, Proc. 1020/04 - 1° secção).
6ª - Contrariamente ao alegado pela Recorrente o facto de os actuais Estatutos da Recorrida, aprovados pelo Decreto-Lei n° 235/2008, de 3 de Dezembro, não conterem uma norma idêntica à do art.° 34° dos anteriores Estatutos, aprovados pelo Decreto-Lei n.° 322/91, de 26 de Agosto, não permite, de forma alguma, concluir pela revogação do art.° 13° do Decreto-Lei n.° 40.397.
7ª - Se os anteriores Estatutos, aprovados pelo Decreto-Lei n.° 322/91, de 26 de Agosto, não contivessem a mencionada norma do art.° 34°, o discutido art.° 13° do Decreto-Lei n.° 40.397 ter-se-ia mantido em vigor por ausência de norma revogatória.
8ª - Na verdade, o referido Decreto-Lei n.° 322/9191, de 26 de Agosto, a propósito da revogação da legislação anterior, estabelecia, no seu artigo 2°, o seguinte:
«À medida que entrarem em vigor as normas previstas nos Estatutos, deixam de se aplicar todas as normas legais e regulamentares relativas ou aplicáveis à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e que contrariem o disposto nos mesmos Estatutos».
9ª - Com a publicação deste diploma, apenas, deixaram de estar em vigor as normas relativas à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa que contrariassem o disposto nos Estatutos, entre os quais, logicamente, se não incluía o discutido art.° 13° que, longe de colidir com os novos Estatutos, consagra um regime de favor à Recorrida, nomeadamente em isenções fiscais e parafiscais.
10ª - O discutido art.° 34.°, em termos de relevância jurídica, nada acrescentou ao quadro normativo vigente, uma vez que, não existindo revogação tácita ou expressa, ter-se-iam mantido em vigor todas as normas, nomeadamente as relativas a benefícios fiscais, que não contrariassem o disposto nos mesmos Estatutos (cfr. art.° 2°, do Decreto-Lei n.° 322/91 de 26 de Agosto).
11° - Se os Estatutos aprovados pelo Decreto-Lei n.° 322/9191, de 26 de Agosto, não contivessem a norma do art.° 34.°, o quadro normativo seria idêntico uma vez que se manteriam, igualmente, em vigor todas as normas que não colidissem com os Estatutos, entre as quais se incluía, obviamente, o referido art.° 13.° do Decreto-Lei n.° 40.397.
12° - A irrelevância jurídica do citado art.° 34.° quanto à manutenção em vigor da norma de isenção contida no art.° 13.° do Decreto-Lei n.° 40.397, fácil se torna concluir que o simples facto de os Estatutos aprovados pelo Decreto-Lei n.° 235/2008, de 3 de Dezembro, não conterem norma semelhante, não permite a ilação, infundadamente retirada pela Recorrente de que aquele artigo se encontra revogado.
13° - Se tivesse sido intenção do legislador dos actuais Estatutos da Recorrida (aprovados pelo Decreto-Lei n.° 233/2008) revogar a discutida norma de isenção, com toda a certeza que não teria deixado de o fazer, expressamente, incluindo-a na norma revogatória contida no art.° 4° do Decreto-Lei n° 235/2008, de 3 de Dezembro.
14° - A omissão nos actuais Estatutos de norma idêntica à do art.° 34° dos anteriores Estatutos está, precisamente, no reconhecimento, pelo legislador, da completa irrelevância jurídica de tal norma.
15ª - A alegação da Recorrente de que as isenções das taxas das autarquias locais devem constar do respectivo Regulamento, em nada contribui para o proveito da posição que sustenta.
Com efeito,
16ª - Nem o Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais nem qualquer outra norma legal ou constitucional, nomeadamente o n.° 4 do art.° 238.° da Constituição da República Portuguesa, confere aos municípios a competência exclusiva para a criação das referidas isenções pelo que estas poderão ser criadas ou mantidas através de outros diplomas, nomeadamente mediante decreto-lei.
17ª - E como parece evidente, mesmo a proceder tal alegação, o que não se aceita, tal regulamento não teria a virtualidade de revogar um diploma com força de decreto-lei.
18ª - O quadro normativo actual parece, assim, claro quanto à manutenção em vigor do consagrado na alínea a), do artigo 13°, do Decreto-Lei n° 40.397, de 24 de Novembro de 1955, concedendo à Recorrida o direito a beneficiar de «isenção de impostos, contribuições, taxas ou licenças do Estado ou corpos administrativos, seja de que natureza forem».
19ª - Conforme o entendimento do Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.° 285/2006, de 3 de Maio (Proc. 1020/04), referindo o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 6 de Outubro de 2004 (Proc. 0703/04), onde se pode ler: "O acórdão recorrido entendeu ser bastante, para reconhecer a isenção do pagamento da tarifa em causa nos autos, a estatuição constante do diploma de 1955. A fundamentação da decisão não assenta no teor do artigo 34.° dos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, decorrendo antes de tal fundamentação que, para o efeito de reconhecer a isenção, se pode prescindir de tal norma, pois que o resultado decorre da aplicação do artigo 13.°, alínea a), do Decreto-Lei n.° 40.397".
20ª - Assim sendo, o facto de o Decreto-Lei n.° 235/2008, de 3 de Dezembro, que aprovou os actuais Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e revogou os anteriores Estatutos, não conter qualquer norma idêntica ou semelhante ao previsto no art.° 34.° destes últimos, nenhuma implicação jurídica pode ter sobre a manutenção ou revogação do discutido art.° 13.°, al. a), do Decreto-Lei n.° 40.397 que, até à data, não foi objecto de revogação, nem mesmo implícita, por qualquer norma legal.
21ª - A alegação da Recorrente sobre a pretensa revogação das isenções concedidas à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa pela referida al. a) do art.° 13.° do Decreto-Lei n.° 40.397, baseada na revogação dos Estatutos aprovados pelo Decreto-Lei n.° 322/91, de 26 de Agosto, mostra-se, assim, manifestamente improcedente.
22ª - Igualmente, improcedente se mostra a alegação de que, face ao estabelecido no art.° 8.°, n.° 2, al. d), do Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais, aprovado pela Lei n.° 53-E/2006, de 29 de Dezembro, ao legislador ordinário encontra-se vedada a possibilidade de legislar sobre o regime de isenção destas taxas o qual, segundo a Recorrente, deverá constar, exclusivamente, do respectivo regulamento.
23ª - É certo que a referida disposição consagra que "O regulamento que crie taxas municipais ou taxas das freguesias contém obrigatoriamente, sob pena de nulidade...as isenções e a sua fundamentação", mas nem o Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais nem qualquer outra norma legal ou constitucional, nomeadamente o n.° 4 do art.° 238.° da CRP, confere aos municípios a competência exclusiva para a criação das referidas isenções pelo que estas poderão ser criadas ou mantidas através de outros diplomas, nomeadamente mediante decreto-lei.
24ª - Já anteriormente a 2007, o Tribunal Constitucional havia apreciado o problema da inconstitucionalidade da discutida norma, tendo concluído que esta norma "que isenta a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa de taxas....não ofende o disposto nos n°s. 1 e 3 do artigo 238° da CRP" (cf. Acórdão de 2006.05.03, Proc. 1020/04 - 1° secção).
25ª - O legislador ordinário pode, assim, legalmente, criar ou manter benefícios fiscais no âmbito dos tributos das autarquias locais sem que tal implique a violação do princípio da autonomia local e financeira ou de qualquer norma do Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais pelo que a alegação feita sobre a exclusiva competência dos municípios na fixação das isenções das taxas em questão e sobre a pretensa inconstitucionalidade da norma contida no art.° 13.°, al. a), do Decreto-Lei n.° 40.397 se mostra, manifestamente, improcedente.
26ª - Improcedente se mostra, igualmente, a alegação efectuada quanto à alegada inconstitucionalidade por pretensa violação do princípio da igualdade.
27ª - Sendo legalmente permitido, ao legislador ordinário, criar ou manter benefícios fiscais no âmbito dos tributos das autarquias locais é porque a própria lei, paralelamente às entidades beneficiárias da atribuição de isenções pelos municípios, reconhece existirem outras entidades que, pela sua natureza, atribuições e fins prosseguidos, justificam a atribuição de benefícios especiais e independentes dos atribuídos pelos municípios.
28ª - Nestes casos, como é evidente, não se verifica a violação do princípio da igualdade uma vez que, conforme é pacificamente entendido pela doutrina e jurisprudência, tal violação "pressupõe situações objectivamente iguais" (cf. Acórdão do STA, de 09/05/2007, Proc. 01223/06) o que não se verifica no caso dos autos.
29ª - Para além do já aludido Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 09/10/2002, o Supremo Tribunal pronunciou-se recentemente no Proc. n.° 1254/16-30 da 22 Secção - Contencioso Tributário, através do Acórdão de 11/04/2018, que determina a procedência do entendimento sempre defendido pela Recorrente, conforme conclusões que ora se transcrevem:
"Podemos, assim, concluir que o recurso não merece provimento, esclarecendo-se, no entanto, que asiste à recorrente o direito a que seja reformulada condenação efectuada em primeira instância posto que a isenção que resulta do referido artigo 13°, al. a) do DL n.° 40397 trata-se de um beneficio fiscal automático que não carece de reconhecimento, cf. Artigo 5°, n.° 1, do EBF.
Em face do exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em negar provimento ao recurso, reformulando-se no entanto a condenação efectuada em primeira instância."
30ª - No mesmo sentido os mais recentes Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 09/10/2018, no Proc. n.° 364/18-30STA, referente ao Proc. n.° 663/12.4BELRS, e de 10/10/2018, no Proc. n.° 243/18-30STA, referente ao Proc. n.° 1914/10.5BELRS.
Termos em que não deve ser concedido provimento ao presente recurso, mantendo-se a decisão proferida pelo Tribunal Tributário, encontrando-se em vigor a norma expressa na alínea a) do artigo 13° do Decreto-Lei n.° 40.397, de 24 de Novembro, que não viola o disposto no artigo 238° da CRP nem o princípio da igualdade tributária, e consequentemente anular as taxas urbanísticas liquidadas e reconhecer o direito da SCML de isenção subjectiva, com todas as consequências legais.

PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO.

O Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste TCA foi devidamente notificado e pronunciou-se.

II QUESTÕES A APRECIAR.

O objecto do presente recurso, delimitado pelas conclusões formuladas (artigos 635º/3-4 e 639º/1-3, ambos do Código de Processo Civil, «ex vi» do artº 281º CPPT), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 608º/ 2, in fine), consiste em saber se a sentença errou ao julgar procedente a ação contra o indeferimento do pedido de reconhecimento de benefício fiscal de isenção de pagamento das taxas urbanísticas formulado pela Recorrida.

III FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

A sentença fixou os seguintes factos provados e respetiva motivação:

A) A Autora, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, é uma pessoa colectiva de direito privado e utilidade pública administrativa - cfr. Decreto-Lei n.° 235/2008, de 3 de Dezembro, publicado no Diário da República n.° 234, I Série;

B) A Autora apresentou, junto da Câmara Municipal da Lisboa, um pedido de licenciamento da operação urbanística a realizar no imóvel sito na Rua ……….. em Lisboa, bem como do pedido de reconhecimento de benefício fiscal de isenção de pagamento das respectivas taxas que deu origem aos processos administrativos n.° 127/EDI/2008, 893/EDI/2008 e 441/OTR/2009 - cfr. Documento de fls. 18 dos autos;

C) O pedido de licenciamento da operação urbanística referido na alínea antecedente foi deferido por despachos da Vereador da Câmara Municipal de Lisboa - cfr. documento de fls. 27 dos autos;

D) Pelo mesmo despacho foi indeferido o pedido de reconhecimento de benefício fiscal de isenção de pagamento das respectivas taxas e deferido o reconhecimento da redução de 30% do valor das taxas que passaram de € 1683,00, € 774,00 e € 9.499,25 respectivamente, para o montante de € 1.178,10, € 541,80 e € 6.649,45 respectivamente, num total de € 8.369,35 - cf. documento de fls. 27 dos autos e 488 a 489 do PAT Vol II;

E) A Autora deduziu reclamação graciosa da liquidação de taxas referida na alínea antecedente - cfr. documento de fls. 18 dos autos e 486 do PAT;

G) Pela informação n.° 055/DMF/DAAT/DPTF/2012, datada de 15 de Fevereiro de 2012, foi apreciada a Reclamação Graciosa deduzida contra as Taxa Urbanísticas, no sentido de considerar que o artigo 13° do Decreto-Lei n° 40.397, de 24 de Novembro de 1955, que estabelecia em favor da Autora o benefício fiscal de isenção de impostos, contribuições, taxas ou licenças do Estado ou corpos administrativos, seja de que natureza for, foi revogado por força da entrada em vigor da do Decreto-Lei n.° 235/2008 de 3 de Dezembro, que aprovou os actuais estatutos revogando toda a disciplina contida nos anteriores estatutos aprovados pelo Decreto-lei n.° 322/91 de 26 de Agosto propondo o indeferimento da reclamação - cf. documento de fls. 18;

G) A Autora foi notificada pela Entidade Demandada para exercer o direito de audição sobre o projecto de decisão - cf. fls.17;

H) A Autora foi notificada do despacho convertendo em definitivo o projecto de decisão mantendo o valor das taxas com redução de 30% do seu valor - cf. docs. Fls. 19 e segs;

I) Em 05/09/2012 a Autora apresentou a petição inicial que deu origem à presente acção - cf. fls. 30.

Nenhum outro facto se provou com interesse para a decisão da causa.

A decisão sobre a matéria de factos assentou na análise crítica do teor dos documentos constantes dos autos conforme referido a propósito de cada alínea do probatório.

IV – FUNDAMNTAÇÃO DE DIREITO.

Santa Casa da Misericórdia deduziu ação administrativa especial contra o Município de Lisboa alegando ter apresentado pedido de licenciamento de operação urbanística a realizar em prédio bem como pedido do reconhecimento de benefício fiscal de isenção de pagamento das respetivas taxas. Pedido que foi indeferido com fundamento em que, não contendo os actuais estatuto da A. norma análoga de isenção à postulada no art. 34º dos anteriores estatutos aprovados pelo Decreto-Lei n.º 322/91, de 26/8, prevalecerá o estatuído nos regulamentos municipais, reconhecendo à A., apenas, o benefício fiscal de redução da taxa em 30%, por ser a concessão efetuada pelo Município de Lisboa às pessoas coletivas de utilidade pública administrativa. A decisão é ilegal uma vez que ainda hoje se mantém em vigor o Decreto-Lei n.º 40397 de 24 de agosto, que confere à A. o direito à isenção de contribuições e taxas, diploma que não foi revogado nem pelos Decretos-Lei n.º 235/08 ou 321/91.

A MMª juiz julgou a ação procedente com fundamento em que o art. 13º do Decreto-Lei n.º 40397/55 de 24/11, não foi revogado por qualquer diploma legal , razão pela qual os interesses públicos específicos prosseguidos pela Autora que determinaram a isenção em causa e que foram aprovados pelo Estado mantêm-se até à sua expressa revogação.

Acrescentou que o n.º 2 do art. 7º e 8º do RGTAL – Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais aprovado pela Lei n.º 53-E/2006, de 29/12, invocado pela Demandada não é incompatível com a manutenção em vigor da norma contida na alínea a) do art.º 13º do Decreto-Lei n.º 40397, nem as suas normas teriam a virtualidade de revogar a referida norma.

Por outro lado, a criação de isenções relativamente às taxas não constitui um poder exclusivo das autarquias locais. O art. 8º n.º 2 alínea d) do RGTAL não constitui uma norma revogatória de isenções pré existentes, mas antes uma norma reguladora de futuras isenções concedidas através do exercício do poder regulamentar das autarquias.

O Município recorreu, discordando com os seguintes fundamentos:

Reitera que o Decreto-Lei n.º 40397 de 24 de novembro de 1955 foi expressamente revogado pelo Decreto-Lei n.º 322/91, de 26 de agosto, mantendo-se apenas em vigor a isenção por força do art. 34 daquele Decreto-Lei n.º 322/91. O Decreto-Lei n.º 235/2008 de 3 de dezembro aprovou os novos estatutos da Santa Casa da Misericórdia e procedeu à expressa revogação do Decreto-Lei n.º 322/91, pelo que as isenções de taxas municipais para a A. passaram a ser exclusivamente apreciadas no âmbito das disposições regulamentares municipais aplicáveis às taxas municipais (Conclusões I a VIII).

Por força do art. 238º/4 da Constituição, e dos diplomas que lhe vieram dar execução, está vedada a atribuição de isenções de taxas municipais criadas pelos municípios, que é defendida por vários autores. O Município, no âmbito do seu poder tributário e das competências que constitucionalmente lhe foram atribuídas, aprovou o Regulamento Municipal de Taxas Relacionadas com a Actividade Urbanística e Operações Conexas, que, de forma geral e abstrata atribui isenções aplicáveis a todas as entidades que sejam associações públicas, pessoas colectivas de utilidade pública, instituições particulares de solidariedade social ou outras associações sem fins lucrativos, que prossigam fins culturais, sociais, religiosos, desportivos ou recreativos.

Esta isenção tem caráter subjetivo, cujos potenciais sujeito passivos são abstratamente descritos não se permitindo desigualdades na atribuição de isenções, que claramente e sem qualquer justificação tem lugar com a aplicação da alínea a) do art.º 13º do Decreto-Lei n.º 40397, com violação dos princípios da igualdade e da autonomia financeira das autarquias (Conclusões IX a XVI).

Não se pode concluir que a Misericórdia de Lisboa prossegue interesses que transcendem o âmbito das autarquias locais, porquanto estas, para além das suas restantes atribuições, os prosseguem também. Aliás, o interesse público prosseguido pelo Município de Lisboa transcende os interesses prosseguidos pela Misericórdia de Lisboa (XVII a XXII).

A superveniência de norma constitucional que veio atribuir poderes tributários às autarquias através da previsão legal, a norma do Decreto-Lei n.º 40397, de 1955, encontrando-se prevista num diploma legal emanado pelo Governo sem qualquer intervenção da autarquia, resulta supervenientemente inconstitucional, devendo cessar a sua vigência desde a entrada em vigor dos diplomas legais de 2007 (Conclusões XXIII a XXV).

A decisão é também ilegal por condenar a ED a reconhecer um benefício fiscal que a lei dispensa de reconhecimento. A haver condenação esta sempre seria a de anulação das liquidações objeto dos presentes autos, e não a um acto de reconhecimento de um benefícios fiscal (XXVI a XXX).

Sendo estes os fundamentos do recurso, passemos à sua apreciação, antecipando desde já que vários acórdãos do STA têm afirmado a atualidade da vigência da alínea a) do art. 13º Decreto-Lei n.º 40397 de 24 de novembro, que procedeu à reorganização da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, e que esta também é a nossa interpretação.

Com efeito, este preceito determina, no que para aqui releva:

A Misericórdia goza de isenção de:

a) Impostos, contribuições taxas ou licenças do Estado ou dos corpos administrativos, sejam de que natureza forem.

Esta isenção foi expressamente mantida pelo Decreto-Lei n.º 322/91, que aprovou os “Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e os Regulamentos dos Departamentos de Gestão Imobiliária e de Património e de Jogos, naquela integrados, anexos ao presente diploma e que dele fazem parte integrante”, determinando o seu art. 2º que à medida que entrarem em vigor as normas previstas nos Estatutos, deixam de se aplicar todas as normas legais e regulamentares relativas ou aplicáveis à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e que contrariem o disposto nos mesmos Estatutos.

Os Estatutos não só não contrariam a isenção atribuída pela alínea a) do art. 13º do Decreto-Lei n.º 40397, como o seu artigo 34º expressamente refere que se mantêm a favor da Misericórdia de Lisboa, todas as isenções que lhe foram conferidas por lei.

Posteriormente, o Decreto-Lei n.º 235/2008, de 3 de dezembro revogou o Decreto-Lei n.º 322/91, de 26 de Agosto, alterado pelo Decreto-Lei n.º 469/99, de 6 de Novembro e aprovou os estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

Este diploma também não revogou o referido art. 13º do Decreto-Lei n.º 40397. Contudo, a revogação do Decreto-Lei n.º 322/91 implicou a revogação do seu artigo 34º que previa a manutenção das isenções conferidas por lei.

Importa, assim, esclarecer se a revogação do Decreto-Lei n.º 322/91 e dos Estatutos que aprovou, implica a revogação do artigo 13º, al. a) do Decreto-Lei n.º 40397, de 24.11.1955.

Contudo, o STA já esclareceu por diversas vezes que o DL n.º 322/91 não “afectou” a vigência do referido artigo 13º, al. a). Pois se o art. 34° previa que se “mantinham” (mantém-se) "...a favor da Misericórdia de Lisboa todas as isenções que lhe foram conferidas por lei", resulta que se os Estatutos não contivessem esta norma o referido artº 13º do DL 40397 não teria deixado de estar em vigor, uma vez que o seu conteúdo não colide com os Estatutos aprovados.

Ou, como melhor se escreveu no Ac. do STA n.º 01254/16 de 11-04-2018,
Significa isto desde logo que o legislador ordinário entende que o referido Dec.-Lei nº 40397 estava em vigor, no tocante à referida isenção, ao referir expressamente a palavra "mantêm-se".

Assim, uma vez que a publicação do Decreto-Lei n.º 322/91 não afetou a vigência do art.º 13º do Decreto-Lei n.º 4097, a revogação daquele pelo DL n.º 235/2008 é irrelevante para efeitos de eliminação da norma constante do dito artigo 13º, al. a) do DL n.º 40397, mesmo não contendo qualquer norma idêntica ao art. 34º dos Estatutos aprovados pelo Decreto-Lei n.º 322/91.

O art.º 13º do referido Decreto-Lei n.º 4097 só desaparecerá da ordem jurídica quando for expressamente revogada pelo legislador ordinário, ou quando colida frontalmente com norma de hierarquia superior, o que não é o caso.

Isto dito, significa também que as isenções de taxas municipais para a A. não passaram a ser exclusivamente apreciadas no âmbito das disposições regulamentares municipais aplicáveis às taxas municipais.

Nem daí resulta qualquer inconstitucionalidade, quer por violação do princípio da igualdade quer por violação dos princípios da autonomia financeira das autarquias e da igualdade tributária, quer por violação do art. 238º da Constituição.

Desde logo, porque a autonomia do poder local prevista no art. 238º da Constituição não confere aos municípios a competência exclusiva para a criação de isenções, como bem assinala a MMª juiz.

E também não viola o princípio da igualdade, pois tal violação pressuporia situações objetivamente iguais - e não foi demonstrado que haja outras situações iguais preteridas de isenção.

No que respeita ao facto de o artigo 13.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 40397, de 24/11/1955 cessar vigência, seja por ser incompatível com o princípio da autonomia fiscal do Município, concretizada no Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais [RGTAL], aprovado pela Lei n.º 53-E/2006, de 29 de Dezembro, mas também no artigo 12.º da Lei das Finanças Locais (Lei n.º 2/2007, de 15.01 - LFL), seja por ser incompatível com o princípio da igualdade tributária, dado que entidades de cariz semelhante à recorrida não beneficiam de idêntico regime de isenção integral de taxa; tais princípios e os regimes que os concretizam são postergados, na medida em que os mesmos reservam expressamente aos municípios a criação e fundamentação das isenções de impostos municipais e outros tributos próprios, a Recorrente também não tem razão.

Acompanhamos a fundamentação dos Acs deste TCAS, de 07.06.2018, P. 199/11.0BELRS e 2784/12.4BELRS de 25.06.2020, onde se consigna que:

«E, como se disse na sentença recorrida, o julgamento que vimos fazendo não resulta comprometido com a aprovação do actual regime geral das taxas das autarquias locais pela Lei nº 53-E/2006, de 29 de Dezembro, designadamente pelo preceituado no 8º, nº 2, alínea d)– que estabelece que “O regulamento que crie taxas municipais ou taxas das freguesias contém obrigatoriamente, sob pena de nulidade: (…) d) as isenções e a sua fundamentação”, por desta exigência de menção obrigatória não ser de extrair qualquer imperativo de exclusividade de atribuição deste tipo de isenções nos referidos regulamentos.

Aliás, é este, se bem vemos, o entendimento que vem sendo veiculado pela doutrina relativamente à possibilidade de criação de isenções de taxas locais por meio de lei:

-“[d]iremos sumariamente que o princípio da autonomia financeira local não surge consagrado na Constituição da República em termos tais que ao legislador fique vedada a introdução de benefícios fiscais em tributos da titularidade das autarquias, tudo se resumindo num exercício de ponderação entre a autonomia financeira local e os demais princípios ou valores que com ela se confrontem.” -“na consagração constitucional do princípio da independência financeira das autarquias, encontramos valores como o da “solidariedade” – a “justa repartição dos recursos públicos” que se lê no artigo 240.º, n.º 2 da CRP [1976] – e da correcção das desigualdades no cerne da emanação do poder local. Nessa medida, não se vislumbram razões suficientes no sentido do princípio da autonomia do poder local ser entendido com extensão tal de “fazer cessar” as isenções subjectivas no que respeita a taxas cobradas pelos municípios. Na verdade, não nos parece possua um conteúdo material suficiente para questionarmos se a isenção de 1955 deve ou não sobrevigorar.”.

Em suma, a interpretação constitucionalmente conforme do artigo 8.º, nº 2, alínea d), do RGTAL implica que este normativo não seja interpretado como uma norma revogatória de isenções prévia e legalmente estabelecidas, mas, tão só, como uma norma reguladora de futuras isenções concedidas através do exercício regulamentar das autarquias.

(...)

Já sabemos que este Supremo Tribunal no acórdão datado de 06.10.2004, recurso n.º 0703/04, esclareceu: Defende o recorrente que o art. 34° do Decreto-Lei n.º 322/91, de 26/8 é inconstitucional, já que este Diploma, no que contende com as finanças locais é inconstitucional, por não estar o governo provido com a necessária credencial da Assembleia da República para legislar no sentido de isentar a Santa Casa da Misericórdia ..... da tarifa em causa.

(...)

Efectivamente, como veremos de seguida, a questão da violação dos parâmetros constitucionais suscitada pelo recorrente também não ocorre pelas razões já apontadas pelo Tribunal Constitucional em apreciação daquele acórdão deste STA, cfr. ac. do TC n.º 285/2006, datado de 03.05.2006.

Entende o recorrente que o disposto naquele artigo 13º, al. a) ofende o disposto no artigo 238.º, n.º 4 da CRP.

Dispõe este preceito constitucional sob a epígrafe “Património e finanças locais”:

1. As autarquias locais têm património e finanças próprios.

2. O regime das finanças locais será estabelecido por lei e visará a justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias e a necessária correcção de desigualdades entre autarquias do mesmo grau.

3. As receitas próprias das autarquias locais incluem obrigatoriamente as provenientes da gestão do seu património e as cobradas pela utilização dos seus serviços.

4. As autarquias locais podem dispor de poderes tributários, nos casos e nos termos previstos na lei.

Naquele referido acórdão do TC escreveu-se com interesse para o que aqui nos interessa:

Atento o teor do artigo 13º, alínea a), do Decreto-Lei nº 40397, de 24 de Novembro de 1955, pese embora o recorrente se refira genericamente à autonomia local, importa considerar especificamente a autonomia financeira das autarquias locais – «um pressuposto ou um elemento da autonomia local» –, que o artigo 238º da CRP caracteriza «pela existência de “património e finanças próprias”, incluindo obrigatoriamente nas receitas próprias “(…) as cobradas pela utilização dos seus serviços”» (Artur Maurício, «A garantia constitucional da autonomia local à luz da jurisprudência do Tribunal Constitucional», Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, vol. I, Coimbra Editora, 2003, p. 644 e s.). De facto, a questão que se põe nos presentes autos é a de saber se a autonomia financeira das autarquias locais, assim caracterizada, é ofendida pela norma que isenta a Santa Casa da Misericórdia .... de taxas (no sentido de a tarifa de conservação de esgotos ser uma taxa, cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 76/88, Diário da República, I Série, de 21 de Abril de 1988).

Com interesse para a presente decisão pode ler-se no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 288/2004 (Diário da República, II Série, de 9 de Junho de 2004) – aresto que apreciou a norma que atribuía à concessionária de serviço público de telecomunicações o direito de ocupação e utilização de vias de comunicação do domínio público, com isenção total de taxas e quaisquer outros encargos, sempre que tal se mostre necessário à implantação das infra-estruturas de telecomunicações ou para a passagem de diferentes partes da instalação ou equipamentos necessários à exploração do objecto da concessão – o seguinte:

«Também quanto à norma do artigo 29º, alínea e), do Decreto-Lei n.º 40/95, de 15 de Fevereiro, ora em causa, se impõe a conclusão de que ela não viola, nem a autonomia financeira, nem a garantia de obtenção de receitas a partir do património das autarquias locais.

Importa começar por notar que está em causa a prossecução de uma indiscutível finalidade pública – assegurar a existência de um serviço público de telecomunicações (cfr. o artigo 8º, n.º 1, da citada Lei n.º 91/97, segundo o qual ao Estado incumbe assegurar a existência e disponibilidade de um serviço universal de telecomunicações) – com clara relevância constitucional, e que tem de ser prosseguida a nível nacional.

Ainda que não expressamente autonomizada como incumbência do Estado – ao contrário do que acontece noutras Constituições (assim, na Lei Fundamental alemã, onde a própria estrutura federal do Estado torna necessária uma norma como o artigo 73º, n.º 7, que atribui à Federação competência exclusiva em matéria de telecomunicações) – a manutenção, ou a criação de condições para a existência, de um serviço público de telecomunicações constitui uma forma de prossecução de objectivos com relevância constitucional (…).

A existência e a disponibilidade de um serviço público de telecomunicações de âmbito nacional corresponde, pois, a um interesse público que transcende o âmbito das autarquias locais. Trata-se, também aqui, de uma matéria que respeita “ao interesse geral da comunidade constituída em Estado”, e que ultrapassa “o universo dos interesses específicos das comunidades locais, aquele mesmo que se desenvolve num horizonte de proximidade, participação, controlabilidade e auto-responsabilidade e que funda a legitimação democrática do poder local”».

Também quanto à norma que importa apreciar nos presentes autos é de afirmar que estão em causa interesses que transcendem o âmbito das autarquias locais, ultrapassando o universo dos interesses específicos das comunidades locais, atendendo aos fins estatutários e ao âmbito territorial da Santa Casa da Misericórdia ..... (artigos 2º e 4º dos Estatutos, aprovados pelo Decreto-Lei nº 322/91). Nomeadamente, por esta pessoa colectiva de utilidade pública administrativa prosseguir humanitária e benemerentemente fins de acção social, prestação de cuidados de saúde, de educação e cultura e de promoção da qualidade de vida, sobretudo em proveito dos mais desprotegidos (artigos 1º, nº 1, e 2º, nº 1, dos Estatutos), com clara relevância constitucional (cf. artigos 63º, nº 5, 64º, nº 1, 65º, nº 1, e 73º, nº 1, da CRP e, ainda, Acórdão do Tribunal Constitucional nº 309/2001, Diário da República, II Série, de 19 de Novembro de 2001).

Assim sendo, a norma que isenta a Santa Casa da Misericórdia ..... de taxas, contida na alínea a) do artigo 13º do Decreto-Lei nº 40397, de 24 de Novembro de 1955, não ofende o disposto nos nºs 1 e 3 do artigo 238º da CRP.

E o mesmo, e mais, se poderá dizer no que toca ao disposto no n.º 4 do mesmo preceito constitucional uma vez que a referida isenção não afecta os eventuais poderes tributários que sejam ou possam a vir ser reconhecidos às autarquias locais na medida em que não contendem com a concreta cobrança da taxa em questão.

Ou seja, todas as questões que o recorrente agora coloca já anteriormente foram resolvidas, quer por este Supremo tribunal, quer pelo Tribunal Constitucional nas decisões anteriormente referidas.».

O recorrente invoca também a violação do princípio da igualdade tributária, por parte do entendimento que fez vencimento na instância, ao não remeter para os regulamentos municipais a concessão de isenções sobre taxas urbanísticas do município. Destarte, não se vê em que medida a concessão de uma isenção de taxas municipais através de lei, possa só por si, sem mais, consubstanciar preterição do princípio da igualdade tributária. No caso, estão em causa interesses supra municipais, que se prendem com o reconhecimento da utilidade pública administrativa da pessoa colectiva em apreço. Pelo que a presente linha de argumentação não se mostra procedente.

A sentença recorrida ao julgar no sentido referido não incorreu em erro, pelo que deve ser confirmada na ordem jurídica”

Termos que se impõe julgar improcedentes todas as conclusões de recurso, não obstante assistir à Recorrente o direito a que seja reformulada a condenação efetuada em primeira instância, uma vez que a isenção que resulta da alínea a) do art. 13º do Decreto-Lei n.º 40397 corresponde a uma benefício fiscal automático que não carece de reconhecimento (Art. 4º/1 do EBF).

V DECISÃO.

Termos em que acordam, em conferência, os juízes da secção de contencioso Tributário deste TCAS em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença a sentença recorrida, reconhecendo-se à Requerente o direito à isenção das taxas urbanísticas nos processos em causa.

Em consequência, reformula-se o segmento decisório da sentença que será no sentido de a Demandada abster-se de liquidar as taxas urbanísticas no âmbito dos processos administrativos n.º 127/EDI/2008, 893/EDI/2008 e 441/OTR/2009 e, em consequência, anular as taxas liquidadas.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 25 de março de 2021.


[Nos termos do disposto no art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 01 de maio, o relator consigna e atesta que têm voto de conformidade as Exmas. Senhoras Desembargadoras Patrícia Manuel Pires e Susana Barreto que integram a presente formação de julgamento.]


(Mário Rebelo)