Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:380/13.8BELLE
Secção:CT
Data do Acordão:01/14/2021
Relator:CATARINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores:IRC
ÓNUS DA PROVA/ FACTO NEGATIVO
DÚVIDAS FUNDADAS
Sumário:I - O nº 1 do artigo 342º do CC consagra o princípio de que “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”. E “isto quer os factos sejam positivos quer sejam negativos”.
II - Se o direito que se faz valer tem como requisito um facto negativo, deve este facto ser provado por quem exerce o direito, precisamente como os factos positivos que sejam requisitos dos direitos exercidos, sem prejuízo de, face à dificuldade da prova dos factos negativos, se admitir uma menor exigência relativamente à sua demonstração.
III - O artigo 100º, nº1 do CPPT não afasta a aplicação do artigo 74º da LGT, pelo que não deve ser convocada se, no procedimento e processo, é atribuído o ónus da prova ao contribuinte e ele não o cumpre; neste caso, não podem considerar-se dúvidas fundadas com efeitos invalidantes do acto, determinantes da sua anulação.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul

l – RELATÓRIO

J... e C..., m.i. nos autos, vieram, na qualidade de responsáveis subsidiários por dívida de IRC da sociedade “N... – Investimentos, S.A.”, deduzir impugnação judicial contra a liquidação de IRC n.º 2012 8..., de 13/11/12, relativa ao exercício de 2004, no valor de total de € 818.193,51.

A impugnação judicial foi julgada improcedente e, como tal, foi mantida a liquidação impugnada.

Inconformados com a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, J... e C..., interpuseram o presente recurso jurisdicional, tendo apresentado as suas alegações e formulado as seguintes conclusões:

a) Embora na escritura fosse declarado que a N... recebeu o valor de oito milhões trezentos e setenta e cinco mil euros, a N... não recebeu qualquer montante pela venda do imóvel identificado.”

b) A escritura de compra e venda não faz prova plena da entrega do preço quando não certifica que ele teve lugar na presença do notário

c) A testemunha J... foi perentória a afirmar que a sociedade “não recebeu qualquer montante dos oito milhões acordados para a venda, nem nesse nem em momento posterior”, (pagina 13, 2o ° paragrafo da sentença)

d) O tribunal ao dar credibilidade ao depoimento da testemunha quando a mesma refere que a sociedade não recebeu qualquer valor, tem que valorizar as mesmas palavras da testemunha para provar que a sociedade não recebeu os € 8.375.000,00.

e) Estamos perante a prova de um facto negativo.

f) A acrescida dificuldade da prova de factos negativos deverá ter como corolário, por força do princípio constitucional da proporcionalidade, uma menor exigência probatória por parte do aplicador do direito, dando relevo a provas menos relevantes e convincentes que as que seriam exigíveis se tal dificuldade não existisse, assim aplicando a máxima latina “iis quae difficilioris sunt probationis leviores probationes admittuntur”.

g) No caso em apreço, a prova testemunhal é um meio de prova suscetível de avaliação subjetiva, e na análise do depoimento da testemunha J... o tribunal deu valor probatório às suas declarações, inclusive, em detrimento de documentos juntos ao processo.

h) Mais, deu relevância probatória ao facto do mesmo dizer que a N... não recebeu qualquer valor.

i) Pelo exposto, deve ser dado como provado o facto que consta do ponto 18 da impugnação judicial: Embora na escritura fosse declarado que a N... recebeu o valor de oito milhões trezentos e setenta e cinco mil euros, a N... não recebeu qualquer montante pela venda do imóvel identificado.

j) A AT considera que a venda de um terço do artigo 3..., secção S e a parte urbana do artigo 1... foi feita por €323.333,33 através da seguinte dedução:-Existem 3 proprietários; cada proprietário é titular de um terço do bem; o prédio foi vendido na sua totalidade por €970.000,00; a reclamante vendeu 1/3; a reclamante recebeu €323.333,33

l) Ora, existindo vários comproprietários e sabendo uns da necessidade que os outros têm de vender o bem comum, é usual que aqueles exijam contrapartidas maiores que os que vivem um situação de dependência têm que se sujeitar. 

m) No caso em apreço foi isso que a testemunha veio dizer, que a N... apenas recebeu cerca de €30.000,00.

n) E, na realidade, não há qualquer documento, qualquer depoimento, qualquer meio de prova que diga o contrário.

o) Termos em que deve ser dado como provado “ Que o valor efetivamente recebido pelo negócio identificado em B) dos factos assentes foi de €30.880,00.

p) Nesta situação é de justiça o direito dos recorrentes verem anulada, a liquidação do imposto que foi operada com base em matéria colectável erroneamente qualificada e, ainda, «que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o acto impugnado ser anulado», ao abrigo do n.° 1 do artigo 100.° do C.P.P.T. (sublinhado nosso).

Termos em que, o presente Recurso deverá ser julgado provado e procedente, e, em consequência revogada a Decisão recorrida, e, consequentemente, ser revogada a liquidação de IRC objecto dos autos, considerando o valor de total de € 30.880,80 referente a “Venda e Prestações de serviços” e efectuada a liquidação tendo como pressuposto este montante.



*

Não foram apresentadas contra-alegações.



*

A Exma. Magistrada do Ministério Público (EMMP) pronunciou-se no sentido do não provimento do recurso.

*




Colhidos os vistos legais, vem o processo submetido à conferência desta Secção do Contencioso Tributário para decisão.



*


II – FUNDAMENTAÇÃO

- De facto

A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:

A) Por escritura de 29.01.2004, celebrada no 2.º Cartório Notarial de Loulé, a “N... – Investimentos, S.A.” vendeu a “Construções G..., Lda.”, pelo valor de € 8.375.000,00, o prédio rústico inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 6… Secção 3, localizado no sítio da L..., freguesia de S. Pedro, concelho de Faro, sobre o qual incidia uma hipoteca a favor de A... e V... e arresto a favor de I... – cfr. cópia da escritura a fls. 79 a 104, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

B) No mesmo ato que antecede a “N... – Investimentos, S.A.” vendeu a “Construções G..., Lda.” 1/3 do prédio misto, Sítio da L... de Cima, freguesia de São Pedro, concelho de Faro, matriz rústica 3…, Secção S e matriz urbana 1..., tendo a venda sido realizada pelo preço global de € 970.000,00, sem especificação do valor de cada uma das partes – cfr. cópia da escritura a fls. 79 a 104, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

C) Em 02.07.2005 a “N... – Investimentos, S.A.” deduziu contra “Construções G..., Lda.” ação comum sob a forma ordinária, na qual, fazendo referência à escritura identificada em A), alega que a sociedade compradora, não obstante instada a fazê-lo, não lhe pagou o preço do imóvel e pede que seja condenada a pagar a quantia de € .365.000,00 acrescida de juros – cfr. fls. 13 a 18 dos autos.

D) Em 18.07.2007, no âmbito do processo que correu termos no 2.º Juízo de Competência Cível do tribunal Judicial de Loulé sob processo n.º 1543/05.5TBLLE, as partes, “N... – Investimentos, S.A.”, como Autora, e “Sociedade de Construções G..., Lda.” como Ré, chegaram a acordo sobre o litígio, tendo a Autora reduzido o pedido para € 1.220,000,00, e «reconhece ainda expressamente que o contrato-promessa de compra e venda e respectivo aditamento, celebrado com a Ré em 29 de Janeiro de 2004, e que têm por objecto a promessa de venda dos lotes n.ºs 4… a 4… e E-1 da Urbanização da L... de Baixo em Faro […] foram validamente resolvidos por incumprimento da sua parte […]» nos termos e condições constantes do respetivo “Termo”, constante de fls. 19/20, que aqui se dá por reproduzido.

E) Ao abrigo da ordem de serviço n.º OI2... 24.04.2008, com início em 01.09.2008 e final em 09.10.2008, a Administração Fiscal levou a cabo uma ação inspetiva de âmbito parcial à “N... – Investimentos, S.A.” relativa ao IRC do exercício de 2004 – cfr. fls. 74 a 86 do processo instrutor apenso.

F) Em 07.11.2008 foi elaborado o Relatório Final de Inspeção Tributária, sancionado em 10.11.2008, do qual se extrai, no que ao caso relava, o seguinte:

«… III – DESCRIÇÃO DOS FACTOS E FUNDAMENTOS DAS CORREÇÕES MERAMENTE ARITMÉTICAS À MATÉRIA TRIBUTÁVEL

No dia 1 de Setembro de 2008, foi notificada a sociedade N... Investimentos Imobiliários, SA, na pessoa do Presidente do Conselho de Administração, para no prazo de 15 dias regularizar o atraso verificado na escrita da empresa.

No dia 23 de Setembro de 2008, foi entregue uma declaração de rendimentos Modelo 22 relativa ao exercício fiscal de 2004, na qual foi apurado um prejuízo fiscal no montante de € 1.919.389,08.

Em face dos elementos existentes nesta Direcção de Finanças de Faro relacionados com a actividade exercida pela sociedade, extraímos os dados seguintes:

1) […]

2) Em 10 de Janeiro de 2000, a empresa adquiriu o prédio rústico inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 6… Secção 3, pelo montante de € 2.793.268,22, localizado no sítio da L..., freguesia de S. Pedro, concelho de Faro (escritura celebrada no 1.º Cartório Notarial de Faro);

3) No dia 13 de Março de 2000, a sociedade adquiriu um terço indiviso de um prédio misto no sítio da L... de Cima, freguesia de S. Pedro, concelho de Faro, inscrita a parte rústica sob o artigo 3… secção S e a parte urbana sob o artigo 1..., pelo valor de € 299.278,74 (escritura outorgada no 1.° Cartório Notarial de Faro);

4) Em 29 de Janeiro de 2004, a sociedade alienou o prédio mencionado no ponto 2, pelo valor de € 8.375.000,00 a Construções G..., Lda. NIF 5…, de acordo com a escritura celebrado no 29 Cartório Notarial de Loulé;

5) Igualmente em 2004-01-29 a empresa vendeu o terço indiviso dos prédios indicados no ponto 3, pelo preço de € 323.333,33 (a totalidade dos prédios foi escriturado por € 970.000,00).

[…]

No dia 29 de Setembro de 2008, o Presidente do Conselho de Administração da sociedade — J..., apresentou a contabilidade da sociedade nestes Serviços de Inspecção Tributária.

Em função dos documentos apresentados propõe-se as seguintes correcções:

1) Tendo por base a escritura outorgada em 2004-01-29, a empresa vendeu o prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 6... Secção S, por € 8.375000,00 e o terço indiviso do prédio misto (inscrita a parte rústica sob o artigo 3... secção S e a parte urbana sob o artigo 1...) pelo valor de 323.333,33, perfazendo o valor total de proveitos de € 8.698.333,33, pelo que, propõe -se o acréscimo de proveitos de €24.054,59 (declaradas vendas no total de € 8.674.278,74);

[…]

IX. DIREITO DE AUDIÇÃO – FUNDAMENTAÇÃO

[…]

Em 29 de Outubro de 2008, deu entrada nestes Serviços de Inspecção, o direito de audição do sujeito passivo.

No ponto 2, o sujeito passivo refere que embora o valor total de venda do prédio misto (inscrita a parte rústica sob o artigo 3... secção S e a parte urbana sob o artigo 1...) tenha sido de € 970.000,00 e a sociedade detivesse 1/3 do mesmo, apenas alienou a sua parte por € 299.278,74 e não por € 323.333,33, conforme referido no projecto de correcções. Da análise da escritura de compra e venda, na qual foi efectuada a transacção dos prédios verifica-se que a mesma apenas indica o valor total dos prédios, não especificando qual a parte do preço pertencente a cada um dos comproprietários. O sujeito passivo, não provou que vendeu o terço dos prédios por um valor inferior, pelo que se, mantém a correcção proposta.

[…]» – cfr. o Relatório Final de Inspeção Tributária a fls. 74 a 86 do processo instrutor apenso, que aqui se dá por integralmente reproduzido.

G) Na sequência da ação inspetiva a Autoridade Tributária efetuou, em 26.11.2008, a liquidação adicional de IRC nº 2009 8..., relativa ao exercício de 2004, no montante total de € 1.068.653,68, sendo € 939.356,99 a título de imposto e € 129.296,69 de juros compensatórios – cfr. fls. 22 a 24 do processo instrutor apenso.

H) Em 19.02.2009 a “N... – Investimentos, S.A.” foi citada no processo de execução fiscal (PEF) n.º 1…, instaurado para cobrança coerciva da liquidação que antecede – cfr. fls. 34 e 35 do processo instrutor apenso.

I) Em 08.04.2009 a “N... – Investimentos, S.A.” deduziu impugnação judicial contra a liquidação identificada em G), processo que correu termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé sob processo n.º 269/09.5BELLE e no qual foi proferida sentença de improcedência em 15.07.2011, da qual foi interposto recurso para o TCA Sul – por consulta ao SITAF.

J) Por despachos de 10.08.2012 foi determinada a audição prévia dos ora Impugnantes para efeitos de reversão no PEF identificado em H) – cfr. fls. 41/42 e 52/53 do processo instrutor apenso.

K) Em 03.09.2012 o Impugnante J... exerceu o direito de audição prévia, nos termos constantes de fls. 44 a 48 do processo instrutor apenso, e que aqui se dão por reproduzidas, invocado, no que ao caso releva, o seguinte:

«[…]

15- Nessa escritura a N... declarou que vendeu pelo preço de € 8.375.000,00, o prédio inscrito na matriz com o art.6..., secção S e descrito com o nº4...

16- Na data em que foi vendido, sobre o prédio existia:

- uma hipoteca a favor de A... e V... no montante de €4.389.421,49 -Um arresto a favor de I...

17- Nessa escritura a N... não recebeu o preço de € 8.375.000,00, porque este montante foi utilizado para pagar as hipotecas e arrestos

18- Ou seja, foi utilizado para pagar as dívidas da N... .

19- Assim, em vez de pagar os € 8.375.000,00 à G..., Lda:

-Celebrou um contrato promessa de compra e venda de lotes futuros sitos na L..., em benefício de V... no valor de € 3.596.332,55, do qual deu quitação completa na qualidade de vendedora.

- Celebrou um contrato promessa de compra e venda de lotes futuros sitos na L..., em benefício de V... e I... no valor de € 2.707.913,57, do qual deu quitação completa na qualidade de vendedora.

- Emitiu e entregou no dia 29 de Janeiro de 2004 cinco cheques no montante total de € 2.493.989,49, em nome de A....

20- Em face destes pagamentos o A...e o V... emitiram o distrate de hipoteca sobre o prédio inscrito no art.61, secção S.

21- Para obterem a declaração de renúncia do arresto do I... e mulher M..., a impugnante pagou-lhes o montante de €399.038,32, que era o valor da divida da N....

[…]

24- Estes factos são demonstrados pela carta de 9 de Dezembro de 2004, da Sociedade de Revisores Oficiais de Contas da G..., Ida, a sociedade ―M..., & Associados‖ dirigida à impugnante em que refere:

―...foram emitidos os cheques por vós solicitados, totalizando Euros 2.493.989,49, por parte das Construções G..., Lda. para pagamento a A..., tendo neste contexto A... e mulher C... emitido documento de Renúncia à Hipoteca sobre o prédio descrito na Conservatória do registo Predial de Faro sob o nº 4.... […]» – cfr. fls. 44 a 48 do processo instrutor apenso.

L) Por acórdão de 28.02.2012 o Tribunal Central Administrativo Sul concedeu provimento parcial ao recurso mencionado em I) nos termos seguintes: «revogando-se, em parte, a sentença recorrida, e, nesta medida, em julgar parcialmente procedente a presente impugnação, com a consequente anulação da liquidação adicional impugnada, na parte relativa aos custos apresentados com referência aos sinais de vários terrenos rústicos pagos pela N..., SA, em que esta não conseguiu celebrar os contratos prometidos, no valor de € 800.570,62, confirmando a sentença recorrida na restante parte.” – por consulta ao SITAF, fls. 352 do processo.

M) Ato Impugnado: Em 13.11.2012, em cumprimento do acórdão identificado em L), foi emitida para o exercício de 2004, a liquidação de IRC n.º 2012 8..., no valor de total de € 818.193,51, sendo € 719.200,07 de imposto e € 98.993,45 de juros compensatórios – cfr. fls. 31 a 33 do processo instrutor apenso.

N) Em consequência da liquidação que antecede foi anulada a quantia de € 250.460,17 em cobrança coerciva no PEF n.º 1...– cfr. fls. 36 do processo instrutor apenso.

O) Em 6 e 7 de março de 2013 os ora Impugnantes, que foram citados, por reversão, para a execução identificada em H) – cfr. fls. 50/51 e 59/60, frentes e versos, do processo instrutor apenso.

F) Em 28.05.2013 foi deduzida a presente impugnação judicial – cfr. fls. 2 dos autos.


*


Factos não provados:

Com relevância para a decisão do mérito da causa, atenta a alegação dos impugnantes, não resultou provado que:

1) Que a verba que a “N... – Investimentos, S.A.” recebeu com o negócio identificado em A) foi de € 1.220.000,00 em 18.07.2007 (artigo 24.º da petição inicial).

2) Que o valor efetivamente recebido pelo negócio identificado em B) foi de € 30.880,00 (artigo 25.º da petição inicial).


*


Fundamentação da matéria de facto:

A decisão da matéria de facto provada efetuou-se com base no exame dos documentos, não impugnados, que constam dos autos, referenciados em cada uma das alíneas do probatório, e por consulta ao SITAF no que respeita aos factos relacionados com a impugnação judicial deduzida pela “N... – Investimentos, S.A.” contra a liquidação adicional de IRC do exercício de 2004 na sequência das correções efetuadas à matéria coletável.

Quanto aos factos dados como não provados, resultaram de não ter sido produzida prova capaz de criar no tribunal a convicção sobre a ocorrência dos mesmos. Assim, e quanto ao facto indicado em 1), não obstante o “Termo de Transacção” levado à alínea D) do probatório fazer referência ao pagamento de uma quantia de € 1.220.000,00 através de cheques, o certo é que: primeiro, nenhum desses cheques veio aos autos; depois, do teor do próprio termo não se pode concluir que o pagamento tenha sido efetuado nessa mesma data (18.07.2007), mas antes que, nessa data, seriam entregues dois dos três cheques que perfariam o valor a pagar, sem, contudo, se indicarem as datas a que os mesmos reportam; por fim, não é possível, em função dos elementos levados às als. C) e D) dos factos provados, concluir com segurança que o acordo refletido na al. D) respeita à ação declarativa de condenação a que se refere a al. C), quer porque não foi junto o documento relativo à distribuição da dita ação declarativa, desconhecendo-se o n.º de processo que lhe foi atribuído, quer porque, do teor da transação nada se retira que permita estabelecer a conexão entre esta e a dita ação, aí se referindo um contrato promessa quando a escritura em causa é de compra e venda, além do que, é bastante significativa a redução do pedido de mais de oito milhões de euros para pouco mais de um milhão.

Acresce que, tais factos mostram-se em contradição com o alegado pelo próprio Impugnante J... em sede de audição prévia à reversão, onde afirmou que, na escritura identificada em A) “a N... não recebeu o preço de € 8.375.000,00, porque este montante foi utilizado para pagar as hipotecas e arrestos …Ou seja, foi utilizado para pagar as dívidas da N...”, alegação que foi confirmada pela testemunha J... em audiência de julgamento que, a instâncias da Ilustre Representante da Fazenda Pública, afirmou que quem pagou os ónus e encargos que incidiam sobre o terreno “terá sido a compradora”. É caso, para questionar por que razão não foi invocada a transação judicial identificada em D) em sede do exercício do direito audição prévia do Impugnante J... antes da reversão, como é caso para questionar, por que razão terá deixado de alegar na presente impugnação os factos invocados no exercício daquele direito.

Ou seja, em face de todos os elementos carreados para os autos, quer pelos Impugnantes, quer os constantes do processo instrutor apenso, não é possível concluir que tenha ocorrido uma redução superveniente do preço de venda do prédio rústico, de € 8.375.000,00 para € 1.220.000,00, e que seria este o valor a considerar para efeitos de proveitos, até porque (e mais uma contradição), a testemunha inquirida foi perentória a afirmar que a sociedade “não recebeu qualquer montante dos oito milhões acordados para a venda, nem nesse nem em momento posterior”.

Quanto ao facto indicado em 2), relativo ao valor recebido pela venda do prédio misto, além de não constar dos autos qualquer elemento que sustente a alegação dos Impugnantes, o depoimento da testemunha inquirida foi demasiado vago sobre o assunto, limitando a afirmar que “só receberam cerca de € 30.000,00”.


*

- De Direito

Nos presentes autos foi impugnada a liquidação adicional de IRC do ano de 2004, efetuada na sequência de ação inspetiva que procedeu à fixação da matéria tributável através de correções aritméticas, na parte em que considerou que devia ser contabilizado em proveitos o valor total de € 8.698.333,33, que integra o somatório dos valores declarados nas vendas do prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 6..., Secção S, por € 8.375000,00, e do terço indiviso do prédio misto, inscrito a parte rústica sob o artigo 3..., secção S, e a parte urbana sob o artigo 1..., pelo valor de 323.333,33, correspondente a 1/3 do valor total da venda.

Estava em causa a (i)legalidade da correcção aritmética à matéria colectável por erro quanto aos pressupostos de facto, alegando, para isso, os Impugnantes, ora Recorrentes, no sentido de que o valor declarado na venda do prédio rústico não foi o recebido, mas apenas € 1.220,000,00, já em sequência de acordo em acção judicial obtido em 18/07/07 e que, quanto ao prédio misto, não recebeu o correspondente à sua quota parte mas apenas € 30.880,80.

O TAF de Loulé julgou a impugnação totalmente improcedente e os Recorrentes não se conformam com tal decisão, nos termos que constam das conclusões da alegação de recurso.

O inconformismo com o decidido assenta em dois aspectos diferentes: por um lado, os Recorrentes entendem que há um erro de julgamento de facto, considerando que há factos que deveriam ter sido considerados provados e não foram; por outro lado, defendem que, face ao probatório que emerge, o julgamento de direito deve ser revisto, pois a liquidação contestada deve ser anulada, por assentar em “matéria colectável erroneamente qualificada”.

Vejamos por partes, começando pelo erro de julgamento de facto.

Pretendem os Recorrentes que sejam aditados ao probatório os seguintes dois factos:

i – Embora na escritura fosse declarado que a N... recebeu o valor de oito milhões trezentos e setenta e cinco mil euros, a N... não recebeu qualquer montante pela venda do imóvel identificado.

ii – O valor efectivamente recebido pelo negócio identificado em B) dos factos assentes foi de € 30.880,00.

Tenhamos presente que a impugnação da matéria de facto, tal como resulta do disposto no artigo 640º do CPC, obedece a regras que não podem deixar de ser observadas. Em tal preceito se dispõe que:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.

A leitura da citada disposição legal, no confronto com as conclusões da alegação de recurso (e, bem assim, com o teor das alegações, nas quais se indicam e transcrevem as passagens da gravação dos depoimentos), mostra que os Recorrentes deram cumprimento às imposições decorrentes da lei, pelo que passamos a apreciar a requerida alteração ao probatório.

Vejamos por partes, começando pelo circunstancialismo apontado em i) supra.

Realçam os Recorrentes que “A escritura de compra e venda não faz prova plena da entrega do preço quando não certifica que ele teve lugar na presença do notário” e, por outro lado, que “A testemunha J... foi perentória a afirmar que a sociedade “não recebeu qualquer montante dos oito milhões acordados para a venda, nem nesse nem em momento posterior”. O tribunal – prosseguem – “ao dar credibilidade ao depoimento da testemunha quando a mesma refere que a sociedade não recebeu qualquer valor, tem que valorizar as mesmas palavras da testemunha para provar que a sociedade não recebeu os € 8.375.000,00”; “estamos perante a prova de um facto negativo”, sendo evidente a acrescida dificuldade da prova de factos negativos, o que “deverá ter como corolário, por força do princípio constitucional da proporcionalidade, uma menor exigência probatória por parte do aplicador do direito, dando relevo a provas menos relevantes e convincentes que as que seriam exigíveis se tal dificuldade não existisse...”

Vejamos, então.

Em primeiro lugar, há alguma hesitação/confusão na alegação dos Impugnantes, e ora Recorrentes, pois que, ora referem que a sociedade N... nada recebeu com a venda escriturada pelo valor de € 8.375.000,00, ora referem ter recebido apenas € 1.220.000,00.

De todo o modo, considerado unicamente o depoimento da testemunha indicada, único meio de prova a que alude a alegação recursória, jamais a matéria de facto, neste ponto, poderia ser fixada nos termos que vêm requeridos. Expliquemos com maior detalhe.

A testemunha começa por referir, quanto à escritura, que não esteve presente “mas acompanhei por alto”, explicando que teve conhecimento que a N... não recebeu qualquer quantia dos € 8.375.000,00, tal como consta da escritura, apesar de nessa altura, 2004, já não estar na empresa, uma vez que integrou a Administração apenas até 2002. Ou seja, como a testemunha assume, o seu conhecimento dos factos não é directo, advindo de conversas que tinha, designadamente com o Arquitecto J....

Diga-se, ainda, que os Recorrentes não têm razão quando tentam descredibilizar a apreciação crítica do depoimento desta testemunha levada a cabo pelo Tribunal de Loulé, quando se afirma que a Juíza, “ao dar credibilidade ao depoimento da testemunha quando a mesma refere que a sociedade não recebeu qualquer valor, tem que valorizar as mesmas palavras da testemunha para provar que a sociedade não recebeu os € 8.375.000,00”. Contrariamente ao pressuposto, o Tribunal a quo não fez uma apreciação selectiva das afirmações da testemunha; para este efeito, o Tribunal acabou por não as relevar, uma vez que acabou por considerar determinante (e não posto em causa) o valor constante da escritura, não considerando que afinal a empresa tenha recebido apenas os tais € 1.220.000,00, tal como alegado na p.i.

No mais, vistos os documentos juntos aos autos e a fundamentação da convicção do Tribunal, deve dizer-se que a mesma não se mostra minimamente beliscada neste recurso, em concreto na parte em que se considerou que “não obstante o “Termo de Transacção” levado à alínea D) do probatório fazer referência ao pagamento de uma quantia de € 1.220.000,00 através de cheques, o certo é que: primeiro, nenhum desses cheques veio aos autos; depois, do teor do próprio termo não se pode concluir que o pagamento tenha sido efetuado nessa mesma data (18.07.2007), mas antes que, nessa data, seriam entregues dois dos três cheques que perfariam o valor a pagar, sem, contudo, se indicarem as datas a que os mesmos reportam; por fim, não é possível, em função dos elementos levados às als. C) e D) dos factos provados, concluir com segurança que o acordo refletido na al. D) respeita à ação declarativa de condenação a que se refere a al. C), quer porque não foi junto o documento relativo à distribuição da dita ação declarativa, desconhecendo-se o n.º de processo que lhe foi atribuído, quer porque, do teor da transação nada se retira que permita estabelecer a conexão entre esta e a dita ação, aí se referindo um contrato promessa quando a escritura em causa é de compra e venda, além do que, é bastante significativa a redução do pedido de mais de oito milhões de euros para pouco mais de um milhão”.

Significa isto que, como o Tribunal a quo bem salientou, não foi possível concluir que tenha ocorrido uma redução superveniente do preço de venda do prédio rústico, de € 8.375.000,00 para € 1.220.000,00, o que vinha alegado em sede de p.i, nem muito menos que a N... nada tenha recebido por ocasião da escritura a que alude a alínea A) dos factos provados.

Tenhamos presente que o nº 1 do artigo 342º do CC consagra o princípio de que “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”. E “isto quer os factos sejam positivos quer sejam negativos” (Alberto dos Reis, em Código de Processo Civil Anotado, III, pág. 228; Antunes Varela, em Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 116.°, pág. 341, e no Manual de Processo Civil, 2.ª ed., pág. 455; Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, III, pág. 194).

Ora, “não é pelo facto de estarmos perante um "facto negativo" que se inverte o ónus da prova nem tão-pouco pela dificuldade que isso naturalmente representa.” – Acórdão do STJ, de 07/02/08, no Proc. nº 07A4705. Se o direito que se faz valer tem como requisito um facto negativo, deve este facto ser provado por quem exerce o direito, precisamente como os factos positivos que sejam requisitos dos direitos exercidos. Não há motivos para assim não ser, sem prejuízo de, face à dificuldade da prova dos factos negativos, se admitir uma menor exigência relativamente à sua demonstração.

No caso, não há a mínima prova do alegado, por parte daqueles a quem a mesma competia, ou seja, os Recorrentes.

Assim, quando na sentença se escreveu que “a alegação de que o valor recebido pela venda do prédio rústico foi de € 1.220.000,00 em 18.07.2007, conforme o “Termo de Transacção” levado à alínea D) do probatório, não foi provada, não podendo o tribunal considerar afastada, por prova do contrário, a declaração de recebimento do preço contratado, refletida na escritura”, nenhuma censura à mesma é merecida. Diga-se, aliás, insistindo, que a alegação constante da p.i é no sentido do recebimento de € 1.220.000,00 e não, como se pretende no recurso, de nada ter sido recebido.

Improcede, assim, esta primeira pretendida alteração da matéria de facto.

Avancemos para a seguinte asserção que os Recorrentes pretendem ver aditada ao probatório, em vez do facto não provado correspondente ao nº 2: “O valor efectivamente recebido pelo negócio identificado em B) dos factos assentes foi de € 30.880,00”.

Para considerar este facto não provado, relativo ao valor recebido pela venda do prédio misto, a sentença fez notar que “além de não constar dos autos qualquer elemento que sustente a alegação dos Impugnantes, o depoimento da testemunha inquirida foi demasiado vago sobre o assunto, limitando a afirmar que “só receberam cerca de € 30.000,00”.

Em discordância, os Recorrentes sublinham que a AT considera que “a venda de um terço do artigo 3..., secção S e a parte urbana do artigo 1... foi feita por €323.333,33 através da seguinte dedução:-Existem 3 proprietários; cada proprietário é titular de um terço do bem; o prédio foi vendido na sua totalidade por €970.000,00; a reclamante vendeu 1/3; a reclamante recebeu €323.333,33”. Ora, prosseguem os Recorrentes, “existindo vários comproprietários e sabendo uns da necessidade que os outros têm de vender o bem comum, é usual que aqueles exijam contrapartidas maiores que os que vivem uma situação de dependência têm que se sujeitar”, o que teria acontecido no caso, de acordo com o que a testemunha “veio dizer, que a N... apenas recebeu cerca de €30.000,00”. Para mais, prosseguem, “não há qualquer documento, qualquer depoimento, qualquer meio de prova que diga o contrário”, pelo que deve ser dado como provado que “valor efetivamente recebido pelo negócio identificado em B) dos factos assentes foi de €30.880,00”.

Nenhuma razão têm os Recorrentes, diga-se desde já e sem hesitar.

A este propósito, pretende-se que o Tribunal dê relevância ao depoimento de J... que afirmou que a N... recebeu apenas 30.000,00 quanto à venda de um terço do artigo 3..., sessão S, e a parte urbana do artigo 1....

Ora, é verdade que a testemunha afirma que a empresa recebeu 30.000,00 Euros. Mas também é verdade que o afirma nos seguintes moldes: “recordo-me de ouvir falar em qualquer coisa como 30.000 euros, apenas”; “segundo me transmitiu o Arquitecto, foi exactamente isso 30.000 euros”; “não tenho presente a justificação disso” (respondendo à questão se saber a justificação para receber um valor bem abaixo do correspondente a 1/3 do valor de venda), mais adiantando que “seguramente que eu vi a justificação mas sinceramente, com toda a honestidade não me lembro. Não me recordo”; isto em resposta à questão de saber se “…, aquilo que foi acordado nesta venda foi ou não a N... receber um terço do valor correspondente ao total da venda?”, limitou-se a dizer “Eu creio que sim”.

Sem hesitar, diremos que é evidente que este é um depoimento vago, genérico, que nem sequer revela um conhecimento directo do facto em causa, sendo claro que o apontado valor recebido é indicado como tendo chegado ao conhecimento da testemunha por interposta pessoa.

De resto, não sendo discutido que a quota da comproprietária, a N..., é de um terço, e face ao disposto no artigo 1405, nº 1 do CC (“Os comproprietários exercem, em conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular; separadamente, participam nas vantagens e encargos da coisa, em proporção das suas quotas …”), não se vê como afastar o teor do facto não provado em 2 com base no depoimento da testemunha, tendo presente os excertos do depoimento que acabámos de transcrever.

O pagamento de um determinado valor, o seu recebimento, o acordo entre as partes, seriam facilmente demonstráveis por meio de prova documental que as partes envolvidas no negócio estariam, em princípio, em condições de demonstrar, o que seguramente não se retira do depoimento referenciado.

Assim, quando na sentença se escreveu que “Por fim, quanto ao valor recebido pela sociedade pela venda do prédio misto, m.i. na al. B) dos factos provados, nenhuma prova foi produzida foi. Nenhum documento foi apresentado nos autos que demonstrasse que o valor acordado receber pela venda de 1/3 do prédio misto, inscrito na matriz sob o artigo 3... a parte rústica, Secção S e sob o artigo 1... a parte urbana, era inferior à respetiva quota parte do preço total acordado, € 970.000,00, além do que, na escritura não foi feita qualquer especificação do valor de cada uma das partes. Da prova testemunhal produzida também nada de esclarecedor resultou, razão pela qual foi o facto dado como não provado, conforme supra fundamentado”, tal só pode merecer o nosso inteiro acordo.

Assim sendo, improcedem a pretendida eliminação do facto não provado em 2 e o pretendido aditamento correspondente.


*

Estabilizada a matéria de facto, avancemos para o direito.

E aqui, como está bom de ver, a consequência jurídica pretendida, invalidante do acto sindicado, está absolutamente dependente da resposta que demos à impugnação do julgamento de facto. Ora, nos termos expostos anteriormente, o probatório manteve-se inalterado, o que, como é fácil de ver, compromete inexoravelmente a pretensão recursória.

Vejamos, então, tendo presente que, para os Recorrentes, é de justiça o direito de “verem anulada, a liquidação do imposto que foi operada com base em matéria colectável erroneamente qualificada”, caso resulte da “prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o acto impugnado ser anulado», ao abrigo do n.° 1 do artigo 100.° do C.P.P.T”.

Deixemos transcrito o que a sentença decidiu quanto à aplicação do direito, repetindo que os Impugnantes alegavam que o valor declarado na venda do prédio rústico não foi o recebido, mas apenas € 1.220,000,00, já em sequência de acordo em acção judicial obtido em 18/07/07 e que, quanto ao prédio misto, a sociedade não recebeu o correspondente à sua quota parte mas apenas € 30.880,80, pretendendo assim a anulação da correcção aritmética à matéria coletável, na parte correspondente.

A Mma. Juíza deixou dito na sentença, além do mais, o seguinte:

“(…)

No caso, estamos perante um contrato de compra e venda, realizado por escritura outorgada em 29.01.2004, através do qual a sociedade “N... – Investimentos, S.A.” declarou vender à sociedade “Construções G..., Lda.”, e esta declarou comprar, pelo valor de € 8.375.000,00, o prédio rústico inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 6... Secção 3, localizado no sítio da L..., freguesia de S. Pedro, concelho de Faro, e ainda, 1/3 do prédio misto, tendo a venda deste último prédio sido declarada pelo preço global de € 970.000,00, sem especificação do valor de cada uma das três partes, mais tendo a vendedora declarado ter recebido os valores relativos aos preços convencionados, pelo que, em face do que se expôs, teria de ser refletido nos proveitos o ganho obtido com as vendas realizadas, atento o valor declarado na escritura, por ser esse o documento de suporte contabilístico.

É verdade, como alegam os Impugnantes, que, de acordo com o disposto no artigo 371.º, n.º 1, do Código Civil os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora, mas não podem atestar, do mesmo modo, a veracidade das declarações referentes ao recebimento do preço uma vez que não foram por ela percecionados.

Contudo, é um facto assente e incontroverso que a “N... – Investimentos, S.A.” e a sociedade compradora, “Construções G..., Lda.”, declararam na escritura pública que aquela já tinha recebido da compradora o preço.

Questiona-se, assim, desde logo, e em face da alegação dos Impugnantes, que valor probatório deve então ser atribuído a tal declaração.

A jurisprudência dos tribunais superiores tem entendido que, se o documento não faz prova plena da verdade do que foi declarado, faz, no entanto, prova plena da declaração de ter sido recebido pelo vendedor o preço acordado – cfr. v.g. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.12.2011, (disponível em www.dgsi.pt) – e que, tal força probatória plena só pode ser contrariada por meio de prova do contrário, nos termos do disposto no artigo 347.º do CC que dispõe: “A prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto (...)”, o que significa que o vendedor é admitido a destruir a força da confissão de haver recebido o preço, mediante a prova de que, na realidade, o não recebeu; que o certo é outro facto contrário ao da afirmação que, consciente e voluntariamente, produziu perante o notário.

Ora, no caso dos autos, como resulta da matéria de facto julgada como não provada, os Impugnantes não lograram, com os elementos trazidos aos autos, demonstrar não ter a sociedade recebido o preço dos imóveis vendidos em conformidade com o declarado na escritura e com as correções efetuadas pela AT.

Na verdade, na alegação que trazem a juízo, os Impugnante alegam que o valor recebido pela venda do prédio rústico foi de € 1.220.000,00 em 18.07.2007, e não os declarados € 8.375.000,00 em 29.01.2004, por efeito da redução do pedido em sede de ação declarativa de condenação intentada para efeitos de condenação da compradora no pagamento do preço acordado e, quanto ao prédio misto, alegam que apenas receberam € 30.880,80 e não o correspondente a 1/3 do preço declarado. Contudo, a prova que foi produzida nos autos não foi de molde a destruir a força probatória resultante da confissão feita pela sociedade “N... – Investimentos, S.A.”, de haver recebido o preço, desde logo quanto ao prédio rústico, por contradição entre a prova documental e a prova testemunhal produzida e, depois, por se manterem as dúvidas sobre o efetivo recebimento do preço de acordo com os demais elementos constantes dos autos.

Assim, e como se explanou a propósito da fundamentação da matéria de facto julgada não provada, a alegação de que o valor recebido pela venda do prédio rústico foi de € 1.220.000,00 em 18.07.2007, conforme o “Termo de Transacção” levado à alínea D) do probatório, não foi provada, não podendo o tribunal considerar afastada, por prova do contrário, a declaração de recebimento do preço contratado, refletida na escritura.

Em primeiro lugar, não é possível, em função dos elementos levados às als. C) e D) dos factos provados, concluir com segurança que o acordo refletido na al. D), do qual resultou uma redução de um pedido a € 1.220.00,00, respeita à ação declarativa de condenação a que se refere a al. C), em que era peticionada a quantia de € 8.365.000,00, pelas razões que apontámos acima e para as quais remetemos a fim de evitar repetições desnecessárias.

Depois, como também se disse acima (na fundamentação da matéria de facto), a alegação de ter recebido apenas € 1.220.00,00 pela venda do prédio rústico, e apenas em julho de 2007, contraria aquilo que o próprio Impugnante J... defendeu e afirmou no exercício do direito de audição prévia antes da reversão no sentido de que, na escritura identificada em A) “a N... não recebeu o preço de € 8.375.000,00, porque este montante foi utilizado para pagar as hipotecas e arrestos …Ou seja, foi utilizado para pagar as dívidas da N...” (sublinhado nosso), alegação que foi confirmada nos presentes autos pelo depoimento de J....

Na verdade, no referido exercício do direito de audição o Impugnante J... vai mesmo ao ponto de explicar os termos em que o valor da venda do prédio rústico foi utilizado pela sociedade N..., designadamente, que «…em vez de pagar os € 8.375.000,00 à G..., Lda:

-Celebrou um contrato promessa de compra e venda de lotes futuros sitos na L..., em benefício de V... no valor de € 3.596.332,55, do qual deu quitação completa na qualidade de vendedora.

- Celebrou um contrato promessa de compra e venda de lotes futuros sitos na L..., em benefício de V... e I... no valor de € 2.707.913,57, do qual deu quitação completa na qualidade de vendedora.

- Emitiu e entregou no dia 29 de Janeiro de 2004 cinco cheques no montante total de € 2.493.989,49, em nome de A....», e que, «[e]m face destes pagamentos o A...e o V... emitiram o distrate de hipoteca sobre o prédio inscrito no art.6…, secção S» e, ainda, que «[p]ara obterem a declaração de renúncia do arresto do I... e mulher M..., … pagou-lhes o montante de €399.038,32, que era o valor da dívida da N...».

A ser assim, como se afigura mais plausível que possa ter sido, o facto de o valor correspondente ao preço do prédio rústico não ter sido entregue, fisicamente, à sociedade vendedora, não significa que não tivesse de ser devidamente refletido na sua contabilidade e levado aos proveitos para efeitos de determinação do RLE. Tais quantias terão entrado efetivamente na esfera jurídica da sociedade vendedora, como direito de crédito pelo preço acordado, por mero efeito do contrato, e com elas a sociedade decidiu fazer face a obrigações suas.

De qualquer modo, o que releva é que, não foi feita prova de que o valor contratado não foi o recebido, nem tão pouco que ocorreu uma redução do preço que pudesse ter implicação na determinação dos proveitos, e que, por outro lado, resultou provado que, efetivamente, a venda ocorreu em janeiro de 2004, tendo as partes pretendido realizar o negócio pelo preço declarado na escritura, o qual, por força do princípio da especialização dos exercícios, tinha de estar refletido da contabilidade desse mesmo exercício, a contribuir para a determinação do lucro tributável.

Por fim, quanto ao valor recebido pela sociedade pela venda do prédio misto, m.i. na al. B) dos factos provados, nenhuma prova foi produzida foi.

Nenhum documento foi apresentado nos autos que demonstrasse que o valor acordado receber pela venda de 1/3 do prédio misto, inscrito na matriz sob o artigo 3... a parte rústica, Secção S e sob o artigo 1... a parte urbana, era inferior à respetiva quota parte do preço total acordado, € 970.000,00, além do que, na escritura não foi feita qualquer especificação do valor de cada uma das partes. Da prova testemunhal produzida também nada de esclarecedor resultou, razão pela qual foi o facto dado como não provado, conforme supra fundamentado.

Por isso, uma vez mais, bem andou a Administração Tributária quando considerou que a sociedade recebeu pela venda da sua parte (1/3) do prédio o correspondente valor de 1/3 do preço, considerando que, nos termos do disposto na parte final do n.º 1 do art.º 1405.º do Código Civil os comproprietários, separadamente, participam nas vantagens e encargos da coisa, em proporção das suas quotas.

A produção de prova está associada à alegação. Quem tem de alegar os factos tem também, em princípio, o ónus da produção da prova respetiva.

Cabia aos Impugnantes, para obter a almejada anulação da liquidação de IRC com fundamento no erro nos pressupostos de facto relativos ao valor recebido pela sociedade pela venda dos imóveis em causa, ter demonstrado, sem margem para dúvidas, que, não obstante a declaração feita na escritura de ter já recebido o preço aí declarado, o mesmo não só não havia ainda sido recebido, como não o foi pelos valores aí constantes, trazendo aos autos elementos/documentos que demonstrassem essa tese, ou seja, “os factos e as razões de direito que fundamentam o pedido”, como se diz na norma contida no n.º 1 do artigo 108.º do CPPT. Só assim poderiam destruir os pressupostos em que assentaram as correções técnicas efetuadas, de acordo com a norma geral em matéria de ónus da prova refletida no artigo 342.º do Código Civil, que dispõe que «àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado». Princípio que encontra expressa guarida na norma do artigo 74.º da LGT. Não tendo feito tal prova em contrário, nem sequer tendo colocado em dúvida séria e fundada a conclusão tirada pela Administração Fiscal baseada nos indícios colhidos de documento oficial, tem de improceder a alegação dos Impugnantes”.

A análise assim feita é – dizemos sem hesitar – irrepreensível, sendo que nenhuma margem há para repensar tal apreciação face à resposta que foi dada ao julgamento da matéria de facto, que, aliás, até pela forma como os Recorrentes estruturaram o seu recurso, se percebe que a solução pretendida (leia-se, de revogação da sentença e consequente anulação do acto tributário) assentava na alteração/aditamento do probatório, pretensão esta votada ao fracasso.

Portanto, face à detalhada análise feita na sentença, tal como transcrita, e considerando que nada de relevante (ou inovador) vem invocado que a possa pôr em causa, este Tribunal adere, sem reservas, a tal apreciação, mantendo-a inalterada.

Devemos acrescentar, por último, a propósito da invocação do artigo 100º, nº1 do CPPT, nos termos do qual “sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o acto impugnado ser anulado”, que também esta alegação não procede.

Trata-se de uma regra que “consubstancia uma aplicação no processo de impugnação judicial da regra geral sobre o ônus da prova no procedimento tributário enunciada no art. 74.4, n.4 1 da LGT, em que se estabelece que o ônus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque” – vide, Jorge Lopes de Sousa, CPPT, Anotado e Comentado, Vol. II, Áreas Editora, anotação ao artigo 100º.

Ora, esta norma, como é óbvio, não afasta a aplicação do artigo 74º da LGT, pelo que não deve ser convocada se, no procedimento e processo, é atribuído o ónus da prova ao contribuinte e ele não o cumpre; neste caso, não podem considerar-se dúvidas fundadas com efeitos invalidantes do acto, determinantes da sua anulação.

Foi, de resto, o que aqui aconteceu, como várias vezes se repetiu supra. Os Recorrentes não trouxeram aos autos elementos que permitissem demonstrar o que alegavam, quanto aos valores recebidos pelas vendas em causa. Não há, pois – repete-se – que convocar o artigo 100º, nº1 do CPPT.

Face ao exposto, improcedem todas as conclusões da alegação de recurso e, nessa medida, mantém-se inalterada a sentença recorrida.


*




III – DECISÃO

Termos em que, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário do TCA Sul em negar provimento ao recurso e manter a sentença recorrida.


Custas pelos Recorrentes.

Registe e Notifique.

Lisboa, 14/01/21


(Catarina Almeida e Sousa)

(Hélia Gameiro)

(Ana Cristina Carvalho)