Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1966/06.2BELSB
Secção:CT
Data do Acordão:09/30/2020
Relator:LURDES TOSCANO
Descritores:IVA – FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Sumário:I - A Administração Tributária limitou-se a proceder à correcção de valores declarados pela Impugnante, em sede de IVA, sem fundamentar tal decisão.
II - Resultando provada a falta de fundamentação das liquidações impugnadas, devem as mesmas ser anuladas.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

I.          RELATÓRIO

A Representante da Fazenda Pública, com os sinais nos autos, veio, em conformidade com o n.º 3, do artigo 282.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, interpor recurso da sentença do Tribunal Tributário de Lisboa, a qual julgou procedente a impugnação deduzida por M….., LDA., contra as liquidações adicionais de IVA do ano de 2003, com os números ….., ….., ….., ….., …..e as liquidações de juros compensatórios relativos a IVA de 2003, com os números ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., com fundamento na falta de fundamentação, tendo o processo o valor de € 27.832,77. Mais anulou, aquela sentença, os actos impugnados de liquidação de IVA e de juros compensatórios e determinou as custas pela Fazenda Pública (cfr n.ºs 1 e 2, do art. 527.º do CPC, aplicável ex vi alínea e), do art. 2.º, do CPPT).

A Recorrente termina as alegações de recurso formulando as conclusões seguintes:


A.

A questão a decidir é, conforme estipula a sentença recorrida, a de saber se as liquidações impugnadas, referentes a IVA de 2003 e de juros compensatórios relativos ao mesmo imposto, padecem do alegado vício de falta de fundamentação.


B.

A Meritíssima Juiz do Tribunal a quo decidiu pela anulação das liquidações impugnadas atenta a falta de fundamentação das mesmas.


C.

A Meritíssima Juiz limitou-se a “decompor” o conteúdo das Modelo 344 desvalorizado a restante prova documental presente nos autos, que se apresenta como extremamente relevante para a boa, digamos justa, decisão da causa.


D.

As declarações Modelo 344 servem apenas para uso interno da própria Autoridade Tribiutária, tendo como finalidade o acerto da conta corrente do sujeito passivo.


E.

Consubstanciando-se estas declarações em instrumentos de utilização interna por parte da Administração Tributária, a Merítissima Juiz decidiu erradamente ao concluir pela falta de fundamentação das liquidações impugnadas com base no conteúdo presente naquelas.


F.

O facto de a sentença recorrida não ter atendido a todos os elementos probatórios constantes dos autos tendentes a demonstrar a efectiva fundamentação dos actos de liquidação em crise, designadamente a prova documental, constitui um erro de julgamento.


G.

Conforme Ofício n.º ….. de 21-02-2006, elaborado pela Direcção de Serviços de Cobrança e notificado à impugnante, ora recorrida, do qual a própria faz menção nos artigos 8º e seguintes da sua petição inicial, observamos que a aquela foi devidamente informada da fundamentação da decisão que esteve na base da correcção dos valores por si declarados, tendo obtido assim a correcta percepção ndas razões que estão na base das liquidações impugnadas.


H.

Esse Ofício informou o sujeito passivo da existência de anomalias nas declarações periódicas, que no caso em análise, se consubstanciam na utilização de excesso a reportar não coincidente.


I.

Através desse mesmo Ofício o sujeito passivo teve pleno conhecimento dos períodos temporais em causa, do respectivo montante de imposto em causa e que “A existência desta anomalia origina um débito de €27.283,39 a favor do Estado, efectuando-se a seu tempo, a respectiva Liquidação Adicional e Juros compensatórios, de harmonia com o disposto nos art.ºs 82º e 89º, nº1 do Código do IVA, respectivamente.”


J.

As notas de liquidação foram validamente notificadas e em todas as notificações existe um quadro relativo à fundamentação.


K.

As referentes às liquidações adicionais de IVA contêm a referência de que a liquidação foi feita com base no apuramento correctivo efectuado na presença de todos os elementos constantes de registos informáticos aí existentes, fazendo ainda alusão às disposições legais aplicáveis, à natureza da dívida, ao período a que diz respeito e a data limite para pagamento voluntário.


L.

Quanto às notificações de liquidação de juros compensatórios, existe também um quadro relativo à fundamentação onde está discriminado que estes se devem ao atraso na liquidação ou na entrega do imposto por facto imputável ao sujeito passivo, indicando ainda o período a que dizem respeito, os normativos legais ao abrigo dos quais foram efectuadas, a data de pagamento voluntário e a menção de que a demonstração de cálculo e outros fundamentos que suportam a liquidação podem ser solicitados junto do Serviço de Finanças competente.


M.

Quanto à falta de fundamentação dos atos de liquidação de IVA e juros compensatórios impugnados, diremos, que a fundamentação dos atos administrativos em geral, constitui um imperativo constitucional, expressamente previsto no art.º 268.º n.º3 da CRP, cujo escopo imediato é esclarecer concretamente a motivação do ato, permitindo a reconstituição do iter cognoscitivo e valorativo que determinou a adoção do ato, com determinado conteúdo (na esteira das lições de Diogo Freitas do Amaral, “Curso de Direito Administrativo”, Almedina, 2001, Vol. II, pp. 351 e ss.).


N.

A fundamentação de um ato de liquidação, situação em apreço, deve ser o suporte por que foi defectuada aquela concreta liquidação e não qualquer uma outra, de molde a permitir ao contribuinte apreender os concretos factos donde ela emerge e poder determinar-se pela sua aceitação ou impugná-la, se entender que a mesma se encontra eivada de qualquer um vício que a inquine de ilegal, variand assim, a densidade fundamentadora, consoante o tipo de ato em causa e a participação ou não do mesmo no procedimento da sua formação.


O.

Em suma atento o todo o supra exposto, assim como toda a prova documental existente nos autos, conclui-se que os actos de liquidação de imposto e respectivos juros compensatórios, encontram-se devidamente fundamentados, inexistindo qualquer contradição ou obscuridade que não tenha permitido ao contribuinte decidir se com tais liquidações se deveria conformar, ou, ao invés, se deveria vir impugná-las como veio, demonstrando ter apreendido o seu conteúdo.

Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por acórdão que declare a impugnação improcedente.”


****

A Impugnante, aqui Recorrida, apresentou contra-alegações, nas quais alcançou as conclusões seguintes:


A. Entende o Tribunal a quo, na douta sentença posta em crise pela Fazenda Pública, que "... a Administração Tributária se limitou a proceder à correcção de valores declarados pela Impugnante, em sede de IVA do ano de 2003, sem fundamentar tal decisão, não sendo, portanto, apreensíveis as razões porque se decidiu proceder às liquidações impugnadas” pelo que, "resultando provada a falta de fundamentação das liquidações impugnadas, devem as mesmas ser anuladas, "(sublinhado e negrito nosso);
B.             O Tribunal a quo contatou que “Nem dos autos, nem do processo administrativo, apenso, constam outras indicações relativas aos procedimentos que conduziram âs liquidações impugnadas." (negrito e sublinhado nosso), tendo a sua convicção “...sido adquirida pela análise dos documentos constantes dos autos e do processo administrativo apenso.”
C. Nessa circunstância, o Tribunal a quo, na douta sentença e na senda do alegado pela ora Recorrida, em sede de impugnação, identifica a problemática em causa nos autos como sendo a de “...saber-se se as liquidações impugnadas, de IVA do ano de 2003 e de juros compensatórios relativos ao mesmo imposto, padecem do alegado vício de falta de fundamentação.” (negrito e sublinhado nosso).
D. Nesse âmbito, considera o Tribunal a quo que, “Por imperativo constitucional e legal, todos os actos da Administração susceptíveis de afectarem os direitos e interesses legítimos dos administrados devem ser fundamentados. Devendo a "... fundamentação ser expressa através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito, equivalendo à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência não esclareçam concretamente a motivação do acto (cfr., nomeadamente, art. 268°, n° 3, da CRP, arts. 124° e 125° do CPA e art. 77°, n° 2, da LGT).
E.             Entende a douta sentença que o acto está suficientemente fundamentado quando permite a um destinatário normal aperceber-se do itinerário cognitivo e valorativo seguido pelo autor, isto é, quando o destinatário do acto conhece as razões porque se decidiu num certo sentido, e não noutro, cumpre analisar se os fundamentos invocados pela Administração Tributária para proceder às liquidações adicionais de IVA e dos consequentes juros compensatórios da Impugnante, relativamente ao ano de 2003, dão a conhecer as motivações da sua decisão.
F.             Como se lê no sumário do Acórdão proferido pelo TCA Sul em 02-06-2007, no Processo n° 01582/07, «A fundamentação tinha de conter um esclarecimento concreto suficientemente apto para sustentar a decisão, não podendo assentar em meros juízos conclusivos ou em factos que os não suportam, sob pena de ficar prejudicada a compreensão da sua motivação e, consequentemente, qualquer das suas funções que são as de acautelar, por banda da Administração, a adequada reflexão na decisão a proferir e, por parte do administrado, uma opção esclarecida entre a aceitação e a eventual impugnação de uma tal decisão».
G.             Resulta dos factos julgados provados, que os Serviços da Administração Tributária emitiram dois documentos, através do preenchimento de dois impressos modelo 344, dos quais não consta a motivação das aparentes correcções que terão conduzido às liquidações adicionais de IVA impugnadas e, consequentemente, às, também impugnadas, liquidações de juros compensatórios.
H.             Não consta, de tais documentos, a mínima referência a factos ou razões subjacentes à inscrição dos valores que aí foram inscritos, nem o modo como desses, ou doutros valores, resultaram as liquidações impugnadas. Não resulta tal informação dos documentos analisados, referidos no probatório, nem de qualquer outro documento constante do processo administrativo ou dos autos.
I.             O que consta das declarações Mod. 344 é a indicação, em diferentes quadros, de números, valores e siglas cuja utilidade no procedimento que conduziu às liquidações impugnadas escapa à percepção de um destinatário normal.
J.             O pedido de sindicância da sentença efectuado pela Fazenda Pública, não merece procedência porque não conseguiu demonstrar a existência da necessária fundamentação dos actos de liquidação, porque dos referidos documentos - liquidações adicionais e liquidações dos juros compensatórios - o sujeito passivo apenas ficou a saber que foi alvo das referidas liquidações e nada mais.
K.             Das razões, dos motivos pelos quais se procedeu às referidas liquidações adicionais, do porquê dos valores liquidados adicionalmente, nem uma única palavra, nem resquícios de fundamentação.
L.             Da análise dos referidos documentos, apesar de se encontrarem ‘'escritos" nos quadros relativos à fundamentação, constata-se que a mesma é inexistente!
M.             Do ofício supra identificado (ou de qualquer outro documento junto aos autos) não consta qualquer fundamentação - ainda que sucinta - quanto às motivações factuais e ou jurídicas da Fazenda Pública para proceder às referidas Liquidações Adicionais.
N.             A fundamentação não consta dos dois impressos "Mod. 344 Revisão oficiosa” preenchidos, em 20 de Fevereiro de 2006, pela Dírecção de Serviços de Cobrança do Imposto Sobre o Valor Acrescentado, dado que daí apenas se retiram números, siglas e códigos encriptados, dos quais nem a Recorrida, nem o Tribunal a quo, conseguiram retirar o quer que fosse.
O.             Atento o supra exposto, e como - BEM - nota o Tribunal a quo, “Nem dos autos, nem do processo administrativo, apenso, constam outras indicações relativas aos procedimentos que conduziram às liquidações impugnadas. ”
P.             Nas palavras de Serena Neto Cabrita, in Introdução ao Processo Tributário, Instituto Superior de Gestão, 2004, “Com vista a proteger os contribuintes de abusos ou da má aplicação da lei, tem feito parte da nossa tradição jurídica recente (vide artigos 64° e 80° do anterior CPT) obrigar a Administração Tributária a fundamentar os seus actos, à semelhança do que sucede no direito administrativo em geral. (...). Decidiu o actual legislador inserir, na LGT, novas regras sobre a necessidade de os actos da Administração serem fundamentados. Assim, o artigo 77° da LGT vem obrigar a Administração a fundamentar a sua decisão por meio de sucinta exposição das razoes de facto e de direito que a motivaram, não bastando a mera indicação de factos, mas exigindo-se a indicação de quais as normas jurídicas aplicáveis ao caso.

(...). A fundamentação tem, pois, de ser efectuada em termos tais que possibilite ao contribuinte ter os elementos mínimos que lhe permitam aferir da legalidade do acto. (...). É esta obrigatoriedade de fundamentar os actos que garante ao contribuinte a possibilidade de poder reagir contra os mesmos. Aliás, o vicio de ausência ou deficiente fundamentação do acto administrativo tributário é um vício perfeitamente autonomizado e distinto dos meros vícios formais - veja-se a alínea c) do artigo 99°do CPPT - uma vez que o mesmo afecta intrinsecamente o acto tributário quanto à sua validade interna, e não apenas a sua exteriorização. No fundo, o dever de fundamentação dos actos é o instituto que permite afastar a arbitrariedade, obrigando a Administração a dizer quais as razões da sua decisão, permitindo ao contribuinte reagir em caso de discordância. Repare-se que, se não impendesse sobre a Administração Tributária este dever, aliado ao poder intrínseco do Estado face aos cidadãos, não restaria a estes qualquer hipótese de defesa, uma vez que as decisões administrativas tornar-se-iam irrecorriveis, por indeterminadas. ”
Q.             De igual modo, nas palavras de Joaquim Freitas da Rocha, in Lições de Procedimento e Processo Tributário, Coimbra Editores, 3.a edição, “A parda sua consideração como exigência constitucional respeitante a todos os actos administrativos, a fundamentação constitui um verdadeiro princípio que preside a todo o procedimento e que ganha maior relevo na fase da decisão. Neste âmbito, impõe-se à Administração um verdadeiro dever de fundamentação das suas decisões. (...). Em conclusão, parece que todas as decisões procedimentais tributárias devem ser fundamentadas, e não somente as decisões procedimentais desfavoráveis. Essa fundamentação - que, em geral, abrange quer o dever de motivação (i.e., a exposição das razões ou motivos justificativos da decisão, nomeadamente quando existirem espaços discricionários) quer o dever de justificação (ou seja, a referência ordenada aos pressupostos de facto e de direito que suportam essa mesma decisão) – deve ser feita de uma forma: Oficiosa, o que significa que não esta dependente de pedido do interessado, mas antes constitui um verdadeiro dever de agir da parte dos órgãos administrativos tributários; em face da vertente, publicista das actuações destes; Completa, ou seja a Administração deverá indicar todos os elementos necessários á tomada de decisão, não sendo de admitir fundamentações parciais ou incompletas; Clara, o que significa que deverá ser formulada sem apelo a demasiados conceitos ou expressões técnicas, e não deverá conter obscuridades, ambiguidades ou contradições. Neste sentido, exige a CRP que a fundamentação seja "acessível’'; Actual, devendo ela ser (totalmente) efectuada no momento da comunicação da decisão e não posteriormente; e Expressa, o que quer dizer que não poderá ser feita por remissão. A este respeito, poder-se-ão levantar problemas de constitucionalidade em face da redacção do art. 77° da LGT, pois para este basta a mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores actos (pareceres, informações, propostas). Contudo, e embora algumas resen/as se possam suscitar, no mínimo, tai declaração de concordância deve ser formulada de uma forma expressa. Trata-se, como se pode ver, de permitir a um “destinatário normal” a reconstituição do intenerário cognoscitivo e vaiorativo seguido pelo autor do acto para proferir a decisão. A falta destes requisitos - fundamentações incompletas, obscuras, abstractamente remissivas - bem assim como a falta da própria fundamentação, constitui ilegalidade, susceptível de conduzir à anulação do acto em causa, mediante meios graciosos ou contenciosos. ”
R.             Na mesma senda, segue a abundante jurisprudência, nomeadamente o Acórdão do STA, proferido no processo n.° 25 611, datado de 4 de Abril de 2001, o Acórdão do STA proferido no processo n.° 1510, datado de 4 de Dezembro de 2002, o Acórdão do TCA proferido no processo n.° 3804/00, datado de 13 de Janeiro de 2004, o Acórdão do STA de 15 de Novembro de 2006 e Acórdão do TCA - Norte de 11 de Novembro de 2004, bem como a vasta jurisprudência aí citada. 

Nestes termos e nos mais, que doutamente serão supridos, não ser concedido provimento ao recurso interposto pela Fazenda Pública e, consequentemente, ser a sentença recorrida confirmada, mantendo-se assim a anulação dos actos de liquidação identificados nos autos, com base na falta de fundamentação, violando, assim a Administração Tributária, o artigo 77.º da LGT e o artigo 268.° da CRP.”


****

Sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, é pelas conclusões com que a recorrente remate a sua alegação (art. 639º do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do referido tribunal.

De outro modo, constituindo o recurso um meio impugnatório de decisões judiciais, neste apenas se pode pretender, salvo questões de conhecimento oficioso, a reapreciação do decidido e não a prolação de decisão sobre matéria não submetida à apreciação do Tribunal a quo.

Assim, atento o exposto e as conclusões das alegações do recurso interposto, temos que no caso concreto, a questão fundamental a decidir é a de saber se a sentença recorrida errou no seu julgamento ao dar por demonstrado o vício de falta de fundamentação das liquidações em causa nos autos.


****

II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. De facto

A sentença recorrida deu por provados os seguintes factos:


A. Em 20 de Fevereiro de 2006, pela Direcção de Serviços de Cobrança do Imposto sobre o Valor Acrescentado, foram preenchidos dois impressos “Mod. 344 Revisão oficiosa”, constando, em cada um, na parte destinada à identificação do sujeito passivo, a identificação da Impugnante – fls. 63 a 66 do Processo Administrativo Tributário;
B. Nos documentos referidos em A, sob o título “n.º 3 Movimentos rectificativos propostos”, nada consta, encontrando-se, em ambos, os campos destinados a “Anulação de Liquidações”, “Anulações de Regularizações a Débito” e “Anulações de Créditos”, traçados com duas linhas paralelas – fls. 63 e 65 do PAT;
C. No primeiro dos documentos referidos em A, com o subtítulo “3.9 – Confirmação De RD’s Pelo Valor Emitido, inscreveu-se o seguinte:

EcrãSU/SAFPeríodoValorCód. Motivo
84350SAF03.126 674,11C10422
84350SU04.021089,52C10322
84350SU04.039 617,20C10322
84350SU04.053215,17C10322
84350SU04.063130,65C10322
84350SU05.012 373,52C10322
84350SU05.04317,61C10322
84350SU05.053 695,15C10322


D. No mesmo documento, referido em C, com o título “ 3 Movimentos Rectificativos Propostos (continuação”), e o substítulo “3.10 Emissão de Liquidações Manuais”, inscreveu-se o seguinte:

PeríodoTipoValorCód. Motivo
03.01C 101221498,93C 10122
03.02C 101222764,89C 10122
03.05C 101221335,05C 10122
03.06C 101223170,58C 10122
03.11C 1012211 839,83C 10122

- fls 64 do PAT -


E. Com o título “4 Despachos”, lê-se no documento referido em C e em D: “Até ao agora informado, proceda-se de conformidade com o proposto // Aos 21/02/06 O Responsável de Sector” (que assinou) – fls. 64 do PAT;
F. No mesmo documento, referido em C, em D e em E, pode ler-se, ainda, com o título”5 Informação”,

“CC analisada com expurgo.

Emitidas LAs e confirmadas RDs dado que a liquidação oficiosa de 99 foi anulada;

Assim, o S.P. também, não tem direito à RC.

Calculados JC nos termos do nº 89 do CIVA.

Ver c.c. manual em anexo e também cáculco de juros.

Nesta data feito 2 ofícios ao S.P.” – fls. 64 do PAT;
G. No segundo dos documentos referidos em A, com o subtítulo “3.9 – Confirmação De RD´s Pelo Valor Emitido, inscreveu-se o seguinte:

EcrãSU/SAFPeríodoValorCód. Motivo
84340SU05.062 263,09C10322
84340SU05.07872,84C10322
84340SU05.0895,78C10322
84340SU05.091169,44C10322
84340SU05.1213 624,11C10322

- fls. 65 –


H. No mesmo documento, referido em G, com o título “ 3 Movimentos Rectificativos Propostos (continuação”), e o subtítulo “3.10 Emissão de Liquidações Manuais”, inscreveu-se o seguinte:

PeríodoTipoValor
03.01JC35,98
03.02JC59,32
03.05JC26,34
03.06JC62,54
03.11JC233,55

-fls. 66-


I. Com o título “4 Despachos”, figura no documento referido em H e em I, a data de 21-02-06 e uma assinatura (rubrica) – fls. 66;
J. Com o título “5 Informação”, lê-se no documento referido em G, em H e em I, “Ver microf. anterior onde consta c.c. manual.”

Nem dos autos, nem do processo administrativo, apenso, constam outras indicações relativas aos procedimentos que conduziram às liquidações impugnadas.”


****

A convicção do Tribunal Tributário de Lisboa, nos seus dizeres, “foi adquirida pela análise dos documentos constantes dos autos e do processo administrativo apenso.”


****

Ao abrigo do art. 662º, nº 1, do CPC, adita-se ao probatório, o seguinte facto:
K. Do Ofício n.º …..de 21-02-2006, elaborado pela Direcção de Serviços de Cobrança e notificado à impugnante, consta o seguinte (cfr. fls. 24, Doc. 13 junto com a p.i.):

«Comunica-se a V.Exa. que após análise efectuada à conta-corrente dessa empresa, detectou este Serviço a anomalia de utilização de excesso a reportar não coincidente, relativa a vários períodos.

(…)

A existência desta anomalia origina um débito de €27.283,39 a favor do Estado, efectuando-se a seu tempo, a respectiva Liquidação adicional e Juros Compensatórios, de harmonia com o disposto nos arts. 82º e 89º, nº 1 do Código do IVA, respectivamente.»


****


II.2. De Direito

Em sede de aplicação de direito, a sentença recorrida julgou a impugnação procedente, anulando-se os actos impugnados de IVA e juros compensatórios. Para tanto, fundamentou da forma seguinte:

«Ora, como resulta dos factos julgados provados, os Serviços da Administração Tributária emitiram dois documentos, através do preenchimento de dois impressos modelo 344, dos quais não consta a motivação das aparentes correcções que terão conduzido às liquidações adicionais de IVA impugnadas e, consequentemente, às, também impungadas, liquidações de juros compensatórios.

Não consta, de tais documentos, a mínima referência a factos ou razões subjacentes à inscrição dos valores que aí foram inscritos, nem o modo como desses, ou doutros valores, resultaram as liquidações impugnadas. Não resulta tal informação dos documentos analisados, referidos no probatório, nem de qualquer outro documento constante do processo administrativo ou dos autos, sendo certo que, na Contestação e nas Alegações finais, é nos documentos referidos no probatório (declarações Mod. 344) que a Fazenda Pública defende constar a fundamentação das liquidações.

Mas o que consta das declarações Mod. 344 é a indicação, em diferentes quadros, de números, valores e siglas cuja utilidade no procedimento que conduziu às liquidações impugnadas escapa à percecpção de um destinatário normal.

Resulta, assim, que a Administração Tributária se limitou a proceder à correcção de valores declarados pela Impugnante, em sede de IVA do ano de 2003, sem fundamentar tal decisão, não sendo, portanto, apreensíveis as razões porque se decidiu proceder às liquidações impugnadas.

Resultado provada a falta de fundamentação das liquidações impugnandas, devem as mesmas ser anuladas.»

Inconformada, a Fazenda Pública veio apresentar o presente recurso alegando [conclusões de recurso C. a L.] que A Meritíssima Juiz limitou-se a “decompor” o conteúdo das Modelo 344 desvalorizado a restante prova documental presente nos autos, que se apresenta como extremamente relevante para a boa, digamos justa, decisão da causa. O facto de a sentença recorrida não ter atendido a todos os elementos probatórios constantes dos autos tendentes a demonstrar a efectiva fundamentação dos actos de liquidação em crise, designadamente a prova documental, constitui um erro de julgamento.

Julgamos, assim, que a recorrente alega que o Tribunal a quo se centrou no conteúdo das Modelo 344 e que não atendeu a todos os elementos probatórios constantes dos autos que, no seu entender, levariam a outra decisão da causa.

Vejamos.

Está em causa a aplicação do artigo 88.º, nº 4, do CIVA[1], o qual estabelece, que a notificação do apuramento do imposto devido a rectificações a tributações oficiosas deverá indicar, sob pena de nulidade, os novos elementos e os actos através dos quais chegaram ao conhecimento da Administração Fiscal.

Importa, pois, apreciar se as liquidações em apreço encerram as razões que sustentam a decisão nelas contida, de forma a que as mesmas sejam acessíveis a um destinatário médio, colocado na posição da impugnante.

«É sabido que a falta ou insuficiência de fundamentação do acto, vício de natureza formal (e não substancial), se verifica quando o respectivo acto não exterioriza de modo claro, suficiente e congruente, as razões por que apresenta determinado conteúdo decisório. Sendo que a falta ou insuficiência de fundamentação não se confunde com o vício decorrente de erro sobre os pressupostos (este ocorre quando, apesar de o autor do acto ter dado a conhecer as razões em que suporta a decisão, tais razões não são, todavia, apropriadas ou suficientes ou demandavam diversa solução).

Este direito à fundamentação, relativamente aos actos que afectem direitos ou interesses legalmente protegidos, decorria já do art. 1º, nº 1, als. a) e c) do DL nº 256-A/77, de 17/6 e tem hoje consagração constitucional de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias consagrados no Título II da parte 1ª da CRP - art. 268º (Vejam-se a abundante jurisprudência do STA atinente a esta matéria bem como Gomes Canotilho e Vital Moreira, «Constituição da República Portuguesa Anotada», 1993, pp. 936 e Vieira de Andrade, «O Dever de Fundamentação Expressa dos Actos Administrativos», 1990, pp. 53 e ss.) - tendo o respectivo princípio constitucional sido densificado nos arts. 124º e 125º do CPA, no art. 21.º do CPT (em vigor à data dos factos) e, posteriormente, nos arts. 77º nºs. 1 e 2 da LGT (acto administrativo tributário).

E dado que este dever legal de fundamentação tem, «a par de uma função exógena - dar conhecimento ao administrado das razões da decisão, permitindo-lhe optar pela aceitação do acto ou pela sua impugnação -, uma função endógena consistente na própria ponderação do ente administrador, de forma cuidada, séria e isenta.» (ac. deste STA, de 2/2/2006, rec. nº 1114/05), então, essa fundamentação deve ser contextual e integrada no próprio acto (ainda que o possa ser de forma remissiva), expressa e acessível (através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão), clara (de modo a permitir que, através dos seus termos, se apreendam com precisão os factos e o direito com base nos quais se decide), suficiente (permitindo ao destinatário do acto um conhecimento concreto da motivação deste) e congruente (a decisão deverá constituir a conclusão lógica e necessária dos motivos invocados como sua justificação), equivalendo à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do acto.
E caso a fundamentação seja feita por forma remissiva (por adesão ou remissão para anterior parecer, informação ou proposta), estes constituirão parte integrante do respectivo acto administrativo: este acto integra, então, nele próprio, o parecer, informação ou proposta para os quais se remete e estes terão, assim, em termos de legalidade, que satisfazer os mesmos requisitos da fundamentação autónoma.

Assim, utilizando a linguagem da jurisprudência, o acto só está fundamentado se um destinatário normalmente diligente ou razoável - uma pessoa normal - colocado na situação concreta expressada pela declaração fundamentadora e perante o concreto acto administrativo (que determinará consoante a sua diversa natureza ou tipo uma maior ou menor exigência da densidade dos elementos de fundamentação) fica em condições de conhecer o itinerário funcional (não psicológico) cognoscitivo e valorativo do autor do acto, sendo, portanto, essencial que o discurso contextual lhe dê a conhecer todo o percurso da apreensão e valoração dos pressupostos de facto e de direito que suportam a decisão ou os motivos por que se decidiu num determinado sentido e não em qualquer outro. Ela visa «esclarecer concretamente as razões que determinaram a decisão tomada e não encontrar a base substancial que porventura a legitime, já que o dever formal de fundamentação se cumpre “pela apresentação de pressupostos possíveis ou de motivos coerentes e credíveis, enquanto a fundamentação substancial exige a existência de pressupostos reais e de motivos correctos susceptíveis de suportarem uma decisão legítima quanto ao fundo”. O discurso fundamentador tem de ser capaz de esclarecer as razões determinantes do acto, para o que há-de ser um discurso claro e racional; mas, na medida em que a sua falta ou insuficiência acarreta um vício formal, não está em causa, para avaliar da correcção formal do acto, a valia substancial dos fundamentos aduzidos, mas só a sua existência, suficiência e coerência, em termos de dar a conhecer as razões da decisão.» (Cfr. Vieira de Andrade – ob. cit. pag. 239, na citação do ac. do STA, de 11/12/2002, rec. 01486/02.)

Especificamente, também a decisão em matéria de procedimento tributário exige sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo essa fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os integrantes do relatório da fiscalização tributária, e devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo (cfr. o art. 77º da LGT), tendo-se como constitucionalmente adequada a fundamentação que respeite os mencionados princípios da suficiência, da clareza, e da congruência e que, por outro lado, seja contextual ou contemporânea do acto, não relevando a fundamentação feita a posteriori (cfr. os acórdãos do STA, de 26/3/2014, proc. n.º 01674/13 e de 23/4/2014, proc. n.º 01690/13).
E a violação destes requisitos da decisão implica a respectiva ilegalidade, fundamento de subsequente anulação, em sede do adequado meio processual.»
[2]

Retornando ao caso concreto, nas alíneas A. a J., consta o teor dos documentos que “fundamentam” as liquidações em causa.

Vejamos o que se escreveu sobre esta questão na sentença recorrida:

«Ora, como resulta dos factos julgados provados, os Serviços da Administração Tributária emitiram dois documentos, através do preenchimento de dois impressos modelo 344, dos quais não consta a motivação das aparentes correcções que terão conduzido às liquidações adicionais de IVA impugnadas e, consequentemente, às, também impungadas, liquidações de juros compensatórios.

Não consta, de tais documentos, a mínima referência a factos ou razões subjacentes à inscrição dos valores que aí foram inscritos, nem o modo como desses, ou doutros valores, resultaram as liquidações impugnadas. Não resulta tal informação dos documentos analisados, referidos no probatório, nem de qualquer outro documento constante do processo administrativo ou dos autos, sendo certo que, na Contestação e nas Alegações finais, é nos documentos referidos no probatório (declarações Mod. 344) que a Fazenda Pública defende constar a fundamentação das liquidações.

Mas o que consta das declarações Mod. 344 é a indicação, em diferentes quadros, de números, valores e siglas cuja utilidade no procedimento que conduziu às liquidações impugnadas escapa à percecpção de um destinatário normal.

Resulta, assim, que a Administração Tributária se limitou a proceder à correcção de valores declarados pela Impugnante, em sede de IVA do ano de 2003, sem fundamentar tal decisão, não sendo, portanto, apreensíveis as razões porque se decidiu proceder às liquidações impugnadas.

Resultado provada a falta de fundamentação das liquidações impugnandas, devem as mesmas ser anuladas.»

Concorda-se inteiramente com o assim decidido.

Pela Administração Fiscal foram emitidos dois documentos através do preenchimento de dois impressos Mod.344 dos quais não consta a motivação das correcções que terão levado às liquidações adicionais de IVA aqui impugnadas e respectivos juros compensatórios.

Nos referidos documentos não constam quaisquer referências a factos ou razões subjacentes à inscrição dos valores que aí foram inscritos, nem o modo como desses, ou de outros valores resultaram as liquidações impugnadas.

O que consta das referidas declarações Mod. 344 é a indicação, em diferentes quadros, de números, siglas e códigos que escapam à percepção de um destinatário normal.

Em sede de recurso vem, agora, a recorrente invocar que o Tribunal a quo limitou-se a decompor o conteúdo das Modelo 344 desvalorizando a restante prova documental presente nos autos.

Em primeiro lugar, importa dizer que, a fls. 299 do PA, se encontra Parecer da Inspectora Tributária Principal, que teve despacho de concordância da Chefe de Divisão de Justiça Contenciosa – para a qual a contestação remete - onde se pode ler: «Após análise dos fundamentos constantes da petição inicial (p.i.) bem como dos elementos carreados para o Processo Administrativo, incluindo a informação do Mod. 344 da Direcção de Serviços de Cobrança do Imposto sobre o Valor Acrescentado, constata-se que se encontram devidamente fundamentados, quer os procedimentos quer as correcções técnicas que originaram as liquidações impugnadas.»

Verifica-se, assim, que no referido parecer, foi a própria recorrente quem indicou a informação do Mod. 344 para dizer que os procedimentos e correcções técnicas que originaram as liquidações estavam fundamentados.

Em segundo lugar, a recorrente invoca «a restante prova documental presente nos autos» mas na realidade não diz que prova é essa, limitando-se a fazer referência ao Ofício n.º ….. de 21-02-2006, elaborado pela Direcção de Serviços de Cobrança e notificado à impugnante.

Ora, com o devido respeito, tal ofício junto aos autos como Doc. 13 junto com a p.i. (alínea K. do probatório), nada fundamenta, pois do mesmo consta o seguinte:

«Comunica-se a V.Exa. que após análise efectuada à conta-corrente dessa empresa, detectou este Serviço a anomalia de utilização de excesso a reportar não coincidente, relativa a vários períodos.

(…)

A existência desta anomalia origina um débito de €27.283,39 a favor do Estado, efectuando-se a seu tempo, a respectiva Liquidação adicional e Juros Compensatórios, de harmonia com o disposto nos arts. 82º e 89º, nº 1 do Código do IVA, respectivamente.»

Ora da leitura do referido ofício, ao contrário do que a recorrente invoca, não se descortinam quais as razões em que assentam as referidas correcções; o ofício não esclarece a razão de ser das anomalias detectadas; os motivos que estão na base das aludidas “anomalias” que não se mostram acessíveis a um destinatário médio, colocado na posição da impugnante.

Deste modo, forçoso é concluir, como na sentença recorrida, que os elementos existentes nos autos não permitem discernir a fundamentação das liquidações impugnadas.

Ao julgar no sentido da insuficiência e obscuridade da fundamentação do acto tributário, a sentença recorrida não merece censura, devendo ser confirmada na ordem jurídica.

Termos em que se julgam improcedentes as presentes conclusões de recurso.


****

III – DECISÃO

Termos em que, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso, e em consequência, manter a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.

Registe e notifique.


Lisboa, 30 de Setembro de 2020

                                                                                   --------------------------------------

                                                                              [Lurdes Toscano]

                                                                                   --------------------------------------

                                                                                      [Maria Cardoso]

___________________________

                                                                                 [Jorge Cortês]


_______________________
[1] Na redacção anterior à revisão do articulado, efectuada pelo Decreto-Lei n.º 102/2008, de 20/06.
[2] Acórdão do STA de 09/09/2015, Proc. 01173/14, disponível em www.dgsi.pt