Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:213/05.9BEFUN (13294/16)
Secção:CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO
Data do Acordão:06/14/2018
Relator:ANA CELESTE CARVALHO
Descritores:AÇÃO POPULAR
LEGITIMIDADE ATIVA
LEGALIDADE URBANÍSTICA
Sumário:I. Para o efeito da titularidade do direito de ação popular, prescreve o artigo 2.º da Lei nº 83/95, de 31/08, que são titulares do direito de acção popular “quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda”.
II. Tais interesses, enumerados no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição, no n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 83/95 e no n.º 2 do artigo 9º do CPTA são, de entre outros, a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais.
III. O objecto da ação popular é, antes de mais, a defesa de interesses difusos, pois sendo interesses de toda a comunidade, deve reconhecer-se aos cidadãos uti cives e não uti singuli, o direito de promover, individual ou associadamente, a defesa de tais interesses.
IV. A atribuição desta legitimidade implica um significativo reforço do papel dos tribunais na tutela dos direitos difusos, pois quando essa mesma legitimidade é atribuída a cidadãos e a organizações, o tribunal tem de verificar a adequação da representação reclamada.
V. Não pode o interesse difuso ser confundido com qualquer outro interesse, como seja, o interesse público.
VI. Apesar de alguma coincidência, os interesses públicos são os interesses gerais de uma colectividade e os interesses difusos são aferidos pelas necessidades efetivas que por eles são ou deviam ser satisfeitas aos membros de uma colectividade.
VII. A mera alegação do interesse da defesa da legalidade urbanística, assente na violação das normas legais e regulamentares, por edificação de construção que alegadamente ofende as normas aplicáveis ao loteamento urbano e demais vinculações legais aplicáveis, não permite fundar a existência de um interesse difuso a tutelar através da ação popular.
VIII. Não se mostrando caracterizada a defesa de interesses de toda a comunidade, por nada ser dito sobre o modo como a alegada violação do interesse urbanístico se projeta nos demais cidadãos ou o modo como é a coletividade afetada pela alegada ilegalidade urbanística, não se mostra sustentada a qualidade de que o Autor se arroga, de ser Autor popular.
IX. O princípio do contraditório exige que a parte afetada pela decisão a proferir tenha a oportunidade de conhecer e se pronunciar sobre a questão em causa, mas não impõe que seja notificado de todos os fundamentos ou argumentos em que baseará a decisão a proferir pelo Tribunal.
X. Considerando o fundamento que determinou a absolvição da instância, relativo à falta de legitimidade ativa como Autor popular, não se impunha a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, por não estar em causa matéria que pudesse ser aperfeiçoada pelo Autor, nenhuma imperfeição se detectando ao nível do articulado da parte.
XI. A questão coloca-se ao nível na própria condição em que o Autor se apresenta em juízo, em face do objecto da causa e dos direitos e interesses que são discutidos, não assistindo legitimidade ativa aos cidadãos para a defesa de interesses públicos ou em defesa da legalidade objetiva, mas apenas de interesses difusos e estes não se configuram em juízo.
Votação:COM VOTO VENCIDO
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I – RELATÓRIO

R… L… V… M… B…, devidamente identificado nos autos, veio interpor recurso jurisdicional do acórdão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, datado de 01/10/2015, que no âmbito da ação popular sob a forma de acção administrativa especial de impugnação de ato administrativo, instaurada contra o Município de S… C… e os Contrainteressados, J… P… da S… F… V… e P… C… G… C…, julgou verificada a exceção de ilegitimidade ativa do Autor, por não ser autor popular e absolveu a Entidade Demandada e os Contrainteressados da instância.

Formula o aqui Recorrente nas respetivas alegações, as seguintes conclusões que infra e na íntegra se reproduzem:

“a) Na petição inicial do A. consta, de forma expressa, o extenso rol dos vícios de invalidade que imputa aos atos administrativos impugnados, como decorre do teor dos artigos 42º a 162º, e que aqui temos por reproduzido.

b) Os atos administrativos impugnados - indicados no artigo 40º da p.i. respeitam, todos eles, a procedimento de licenciamento de uma moradia unifamiliar num do alvará de loteamento 2/74, siro ao sírio do G…, Q… F… e M…, freguesia do C…, município de S… C…, como decorre do art. lº da p.i.

c) Os vícios de invalidade de tais atos administrativos são os elencados no ponto 2.5. desta alegação.

d) O A. nos artigos 163º a 168º da mesma p.i. invocou tudo quanto necessário à demonstração da sua legitimidade ativa, ao abrigo do direito da ação popular, o que temos aqui por reproduzido

e) Aí o A. foi aí expresso na identificação dos interesses difusos afetados pelos atos administrativos impugnados, quais sejam os do ordenamento do território, urbanismo, ambiente, em especial o urbano, qualidade de vida e defesa dos bens do Município de S… C…, aqui ED e ora recorrida.

f) Do artigo 166º da p.i. o A. foi também expresso de que a violação aos interesses difusos por parte dos atos impugnados resultava do já alegado em sede de vícios de invalidade, pois que, se duvidas existissem, aí expressou tal circunstância (“… como se pôde constatar, ...”), reportando-se ao antes alegado.

g) Do mesmo modo, o A. foi igualmente expresso na afumação de que o normativo legal e/ou regulamentar cuja infração foi imputada aos atos administrativos impugnados prosseguia os indicados interesses difusos. - cfr. art. 167° da p.i..

h) Dos vícios imputados aos atos administrativos impugnados - muito em particular dos elencados nos itens i), ii), iv) e v) do precedente irem 2.5. – é manifesta e evidente a infração dos interesses difusos em apreço e elencados.

i) Como é, de igual modo, patente, evidente, ostensiva e lógica a concreta medida dessa dita infração, a qual, como é natural, lógico e coerente, é aquela que, no mínimo e pelo menos, decorre dos concretos vícios de invalidade invocados pelo A..

j) Seja de modo expresso ou implícita, é claro que a medida da violação de cada infração/violação de cada interesse difuso invocado opera e materializa-se, em face da concreta alegação feita na p.i., nos concretos termos em que cada um dos aros administrativos impugnados é atingido por cada um dos vícios invalidantes alegados.

k) Como decorre da alegação, os vícios invalidades dos aros administrativos impugnados alicerçam-se, como decorre da p.i., em violação de normativos regulamentares e legais de natureza urbanística e ambiental, o qual só podem prosseguir, de acordo com as opções políticas, o correto ordenamento do território, o correto urbanismo, o correto bom ambiente e a qualidade de vida, como o A. notou expressamente no seu articulado.

l) Pretender o inverso é admitir como plausível e possível que o acervo legal e regulamentar em causa possa prosseguir a negação/destruição dos interesses difusos [i.é, o desordenamento do território, a confusão urbanística], e só nesse absurdo iníquo tem sentido lógico a decisão sob recurso.

m) O direito de ação popular é um direito fundamental (cfr. 52/3º do CRP), impondo-se ao aplicador uma interpretação das restantes normas legais em conformidade com a Constituição, o que manifestamente não ocorreu na situação dos autos.

n) O Tribunal a quo ao decidir, como decidiu, veio a limitar e coartar o exercício de tal direito de ação popular, de natureza constitucional, do A., com recurso a uma interpretação meramente formal e ilógica dos termos da p.i. e das normas invocadas que se não conforma com o disposto no art. 52º/3 CRP, pelo que tal dita interpretação é inconstitucional.

o) As decisões recorridas enfermam de erro de julgamento, infringindo o disposto nos arts. 52º/3 CRP, 1º/2 e 13º da LAP, 9º/2 CPTA.

p) No que tange às questões das nulidades processuais, é de notar que o Tribunal a quo, para efeitos de julgar procedente a questão da pretensa ilegitimidade do A., nenhuma ineptidão ao seu articulado apontou em sede própria; agora, para justificar a ausência de despacho de aperfeiçoamento, já o vem implicitamente afirmar, sem que daí retire qualquer consequência, nomeadamente a nulidade de todo o processado.

q) O Tribunal a quo deve pautar-se também na sua conduta segundo as regras da boa-fé e ao recusar-se interpretar a p.i. do A. e a não ver o que é patente e notório nesse mesmo articulado não as observa simplesmente.

r) Reitera-se que na sua p.i. o A. alegou todos os fatos constitutivos do seu direito e da sua legitimidade processual, sendo que a dita medida em que os atos impugnados violam os interesses difusos está alegada, ainda que porventura implicitamente.

s) A existir na p.i. é urna alegação deficiente - e não a ausência de quaisquer fatos essências ou novos fatos -, uma vez que a dica alegação existe, é constatável se e quando o Tribunal pretender interpretar devida e corretamente os termos de tal articulado.

t) O ora aduzido é ainda mais paradoxal quando é certo que a invocação de tal nulidade processual decorre da sentença proferida pelo Juiz relator e dos seus próprios termos, que agora são negados pelo mesmo Juiz relator.

u) Com efeito, o então decidido foi no pressuposto - como continua a ser! - que a p.i. do A. era deficiente [e não inepta, sob pena de nulidade que nunca foi declarada], em face do que o Tribunal a quo devia dar cumprimento ao principio pro actione (cfr. art. 7° CPTA).

v) Que o vincula a interpretar as normas processuais, nomeadamente a que alude e deita mão, no sentido que favoreça uma sua pronúncia sobre o mérito das pretensões que o A. formulou ao intentar estes autos

w) Ao assim não ter entendido e não declarando a nulidade processual em causa o Tribunal a quo infringiu o disposto nos ares. 7° CPTA e 88º/2 CPTA.

x) Por outro lado, e quanto á segunda nulidade - também indeferida - [relativa à violação do princípio do contraditório], o próprio Tribunal a quo não pode nem deve ignorar os concretos termos em que a questão prévia invocada pelo CI na contestação: nesta, este limitou-se a invocar que o A., ora recorrente, prosseguia interesses particulares, que não difusos, e que por isso não era detentor de legitimidade ativa.

y) E isso mesmo decorre da resposta do A., ora recorrente, a tal questão prévia.

z) Em momento algum dos autos, algum dos demandados suscitou qualquer questão relativa à ilegitimidade ativa pelo faro do A. este não ter alegado e invocado na sua p.i. a medida concreta em que os atos administrativos impugnados violavam os ditos interesses difusos.

aa) Esta questão e os seus próprios termos foi, como reflete os amos, produto oficioso do próprio Tribunal a quo, que não de nenhuma das partes nestes autos e sendo que foi suscitada em fase processual posterior à da resposta do A. às questões prévias invocadas pelos demandados na sua contestação.

bb) Tendo o Tribunal a quo descortinado oficiosamente tal nova questão de pretensa ilegitimidade ativa do ator popular, com diferente fundamento da anterior - da não alegação na p.i. da medida concreta da violação dos interesses difusos pelos atos administrativos impugnados - impunha-se ao mesmo observar o princípio do contraditório, facultando à parte a possibilidade de poder se debruçar. - cfr. art. art. 3º/3 CPC, ex vi art. 1º CPTA, 6º, 87°/ 1 - al. a) deste último.

cc) Não tendo assim procedido, foi omitido a prática de ato processual que se impunha, o qual afeta a boa decisão da causa e que, por tal, constitui nulidade processual, ao invés do que erradamente julgou o Tribunal a quo.

dd) Deve, pois, a decisão recorrida ser revogada no que tange as nulidade invocadas e ser substituída por outra que as declare, com as legais consequências.

ee) E, se assim se não entender, devem as decisões impugnadas, por ilegais, ser revogadas e substituídas por outras que reconheça a legitimidade ativa do A. e, se assim não se entender, determine o aperfeiçoamento da p.i..”.

Pede a procedência do recurso.


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O ora Recorrido, Município de S… C… notificado da admissão do recurso, apresentou contra-alegações, sem formular conclusões.

Pede que a sentença recorrida se mantenha na ordem jurídica, por o Autor em momento algum concretizar ou especificar os interesses da comunidade que pretende acautelar através da presente acção.


*

O Ministério Público, notificado para emitir parecer, nos termos do disposto no artigo 146.º do CPTA emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, com o fundamento de o Autor não explicar em que medida as alegadas ilegalidades cometidas no processo administrativo teriam ou têm impacto na defesa dos interesses difusos, que respeitam a toda a comunidade.

Sustenta que a acção intentada pelo Autor não visa a defesa do direito difuso do urbanismo ou outro, que careça de legitimidade activa para estar/agir em juízo como Autor popular, impondo-se a absolvição da instância como bem decidido no acórdão recorrido.


*

O processo vai, com vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, à Conferência para julgamento.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, 2 e 3, todos do CPC ex vi artigo 140.º do CPTA, não sendo lícito ao Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.

As questões suscitadas pelo Recorrente resumem-se, em suma, em determinar se a decisão judicial recorrida enferma de:

1. Erro de julgamento de direito, quanto à interpretação dos artigos 52.º, n.º 3 da Constituição, 1.º, n.º 2 e 13.º da Lei de Ação Popular e 9.º, n.º 2 do CPTA;

2. Erro de julgamento por violação dos artigos 7.º e 88.º, n.º 2 do CPTA.

III. FUNDAMENTOS

DE FACTO

O Tribunal a quo não deu quaisquer factos como assentes.

DE DIREITO

Importa entrar na análise dos fundamentos do presente recurso jurisdicional.

1. Erro de julgamento de direito, quanto à interpretação dos artigos 52.º, n.º 3 da Constituição, 1.º, n.º 2 e 13.º da Lei de Ação Popular e 9.º, n.º 2 do CPTA

Sustenta o Recorrente nas conclusões do presente recurso que na petição inicial invocou um extenso rol de vícios de invalidade contra os atos impugnados, os quais respeitam todos ao procedimento de licenciamento de uma moradia unifamiliar.

De forma a demonstrar a sua legitimidade ativa ao abrigo do direito de acção popular, identificou os direitos difusos afectados pelos atos impugnados, do ordenamento do território, urbanismo, ambiente, urbano, qualidade de vida e defesa dos bens do Município.

Alega que o direito de ação popular é um direito fundamental, não tendo ocorrido uma interpretação em conformidade com a Constituição, mas antes em violação do artigo 53.º/3 da Constituição.

Por isso, sustenta que a decisão recorrida viola os artigos 52.º, n.º 3 da Constituição, 1.º, n.º 2 e 13.º da Lei de Ação Popular e 9.º, n.º 2 do CPTA.

Vejamos.

Impõe-se antes de mais analisar o objecto do litígio para com base no pedido e na causa de pedir alegados pelo Autor analisar do pressuposto processual da sua legitimidade ativa como autor popular.

Compulsando a petição inicial dela decorre que o Autor, residente na freguesia de S… G…, no concelho do F…, invocando a sua qualidade de Autor Popular vem instaurar ação administrativa especial de impugnação de ato administrativo, pedindo a declaração de nulidade ou a anulação dos seguintes atos administrativos:

1. Despacho datado de 05/06/2001, de aprovação do projeto de arquitectura apresentado pelo Contrainteressados;

2. Despacho datado de 06/09/2001, de deferimento da emissão de licença de construção;

3. Despacho datado de 08/11/2001, de emissão de licença condicionada aos pareceres em falta.

Como fundamento do pedido impugnatório invoca os vícios de violação de lei e de forma.

Pede ainda a impugnação da aprovação do projecto de arquitectura caso exista ou não tendo sido praticado esse ato administrativo, a sua declaração de inexistência jurídica.

Ao longo da petição inicial, resulta alegada a tramitação procedimental adotada no procedimento administrativo de licenciamento da construção da moradia em prédio submetido a loteamento urbano, assim como a alegação de múltiplas ilegalidades cometidas no âmbito do procedimento, por violação das normas urbanísticas fixadas no loteamento, mas também, por omissão de pareceres e por falta de fundamentação.

Invoca que os atos impugnados são ilegais e que violam os direitos difusos do ordenamento do território, urbanismo, ambiente, qualidade de vida e defesa dos bens do Município de S… C….

De forma a justificar a sua legitimidade ativa como Autor Popular alega ser um cidadão nacional no gozo dos seus direitos civis e políticos, que tem a sua residência habitual no F… e que com a presente ação popular visa fazer cessar e perseguir judicialmente as infracções a interesses difusos praticados pela Entidade Demandada através dos atos impugnados.

Analisado o âmbito da presente acção, importa conhecer o que foi decidido pelo Tribunal a quo, para após, se conhecer do fundamento do recurso, respeitante ao erro de julgamento de direito a propósito do âmbito da ação popular e da legitimidade ativa.

O acórdão recorrido após enunciar a questão suscitada pelos contrainteressados, como matéria de exceção, respeitante à falta de legitimidade ativa do Autor, passou ao enquadramento constitucional e legal do direito de ação popular, para depois subsumir tal enquadramento de direito à realidade do caso concreto.

Extrai-se do acórdão recorrido, o seguinte discurso fundamentador que ora se transcreve, na parte relativa ao caso dos autos:

No caso concreto, como se disse, o Autor intentou a presente ação com vista a obter a anulação/declaração de nulidade das decisões que deferiram o pedido do A. de concessão de licença de construção de acordo com o projeto de arquitetura e ainda da emissão dos alvarás de construção e de habitabilidade, porquanto o processo de licenciamento das obras de construção civil, iniciado por requerimento dos Contra Interessados, enferma de vícios de violação de lei e de forma, já que os mesmos não instruíram o seu requerimento com os documentos necessários, designadamente o projeto de especialidade acústico, projeto de escavação ou de contenção periférica.

Mais refere que se impunha ao Contra Interessado, no cumprimento das leis aplicáveis, apresentar os referidos elementos/documentos, sendo os atos praticados pela Entidade Demandada eivados de vício de forma e de violação de lei.

Por outro lado, a área de implantação/ocupação efetivamente projetada e aprovada pelo órgão da Entidade Demandada é muito superior à permitida para o lote em questão, constante da licença de loteamento; os afastamentos mínimos posterior e lateral, bem como a cércea não foram respeitados pelos atos administrativos impugnados; a cobertura do edifício deveria ser de telha e está projetada em betão; foram infringidos a planta de implantação dos lotes e do arruamento denominado Travessa dos Emigrantes.

A Entidade Demandada também não requereu pareceres necessários.

Conclui, portanto, que a Entidade Demandada praticou atos que deverão ser anulados/declarados nulos.

Como já se disse, a título de “Da legitimidade do A.”, alegou que “Com a presente ação popular, o ora A. visa fazer cessar e perseguir judicialmente as infrações a interesses difusos praticadas pela Entidade Demandada, através dos atos recorridos. Os quais interesses difusos são, como se pôde constatar, os especialmente atinentes aos ordenamento do território, ao urbanismo, ao ambiente, em especial o urbano, à qualidade de vida e, bem assim, à defesa dos bens do Município de S… C….”.

Em suma, segundo o A., a ilegalidade decorre de ter sido edificada obra e concedidas as respetivas autorizações/licenças sem que o projeto estivesse instruído com os elementos necessários, em violação, designadamente, do Regime Jurídico do Licenciamento de Obras Particulares (RLMOP) e do disposto na licença de loteamento, estando em causa a defesa da legalidade urbanística, a qualidade de vida e a defesa dos bens municipais.

Ora, face ao alegado, julga este Tribunal que o A. formulou pretensões destituídas de substanciação no núcleo de interesses previstos no âmbito do disposto no artigo 1.º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, ou que tutelem o referido núcleo de interesses a defender, ou sequer demonstra a ofensa de interesses de toda a comunidade de cidadãos, na medida em que não alegou factos em ordem a concretizar que implicações negativas resultam para toda a comunidade que legitime a intervenção uti cives do A., nem a concretização de prejuízos para a comunidade por força dos despachos em crise. Antes ressalta que o próprio A. terá interesse pessoal na demanda.

Dito de outro modo, no que respeita às matérias conexionadas com a licença de construção e habitabilidade nada é especificado em sede de factualidade sobre a postergação de interesses da comunidade de cidadãos residentes. Importava, pois, concretizar qual o prejuízo que advém para a comunidade, como por exemplo, qual o sentimento de perda da comunidade por afetação do nível de fruição de um recurso que habitualmente usufruíam, elemento esse, essencial quando se invoca um pedido com base no direito de ação popular.

É que, como se refere nos Acórdãos do TCA-Sul recurso n.º 3787/08, de 15/05/2008 e processo n.º 02168/06 de 08/02/2006, “(…) mesmo a eventual violação, como alegado, de disposições legais e regulamentares de planeamento urbanístico aplicáveis (…), não se mostra poderem relevar, no caso concreto e face à causa de pedir, como fundamento da ação popular, no âmbito do disposto no artigo 1.º da Lei n.º 83/95, se não se alega também (…) quais os interesses difusos violados e em que medida ocorre a dita violação, designadamente quanto aos interesses protegidos pela lei, como a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a proteção do consumo de bens e serviços, o património cultural ou o domínio público (sublinhado nosso).

É que incumbia ao A. caracterizar e concretizar in casu os interesses difusos que visa defender. É que, embora se compreenda que está em causa a defesa do urbanismo, ordenamento do território, ambiente e qualidade de vida, como se disse no Acórdão TCAS n.º 10452/13 de 23/01/2014, que aqui se segue de perto, não logra o Autor invocar ou caracterizar no que a violação desses direito se projeta nos demais cidadãos, não decorrendo da sua alegação de que modo os cidadãos de S… C… são afetados pela alegada ilegalidade urbanística, de que modo é que a sua qualidade de vida sai afetada ou em que medida a mesma provoca alterações ambientais que se repercutam negativamente no bem-estar e interesses de todos os membros da comunidade. De facto, o Autor nada alega sobre o que possa afetar, direta ou indiretamente, o direito à qualidade de vida dos cidadãos de modo que a tutela reclamada em juízo se redunde na salvaguarda de direitos que se refletem em toda a comunidade.

No caso dos autos, não resulta da alegação do Autor que em consequência de tal ameaça ou violação do interesse difuso urbanístico, seja lesada a qualidade de vida dos residentes de S… C… ou que estes sejam afetados, nomeadamente pela ameaça de ruína da construção, prejuízo para a estabilidade de terrenos, ruído, resíduos, condições de salubridade, que ocorra perturbação das condições de trânsito e estacionamento, decorrente de movimentação de cargas e descargas em regime permanente ou que se encontre prejudicada a via pública ou sequer que exista o agravamento dos riscos de incêndio ou de explosão ou quaisquer outras, que não se mostram invocadas.

Decorre que toda a ação e sua respetiva causa de pedir se encontra fundamentada e estruturada com base em pretensas violações de normas urbanísticas que disciplinam o licenciamento urbanístico de obras particulares, sem uma alegação que permita projetar o alegado interesse difuso na coletividade.

A mera alegação do Autor como cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e defensor da tutela da legalidade urbanística ordenamento do território, ambiente e qualidade de vida, assente na violação de diversas normas que impediriam a concessão de licença de construção mostra-se, pois, insuficiente para a titularidade de um interesse difuso por parte do Autor, pois que não invoca nenhuma razão que permita a intervenção da ação popular, que tem, como se disse, incidência na tutela de interesses difusos, pois que não está alegado nem demonstrado qual o prejuízo efetivo para toda a comunidade com a existência de tal edificação que logrou obter “permissão” do Município para ali se implementar.

Não se vislumbra naquelas alegações qualquer interesse de toda a comunidade que legitime a intervenção uti cives do Autor, pois que a intervenção uti singuli está afastada por via da ação popular.

Em conformidade com o exposto, entende-se que atenta a particular conformação e natureza da ação popular, a que subjaz a defesa de interesses públicos, ainda que exercida por um particular, tem de considerar-se que não está caracterizado um interesse difuso que legitime o direito que a ação popular.

No caso, não se mostra caracterizada a defesa de interesses que respeitam a toda a comunidade, pelo que não é de reconhecer legitimidade ao A. para agir em juízo como Autor popular, nos termos das disposições conjugadas do artigo 1.º do ETAF e do artigo 9.º, n.º 2 do CPTA, conjugado com os artigos. 1.º, n.ºs 1 e 2, 2.º, n.º 1 e 12.º, n.º 1, da Lei 82/95, de 31/08.”.

Em face da configuração da presente causa, o julgamento de direito antecedente afigura-se correto e em conformidade com a Constituição e a lei, não assistindo razão ao Recorrente na censura que dirige ao acórdão recorrido.

O prédio sobre o qual incidem os atos impugnados localiza-se no município de S… C… que não é aquele em que o Autor reside, pois reside no município do F…, não se podendo afirmar que o Autor seja directamente afectado pela prática dos atos ilegais, assim como que as ilegalidades invocadas se projectam no âmbito da protecção dos direitos difusos invocados, os quais também não são apropriáveis subjectivamente, seja pelo Autor, seja por outros cidadãos residentes no município de S… C… ou da Região Autónoma da Madeira.

Atenta a identidade da questão de direito ora controvertida e a decidida no Acórdão deste TCAS, 10452/13, de 23/01/2014, adota-se a fundamentação vertida no seu respetivo sumário, assim como para o aí decidido a respeito da delimitação do conceito de legitimidade popular, por ser inteiramente transponível:

“I. Para o efeito da titularidade do direito de acção popular, prescreve o artº 2º da Lei nº 83/95, de 31/08, que são titulares do direito de acção popular “quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda”.

II. Tais interesses, enumerados no artº 52º, nº 3 da Constituição, no artº 1º, nº 2 da Lei nº 83/95 e no artº 9º, nº 2 do CPTA são, de entre outros, a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais.

III. O objecto da acção popular é, antes de mais, a defesa de interesses difusos, pois sendo interesses de toda a comunidade, deve reconhecer-se aos cidadãos uti cives e não uti singuli, o direito de promover, individual ou associadamente, a defesa de tais interesses.

IV. Quanto ao enunciado legal dos sujeitos e entidades aos quais é concedida a legitimidade popular, a atribuição desta legitimidade implica um significativo reforço do papel dos tribunais na tutela dos direitos difusos, pois quando essa mesma legitimidade é atribuída a cidadãos e a organizações, o tribunal tem de verificar a adequação da representação reclamada.

V. Não pode o interesse difuso ser confundido com qualquer outro interesse, como seja, o interesse público.

VI. Apesar de alguma coincidência, os interesses públicos são os interesses gerais de uma colectividade e os interesses difusos são aferidos pelas necessidades efectivas que por eles são ou deviam ser satisfeitas aos membros de uma colectividade.

VII. A mera alegação do interesse da defesa da legalidade urbanística, assente na violação das normas do Regulamento do PDM, por edificação de construção sem licenciamento camarário e na manutenção dessa alegada ilegalidade ao longo do tempo, desacompanhada de outra alegação, não permite fundar a existência de um interesse difuso a tutelar através da acção popular.

VIII. Não se mostrando caracterizada a defesa de interesses de toda a comunidade, por nada ser dito sobre o modo como a alegada violação do interesse urbanístico se projecta nos demais cidadãos ou o modo como é a colectividade afectada pela alegada ilegalidade urbanística, não se mostra sustentada a qualidade de que os autores se arrogam, de serem autores populares.

IX. A alegação assente na “violação gravosa de diversas normas do PDM de … e de normas do RGEU que obstaculizam a legalização daquela obra”, mostra-se insuficiente para a titularidade de um interesse difuso por parte dos Autores.

X. Os Autores formulam pretensão que se mostra não inserida no núcleo de interesses previstos no âmbito do disposto no artº 1º da Lei nº 83/95, de 31/08 ou que tutele o referido núcleo de interesses a defender, não demonstrando a ofensa de interesses de toda a comunidade.”.

A interpretação seguida no acórdão recorrido não incorre em interpretação desconforme do direito de acção popular, nos termos em que se encontra previsto no n.º 3 do artigo 53.º da Constituição e concretizado na lei ordinária, a Lei de Ação Popular, nos preceitos indicados pelo Recorrente, os artigos 1.º, n.º 2 e 13.º da Lei n.º 85/95, de 31/08, nem tão pouco com a norma do n.º 2 do artigo 9.º do CPTA, a respeito do alargamento da legitimidade ativa.

Da alegação do Autor extrai-se, antes de mais, a invocação da defesa da tutela da legalidade urbanística, decorrentes da edificação de construção em violação da legalidade aplicável.

Para além da alegada defesa da tutela objectiva da legalidade urbanística, nada mais invoca o Autor que permita caracterizar o interesse difuso que visa defender, sendo insuficiente a sua expressa menção.

Embora proceda o Autor correctamente quanto à caracterização da ação popular, mediante enunciação dos preceitos legais que consagram o direito de acção popular, não procede à alegação em termos que permitam sustentar a qualidade de que se arroga, de ser Autor popular.

Analisando toda a alegação constante da petição inicial, resulta que por nenhum momento o Autor alega que a construção levada a efeito ou sequer que a manutenção desse status quo ao longo do tempo, lese os “interesses da comunidade”, nem procede à enunciação explícita de qual o direito difuso que visa proteger, invocando uma panóplia vasta dos interesses difusos.

Embora se compreenda que está em causa a defesa do urbanismo, não logra o Autor invocar ou caracterizar no que a violação desse direito se projecta nos demais cidadãos, não decorrendo da sua alegação de que modo os cidadãos de S… C… ou sequer do F… são afectados pela alegada ilegalidade urbanística.

Acresce que o Autor nada alega sobre o que possa afectar, directa ou indirectamente, o direito à qualidade de vida dos cidadãos ou sequer, do ordenamento do território, de modo que a tutela reclamada em juízo se redunde na salvaguarda de direitos que se reflectem em toda a comunidade.

Tal como já antes decidido, assim, não resulta da alegação do Autor que em consequência de tal ameaça ou violação do interesse difuso urbanístico, seja afectada a qualidade de vida dos residentes ou que estes sejam afectados, por o Autor se limitar a enunciar os direitos difusos, desprovidos de qualquer caracterização, assim como os preceitos legais que considera infringidos.

Embora o Autor enuncie os preceitos que considera ser postergados, em nenhum momento caracteriza de facto a situação, de modo a fazer corresponder a realidade existente ao âmbito da previsão das normas legais ou regulamentares alegadamente violadas.

Nada decorre da alegação do Autor que permita caracterizar de facto a situação em causa, de forma a poder extrair a lesão aos direitos e interesses invocados.

Decorre que toda a ação e sua respectiva causa de pedir se encontra fundamentada e estruturada com base em pretensas violações de normas urbanísticas que disciplinam o licenciamento urbanístico de obras particulares, sem uma alegação que permita projectar o alegado interesse difuso na coletividade.

A mera alegação do Autor como cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos e defensor da tutela da legalidade urbanística, mostra-se, pois, insuficiente para a titularidade de um interesse difuso, pois que não invoca nenhuma razão que permita a intervenção da ação popular, que tem incidência na tutela de interesses difusos.

Não se vislumbra naquelas alegações qualquer interesse de toda a comunidade que legitime, sequer, a intervenção uti cives do Autor, pois que a intervenção uti singuli está afastada por via da acção popular.

Em conformidade com o exposto entende-se que atenta a particular conformação e natureza da ação popular, a que subjaz a defesa de interesses públicos, ainda que exercida por um particular, tem de considerar-se que não caracterizado um interesse difuso que legitime o direito que a acção popular postula.

Acresce ainda, que o Autor não logra sequer alegar e muito menos demonstrar, quem são os cidadãos prejudicados, pois nada refere a esse respeito, pelo que, não se mostra alegado em que medida é que o respectivo interesse difuso sai prejudicado, pois como se disse, não se vislumbra, sem mais, a existência de um prejuízo para a comunidade pelo facto de ter sido edificada uma determinada construção.

Pelo que, o Autor formula pretensão que se mostra não inserida no núcleo de interesses previstos no âmbito do disposto no artigo 1.º da Lei n.º 83/95, de 31/08 ou que tutele o referido núcleo de interesses a defender, ou sequer, que demonstre a ofensa de interesses de toda a comunidade.

A pretensão do Autor, enquanto particular, visando a defesa do que caracterizam como sendo uma violação das regras de legalidade urbanística, perpetuada pelos Contrainteressados e mantida pelo Município, sem mais, isto é, desacompanhada de outra alegação de facto, não permite que se qualifique o interesse em presença como difuso, para efeitos de legitimidade popular.

Para efeitos da Lei de Ação Popular e do CPTA, qualquer cidadão, independente de ter ou não interesse directo na demanda, é titular do direito de ação popular para defesa de alguns dos direitos aí previstos, onde se inclui o urbanismo, mas não basta a invocação da defesa desse direito, para que se encontrem preenchidos os pressupostos legais de exercício do direito de acção popular.

Doutro modo, toda e qualquer acção de defesa da legalidade urbanística equivaleria ao exercício do direito de ação popular, o que não corresponde ao regime legal delineado.

No caso, não se mostra caracterizada a defesa de interesses que respeitam a toda a comunidade, pelo que, não visando a presente ação a defesa do direito difuso do urbanismo, não é de reconhecer legitimidade ao demandante para agir em juízo como Autor popular, nos termos das disposições conjugadas do artigo 1.º do ETAF e do artigo 9.º, n.º 2 do CPTA, conjugado com os artigos 1.º, n.ºs 1 e 2, 2.º, n.º 1 e 12.º, n.º 1, da Lei n.º 82/95, de 31/08.

Também neste sentido, num caso em que era reclamada a defesa da legalidade urbanística, sendo alegada a violação de normas do Regulamento do PDM e pedida a demolição de uma construção edificada sem licença municipal, como forma de repor a legalidade anterior, cfr. o douto Acórdão deste Tribunal, datado de 08/02/2007, proc. nº 02168/06, segundo o qual:

“1. O conceito de interesses difusos reconduz-se a interesses sem titular determinável, meramente referíveis, na sua globalidade, a categorias indeterminadas de pessoas.

2. Só por si, a colocação de dois sinais de trânsito proibido num determinado arruamento urbano sem residentes e a construção não licenciada de uma cerca e alpendre, não configuram a violação de interesses difusos da concreta comunidade urbana.”.

Em consequência, tal como entendeu a decisão recorrida, verifica-se a existência de motivo que determina a absolvição da Entidade Demandada e dos Contrainteressados da instância, por falta de legitimidade ativa do Autor.

Pelo que, em face do exposto, serão de julgar improcedentes, por não provadas as conclusões do presente recurso.

2. Erro de julgamento por violação dos artigos 7.º e 88.º, n.º 2 do CPTA

No demais vem o Recorrente sustentar que o Tribunal a quo em nenhum momento anterior à decisão recorrida veio julgar enfermar a petição inicial de ineptidão ou sequer formulou um convite ao aperfeiçoamento, devendo o Tribunal pautar a sua conduta segundo as regras de boa-fé e recusar-se interpretar a petição inicial do Autor de forma a não ver o que é patente e notório.

Alega que poderá a petição inicial incorrer numa alegação deficiente e não a ausência de quaisquer factos essenciais ou novos factos, podendo o Tribunal interpretar todo o articulado.

O Tribunal decidiu como se a petição inicial fosse deficiente, e não inepta, pois esta nunca foi invocada, pelo que o Tribunal deveria dar cumprimento ao princípio pro actione, em face do artigo 7.º do CPTA, devendo interpretar as normas processuais em termos que favoreçam as pronúncias sobre o mérito da causa.

Por assim não ter entendido o Tribunal a quo, infringiu as normas dos artigos 7.º e 88.º, n.º 2 do CPTA.

Mais alega que em momento algum no processo foi suscitada qualquer questão prévia relativa à ilegitimidade ativa do Autor por ele não ter alegado e invocado na sua petição inicial a medida concreta em que os atos impugnados violavam os interesses difusos, por os Contrainteressados não a terem invocado, antes tendo sido invocada oficiosamente pelo Tribunal, sem que tivesse sido respeitado o princípio do contraditório.

Ao não ter sido dada a possibilidade de o Autor se pronunciar defende o Recorrente que foi omitido ato processual que se impunha, o qual afeta a decisão da causa e constitui nulidade processual.

Vejamos todo o alegado pelo Recorrente.

No que respeita a ter sido violado o princípio do contraditório não assiste qualquer razão ao Autor, ora Recorrente, pois como bem decidiu o Tribunal a quo no âmbito do conhecimento da reclamação apresentada, a questão da falta de legitimidade ativa do Autor foi suscitada na contestação dos Contrainteressados, sob a invocação “Da impropriedade do meio processual utilizado por inaplicabilidade in casu do instituto da ação popular”.

Sobre esta questão o Autor teve oportunidade de se pronunciar, nada tendo acrescentado à sua alegação.

O respeito pelo princípio do contraditório exige que à parte afetada pela decisão a proferir seja dada a oportunidade de se pronunciar sobre a questão jurídica concretamente em causa, sem que se imponha ser notificada de todos os fundamentos ou argumentos que a determinam, segundo a distinção que se impõe fazer entre questão e argumento.

Nem o Tribunal está adstrito de conhecer de todos e de cada um dos argumentos invocados pelas partes, mas apenas de conhecer e decidir a questão que lhe se seja colocada, como não têm de ser apresentados à parte, no exercício do princípio do contraditório, todos os argumentos ou fundamentos que servem de base à decisão da questão concretamente suscitada.

O princípio do contraditório não tem o alcance projetado pelo ora Recorrente, pois sendo notificado e tendo conhecimento de que se encontra suscitada uma questão sobre a qual recai sobre o Tribunal o dever de conhecimento, é sobre a parte que recai o poder de se pronunciar, com o alcance que a sua estratégia de defesa lhe oferece.

Neste sentido, não assiste razão ao Recorrente quanto à censura que dirige ao Tribunal a quo, em relação à violação do princípio do contraditório.

No que respeita à violação do princípio pro atione, previsto no artigo 7.º do CPTA e à falta de emissão de despacho de convite ao aperfeiçoamento, também não assiste razão ao Autor, pelas razões que fundamentam a decisão de absolvição da instância.

Não está em causa uma situação em que a alegação de facto e/ou de direito constante da petição inicial se apresente incompleta, incompreendida, omissa em relação a algum facto essencial ou sequer ininteligível, que permita a sua correção e sanação e, com isso, o normal prosseguimento da instância.

Por outro lado, também não se configura a questão de ilegitimidade ativa como uma questão que determine a ineptidão da petição inicial e com isso, a nulidade do processo, para que o juiz devesse ter decidido nesse sentido.

A razão que motiva a decisão de absolvição da instância prende-se com a falta de uma condição ou qualidade intrínseca do Autor, a qual, por isso, não é passível de ser sanada ou corrigida.

Isto porque a legitimidade consiste numa posição da parte perante determinada ação, sendo uma “questão de posição das partes em relação à lide” – Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, I, pp. 74.

Por estar em causa uma referência concreta da legitimidade à ação, a legitimidade já foi designada como legitimatio ad causam, como forma de legitimação para determinada ação, por oposição à legitimatio ad processum, que é a capacidade judiciária – vide Antunes Varela, J. Miguel Beleza e Sampaio e Nora, obra cit., pp. 132.

Assim, “Não basta assim saber quem são as partes (em sentido formal) no processo. Para que o juiz se possa pronunciar sobre o mérito da causa, importa ainda saber quais devem ser as partes em sentido substancial, porque só a intervenção destas em juízo garante a legitimidade para a acção.” – Idem, pp. 132.

“A legitimidade, tal como os restantes pressupostos processuais, constitui um requisito essencial para que o juiz profira decisão, não apenas sobre a causa, mas sobre o mérito da acção. E para tal não basta (…) ser parte em sentido formal; é essencial ser parte em sentido substancial. Não basta, noutros termos, saber quem propôs a acção e contra quem a providência foi requerida; torna-se necessário saber quem devia propor e contra em quem devia ser proposta, para que o juiz possa utilmente conhecer do fundo da causa. E essa resposta só pode ser obtida em face da relação material controvertida.” – Ibidem, pp. 151.

Preceituavam os n.ºs 1 e 2 do artigo 88.º do CPTA, na sua versão originária, com a epígrafe “Suprimento de excepções dilatórias e aperfeiçoamento dos articulados”, o seguinte:

1 – Quando, no cumprimento do dever de suscitar e resolver todas as questões que possam obstar ao conhecimento do objeto do processo, verifique que as peças processuais enfermam de deficiências ou irregularidades de carácter formal, o juiz deve procurar corrigi-las oficiosamente.

2 – Quando a correcção oficiosa não seja possível, o juiz profere despacho de aperfeiçoamento, destinado a providenciar o suprimento de excepções dilatórias e a convidar a parte a corrigir as irregularidades do articulado, fixando o prazo de 10 dias para o suprimento ou correcção do vício, designadamente por faltarem requisitos legais ou não ter sido apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.

No mesmo sentido, a reforma do CPTA de 2015 estabelece no artigo 87.º, em correspondência com o regime processual civil, no n.º 2 e segs. do artigo 590.º do CPC, o despacho pré-saneador, nos termos do qual o juiz (i) conhece de todas as questões que obstem ao conhecimento do objeto do processo, (ii) providencia pela correção das irregularidades formais ou substanciais dos articulados e (iii) o suprimento de exceções dilatórias, em respeito do disposto no artigo 88.º do CPTA e do dever de gestão processual, previsto no n.º 2 do artigo 6.º do CPC e no n.º 2 do artigo 7.º-A do CPTA.

O artigo 87.º, sob a epígrafe “Despacho pré-saneador”, adota a seguinte redação:

1 – Findos os articulados, o processo é concluso ao juiz, que, sendo caso disso, profere despacho pré-saneador destinado a:

a) Providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias;

b) Providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes;

c) Determinar a junção de documentos com vista a permitir a apreciação de exceções dilatórias ou o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador.

2 – O juiz convida as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.” (sublinhados nossos).

O artigo 7.º-A, epigrafado “Dever de gestão processual”, prevê o seguinte:

1 – Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismo de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.

2 – O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância, ou quando a danação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando-as a praticá-lo.” (sublinhados nossos).

Quanto ao que releva para a questão controvertida, dos citados preceitos resulta um poder-dever de suprimento oficioso de exceções dilatórias, seja por regularização por iniciativa do tribunal, seja por sanação por impulso processual da parte mediante convite do tribunal.

O estabelecido em tais normas legais, nos n.ºs 1, alínea a) e n.º 2, do artigo 87.º e nos n.ºs 1 e 2 do artigo 7.º-A, do CPTA, não diferem significativamente do disposto nos n.ºs 1 a 4 do artigo 590.º e nos n.ºs 1 e 2 do artigo 6.º, do CPC.

Os n.ºs 1 e 2 do artigo 6.º do CPC, a respeito do dever de gestão processual a cargo do juiz, prevê que cumpre ao juiz promover “oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação” (n.º 1) e que “o juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais que sejam suscetíveis de sanação” (n.º 2).

O artigo 590.º do CPC, concretizando o dever de gestão inicial do processo, consagra o poder-dever de o juiz “providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º” [n.º 2, al. a)].

Aqui chegados e vertendo os normativos de direito ao caso em apreço, não se impunha ao Tribunal a quo a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, por não estar em causa matéria que pudesse ser aperfeiçoada pelo Autor, nenhuma imperfeição se detectando ao nível do articulado da parte.

A questão coloca-se ao nível na própria condição em que o Autor se apresenta em juízo, em face do objecto da causa e dos direitos e interesses que nela são discutidos, não assistindo legitimidade ativa aos cidadãos para a defesa de interesses públicos, mas apenas de interesses difusos e estes não se configurarem em juízo.

A legitimidade ativa de que o Autor se arroga está constitucional e legalmente atribuída ao Ministério Público, cabendo-lhe a ele a defesa da legalidade administrativa e de uma forma muito precisa, a defesa e tutela dos interesses difusos.

O actual contencioso administrativo de cariz eminentemente subjectivista não atribui legitimidade ativa aos cidadãos para a defesa da legalidade objectiva como interesse juridicamente tutelável, antes exigindo uma conexão jus-subjetiva, que se conecte com a sua esfera jurídica ou então sob a dimensão de tutela de interesses difusos, que a presente instância não permite configurar.

Neste sentido, não se impunha a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, não tendo sido violado o princípio pro actione, previsto no artigo 7.º do CPTA.

Pelo que, não se mostram violadas as normas legais invocadas pelo Recorrente, concluindo-se pela improcedência das conclusões do recurso e pelos seus respectivos fundamentos.


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Nestes termos, será de concluir pela improcedência do recurso jurisdicional, por não provado, mantendo-se o acórdão recorrido na ordem jurídica.

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Sumariando, nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do CPC, conclui-se da seguinte forma:

I. Para o efeito da titularidade do direito de ação popular, prescreve o artigo 2.º da Lei nº 83/95, de 31/08, que são titulares do direito de acção popular “quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda”.

II. Tais interesses, enumerados no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição, no n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 83/95 e no n.º 2 do artigo 9º do CPTA são, de entre outros, a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais.

III. O objecto da ação popular é, antes de mais, a defesa de interesses difusos, pois sendo interesses de toda a comunidade, deve reconhecer-se aos cidadãos uti cives e não uti singuli, o direito de promover, individual ou associadamente, a defesa de tais interesses.

IV. A atribuição desta legitimidade implica um significativo reforço do papel dos tribunais na tutela dos direitos difusos, pois quando essa mesma legitimidade é atribuída a cidadãos e a organizações, o tribunal tem de verificar a adequação da representação reclamada.

V. Não pode o interesse difuso ser confundido com qualquer outro interesse, como seja, o interesse público.

VI. Apesar de alguma coincidência, os interesses públicos são os interesses gerais de uma colectividade e os interesses difusos são aferidos pelas necessidades efetivas que por eles são ou deviam ser satisfeitas aos membros de uma colectividade.

VII. A mera alegação do interesse da defesa da legalidade urbanística, assente na violação das normas legais e regulamentares, por edificação de construção que alegadamente ofende as normas aplicáveis ao loteamento urbano e demais vinculações legais aplicáveis, não permite fundar a existência de um interesse difuso a tutelar através da ação popular.

VIII. Não se mostrando caracterizada a defesa de interesses de toda a comunidade, por nada ser dito sobre o modo como a alegada violação do interesse urbanístico se projeta nos demais cidadãos ou o modo como é a coletividade afetada pela alegada ilegalidade urbanística, não se mostra sustentada a qualidade de que o Autor se arroga, de ser Autor popular.

IX. O princípio do contraditório exige que a parte afetada pela decisão a proferir tenha a oportunidade de conhecer e se pronunciar sobre a questão em causa, mas não impõe que seja notificado de todos os fundamentos ou argumentos em que baseará a decisão a proferir pelo Tribunal.

X. Considerando o fundamento que determinou a absolvição da instância, relativo à falta de legitimidade ativa como Autor popular, não se impunha a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, por não estar em causa matéria que pudesse ser aperfeiçoada pelo Autor, nenhuma imperfeição se detectando ao nível do articulado da parte.

XI. A questão coloca-se ao nível na própria condição em que o Autor se apresenta em juízo, em face do objecto da causa e dos direitos e interesses que são discutidos, não assistindo legitimidade ativa aos cidadãos para a defesa de interesses públicos ou em defesa da legalidade objetiva, mas apenas de interesses difusos e estes não se configuram em juízo.


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Por tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes do presente Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso, por não provados os seus fundamentos e em manter o acórdão recorrido.

Sem custas, atenta a isenção subjetiva de que goza o Recorrente – artigo 4.º, n.º 1, alínea b) do RCP.

Registe e Notifique.


(Ana Celeste Carvalho - Relatora)


(Pedro Marchão Marques)


(Helena Canelas - Declaração de voto)
Voto vencida, por considerar que o autor detém legitimidade ativa para a ação ao abrigo do artigo 9º nº 2 do CPTA.

Helena Canelas