Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:919/10.0BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:06/25/2020
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:IRS
UNIÃO DE FACTO
CASAMENTO ANTERIOR NÃO DISSOLVIDO
Sumário:
I. Para ser admissível o exercício do direito de opção pela tributação segundo o regime dos sujeitos passivos casados o que é exigido é que a união de facto perdure há mais de dois anos.

II. O facto de não ter sido imediatamente comunicado o domicílio fiscal de um dos membros da união de facto não é impeditivo da demonstração da existência dessa mesma união.

III. A comunicação da alteração de domicílio fiscal não configura formalidade ad substanciam.

IV. A falta de dissolução de casamento anterior impede a aplicação do regime relativo aos unidos de facto, atento o disposto no art.º 2.º, al. c), da Lei n.º 7/2001, exceto se tiver sido decretada a separação judicial de pessoas e bens.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acórdão

I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio apresentar recurso da sentença proferida a 27.09.2018, no Tribunal Tributário de Lisboa, na qual foi julgada procedente a impugnação apresentada por D….. e I…..(doravante Recorridos ou Impugnantes), que teve por objeto a liquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS), relativa ao ano de 2008.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Nesse seguimento, a Recorrente apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

I – Pelo elenco de razões acima arroladas, ressalve-se melhor entendimento, infere-se que a sentença proferida pelo Tribunal “ad quo” caiu em erro, porquanto os factos dados como provados devem levar, na aplicação devida das normas substantivas, a solução diversa da sentenciada e portanto conduziriam a uma decisão diferente da adoptada pelo Tribunal ad quo. Como tal, somos levados a concluir pela existência resulta de uma distorção na aplicação do direito de tal forma a que o decidido não corresponde à realidade normativa objecto de uma análise deficiente, levando a decisão recorrida a enfermar de error juris.

II – Nos presentes autos está em causa uma liquidação de IRS, para o exercício de 2008, no montante de € 12.838,75, em que o Tribunal ad quo considerou que os impugnantes tinham comprovado a união de facto, em 2008.

III – A Fazenda não concorda com a posição da douta sentença do Tribunal ad quo porquanto a impugnante tinha entregue uma declaração de IRS, para o exercício de 2006, tedo declarado que era casada com T…... Se atendermos que a Mod. 3, para o exercício de 2006, é entregue em 2007, então, em 31/12/2008, não poderiam ter passado dois anos, requisito essencial para se considerar os impugnantes em união de facto e, consequentemente serem equiparados a casados e poderem usufruir da tributação conjunta.

IV – A questão decidenda é saber se os impugnantes provaram a sua união de facto em 2008, atendendo que não têm residência comum em 2007, 2008 e 2009, pois só em Setembro de 2009, a impugnante alterou a sua residência para a Rua….., residência do impugnante D…...

V – A Fazenda não concorda porque a alteração de residência é obrigatória e a sua não comunicação tem como cominação a ineficácia enquanto não for comunicada à AT, sendo que a ineficácia refere-se aos efeitos tributários, tal como Leite Campos et allii o mencionam nas anotações ao art.º 19.º da LGT, anotada e comentada, 4.ª Edição, 2012.

VI – Por outro lado, dos art.º 14.º do CIRS e art.º 1.º da Lei n.º 7/2001, ressalta que para se considerar em união de facto devem residir na mesma morada e assinar a Mod. 3 de IRS.

VII – Ora, os impugnantes tinham residência fiscal diferente, só tendo sido alterada a residência da impugnante para a mesma do impugnante, em 16/09/2009. Atente-se que na condição da residência ser comum para se considerar como unido de facto.

VIII – Mas, na douta sentença é mencionado que a alteração ou não de morada não tem efeito constitutivo mas sim, uma mera formalidade.

IX - Ora, pode não ser constitutivo de direitos mas, há uma obrigatoriedade declarativa, a qual foi violada pelo que, a inoponibilidade mencionada no art.º 19.º da LGT tem tão só como cominação a não aceitação da Mod. 3 enquanto a residência fiscal não for alterada.

X - Os efeitos declarativos se prendem com a certeza e segurança jurídica, dando conhecimento do acontecimento para que os seus efeitos se produzam.

XI - Ora, da leitura dos documentos emitidos pelo Registo Central de Contribuintes da AT, ressalta que o impugnante D….., entre 2000 e Janeiro de 2009, tinha o seu domicílio na Rua ….. (cfr. al. J) do probatório) e que a impugnante I….., em Setembro de 2009, tinha o seu domicílio na Rua ….. (cfr. al. L) do probatório). Assim sendo, constata-se que ambos os impugnantes não tinham o mesmo domicílio.

XII - Mas, em 06/01/2009, o impugnante D….. alterou o seu domicílio para a Rua ….. (cfr. al. K) do probatório) e que, em 16/09/2009, a impugnante I….. alterou o seu domicílio para a Rua ….. (cfr. al. M) do probatório).

XIII - Ora, em face de não haver coincidência entre os domicílios, a AT não poderia considerar a declaração Mod. 3 de 2008, a qual foi entregue até Abril de 2009, como unidos de facto.

XIV - Por outro lado, resulta do probatorio, al. N), que a impugnante I….. apresentou a Mod. 3 de IRS, para o exercício de 2006, como casada com o sujeito passivo com o NIF…...

XV - Atente-se no facto da Mod. 3 de IRS, para o exercício de 2006 ser entregue em 2007 ou até Abril, para a Cat. A, ou até Maio para a Cat. B ou F, de IRS.

XVI - O que reforça, ainda mais, que em 2008, não poderia ter-se completado o prazo de 2 anos de união de facto.

XVII - Assim, não restava outra alternativa à AT de proceder como efectivamente procedeu, em cumprimento o princípio da legalidade, não considerando a tributação conjunta dos impugnantes.

XVIII - Por outro lado, não foi contestado pelos impugnantes que a mudança de domicílio fiscal por parte da impugnante I….. apenas foi feita em 16/09/2009, isto é, no ano seguinte ao exercício aqui em causa.

XIX - Porém, mesmo que se considere apenas a lei civil, não nos parece que a situação estabelecida possa conduzir ao resultado pedido e, isto porque, se encontra documentalmente demonstrado que a impugnante, I….., na sua declaração de IRS para o exercício de 2006 como casada com T….., não tendo sido este facto contestado, pelo que se deve ter como pacificamente demonstrado, o que compromete de uma forma evidente a pretensão apresentada uma vez que o minino de dois anos igualmente na lei civil nunca poderá ser atingido em 2008.

XX - Por fim, quanto ao mencionado na prova testemunhal, a mesma não contribuiu para sustentar o pedido, pois os elementos trazidos aos autos foram no sentido de ainda não ter decorrido o prazo de dois anos exigido pela lei para que se possa considerar união de facto.

XXI - A testemunha P….., amigo de longa data, afirmou que a impugnante ficou logo grávida quando começaram a andar juntos, e ter-se deslocado à Madeira pouco depois, em 2016. Mas quando confrontado com o facto de o primeiro filho de ambos, T….., ter nascido em 11/10/2007, não ofereceu uma explicação cabal para a discrepância entre datas.

XXII - Com respeito à testemunha M….., não foi possível retirar do seu depoimento qualquer elemento que ajudasse a estabelecer, com a certeza e rigor que se exige em termos temporais, o que aqui está em causa.

XXIII - Assim sendo, não se conseguiu provar que, apesar da impugnante, para o exercício de 2006, entregue em 2007, ter declarado como casada, em 2008, não poderiam ter passado dois anos de união de facto como a impugnante pretende.

XXIV - Nos termos expostos, deve o presente recurso proceder uma vez que a impugnante não provou o que alegou, recaindo sobre ela aquele ónus, pelo que a sentença proferida enferma de erro de julgamento sobre os pressupostos de facto e de direito, devendo a mesma ser revogada”.

Os Recorridos apresentaram contra-alegações, nas quais concluíram nos seguintes termos:

“1. A AT imputa à sentença recorrida error juris, referindo, no artigo 23.º das suas alegações, que "(…) se encontra documentalmente demonstrado que a impugnante, I….., na sua declaração de IRS para o exercício de 2006 como casada com T….., não tendo sido este facto contestado, pelo que se deve ter como pacificamente demonstrado, o que compromete de uma forma evidente a pretensão apresentada uma vez que o minino de dois anos igualmente na lei civil nunca poderá ser atingido em 2008".

Sucede que,
2. não apenas aquela circunstância não tem o efeito pretendido pela AT, como inexiste, em sede de contencioso tributário, ónus de impugnação especificada face à Fazenda Pública, contrariamente ao que se passa no processo civil (cfr. n.º 6 do artigo 110.º do CPPT).
3. De acordo com o Tribunal a quo, [t]endo em conta que, de acordo com as regras da experiência comum, uma gravidez de termo normal decorre entre 38 a 42 semanas. Tendo ainda presente a data de nascimento do primeiro filho dos Impugnante em 11/10/2007, podemos concluir que os Impugnantes começaram a viver na mesma casa em situação análoga à dos cônjuges, em união de facto em data que não é possível determinar mas que se situa entre Setembro e a primeira quinzena de Dezembro de 2006, mostrando-se assim, provado que, a 31/12/2008, viviam em união de facto, há mais de dois anos consecutivos, nos termos previstos no artigo 1.º n.º 1 da Lei n.º 7/2001.".
4. Por outro lado, como vem afirmando a jurisprudência mais avisada, "a comunicação da alteração de domicílio fiscal não se assume como elemento constitutivo do direito dos contribuintes a serem tributados segundo o regime aplicável a sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens, estabelecido no artigo 14.º do CIRS, não podendo a omissão daquela formalidade obstar ao reconhecimento desse mesmo direito”.
5. tendo ficado amplamente demonstrado que os Recorridos viviam em condições análogas às dos cônjuges, há mais de dois anos, aquando da apresentação da declaração conjunta relativa ao período de tributação de 2008, não pode deixar de julgar-se como verificados os requisitos plasmados nos números 1 e 2 artigo 14.º do Código do IRS e, consequentemente, eivada de vício de violação de lei a liquidação impugnada.

Motivo pelo qual,

6. bem andou o Tribunal a quo, ao decidir como decidiu”.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do então art.º 289.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT) vem o processo à conferência.

São as seguintes as questões a decidir:
a) Há erro no julgamento da matéria de facto?
b) Há erro de julgamento, em virtude de não poder ser aplicado o art.º 14.º do CIRS caso não tenha sido oportunamente comunicado por ambos os membros da união de facto o mesmo domicílio fiscal e em virtude de a Recorrida estar ainda casada em 2007?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“A) No dia 5 de Agosto de 2009 o Impugnante D….., NIF ….., apresentou a declaração Modelo 3 de IRS com o nº …., relativa ao ano de 2008, declarando a seguinte composição do agregado familiar: «3. A. Sujeito Passivo A - D…... B. Número de Dependentes Não deficientes: 0» - cf. comprovativo de entrega de declaração Modelo 3 de IRS a fls. 41 dos autos;

B) Na declaração identificada na alínea anterior, o Impugnante declarou o seguinte estado civil: «6. Estado Civil do Sujeito Passivo: Solteiro, viúvo, divorciado ou separado judicialmente» - cf. comprovativo de entrega de declaração Modelo 3 de IRS a fls. 41 dos autos;

C) Em consequência da apresentação da declaração identificada em A), foi emitida a liquidação n.º ….. e a nota de cobrança nº ….., apurando imposto a pagar no montante de € 12.838,75 e de juros compensatórios no montante de € 99,89, até ao dia 30/09/2009 - cf. demonstrações de liquidação de IRS, de juros e de compensação a fls. 94 a 96 do processo administrativo apenso;

D) No dia 30/09/2009, os Impugnantes apresentaram declaração de substituição com o nº ….., respeitante ao IRS do ano de 2008, indicando que o agregado familiar era composto pelos Impugnantes – cf. acordo (artigos 8.º da p.i. e 12.º da contestação);

E) Os Impugnantes foram notificados para esclarecer a divergência detectada quanto aos respectivos domicílios fiscais e para comprovarem o estado civil de unidos de facto – cf. acordo (artigos 9.º da p.i. e 13.º da contestação);

F) Em 09/10/2009, os Impugnantes apresentaram requerimento pedindo que fosse reconhecida a apresentação conjunta da sua declaração de rendimentos de 2008, permitindo o englobamento dos respectivos rendimentos - cf. requerimento, que se dá por integralmente reproduzido, a fls. 113 a 115 do processo administrativo apenso;

G) No requerimento identificado no ponto 6., os Impugnantes referem que «1. (…) vivem em situação de união de facto desde Jan 2007, com comunhão de cama, mesa e habitação;» - cf. requerimento a fls. 113 a 115 do processo administrativo apenso;

H) O pedido apresentado pelos Impugnantes referido em F) foi indeferido por despacho do chefe do serviço de finanças de Lisboa - 2, de 28/12/2009, com o seguinte fundamento: «(…) de harmonia com o disposto no n.º 2 do art. 14.º do CIRS, não reúne cumulativamente os requisitos inerentes à situação de unido de facto (…)» - cf. despacho, que se dá por integralmente reproduzido, a fls. 17 dos autos;

I) O despacho referido em H) foi precedido de informação em que se refere o seguinte: «7. Dos requisitos necessários para a condição de unidos de facto exarados no nº 2 do art. 14º do CIRS (….), verifica-se que os sujeitos passivos só residem em habitação comum desde 2009-09-16.» - cf. informação, que se dá por integralmente reproduzida, a fls. 18 e 19 dos autos;

J) A 15/12/2000, constava do Registo Central de Contribuintes que o Impugnante D….. tinha o domicílio fiscal registado na Rua ….. – cf. impressão do Registo Central de Contribuintes a fls. 146 e 147 dos autos;

K) A 06/01/2009, constava do Registo Central de Contribuintes que o Impugnante D….. tinha o domicílio fiscal registado na Rua ….. - cf. impressão do Registo Central de Contribuintes a fls. 148 e 149 dos autos;

L) A 15/09/2009, constava do Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes que a Impugnante I….., NIF ….., tinha o domicílio fiscal registado na Rua D. Francisco de Almeida, 29, em Lisboa – cf. impressão do Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes a fls. 99 a 100 do processo administrativo apenso;

M) Em 16/09/2009, constava do Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes que a Impugnante I….. tinha o domicílio fiscal registado na Rua ….. - cf. impressão do Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes a fls. 101 a 102 do processo administrativo apenso;

N) A Impugnante I….. apresentou a declaração Modelo 3 de IRS, referente ao ano de 2006, indicando o estado civil «Casado» com o sujeito passivo com o NIF ….. – cf. impressão de consulta de declaração de IRS a fls. 106 do processo administrativo apenso;

O) A Impugnante I….. apresentou a declaração Modelo 3 de IRS, referente ao ano de 2007, indicando o estado civil «Solteiro» - cf. impressão de consulta de declaração de IRS a fls. 105 do processo administrativo apenso;

P) Em 11/10/2007 nasceu T….., filho dos Impugnantes, constando do assento de nascimento que ambos declararam residir, àquela data, na Rua ….., constando a Impugnante como divorciada – cf. fls. 20 e 72;

Q) Em 20/01/2009 nasceu J….., filho dos Impugnantes, constando do assento de nascimento que ambos declararam residir, àquela data, na Rua ….., constando a Impugnante como divorciada – cf. fls. 21 e 73;

R) A Impugnante recebe os seus extractos bancários na Rua ….. desde pelo menos 3/3/2010 – cf. documento de fls. 24;

S) Após o verão de 2006 em data que não foi possível determinar, a Impugnante mudou de casa tendo M….. auxiliado a Impugnante nessa tarefa – cf. depoimento prestado pela testemunha M…..;

T) Após a mudança dos Impugnante para a mesma casa, em data que não foi possível apurar, e que se situa no quarto trimestre de 2006 teve lugar a gravidez da Impugnante – cf. depoimento da testemunha P…..;

U) A petição inicial da presente impugnação deu entrada no tribunal no dia 8 de Abril de 2010 - cf. carimbo aposto na petição inicial a fls. 2 dos autos”.

II.B. Relativamente aos factos não provados, refere-se na sentença recorrida:

“Não se provou que a Impugnante receba os seus extractos bancários na Rua ….., em data anterior a 3/3/2010”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“O Tribunal julgou provada a matéria de facto relevante para a decisão da causa com base na análise crítica e conjugada dos documentos, nomeadamente do processo administrativo apenso, bem como no depoimento das testemunhas inquiridas por terem deposto de forma credível, revelando conhecerem detalhadamente a vidas dos Impugnantes, por serem amigos e convivem de forma próxima, conforme identificados nos factos provados”.

II.D. Atento o disposto no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, acorda-se em aditar a seguinte matéria de facto provada:

V) I….. casou com T….. a 07.07.2001 (cfr. documento n.º 003755615 – registo do SITAF neste TCAS).

W) O casamento referido em V) foi dissolvido, por decisão de 07.02.2007, transitada (cfr. documento n.º 003755615 – registo do SITAF neste TCAS).

II.E. Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto

Considera a Recorrente que o Tribunal recorrido errou o seu julgamento de facto, apontando, acima de tudo, errada subsunção dos factos ao direito (questão a apreciar em sede de análise do alegado erro de julgamento, não configurando impugnação da matéria de facto).

No entanto, em relação à prova testemunhal, refere que a mesma não contribui para sustentar pedido.

Atento o disposto no art.º 640.º do CPC ex vi art.º 281.º do CPPT, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto carateriza-se pela existência de um ónus de alegação a cargo do Recorrente, que não se confunde com a mera manifestação de inconformismo com tal decisão[1].

Assim, o regime vigente atinente à impugnação da decisão relativa à matéria de facto impõe ao Recorrente o ónus de especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considere incorretamente julgados [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. a), do CPC];
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem, em seu entender, decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. b), do CPC], sendo de atentar nas exigências constantes do n.º 2 do mesmo art.º 640.º do CPC;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. c), do CPC].

Especificamente quanto à prova testemunhal, dispõe o n.º 2 do art.º 640.º do CPC:

“2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.

Como tal, não basta ao Recorrente manifestar de forma não concretizada a sua discordância com a decisão da matéria de facto efetuada pelo Tribunal a quo, impondo­‑se-lhe os ónus já mencionados[2].

Transpondo estes conceitos para o caso dos autos, verifica-se que a Recorrente não cumpre com nenhum dos ónus a seu cargo, nem mesmo no corpo das alegações, referindo apenas que dos depoimentos das testemunhas P….. e M….. nada resulta provado, nem identificando qual ou quais pontos de facto foram incorretamente julgados nem cumprindo as exigências atinentes a indicação das passagens da gravação dos depoimentos prestados consideradas relevantes.

Como tal, cumpre rejeitar o recurso nesta parte.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo laborou em erro, na medida em que, face ao casamento anterior da Recorrida, não poderiam ter passado os dois anos legalmente exigidos para se poder usufruir do regime da tributação conjunta. Considera, ademais, que não ficou provada a união de facto, dada a circunstância de o domicílio não ser o mesmo se não a partir de 2009, sendo a alteração da residência obrigatória e a sua não comunicação à administração tributária (AT) implicar que esta seja ineficaz para efeitos tributários, e dado o facto de, em 2007, a Recorrida ainda estar casada.

Vejamos então.

O nosso ordenamento consagra, em diversas vertentes, a proteção da união de facto, reflexo, desde logo, da proteção constitucionalmente consagrada do direito à constituição de família (cfr. art.º 36.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).

Assim, a este respeito, é desde logo de chamar à colação a Lei n.º 7/2001, de 11 de maio[3], considerando-se, nos presentes autos, a sua redação inicial, dado ser a aplicável atento o facto tributário reportar ao ano de 2008.

O art.º 1.º, n.º 1, do mencionado diploma, define “união de facto” como “a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos”.

Por seu turno, o art.º 2.º elenca as situações que impedem a atribuição de direitos ou benefícios fundados na união de facto, a saber, na redação inicial:

“a) Idade inferior a 16 anos;

b) Demência notória, mesmo nos intervalos lúcidos, e interdição ou inabilitação por anomalia psíquica;

c) Casamento anterior não dissolvido, salvo se tiver sido decretada separação judicial de pessoas e bens;

d) Parentesco na linha reta ou no 2.º grau da linha colateral ou afinidade na linha reta;

e) Condenação anterior de uma das pessoas como autor ou cúmplice por homicídio doloso ainda que não consumado contra o cônjuge do outro”.

Nos termos do seu art.º 3.º, al. d), as pessoas que vivam em união de facto têm direito à “[a]plicação do regime do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares nas mesmas condições aplicáveis aos sujeitos passivos casados e não separados de pessoas e bens”.

Por outro lado, nos termos do art.º 14.º do Código do IRS (CIRS), na redação então em vigor:

“1 - As pessoas que vivendo em união de facto preencham os pressupostos constantes da lei respetiva, podem optar pelo regime de tributação dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens.

2 - A aplicação do regime a que se refere o número anterior depende da identidade de domicílio fiscal dos sujeitos passivos durante o período exigido pela lei para verificação dos pressupostos da união de facto e durante o período de tributação, bem como da assinatura, por ambos, da respetiva declaração de rendimentos.

3 - No caso de exercício da opção prevista no n.º 1, é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 13.º, sendo ambos os unidos de facto responsáveis pelo cumprimento das obrigações tributárias”.

É ainda pertinente chamar à colação o art.º 19.º da Lei Geral Tributária (LGT), também na redação então em vigor, nos termos do qual:

“1 - O domicílio fiscal do sujeito passivo é, salvo disposição em contrário:

a) Para as pessoas singulares, o local da residência habitual;

(…) 2 - É obrigatória, nos termos da lei, a comunicação do domicílio do sujeito passivo à administração tributária.

3 - É ineficaz a mudança de domicílio enquanto não for comunicada à administração tributária.

(…) 6 - A administração tributária poderá retificar oficiosamente o domicílio fiscal dos sujeitos passivos se tal decorrer dos elementos ao seu dispor”.

In casu, a primeira questão que se coloca prende-se com a possibilidade de ser apresentada declaração modelo 3 de IRS com exercício da opção pela tributação segundo o regime dos sujeitos passivos casados, não obstante não ter sido feita a alteração do domicílio fiscal junto dos serviços da AT de ambos os sujeitos da união de facto.

Considera a Recorrente, como já referimos, que a obrigação de identidade do domicílio fiscal, configurada do ponto de vista da obrigatoriedade de comunicação e registo junto da AT, é condição imposta para efeitos de aplicação do regime constante do art.º 14.º do CIRS, por, em seu entender, situação contrária ter impacto em termos de ineficácia para efeitos tributários.

Desde já se refira que, nesta parte, não se acompanha o entendimento da Recorrente.

Com efeito, o regime jurídico em causa pretendeu instituir a faculdade de quem viva em união de facto optar pelo regime de tributação aplicável aos contribuintes casados e não separados de pessoas e bens.

A exigência de domicílio comum é inerente ao próprio conceito de união de facto, ao referir-se à vivência em condições análogas às dos cônjuges. A esse respeito, atentando no regime jurídico do casamento, é de salientar o disposto no art.º 1673.º do Código Civil, justamente relativo à residência de família.

“[O]s membros da união de facto vivem em comunhão de leito, mesa e habitação, como se fossem casados, o que cria uma aparência de vida matrimonial”[4].

Por seu turno, ao nível da LGT, o domicílio fiscal, no caso das pessoas singulares, é definido como o local da residência habitual.

Ora, para efeitos de aplicação do regime previsto no art.º 14.º do CIRS, o que é fundamental é que o domicílio fiscal, enquanto residência habitual, seja o mesmo.

Trata-se da conclusão que se extrai da conjugação da disciplina legal prevista no CIRS e na Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, sendo de sublinhar a este propósito a remissão constante do n.º 1 do art.º 14.º do CIRS para esta última.

A verificação deste pressuposto não se confunde, por outro lado, com a falta de comunicação à AT do domicílio fiscal, ao contrário do defendido pela Recorrente. Sendo certo que está legalmente previsto esse dever de comunicação, não se trata de formalidade ad substanciam, o que significa, naturalmente, que a sua preterição não tem necessária e definitivamente impacto em termos de tributação. Ou seja, a falta de comunicação à AT do domicílio fiscal dos membros da união de facto não significa que os mesmos não vivam em união de facto. Não estamos, pois, perante qualquer presunção inilidível.

Da mesma forma, a menção à identidade de domicílio fiscal, constante do n.º 2 do art.º 14.º do CIRS não pode ser interpretada se não no sentido de, da sua verificação, se presumir a existência de união de facto, mas nunca no sentido de que a sua não verificação tem necessariamente como consequência a inexistência de tal união. Aliás, o regime atualmente em vigor é claro nesse sentido. Ou seja, não estando atualizado o domicílio fiscal, do qual a AT extrai a demonstração da vivência em união de facto, caberá aos sujeitos passivos o ónus da prova de tal vivência, atento o disposto no art.º 74.º da LGT.

A este respeito, chama-se à colação o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 16.11.2016 (Processo: 0761/15), ao qual se adere e onde se refere:

“A vida em comum entre duas pessoas e a constituição de família, independentemente de formalização perante oficial público, encontra proteção Constitucional nos artigos 26º, n.º 1 e 36º, n.ºs. 1 e 4, bem como em diversos preceitos do Código Civil e legislação avulsa, e impõe-se como externação da individualidade e liberdade de cada individuo, bem como livre afirmação da personalidade de cada um.

(…) [O] reconhecimento da união de facto, e da sua equiparação para efeitos fiscais ao casamento formal, apenas depende dos dois requisitos atrás enunciados, como aliás resulta do n.º 1 do artigo 14º do CIRS.

As obrigações resultantes dos artigos 19º da LGT e 14º, n.º 2 do CIRS, para os contribuintes unidos de facto apenas podem ser vistas como requisitos formais que, no entanto, não inviabilizam a opção pelo regime de tributação conjunto, uma vez que essa depende de outros requisitos substantivos.

(…) Assim, o que deve ser determinante para que os unidos de facto possam, querendo, beneficiar do regime de tributação dos casados é tão só o cumprimento dos requisitos legalmente previstos pela Lei n.º 7/2001.

As exigências vertidas no artigo 14º, n.º 2 do CIRS, indicação de uma morada comum e da assinatura conjunta da declaração de rendimentos, apenas podem ser vistas como requisitos formais que facilitam a prova perante a AT da referida união de facto e, caso os interessados não cumpram tais exigências, incumbe-lhes fazer a prova, por qualquer meio, de que podem efetivamente beneficiar do regime próprio das uniões de facto. Bem como recaem sobre os mesmos as penalidades e ónus legalmente previstos pela não atualização, junto da AT, da sua situação pessoal e familiar

E assim, não pode sancionar-se o incumprimento de tais obrigações formais com as sanções próprias que apenas contendem com a não verificação dos requisitos substanciais”.

Assim, ao contrário do defendido pela Recorrente, não se pode extrair da falta de comunicação do domicílio fiscal a inexistência de união de facto, para efeitos do disposto no n.º 1 do art.º 14.º do CIRS.

Cumpre, então, aferir se os Recorridos cumpriram o seu ónus probatório.

É certo que, in casu, ficou provado que no quatro trimestre da 2006, e após mudança dos Recorridos para a mesma casa, teve lugar a gravidez da Recorrida.

Sucede, porém, que ficou igualmente provado que o casamento mencionado em V) do probatório só foi dissolvido em fevereiro de 2007, o que, per se, impede a aplicação do regime em causa, atento o disposto na al. c) do art.º 2.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio e, bem assim, a remissão expressa constante do art.º 14.º, n.º 1, do CIRS para este regime.

Veja-se que esta disposição legal não exceciona as situações em que já há separação de facto dos cônjuges, mas tão somente as situações em que já tenha sido decretada separação judicial de pessoas e bens, o que não foi nem alegado nem provado no caso dos autos.

Como tal, os Recorridos não podiam beneficiar do regime atinente aos unidos de facto, por força da não dissolução do casamento da Recorrida antes de 2007.

Assim, assiste razão à Recorrente.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:
a) Conceder provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida e, em consequência, manter o ato impugnado;
b) Custas pelos Recorridos em ambas as instâncias;
c) Registe e notifique.


Lisboa, 25 de junho de 2020

(Tânia Meireles da Cunha)

(Anabela Russo)

(Vital Lopes)


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[1] Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 169.
[2] V., a título exemplificativo, o Acórdão deste TCAS, de 27.04.2017 (Processo: 638/09.0BESNT) e ampla doutrina e jurisprudência no mesmo mencionada.
[3] Cfr. igualmente a Lei n.º 135/99, de 28 de agosto, que a antecedeu.
[4] Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, 3.ª Ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2003, p. 124.