Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1615/10.4BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:12/16/2020
Relator:LURDES TOSCANO
Descritores:IRC – TRIBUTAÇÃO AUTÓNOMA
VALOR DA TAXA - DESPESAS
RETROACÇÃO
Sumário:Não pode a lei agravar o valor da taxa de tributação autónoma, relativamente a despesas já efectuadas aquando da sua entrada em vigor, incorrendo a norma do artigo 5.º, nº 1, da Lei nº 64/2008, de 5 de Dezembro, ao determinar a retroacção de efeitos a 1 de Janeiro de 2008 da alteração do artigo 81.º, nº 3, do CIRC, em inconstitucionalidade por violação da proibição imposta no artigo 103.º, nº 3, da Constituição.
Nº do Volume:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul

l – RELATÓRIO

A FAZENDA PÚBLICA, vem recorrer da sentença de fls.1022 a 1039 do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou procedente a impugnação judicial que a sociedade M....., S.A. deduziu na sequência da formação de acto tácito de indeferimento da reclamação graciosa que apresentou contra o acto de autoliquidação de IRC, do ano de 2008, na parte respeitante à tributação autónoma que incidiu sobre os encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e a viaturas ligeiras de passageiros ou mistos, suportados até ao 05-12-2008 (incluído) e, em consequência, anulou o acto tributário impugnado e condenou a ora recorrente a restituir à Impugnante o valor indevidamente liquidado e pago ”correspondente à diferença entre o valor pago e aquele que deveria ter sido, sendo aplicada a taxa de 5% aos encargos com despesas de representação e despesas com viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, incorridos entre 01 de Janeiro de 2008 e 05 de Dezembro de 2008, inclusive”.

Nas suas alegações de recurso formula as seguintes conclusões:

I. Salvo o devido respeito, somos da opinião que a douta sentença procedeu a errónea interpretação dos factos e aplicação do direito nos presentes autos, o que resultou em injustiça grave com óbvio prejuízo para a confiança dos cidadãos cumpridores na eficácia dos sistema jurídico.

II. Em causa, a aplicação do artigo 81° do Código do IRC, com a alteração da Lei 67-A/2007, de 31 de Dezembro.

III. A tributação autónoma aplicável aos encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e respeitantes a viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, motos ou motociclos, era de 5% no período de 1 de Janeiro a 5 de Dezembro de 2008, conforme estipulado no n°3 do artigo 81°, pela redacção então em vigor. E, a taxa de imposto incidente sobre os encargos suportados com viaturas ligeiras com custo de aquisição superior a €40.000, nos termos previstos no n°4 do artigo 81° do CIRC, era 15%.

IV. Todavia, com a entrada em vigor da Lei n°64/2008, de 5 de Dezembro, as referidas taxas de tributação autónoma foram alteradas, respectivamente, para 10% e 20%, com efeitos a 1 de Janeiro de 2008.

V. Para um correcto entendimento da questão, importa, igualmente, ter presente a distinção entre impostos periódicos e impostos de obrigação única.

VI. Não existem definições legais de impostos periódicos e de impostos de obrigação única, pelo que teremos que partir do pressuposto de que ao utilizar-se tais conceitos se pretendeu acolher as noções doutrinalmente elaboradas.

VII. Assim, a característica essencial apontada pela doutrina aos impostos periódicos é a de assentarem num facto tributário de carácter duradouro, enquanto o elemento caracterizador do imposto de obrigação única é ter por base um facto instantâneo. Em determinados casos, o facto tributário reporta-se a um determinado período de tempo e as obrigações tributárias renovam-se em cada novo período, como acontece com o IRS e, ao que o presente recurso aproveita, ao IRC.

VIII. O IRC deve, portanto configurar-se como um imposto periódico, de periodicidade anual, contrariamente ao que sucede com o lVA ou com o Imposto de Selo, que não se reporta a períodos de tempo antes derivando de eventos, que, sem prejuízo de se repetirem, são tratados tributariamente como factos autónomos ou instantâneos.

IX. O IRC, é pois um imposto periódico que, pese embora seja composto por uma pluralidade de factos com relevância fiscal, consolidam-se no último dia do exercício. Qualquer outro entendimento, na nossa modesta opinião, atenta contra a própria natureza jurídica do imposto bem como todo o seu instituto jurídico.

X. Resulta do artigo 8° do Código do IRC que "1 - O IRC, salvo o disposto no n°10, é devido por cada período de tributação, que coincide com o ano civil, sem prejuízo das excepções previstas neste artigo. (...) 9 - O facto gerador do imposto considera-se verificado no último dia do período de tributação.

XI. Por força do princípio que se afigura como o mais importante instrumento constitucional de protecção individual no Estado democrático de Direito, que é o princípio da legalidade, os órgãos da Administração Pública devem actuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes sejam atribuídos e em conformidade com os fins para que os mesmos lhes foram conferidos (cfr. artigo 3° do Código do Procedimento Administrativo).

XII. Diante deste principio e do quadro legal inerente ao IRC, resulta, para a administração, a obrigação de tratar o IRC, como imposto periódico, no seu todo, na sua globalidade, não podendo de maneira alguma, esquartejar partes deste todo dando-lhe um tratamento autónomo como se de um imposto autónomo se tratasse.

XIII. Imposto criado à margem da lei, em desarmonia com o princípio da legalidade.

XIV. Efectivamente a tributação autónoma integra o IRC, sendo-lhe, por esta razão, aplicável as regras relativas à caducidade do direito à liquidação, à prescrição e ao regime da periodização económica.

XV. Termos em que, ainda que o rendimento seja gerado continuamente, o facto gerador do imposto consolida-se no último dia do período de tributação.

XVI. E estando em causa encargos que, por natureza, são indispensáveis para a formação do rendimento sobre o qual incide o IRC;

XVII. E não tendo o legislador excluído a tributação autónoma de toda dialéctica que subjaz o regime jurídico do IRC;
XVIII. Não podemos, deste modo, concordar com a douta sentença quando, adere integralmente ao entendimento sufragado por Clotide Celorico Palma (As tributações autónomas vistas pelo Tribunal Constitucional. Comentário ao Acórdão do Tribunal Constitucional n°310/2012, de 20 de Junho de 2012" Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Ano V, Número 2 - verão, 2012, p. 247 e 248) de que "Enquanto que o lucro tributável sujeito a IRC é de formação sucessiva, as despesas sobre as quais incide a tributação autónoma constituem factos tributários instantâneos ou de obrigação única. (...) Assim, o facto tributário verifica-se no momento em que se incorre nas despesas sujeitas a tributação autónoma".

XIX. A ser assim, teríamos que, sem fundamento legal para o efeito, qualificar a tributação autónoma como um imposto autónomo face ao IRC, com regras próprias de caducidade ou de prescrição, quando, em bom rigor, não é essa a sua natureza. Com efeito;

XX. Está em causa a realização de despesas indissociavelmente ligadas ao apuramento e liquidação de IRC, sendo que a sua tributação é explicada pela intenção de o legislador anular ou atenuar a vantagem fiscal resultante da dedução de despesas que o sujeito passivo utilize para fins não comerciais.

XXI. Toda a situação tributária tem que ser aferida a final, ou seja, em 31 de Dezembro de cada ano.

XXII. Sendo, portanto, de aplicar, nessa data, as taxas resultantes da lei então em vigor, ou seja, da Lei n°64/2008, de 5 de Dezembro.

Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão ser revogada e substituída por acórdão que declare a impugnação improcedente, com o que V. Ex.as farão a habitual JUSTIÇA.

Nestes termos, e nos mais que serão por Vossas Excelências doutamente supridos, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência ser a impugnação julgada improcedente, assim se fazendo Justiça.

A Recorrida, M....., S.A., contra-alegou, concluindo do como segue:


A) Recapitulando sumariamente o objeto dos presentes Autos, refira-se estar em causa a apreciação da ilegalidade do ato de liquidação adicional de IRC n°......, relativo ao exercício de 2008, na parte em que traduz a tributação autónoma incidente sobre os encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e a viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, motos ou motociclos, suportados até ao dia 5 de Dezembro de 2008, inclusive.

B) Na sua p.i. de Impugnação Judicial, a RECORRIDA invocou, em síntese, (i) que o n°1 do artigo 5° da Lei n°64/2008, de 5 de dezembro, na parte em que determina a aplicação, desde o dia 1 de janeiro de 2008 e até ao dia 5 de dezembro de 2008, da nova redação conferida ao artigo 81° do Código do IRC, implica um acréscimo de tributação relativamente a factos tributários verificados no domínio da lei antiga, assumindo, deste modo, um carácter retroativo proscrito pelo artigo 103°, n°3, da Constituição da República Portuguesa; e, consequentemente, (ii) que o ato tributário impugnado, na parte em que traduz o referido acréscimo de tributação decorrente da aplicação retroativa -contrária ao n°3 do artigo 103° da Constituição - da nova redação do n°3 e do n° 4 do artigo 81° do Código do IRC, consubstancia a aplicação de norma materialmente inconstitucional devendo, por esse motivo, ser anulado.

C) Neste preciso sentido se pronunciou o Tribunal a quo na Sentença recorrida, declarando totalmente procedente o pedido anulatório formulado pela ora RECORRIDA.

D) A Fazenda Pública interpôs recurso da mesma sentença para o TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL, não lhe assistindo, porém, razão no Recurso em apreço, conforme se demonstrará.

E) Em primeiro lugar, da circunstância de o presente Recurso ter sido dirigido ao TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL, resulta que a Fazenda Pública pretende contestar a decisão sobre a matéria de facto que foi proferida pelo Tribunal a quo.

F) Ora, de acordo com o disposto no n°1 do atual artigo 640° do Código de Processo Civil, ex vi artigo 281° do Código de Procedimento e de Processo Tributário, "Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas".

G) Contudo, da análise das Alegações de Recurso apresentadas pela Fazenda Pública, verifica-se que este não indicou, nem os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, nem os meios probatórios constantes do processo que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto diversa da recorrida, ou, tão-pouco, a decisão que, em seu entender, deveria ser concretamente proferida sobre as questões de facto - putativamente - impugnadas.

H) Acresce que nas suas conclusões de recurso a Fazenda Pública não identifica minimamente os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados e não indica como deveria o Tribunal a quo ter julgado os factos.

I) Com efeito, tal como já esclareceu o presente TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL em diversos Acórdãos: "O Recorrente tem de especificar, obrigatoriamente, na alegação de recurso, não só os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, mas também os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que, em sua opinião, impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da adoptada pela decisão recorrida" (cf. Acórdão de 16/10/2012, proferido no processo n°04909/11, bem como, a título exemplificativo, os Acórdãos do mesmo Tribunal de 17/05/2011, proferido no processo n°4745/11, de 15/11/2011, proferido no processo n° 2430/08 e de 25/09/2012, proferido no processo nº05073/11).

J) Não o tendo feito, i.e., não tendo a Fazenda Pública dado cumprimento ao disposto no artigo 640°, n°1, do (Novo) Código de Processo Civil (que corresponde ao n°1 do artigo 685°-B do Código de Processo Civil em vigor até à entrada em vigor do que foi aprovado pela Lei n°41/2013 de 26 de junho), ex vi artigo 281° do Código de Procedimento e de Processo Tributário, deverá o presente Recurso ser rejeitado.

K) Verifica-se que a decisão de Direito proferida pelo Tribunal a quo se sustentou, entre outros, no já sobejamente referido Acórdão do Plenário do TRIBUNAL CONSTITUCIONAL n°617/2012, onde se julgou "inconstitucional, por violação do n°3, do artigo 103°, da Constituição, a norma do artigo 5°, n°1, da Lei nº64/2008, de 5 de dezembro, na parte em que fez retroagir a 1 de janeiro de 2008 a alteração do artigo 81°, n°3, alínea a) do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, consagrada no artigo 1°-A do aludido diploma legal", posteriormente confirmado pelo Acórdão nº85/2013, do Plenário do TRIBUNAL CONSTITUCIONAL.

L) Contraditando, em particular, os argumentos invocados pela Fazenda Pública nas suas Alegações de Recurso, sustentou o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL no referido aresto, que: "Na tributação autónoma, o facto tributário que dá origem ao imposto, é instantâneo: esgota-se no ato de realização de determinada despesa que está sujeita a tributação (embora, o apuramento do montante de imposto, resultante da aplicação das diversas taxas de tributação aos diversos atos de realização de despesa considerados, se venha a efetuar no fim de um determinado período tributário). Mas o facto de a liquidação do imposto ser efetuada no fim de um determinado período não transforma o mesmo num imposto periódico, de formação sucessiva ou de carácter duradouro. Essa operação de liquidação traduz-se apenas na agregação, para efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação autónoma, cuja taxa é aplicada a cada despesa, não havendo qualquer influência do volume das despesas efetuadas na determinação da taxa" (o destacado é da RECORRIDA).

M) No mesmo sentido se pronunciou ainda, por diversas vezes, o SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO, destacando-se, inter alia, os seguintes arestos: Acórdão proferido no processo 0281/11, de 06-07-2011; Acórdão proferido no processo 0757/11, de 14-06-2012; Acórdão proferido no processo 01375/12, de 14-02-2013; Acórdão proferido no processo 0166/13, de 17-04-2013; e Acórdão proferido no processo 01714/13, de 22-01-2014 (todos disponíveis em www.dgsi.pt).

N) De resto, a própria Autoridade Tributária sufragou, já, o seguinte entendimento: "Pese embora as decisões do TC [TRIBUNAL CONSTITUCIONAL] se apliquem e produzam efeitos apenas nos processos em que foram proferidas, é entendimento dos serviços, sancionado por despacho do Subdiretor-Geral, de 15 de Maio de 2013, referente ao processo n°249/2013 desta Direção de Serviços [ DlREÇÃO DE SERVIÇOS DO IRC] (informação n°792/2013 de 07 de Maio de 2013), atendendo a que está em causa a inconstitucionalidade do art°5°, n°1, da Lei n°64/2008, de 5 de dezembro, na parte em que fez retroagir a 1 de janeiro de 200 a alteração do artigo 81°, n°3, alínea a), do CTRC já julgada inconstitucional pelo TC nos casos sub judice, não sendo previsível que se venha a inverter a posição assumida e obviando-se eventuais situações de contencioso e respetivos encargos judiciais, que deverá proceder-se, no prazo de quatro anos após a liquidação, com fundamento em erro imputável aos serviços, à revisão oficiosa da autoliquidação do período de 2008" (destacado da RECORRIDA).

O) Resulta do que antecede, portanto, que é a própria Autoridade Tributária - ora IMPUGNADA - a confessar a ilegalidade dos atos de liquidação de IRC relativos ao exercício de 2008, na parte respeitante à tributação autónoma incidente sobre os encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e a viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, motos ou motociclos, suportados até ao dia 5 de dezembro de 2008, inclusive, em virtude da inconstitucionalidade do artigo 5° da Lei n°64/2008, de 5 de dezembro (como se verifica ser o caso dos presentes Autos).

P) Significa o anterior, singelamente, que não subsiste, no presente momento, qualquer dúvida acerca da procedência da decisão de Direito sufragada pelo Tribunal a quo na Sentença recorrida, impondo-se, por esse motivo, declarar o presente Recurso totalmente improcedente.

Q) Não obstante, pelas razões que recapitulará de seguida, não pode a RECORRIDA deixar de reiterar a necessidade do reconhecimento da natureza retroativa daquele preceito legal, com a consequente improcedência do presente Recurso.

R) O artigo 81° do Código do IRC estabelece, em paralelo com o regime geral de tributação em sede de IRC (o da tributação pelo lucro tributável), uma obrigação de imposto denominada de tributação autónoma, impondo, sob a epígrafe de Taxas de tributação autónoma, a tributação individualizada de determinadas despesas suportadas por sujeitos passivos de IRC não isentos subjectivamente e que exerçam, a título principal, uma atividade comercial, industrial ou agrícola.

S) O propósito do artigo 81° do Código do IRC é o de corrigir, fora do regime geral, e com fundamento na evitação da evasão e fraude fiscais, a tributação em sede de IRC, identificando - e, consequentemente, sujeitando a tributação -, diversas realidades susceptíveis de potenciar comportamentos fraudulentos do contribuinte (cf., a este propósito, SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 2ª Edição, Coimbra, p. 289).

T) Neste contexto, e no que respeita ao elemento material do facto tributário sob apreciação, estabelece o referido artigo 81° do CIRC que "São tributados autonomamente, à taxa de (...)". Ora, de uma interpretação assente no elemento literal da citada norma não é possível retirar outro sentido que não seja o de a tributação autónoma sub judice se efectivar perante a realização, de per se, de cada uma das despesas aí previstas.

U) Com efeito, da redação da norma em apreço é possível inferir que o preenchimento da respectiva hipótese de incidência se verifica com a realização de cada despesa, por parte do sujeito passivo de IRC, provocando, nesse momento, a ocorrência do respectivo facto tributário e a consequente constituição da correspondente obrigação de imposto.

V) Neste sentido, sublinha a RECORRIDA que "as chamadas tributações autónomas (...) têm lugar quando certos custos das empresas são transformados, eles próprios, em factos tributários" (cf. SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 2ª Edição, Coimbra, pp. 288-289),

W) Significa o anterior, já ao nível da natureza deste tributo, que o facto tributário em apreço - tal como decorre do artigo 81° do Código do IRC - deverá ser qualificado, no que respeita à sua vertente material, como um facto simples, na medida em que o "facto tributário é constituído por um facto ou negócio jurídico" (cf. ALBERTO XAVIER, Manual de Direito Fiscal, I, Lisboa, p. 251).

X) Do mesmo passo, e atento o carácter simples do facto tributário previsto no artigo 81° do Código do IRC, que quantifica e determina a exigibilidade do imposto a partir do momento da realização da respectiva despesa (i.e., da ocorrência do único elemento material que enforma aquele facto), conclui a RECORRIDA que, numa perspectiva temporal, a obrigação de imposto vertente é instantânea.

Y) Neste contexto, impõe-se concluir que, ao abrigo do artigo 81° do Código do IRC, existirão tantos factos tributários quantas as despesas realizadas pelo sujeito passivo, na medida em que cada uma dessas despesas preenche, ipso iure, o pressuposto de incidência ou elemento material da referida norma.

Z) A esta luz, e sustentada em diversa doutrina e jurisprudência - tal como invocada no âmbito da sua p.i. de Impugnação Judicial -, entende a RECORRIDA poder fixar, sem necessidade de ulteriores desenvolvimentos, as seguintes conclusões: (i) é a realização de cada uma das despesas previstas no n°3 do artigo 81° do Código do IRC, por parte do respectivo sujeito passivo, que constitui o facto tributário aí previsto; (ii) o facto tributário assim recortado tem carácter instantâneo, ocorrendo - e esgotando-se - no momento da realização da respectiva despesa sujeita a tributação; (iii) consequentemente, o montante do imposto (i.e., o conteúdo da obrigação de imposto) deve ser determinado por referência ao momento da ocorrência do respectivo facto tributário, ou seja, por aplicação ao montante da despesa da taxa do imposto vigente no momento em que esta é suportada.

AA) Do que antecede, decorre, então, que todas as despesas suportadas pelos sujeitos passivos de IRC desde o dia 1 de Janeiro até ao dia 5 de Dezembro de 2008, inclusive, preenchem, individualmente, a hipótese de incidência do artigo 81°, n°3, do Código do IRC (na redacção em vigor à data), traduzindo-se, assim, em factos tributários autónomos constitutivos de obrigações de imposto. Factos tributários esses, portanto, integralmente verificados (e as respectivas obrigações de imposto constituídas) no domínio da anterior redacção do artigo 81°, n°3, do Código do IRC, ou seja, da denominada - para efeitos de aplicação da lei fiscal no tempo - lei antiga.

BB) O que significa que a retroacção dos efeitos, a 1 de Janeiro de 2008, da «nova» redação do artigo 81°, n°3, do Código do IRC, implicaria - através da aplicação de uma taxa de imposto superior - uma alteração conformativa do conteúdo de obrigações de imposto já plenamente consolidadas na ordem jurídica em virtude da ocorrência dos respectivos factos tributários.

CC) De resto, e neste preciso sentido, o nº1 do artigo 12° da Lei Geral Tributária dispõe que "as normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor" (o sublinhado é da RECORRIDA), o que significa que a aplicação da nova redação do artigo 81° do Código do IRC desde o dia 1 de Janeiro e até à data da entrada em vigor do diploma que a aprovou - a Lei n°64/2008, de 5 de Dezembro -, regulando factos tributários já ocorridos e plenamente consolidados na ordem jurídica ao abrigo da anterior redação do mesmo preceito legal, constitui uma aplicação retroativa de lei fiscal.

DD) Conclui-se, assim, que todas as despesas de representação (cf. n°s 3 e 7 do artigo 81° do Código do IRC) suportadas até ao dia 5 de Dezembro de 2008, inclusive, devem ser tributadas à taxa em vigor no momento da sua realização, ou seja, à taxa de 5% (cf. artigo 81°, n°3, do Código do IRC, na redação anterior à entrada em vigor da Lei n°64/2008, de 5 de Dezembro).

EE) Por paridade de razões, todos os encargos suportados, entre o dia 1 de Janeiro e o dia 5 de Dezembro de 2008, com veículos ligeiros de passageiros ou mistos, bem como com motos ou motociclos (cf. n.°s 3, 4 e 5 do artigo 81° do Código do IRC), independentemente das emissões de CO2 das respectivas viaturas, devem, igualmente, ser tributados à taxa de 5% ou de 15%, consoante o caso (cf. artigo 81°, n°s 3 e 4, do Código do IRC, na redação anterior à entrada em vigor da Lei n°64/2008, de 5 de Dezembro).

TERMOS EM QUE DEVERÁ SER NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO APRESENTADO PELA FAZENDA PÚBLICA E CONFIRMADA A SENTENÇA RECORRIDA.

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O Ministério Público, junto deste Tribunal emitiu douto parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso (cfr. fls.1120 e 1121 dos autos).

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Colhidos os Vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

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Sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, é pelas conclusões com que o recorrente remate a sua alegação (art. 639º do C.P.C) que se determina o âmbito de intervenção do referido tribunal.

De outro modo, constituindo o recurso um meio impugnatório de decisões judiciais, neste apenas se pode pretender, salvo questões de conhecimento oficioso, a reapreciação do decidido e não a prolação de decisão sobre matéria não submetida à apreciação do Tribunal a quo.

Assim, atento o exposto e as conclusões das alegações do recurso interposto, temos que no caso concreto, as questões que cumpre apreciar e decidir são as de saber se a sentença recorrida procedeu a errónea interpretação dos factos e aplicação de direito, nomeadamente, quando desaplicou a norma constante do artigo 5º, nº 1, da Lei nº 64/2008, de 5 de Dezembro, na parte em que faz retroagir a 1 de Janeiro de 2008 a alteração do artigo 81º, nº 3, alínea a), do Código do IRC.


***

II - FUNDAMENTAÇÃO

II.1. De Facto

A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto:


A) Em 25.05.2009, a Impugnante apresentou declaração periódica de IRC -Modelo 22 - relativa ao exercício de 2008, na qual autoliquidou imposto no valor de € 567.650,42, tendo declarado no quadro 10, campo 365, relativo a tributações autónomas, o valor de € 456.426,60 (cfr. documentos de fls. 66 a 78 dos autos, fls. 29 a 32 do processo administrativo apenso);

B) Tendo procedido ao pagamento do valor autoliquidado mencionado na alínea anterior (cfr. documentos de fls. 66 a 78 dos autos, fls. 29 a 32 e 897 a 903 do processo administrativo apenso);

C) No quadro 11 da declaração periódica referida em A) supra foi inscrito no campo 414 - "despesas de representação (art°81°, n°3 e 7)" - o valor de € 315.790,58 (cfr. documento de fls. 66 a 78 dos autos, fls. 29 a 32 do processo administrativo apenso);

D) No quadro 11 da declaração periódica referida em A) supra foi inscrito no campo 421 - "Encargos com viaturas [art°81°, n°3, al. a)]" - o valor de € 946.913,99 (cfr. documento de fls. 66 a 78 dos autos, fls. 29 a 32 do processo administrativo apenso);

E) A impugnante, entre 01.01.2008 e 05.12.2008, inclusive, teve encargos com despesas de representação e com viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, em valor não concretamente determinado (facto alegado pela Impugnante e não contestado pela Fazenda Pública; Não obstante a impugnante ter alegado que, até 05.12.2008, os encargos enquadráveis no n°3 do artigo 81° do CIRC foram de € 4.202.801,81, a contradição entre este valor e o declarado na declaração modelo 22, conforme transcrito em C) e D) supra, não permite concluir, com a devida segurança, que seja aquele o valor das despesas concretamente incorridas pela Impugnante no período em causa);

F) Para efeitos de cálculo do valor de tributação autónoma declarado na declaração periódica referida em A) supra, a ora Impugnante aplicou uma taxa de 10% (matéria não controvertida);

G) Em 28.09.2009, a Impugnante apresentou reclamação graciosa da autoliquidação referida na alínea A) supra, com os fundamentos constantes de fls. 4 a 28 do processo administrativo apenso;

H) Em 23.06.2010, foi deduzida a presente impugnação (cfr. fls. 34 dos autos);

I) Por despacho datado de 23.08.2010, proferido pela Directora de Finanças Adjunta da Direcção de Finanças de Lisboa, foi indeferida a reclamação graciosa mencionada na alínea anterior (cfr. documento de fls.922 a 925 dos autos, fls. 925 a 928 do processo administrativo apenso);

J) Por carta registada com aviso de recepção que se mostra assinado em 27.08.2010, foi comunicado à Impugnante o despacho mencionado na alínea anterior (cfr. documentos de fls. 929 a 932 do processo administrativo apenso).



A sentença recorrida considerou em sede de factualidade não provada que “não existem factos a dar como não provados com interesse para a decisão”.

E, a título de fundamentação da matéria de facto exarou-se na sentença recorrida o seguinte:
Assenta a convicção do tribunal no exame dos documentos constantes dos presentes autos e do processo administrativo apenso, não impugnados, com destaque para os referidos a propósito de cada uma das alíneas do probatório.

***

II.2. De Direito

Em sede de aplicação de direito, a sentença recorrida julgou a impugnação procedente, com a consequente anulação da autoliquidação de IRC de 2008, na parte impugnada, condenando-se a Fazenda Pública a restituir à impugnante o valor indevidamente liquidado e pago, correspondente à diferença entre o valor pago e aquele que deveria ter sido, sendo aplicada a taxa de 5% aos encargos com despesas de representação e despesas com viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, incorridos entre 01 de Janeiro de 2008 e 05 de Dezembro de 2008, inclusive.

Inconformada, a Fazenda Pública veio interpor recurso da referida decisão alegando que a sentença recorrida procedeu a errónea interpretação dos factos e aplicação do direito nos presentes autos.

Ora, embora a recorrente alegue errónea interpretação dos factos, ficamos sem saber que facto ou factos foram erradamente interpretados, porque a mesma nada concretiza.

Julgamos, pois, que o que a recorrente discorda é da aplicação do direito aos factos.

Vejamos.


Conforme alíneas A), C), D, e F) do probatório, em 25.05.2009, a Impugnante apresentou declaração periódica de IRC -Modelo 22 - relativa ao exercício de 2008, na qual autoliquidou imposto no valor de € 567.650,42, tendo declarado no quadro 10, campo 365, relativo a tributações autónomas, o valor de € 456.426,60. No quadro 11 da declaração periódica referida em A) supra foi inscrito no campo 414 - "despesas de representação (art°81°, n°3 e 7)" - o valor de € 315.790,58. No quadro 11 da declaração periódica referida em A) supra foi inscrito no campo 421 - "Encargos com viaturas [art°81°, n°3, al. a)]" - o valor de € 946.913,99. Para efeitos de cálculo do valor de tributação autónoma declarado na declaração periódica referida em A) supra, a ora Impugnante aplicou uma taxa de 10%.

Vem a recorrente alegar [conclusões de recurso II. a IV.] que Em causa, a aplicação do artigo 81° do Código do IRC, com a alteração da Lei 67-A/2007, de 31 de Dezembro. A tributação autónoma aplicável aos encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e respeitantes a viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, motos ou motociclos, era de 5% no período de 1 de Janeiro a 5 de Dezembro de 2008, conforme estipulado no n°3 do artigo 81°, pela redacção então em vigor. E, a taxa de imposto incidente sobre os encargos suportados com viaturas ligeiras com custo de aquisição superior a €40.000, nos termos previstos no n°4 do artigo 81° do CIRC, era 15%. Todavia, com a entrada em vigor da Lei n°64/2008, de 5 de Dezembro, as referidas taxas de tributação autónoma foram alteradas, respectivamente, para 10% e 20%, com efeitos a 1 de Janeiro de 2008.

Adianta-se, desde já, que não assiste razão à recorrente.

Quer a Jurisprudência do STA, quer a Jurisprudência do Tribunal Constitucional contrariam a posição da recorrente, tal como decidido na sentença recorrida.

Na apreciação deste recurso apoiar-nos-emos no Acórdão do STA de 17/04/2013, Proc. 0166/13, disponível em www.dgsi.pt, onde se pode ler:

«3. “O artigo 81.º do CIRC, sob a epígrafe «Taxas de tributação autónoma», na redacção dada pela Lei nº 55-B/2004, de 30 de Dezembro, entretanto alterada pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, determinava, na parte relevante, o seguinte:

1 — As despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como custo nos termos do artigo 23.º.

2 — A taxa referida no número anterior é elevada para 70% nos casos em que tais despesas sejam efectuadas por sujeitos passivos total ou parcialmente isento., ou que não exerçam, a título principa4 actividades de natureza comercial, industrial ou agrícola.

3 — São tributados autonomamente, à taxa de 5% os encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e os relacionados com viaturas ligeiras ou mistas, motos ou motociclos, efectuados ou suportados por sujeitos passivos não isentos subjectivamente e que exerçam, a título principal, actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola.

4 — São tributados autonomamente, à taxa de 15 %, os encargos dedutíveis respeitantes a viaturas ligeiras de passageiros ou mistas cujo custo de aquisição seja superior a € 40 000, quando suportados pelos sujeitos passivos mencionados no número anterior que apresentem prejuízos fiscais nos dois exercícios anteriores àquele a que os referidos encargos digam respeito.(...)

Após a redacção introduzida pela Lei n.º 64/2008, de 5 de Dezembro, os n.ºs 3 e 4 do mesmo preceito passaram a determinar o seguinte:

3 — São tributados autonomamente, excluindo os veículos movidos exclusivamente a energia eléctrica:

a) À taxa de 10 %, os encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e os relacionados com viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, motos ou motociclos, efectuados ou suportados por sujeitos passivos não isentos subjectivamente e que exerçam, a título principal, actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola;

b) À taxa de 5 %, os encargos dedutíveis, suportados pelos sujeitos passivos mencionados no número anterior, respeitantes a viaturas ligeiras de passageiros ou mistas cujos níveis homologados de emissão de C02 sejam inferiores a 120 g/km, no caso de serem movidos a gasolina, e inferiores a 90 g/km, no caso de serem movidos a gasóleo, desde que, em ambos os casos, tenha sido emitido certificado de conformidade.

4 — São tributados autonomamente, à taxa de 20 %, os encargos dedutíveis, suportados pelos sujeitos passivos mencionados no número anterior, respeitantes a viaturas ligeiras de passageiros ou mistas cujo custo de aquisição seja superior a € 40 000, quando os sujeitos passivos apresentem prejuízos fiscais nos dois exercícios anteriores àquele a que os referidos encargos digam respeito.

A Lei n.º 64/2008 entrou em vigor no dia seguinte ao da publicação, conforme prevê o artigo 6º, mas a produção de efeitos retroage a 1 de Janeiro de 2008, em função do que estabelece o artigo 5º do mesmo diploma.

3.1.Como ficou consignado na sentença recorrida, cuja fundamentação merece, na íntegra, a nossa adesão, sobre esta questão já este Supremo Tribunal se pronunciou, entre outros, no Acórdão de 6/7/2011, proferido no recurso nº 28/11, onde se conclui que embora a Lei n.º 64/2008, através da nova redacção dada à alínea a) do n.º 3 do artigo 81.º do CIRC, tivesse operado “um agravamento da taxa de tributação aplicável aos encargos mencionados no anterior nº 3 dessa disposição, que se torna aplicável por virtude da retroacção de efeitos, aos encargos e despesas já realizados pelos contribuintes no decurso do ano de 2008 e até à data em que a lei iniciou a sua vigência”, a norma (artº 5º da citada Lei) não viola o princípio da proibição da retroactividade fiscal consagrado no artigo 103.º n.º 3, da Constituição.

Como também refere a sentença recorrida, esta interpretação foi inicialmente acolhida pelo Tribunal Constitucional, entre outros, nos Acórdãos nºs 128/2009 e 85/2010.

No entanto, a Mmª Juíza “a quo” julgou a norma em causa inconstitucional, argumentando, entre o mais, que:

“(…) 6.8. Aqui chegados importa então apurar se o artº 5º da Lei nº 64/2008, de 5 de Dezembro pode aplicar-se retroactivamente à tributação autónoma prevista no artº 83º, nº 1, alínea a) do CIRC.
Adoptando o entendimento de que artigo 103.º, n.º 3, da CRP apenas pretendeu consagrar a proibição da retroactividade autêntica, ou própria, da lei fiscal abrangendo apenas os casos em que o facto tributário que a lei nova pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga, excluindo do seu âmbito aplicativo as situações de retrospectividade ou de retroactividade imprópria, ou seja, aquelas situações em que a lei é aplicada a factos passados mas cujos efeitos ainda perduram no presente, como sucede quando a lei é aprovada até ao final do ano a que corresponde o imposto, a situação dos autos não é idêntica à tratada no Acórdão 399/2010 do Tribunal Constitucional, tal como se escreveu Acórdão 18/11, de 12 de Janeiro de 2011, do Tribunal Constitucional, proferido no Processo nº204/2010.

É que, no caso dos presentes autos não está em causa imposto sobre o rendimento (como sucedia no citado acórdão 399/2010), mas sim tributação autónoma sobre a despesa. Como bem refere a recorrente “as tributações autónomas tributam despesa e não rendimento, são impostos indirectos e não directos, que penalizam determinados encargos incorridos pela empresa e apuram-se de forma totalmente independente do IRC e Derrama devidos no exercício, não se relacionando sequer com a obtenção de um resultado positivo. Em boa verdade, as tributações autónomas constantes do Código do IRC poderiam estar inscritas num outro código ou em diploma autónomo” (Conclusão VIIª das alegações).

Por outras palavras, como salienta o srº Conselheiro Vítor Gomes no seu voto de vencido, aposto no citado acórdão nº 204/2010, “Embora formalmente inserida no CIRC e o montante que permita arrecadar seja liquidado no seu âmbito e a título de IRC, a norma em causa respeita a uma imposição fiscal que é materialmente distinta da tributação nesta cédula, pelo que não podem ser invocados argumentos semelhantes àqueles que naquele segundo acórdão foram mobilizados no sentido de não se configurar um caso de retroactividade proibida pelo n.º 3 do artigo 103.º da Constituição. Com efeito, estamos perante uma tributação autónoma, como diz a própria letra do preceito. E isso faz toda a diferença. Não se trata de tributar um rendimento no fim do período tributário, mas determinado tipo de despesas em si mesmas, pelas compreensíveis razões de política fiscal que o acórdão aponta.

Deste modo, o facto revelador de capacidade tributária que se pretende alcançar é a simples realização dessa despesa, num determinado momento. Cada despesa é, para este efeito, um facto tributário autónomo, a que o contribuinte fica sujeito, venha ou não a ter rendimento tributável em IRC no fim do período, sendo irrelevante que esta parcela de imposto só venha a ser liquidada num momento posterior e conjuntamente com o IRC.

Sendo assim a taxa a aplicar a cada despesa é a que vigorar à data da sua realização, uma vez que o facto tributário se verifica no momento em que se incorre nas despesas sujeitas a tributação autónoma.
Em resumo e concluindo como no voto de vencido acima referido, “O facto gerador de imposto em IRC determina-se por relação ao fim do período de tributação (n.º 9 do artigo 8.º do CIRC), mas a tributação autónoma agora em causa não comunga desse pressuposto, porque não atinge o rendimento (artigo 1.º do CIRC) mas a despesa enquanto tal”.

Por isso, as novas taxas introduzidas pela Lei nº 64/2008, de 5 de Dezembro, só são aplicáveis às despesas realizadas após a sua entrada em vigor, uma vez que não estamos perante rendimento reportado a determinado período e norma publicada nessa fase final do período de tributação, à semelhança do decidido relativamente ao n.º 1 do artigo 68º do Código do IRS, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1º da Lei n.º 11/2010, de 15 de Junho, quando conjugada com o disposto nos artigos 2.º e 3.º da mesma Lei e, também, do mesmo n.º 1 do artigo 68º do Código do IRS, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1º da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho, quando conjugada com o disposto no n.º 1 do artigo 20º da mesma Lei. (Acórdão 399/2010).
Assim sendo, estamos perante retroactividade autêntica ou própria da lei fiscal proibida pelo nº 3 do artº 103º da CRP, uma vez que o facto tributário que a lei nova pretende regular já tinha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga, relativamente a despesas já realizadas.”
3.2. Importa apenas salientar que a jurisprudência acabada de expor foi entretanto acolhida pelo Tribunal Constitucional, nos Acórdãos nºs 617/2012, de 19 de Dezembro de 2012 e nº 85/2013, de 5 de Fevereiro de 2013.

No primeiro Acórdão, votado em plenário, o Tribunal Constitucional resolveu a divergência existente entre o Acórdão nº 310/2012 (2ª secção), acórdão recorrido e o Acórdão nº 18/2012, acórdão fundamento, “julgando inconstitucional, por violação do nº 3, do artigo 103º, da Constituição, a norma do artigo 5º, nº 1, da Lei nº 64/2008, de 5 de Dezembro, de 2012, na parte em que faz retroagir a 1 de janeiro de 2008 a alteração do artigo 81º, nº 3, alínea a), do Código do Imposto sobre o rendimento das pessoas Colectivas, consagrada no artigo 1º-A do aludido diploma legal” (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 85/2013).

Nestes último Acórdão pode ler-se, entre o mais, que:

“(…) Contrariamente ao que acontece na tributação dos rendimentos em sede de IRS e IRC, em que se tributa o conjunto dos rendimentos auferidos num determinado ano (o que implica que só no final do mesmo se possa apurar a taxa de imposto, bem como o escalão no qual o contribuinte se insere), no caso tributa-se cada despesa efetuada, em si mesma considerada, e sujeita a determinada taxa, sendo a tributação autónoma apurada de forma independente do IRC que é devido em cada exercício, por não estar diretamente relacionada com a obtenção de um resultado positivo, e por isso, passível de tributação.

Assim, e no caso do IRC, estamos perante um imposto anual, em que não se tributa cada rendimento percebido de per si, mas sim o englobamento de todos os rendimentos obtidos num determinado ano, considerando a lei que o facto gerador do imposto se tem por verificado no último dia do período de tributação (cfr. artigo 8º, n.º 9, do CIRC).

Já no que respeita à tributação autónoma em IRC, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, não se estando perante um facto complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano, mas perante um facto tributário instantâneo.

Esta característica da tributação autónoma remete-nos, assim, para a distinção entre impostos periódicos (cujo facto gerador se produz de modo sucessivo, pelo decurso de um determinado período de tempo, em regra anual, e tende a repetir-se no tempo, gerando para o contribuinte a obrigação de pagar imposto com caráter regular) e impostos de obrigação única (cujo facto gerador se produz de modo instantâneo, surge isolado no tempo, gerando sobre o contribuinte uma obrigação de pagamento com caráter avulso).

Na tributação autónoma, o facto tributário que dá origem ao imposto, é instantâneo: esgota-se no ato de realização de determinada despesa que está sujeita a tributação (embora, o apuramento do montante de imposto, resultante da aplicação das diversas taxas de tributação aos diversos atos de realização de despesa considerados, se venha a efetuar no fim de um determinado período tributário). Mas o facto de a liquidação do imposto ser efetuada no fim de um determinado período não transforma o mesmo num imposto periódico, de formação sucessiva ou de caráter duradouro. Essa operação de liquidação traduz-se apenas na agregação, para efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação autónoma, cuja taxa é aplicada a cada despesa, não havendo qualquer influência do volume das despesas efetuadas na determinação da taxa.(…)”

“Neste caso estamos perante um tributo de obrigação única, incidindo sobre operações que se produzem e esgotam de modo instantâneo, em que o facto gerador do tributo surge isolado no tempo, originando, para o contribuinte, uma obrigação de pagamento com caráter avulso. Ou seja, as taxas de tributação autónoma aqui em análise não se referem a um período de tempo, mas a um momento: o da operação isolada sujeita à taxa, sem prejuízo de o apuramento do montante devido pelos agentes económicos sujeitos à referida "taxa" ser efetuado periodicamente, num determinado momento, conjuntamente com outras operações similares, sem que a liquidação conjunta influa no seu resultado.(…)”

“4. Regressando ao caso concreto, é manifesto que se está perante uma hipótese de aplicação retroactiva do disposto no artigo 81º, nº 3, do CIRC, na redacção introduzida pela Lei nº 64/2008, de 5 de Dezembro, ou seja, aplicação de lei nova a factos tributários de natureza instantânea, já completamente formados, anteriores à data da sua entrada em vigor.

Com efeito, o facto gerador da obrigação fiscal - a realização de despesas de representação e viaturas ligeiras de passageiros, relativas ao exercício de 2008, foi agravada, por força da alteração introduzida ao art. 81º (actual 88º) do CIRC, pelo artº 1º-A, da Lei nº 64/2008, de 5 de Dezembro, com o aumento das taxas de tributação autónomas de 5% para 10%, - ocorre, como facto instantâneo, antes da entrada em vigor da lei nova ( 6 de Dezembro de 2008), por força do art. 5º daquele diploma que determinou a produção de efeitos daquele diploma desde de 1 Janeiro de 2008.

A aplicação da nova lei a este facto ocorrido anteriormente à sua aprovação envolve, pois, uma retroactividade autêntica”.

Como ficou consignado no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 85/2013, “O que releva, face aos princípios constitucionais enunciados, não é o momento de liquidação de um imposto, mas sim o momento em que ocorre o ato que determina o pagamento desse imposto. É esse ato que vai dar origem à constituição de uma obrigação tributária, pelo que é nessa altura, em obediência ao princípio da legalidade, na vertente fundamentada pelo princípio da proteção da confiança, que se exige, como medida preventiva, que já se encontre em vigor a lei que prevê a criação ou o agravamento desse imposto, de modo a que o cidadão possa equacionar as consequências fiscais do seu comportamento.

Uma vez que a alteração efetuada ao artigo 83.º, nº 3, do CIRC, através da Lei nº 64/2008, de 5 de dezembro, veio aumentar a taxa de tributação autónoma aplicável a despesas de representação e com viaturas, agravando a situação dos contribuintes abrangidos, estava-lhe vedada uma eficácia retroativa”.(…)”

Em face do exposto, não pode a lei agravar o valor da taxa de tributação autónoma, relativamente a despesas já efectuadas aquando da sua entrada em vigor, incorrendo a norma do artigo 5.º, nº 1, da Lei nº 64/2008, de 5 de Dezembro, ao determinar a retroacção de efeitos a 1 de Janeiro de 2008 da alteração do artigo 81.º, nº 3, do CIRC, em inconstitucionalidade por violação da proibição imposta no artigo 103.º, nº 3, da Constituição.»

Mais recentemente, em 23/10/2019, foi proferido Acórdão, também, no STA, Proc. 02651710.6BELRS, disponível em www.dgsi.pt, onde se escreveu:

«2.2.2.1.A questão foi apreciada e decidida sem divergência em jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Administrativo - Secção de Contencioso Tributário, designadamente destilada nos acórdãos 6.07.2011 processo nº 281/11, 14.06.2012 processo nº 757/11, 14.02.2013 (processo nº 1375/12), 17.04.2013 (processo nº 166/13), 22.01.2014 (processo nº 1714/13) e 21.01.2015 (processo nº 470/14)
Em consequência, cumprindo os objectivos de:
- interpretação e aplicação uniformes do direito (art. 8º nº 3 CCivil);
- tutela jurisdicional efectiva em prazo razoável (art. 20º nº 4 CPRP; art. 96º nº 1 CPPT);
a fundamentação do presente acórdão acolhe por remissão a fundamentação sólida e convincente do acórdão 21.01.2015 processo nº 470/14 cujo sumário se transcreve, nos segmentos pertinentes (art. 663º nº 5 CPC/art. 281º CPPT):
I - Nas tributações autónomas não se trata de tributar um rendimento no fim do período tributário, mas determinado tipo de despesas, que constituem o facto gerador de imposto, uma vez que cada despesa é um facto tributário autónomo, a que o contribuinte fica sujeito, venha ou não a ter rendimento tributável em IRC, no fim do período, sendo irrelevante que esta parcela de imposto só venha a ser liquidada num momento posterior e conjuntamente com o IRC.
II - A taxa a aplicar a cada despesa é a que vigorar à data da sua realização, uma vez que o facto tributário se verifica no momento em que se incorre nas despesas sujeitas a tributação autónoma, não se estando perante um facto complexo, de formação sucessiva ao longo do ano, mas perante um facto tributário instantâneo
III - Não pode a lei agravar o valor da taxa de tributação autónoma, relativamente a despesas já efectuadas aquando da sua entrada em vigor, incorrendo a norma do artigo 5.º, nº 1, da Lei nº 64/2008, de 5 de Dezembro, ao determinar a retroacção de efeitos a 1 de Janeiro de 2008 da alteração do artigo 81.º, nº 3, do CIRC, em inconstitucionalidade por violação da proibição imposta no artigo 103.º, nº 3, da Constituição.
Noutra linha jurisprudencial o acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional nº 617/2012,19 dezembro 2012 emitiu pronúncia no sentido de julgar inconstitucional, por violação do n.º 3, do artigo 103.º, da Constituição, a norma do artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, na parte em que faz retroagir a 1 de janeiro de 2008 a alteração do artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, consagrada no artigo 1.º-A do aludido diploma legal.
Esta jurisprudência foi consolidada nos acórdãos nº 85/2013, 5 fevereiro 2013 (Plenário) e 171/2017, 5 abril 2017.»

Destarte, em face da unanimidade da Jurisprudência do STA sobre esta matéria, apoiada na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, nomeadamente, o Acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional nº 617/2012, de 19 Dezembro de 2012, Jurisprudência consolidada nos Acórdãos nº 85/2013, de 5 de Fevereiro de 2013 (Plenário) e 171/2017, de 5 Abril de 2017, temos de concluir que não assiste razão à recorrente, e que bem andou a sentença recorrida quando dando razão à impugnante desaplicou a norma constante do artigo 5º, nº 1, da Lei nº 64/2008, de 5 de Dezembro, na parte em que faz retroagir a 1 de Janeiro de 2008 a alteração do artigo 81º, nº 3, alínea a), do Código do IRC e, consequentemente, anulou a autoliquidação, na parte em que excede a tributação autónoma de 5% relativa aos encargos com despesas de representação e com viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, previstos no então artigo 81º, nº 3, do CIRC, suportados pela impugnante até 5 de Dezembro de 2008.

Termos em que improcede na totalidade o presente recurso e se mantém, na íntegra, a sentença recorrida.

***

III – DECISÃO

Termos em que, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso, e em consequência, manter a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.

Registe e notifique.

Lisboa, 16 de Dezembro de 2020



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[Lurdes Toscano]


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[Maria Cardoso]


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[Catarina Almeida e Sousa]