Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:135/17.0BEFUN
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:01/31/2018
Relator:SOFIA DAVID
Descritores: ART.ºS 8.º, N.º 3, PRIMEIRA PARTE E 84.º, N.º 1 E 2, DO CPTA
ÓNUS DO R. DE JUNTAR O PA
PRESUNÇÃO DO ART.º 84.º, N.º 6, DO CPTA
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA DO A.
VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA COOPERAÇÃO E BOA-FÉ
PROCESSOS ELECTRÓNICOS; CONTRATAÇÃO PÚBLICA ELECTRÓNICA
PA EM PROCEDIMENTOS ELECTRÓNICOS; PROCESSO PRÉ-CONTRATUAL
AUDIÊNCIA DO ART.º 102.º, N.º 5, DO CPTA
AUDIÊNCIA FINAL PREVISTA NO ART.º 91.º DO CPTA
PROVA DOCUMENTAL
DIREITO À PROVA
Sumário:I – Os art.ºs 8.º, n.º 3, primeira parte e 84.º, n.º 1 e 2, do CPTA, impõem ao R. enquanto entidade pública, o ónus de juntar o processo administrativo (PA) aos autos;

II - O art.º 84.º, n.º 6, do CPTA, consagra uma presunção que inverte o ónus (inicial) do A. de provar os factos que suportam o direito que invoca em juízo;

III – Ainda que inicialmente o ónus da prova seja do A. – nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do CC - porque invoca um direito fundado num dado facto, se essa prova se tiver tornado “impossível ou de considerável dificuldade” frente à conduta omissiva do R., porque não tenha enviado o PA, provada que esteja aquela conduta do R. e a sua relevância em termos de prova para os autos, invertem-se os ónus e dá-se por provado o facto alegado pelo A., por presunção decorrente da regra do art.º 84.º, n.º 6, do CPTA;

IV - Para operar a presunção do art.º 84.º, n.º 6, do CPTA, é necessário, no entanto, que a conduta do omissiva do R. se revele culposa (seja por dolo ou mera negligência) e que a falta de envio do PA ou de certos documentos impeça ou dificulte consideravelmente a prova dos factos alegados pelo A. e estes relevem para a discussão nos autos;

V - Nos termos do art.º 350.º, n.º 2, do CC, pode ainda o R. ilidir a presunção, provando que não se verificam os factos que servem base à presunção, ou o facto presumido. Depois, pode a parte favorecida com a presunção legal tentar provar o contrário, competindo-lhe o ónus desse rebate;

VI - Quanto o art.º 8.º, n.º 2, 1.ª parte, do CPTA, remete para um “tempo oportuno”, não remete para o prazo de apresentação da contestação, mas para uma oportunidade associada a uma utilidade nos autos, porque se esteja a preparar a fase da instrução, com a necessidade de prova dos factos que se mantém controvertidos;

VII - A oportunidade do art.º 8.º, n.º 2, 1.ª parte, do CPTA, sob quebra dos princípios da boa-fé e da cooperação, liga-se ao determinado no art.º 84.º, n.º 5 - ao não envio desse PA, sem que haja justificação para tal e num momento em que vise a instrução efectiva dos autos, assim se comprometendo o necessário apuramento da verdade material - e à presunção – decorrente da culpa da contraparte - regulada no n.º 6 daquele art.º 84.º;

VIII - A interpretação a dar à exigência dos art.ºs. 8.º, n.º 3, primeira parte e 84.º, n.º 1 e 2, do CPTA, quando impõem ao R. o envio de um PA, sob pena de violação dos princípios da boa-fé e cooperação, no caso dos processos electrónicos – desde logo, os de contratação pública – deve rodear-se de alguma parcimónia, pois não se pode pretender que aquele R. envie para o Tribunal um PA que comporte para além de toda a documentação ali inserida, todos os fluxos e certificações que se verificaram no procedimento electrónico;

IX- Nestes casos, na falta de regras legais que clarifiquem o assunto, há que aceitar que fique a cargo da entidade pública a “criação” daquele PA, que inclua a documentação e as vicissitudes procedimentais principais e, ainda, as que importem para a discussão da causa. Nesta criação, a entidade pública dever-se-á nortear pelos princípios que parametrizam a sua actividade, desde logo os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade, da justiça, da boa-fé ou da isenção;

X - A audiência do art.º 102.º, n.º 5, do CPTA, serve apenas para a “discussão da matéria de facto e de direito”, não para a produção de prova, com a prestação de depoimentos de parte, inquirição de testemunhas, ou a prestação de esclarecimentos verbais pelos peritos;

XI - Tal audiência não visa os fins da audiência final que vem prevista no art.º 91.º do CPTA, que pode ocorrer num processo de contencioso pré-contratual por aplicação supletiva do rito da acção administrativa – cf. art.º 102.º, n.º 1, do CPTA;

XII – O actual CPTA concede um papel preponderante à prova documental, sendo um exemplo dessa preponderância a exigência da apresentação do PA pela entidade pública, ou da junção aos autos dos demais documentos com relevo para a causa, ou a regra do art.º 84.º, n.º 6, do CPTA;

XIII – Porém, a preponderância que tenha sido legalmente atribuída a essa mesma prova documental não pode afastar a possibilidade das partes usarem outros meios de prova – desde logo a prova testemunhal ou a prova pericial – para alcançarem a comprovação de um facto que tenham alegado e que também possa ser provado por essas vias;

XIV - Isso mesmo decorre do preceituado no art.º 90.º, n.º 2, do CPTA, quando estipula que no processo administrativo são admissíveis todos os meios de prova;

XV - Só após a abertura de uma fase de instrução - que não tem de ficar restrita à prova documental, mas que tem de admitir que as partes façam uso de qualquer meio de prova para comprovarem o que alegam - é que pode fazer-se uso do preceituado no art.º 84.º, n.º 6, do CPTA e entender que a não junção do PA tornou impossível ou de considerável dificuldade a prova dos factos alegados pelo A
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Recorrente: Município de Santa Cruz
Recorrido: G...... II – Gases Industriais, Unipessoal, Lda

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul

I - RELATÓRIO

O Município de Santa Cruz interpôs recurso da sentença do TAF do Funchal, que julgou procedente a presente acção e anulou a decisão do Vice-Presidente da Câmara Municipal de Santa Cruz (CMSC) de 28-03-2017, por considerar verificado um vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de facto, assim como, condenou o Município a adjudicar a proposta apresentada pela A. e ora Recorrida no procedimento por ajuste directo 36/2017.

Em alegações são formuladas pelo Recorrente, as seguintes conclusões: “a) No âmbito do processo n.º 135/17.0BEFUN foi proferida sentença em que se decidiu, além do mais, julgar procedente a acção e, em consequência anular o acto que determinou a exclusão da proposta da Recorrida e a adjudicação da proposta da Contra­interessada e determinar que a Entidade Demandada adjudique a proposta apresentada pela Recorrida no procedimento de ajuste directo 36/2017.
b) O Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, nomeadamente ao dar como provado o facto vertido no ponto 4 da fundamentação, tendo feito uma errada aplicação do direito ao interpretar, no sentido em que interpretou, a norma constante do n.º 6 do artigo 86º do CPTA.
c) Na douta sentença foi considerado provado que "os documentos que constituem a proposta da Autora, incorporados na plataforma eletrónica, estavam assinados digitalmente com recurso a assinatura eletronica qualificada".
d) Para dar como provado este facto, o Tribunal a quo teve por base o preceituado no artigo 84.º n.º 6 do CPTA, norma que determina, na falta de envio do processo administrativo, que "os factos alegados pelo autor se considerem provados ".
e) A aplicação da norma referida no ponto anterior não poderia ter tido lugar, porquanto não estavam preenchidos os pressupostos legais necessários para a sua aplicação.
f) A aplicação da referida norma implica que tenha havido uma efetiva falta de entrega do processo administrativo ou que a Entidade demandada tenha recusado a sua entrega.
g) O Tribunal a quo entende que o Recorrente violou os princípios da cooperação e boa-fé processuais ao não entregar os documentos referentes à proposta da Recorrida uma vez que os mesmos têm uma "relevância probatória por demais evidente" e que "a falta desses documentos, os quais constituem parte integrante do processo administrativo, tornou a prova impossível ou de considerável dificuldade pelo que, em conformidade com o disposto no art. 84.º, n.º 6 do CPTA, os factos alegados pela Autora são dados como provados, ou seja, considera-se provado que os documentos constitutivos da sua pro posta estavam todos eles assinados com recurso a assinatura eletrónica qualificada" (fIs. 10).
h) Contudo, o Recorrente, na sua contestação, (Cfr. doc. 7 junto à Contestação) juntou os documentos que o Tribunal a quo entende estarem em falta no processo administrativo precisamente para que o Tribunal pudesse confrontar os documentos da proposta de cada um dos concorrentes, pretendendo provar que os documentos apresentados pelo Recorrido não foram assinados eletronicamente.
i) Como pode entender que o Recorrente não cooperou e não agiu de boa-fé se foi o próprio a juntar os referidos documentos, quando nem a Recorrida - que logra provar os factos - os junta na sua Petição Inicial?
j) Ademais, se o Tribunal tivesse procedido à apreciação dos documentos da proposta da Recorrida, o facto vertido sob o n.º 4 não poderia resultar provado, sendo notória a falta de assinatura eletrónica dos referidos documentos.
k) Dispõe o artigo 84.º n.º 6 do CPTA que: "a falta do envio do processo administrativo não obsta ao prosseguimento da causa e determina que os factos alegados pelo autor se considerem provados, se aquela falta tiver tornado a prova impossível ou de considerável dificuldade."
l) O Recorrente procedeu à entrega do processo administrativo no dia 19/06/2017.
m) Pelo que aquela norma nunca poderia ter sido aplicada pelo Tribunal a quo.
n) Incorreu também aquele Tribunal em omissão de pronúncia quando nada refere sobre a questão concreta de saber se era ou não exigível à Recorrida assinar eletronicamente os documentos da proposta antes da submissão dos mesmos na plataforma.
o) O que se pretendeu provar foi a falta daquela assinatura naquele exacto momento.
p) A Recorrida intentou uma acção administrativa de contencioso pré-contratual propugnando pela anulação do acto de adjudicação da proposta da Contra-interessada.
q) Pondo em causa a legalidade da mesma, na medida em que se baseou no 1.2 e 2.º Relatórios Finais do Júri do concurso, que, segundo aquela, enfermavam de ilegalidades.
r) No âmbito do referido procedimento (Ajuste Direto 36/2017) a Recorrida e a Contra­ interessada foram convidadas pelo Recorrente a apresentar a sua proposta.
s) Uma vez que o critério de adjudicação determinado foi o do mais baixo preço, e tendo a Recorrida apresentado a proposta de valor mais baixo, viu a sua proposta ordenada em 1.º lugar.
t) Acontece que em sede de Audiência Prévia, a Contra-interessada pronunciou-se, reclamando do Relatório Preliminar.
u)A Contra-interessada notou, e bem, que a "aposição de assinatura eletrónica qualificada deve ocorrer em cada um dos documentos eletrónicos que constituem a proposta", tendo verificado que os documentos apresentados pela A. não cumpriram aquele requisito.
v) Ouvidas as partes em sede de audiência prévia, o Júri do procedimento deliberou, concluindo no 1º Relatório Final, pela recusa da proposta dirigida pela Recorrida,
w) Inconformada, a Recorrida repostou, alegando que todos os documentos estavam assinados através de assinatura eletrónica qualificada e que, por essa razão, a sua proposta deveria ser mantida, ordenada em 1º2 lugar e consequentemente adjudicada.
x) O Júri de procedimento manteve a sua decisão no 2.2 Relatório Final, tendo a Recorrida vindo apresentar Impugnação Administrativa.
y) A questão que se colocou era a de saber se é ou não obrigatória, sob pena de exclusão do concorrente, a assinatura electrónica qualificada dos diversos documentos antes da submissão na plataforma eletrónica (ou seja. antes do seu carregamento) e, também, no momento da submissão na plataforma mediante utilização de certificados de assinatura electrónica qualificada - são dois momentos, o nível de segurança exigido corresponderá à certeza, garantia de os dados transmitidos não são alterados durante ou após a sua transmissão.
z) O Tribunal a quo não se pronunciou sobre o objecto do presente litígio, nada referindo sobre as exigências pelas quais se deve pautar a apresentação das propostas no âmbito da contratação pública eletrónica {requisitos, condições quanto ao funcionamento das plataformas eletrónicas, segurança e acreditação subjacentes à apresentação/recepção das propostas)
aa) Dispõe a lei n.º 96/2015,de 17 de Agosto, que regula a disponibilização e a utilização das plataformas eletrónicas de contratação pública, no seu artigo 68.º n.º 4, que "quando o interessado realizar o carregamento, na plataforma eletrónica, de um ficheiro de uma proposta, este deve estar já encriptado e assinado, com recurso a assinatura eletrónica qualificada".
bb) Devendo o Júri propor a exclusão das propostas que "que não observem as formalidades do modo de apresentação das propostas fixadas nos termos do disposto no artigo 62º'' - Cfr. arts. 62.2 e 146.2 n.2 2 alínea 1) do Código dos Contratos Públicos.
cc) A expressão "deve estar já encriptado e assinado" , prevista no número 4 do artigo 682 da Lei 96/2015, de 17 de Agosto não pode conduzir a outra interpretação que não a da obrigatoriedade da assinatura eletrónica qualificada dos documentos/ficheiros em momento anterior à submissão dos documentos na plataforma.
dd) O que o Júri do procedimento fez, como não poderia deixar de ter feito, foi uma interpretação literal do nº 4 do artigo 68.º da Lei 96/2015, as regras em causa têm a sua ratio decidendi em razões de segurança jurídica, quer ao nível e autenticidade e fidedignidade da documentação apresentada por cada concorrente, quer ao da própria segurança e inviolabilidade dos documentos apresentados a concurso.
ee) A Recorrida entende que "mesmo a falta de assinatura eletrónica de todos e cada um dos documentos constituirá um requisito de forma ad probationem ", apelando a uma postura anti formalista e à teoria das formalidades não essenciais, considerando este vício de procedimento irrelevante - Vide para o efeito o artigo 412 da Petição Inicial.
ff) O Recorrente não pode acompanhar aquela posição uma vez que o legislador não conferiu liberdade de conformação em relação ao regime legal que disciplina o modo de apresentação das propostas e da assinatura eletrónica qualificada.
gg) Estão em causa princípios tais como o da segurança, da confidencialidade e da integridade ou fidedignidade, e de credibilização, quer do funcionamento das plataformas eletrónicas, quer da identidade ou conteúdo das propostas, assim se tutelando a confiança e segurança jurídica de todos os operadores do sistema.
hh) Alem de que, atentando à estatuição da norma da alínea 1), do n2 2 do artº146º do CCP
damos conta que a mesma é incompatível com o entendimento de que a falta de uma assinatura eletrónica não constitui formalidade essencial do procedimento, mas antes mera irregularidade como defende a Recorrida.
ii) A proposta apresentada pela Recorrida não cumpriu os requisitos exigidos por lei.
jj} Tendo sido excluída, e bem, em prol de uma proposta que cumpria todas as exigências legais.
kk) Em suma. aquando da submissão da sua proposta a Recorrida apresentou o certificado de autenticação na plataforma e não o de assinatura eletrónica e, portanto, estamos perante a falta de assinatura dos documentos que acompanham a proposta.
li) Mal andou o douto Tribunal a quo quando seguiu o entendimento de que o Recorrente excluiu a proposta da Recorrida com base em factos "desconformes com a realidade" - fls. 13.
mm) O Tribunal incorreu ainda em erro na aplicação do direito, veja-se:
nn) Sobre o envio do processo administrativo, dispõe o artigo 84.º do CPTA: "1-Com a contestação, ou dentro do respetivo prazo, a entidade demandada é obrigada a proceder, preferencialmente por via eletrónica, ao envio do processo administrativo, quando exista, assim como todos os demais documentos respeitantes à matéria do processo de que seja detentora, sendo que o sistema informático dos Tribunais Administrativos e Fiscais deve garantir a apensação dos mesmos aos autos.
2 - (...)
5 - Na falta de envio do processo administrativo sem justificação aceitável, pode o juiz determinar a aplicação de sanções pecuniárias compulsórias, nos termos do artigo 169.Q, sem prejuízo do apuramento da responsabilidade civil, disciplinar e criminal a que haja lugar.
6 - A falta do envio do processo administrativo não obsta ao prosseguimento da causa e determina que os factos alegados pelo autor se considerem provados. se aquela falta tiver tornado a prova impossível ou de considerável dificuldade.(...)"
ao) Foi através da aplicação do nº 6 desta norma que o Mm. Juiz a quo deu como provado o facto descrito sob o número 4.
pp) O Mm.. Juiz entendeu que, ainda que o Recorrente tenha procedido à entrega do processo administrativo, o mesmo não foi junto "deforma completa e integral" .(pp.10 da sentença)
qq) Não estão reunidos os pressupostos de aplicação da norma.
rr) Ora, que pudesse operar o mecanismo previsto no n.º 6, o Réu teria de ter omitido a entrega do procedimento administrativo ou até mesmo recusado faze-lo, o que não ocorreu.
ss) Estamos perante um erro de julgamento de facto e erro na interpretação das regras de direito que levou, em consequência, à errónea aplicação da norma.
tt) Pode ler-se no Douto Acórdão do TCA Sul, de 20-12-2012: "Quanto à falta de junção no processo administrativo, de documento referente à distribuição do serviço letivo relativo ao grupo 330 - Inglês, da Escola Secundária do Lumiar, não pode igualmente extrair-se o efeito jurídico pretendido pela recorrente.
Estabelecem os nºs. 4 e 5 do artº 84º do CPTA, que no falto de envio do processo administrativo, sem justificação atendível, pode o juiz determinar o aplicação de sanções pecuniárias compulsórias e não obsta ao prosseguimento da causa, determinando que os factos alegados pelo autor se considerem provados, se aquela falta tiver tornado a prova impossível ou de considerável dificuldade.
Significa isto que o legislador apenas cominou tal efeito jurídico, de considerar provados os factos alegados pelo autor, se a prova desses factos alegados se tiver tornado impossível ou de considerável dificuldade."
uu) No caso dos autos não só nada resulta a esse respeito, como não resulta que a entidade demandada se tenha recusado a juntar o documento em causa
vv) Pode ler-se ainda, "Pode acontecer que o processo administrativo se apresente incompleto, por não conter todos os documentos respeitantes à matéria do processo. sem que isso traduza uma falta de envio do processo administrativo ou sequer uma recusa por parte da Administração.
ww) Apercebendo-se o Tribunal a quo da falta de algum documento que deva integrar o processo administrativo e que seja relevante para a decisão judicial a proferir, deve solicitá-lo à entidade demandada e só perante a sua recusa ou falta de cumprimento sem justificação atendível, será possível extrair o efeito jurídico co previsto na lei e alegado pela Recorrida.
xx) Considerou este Douto Tribunal que, ainda eu o processo administrativo se apresente incompleto, tal não representa desde logo uma falta de envio ou sequer uma recursa por parte da Administração.
yy) O Tribunal a quo, apercebendo-se da falta dos documentos da proposta da Recorrida, deveria ter solicitado ao Réu Recorrente que os enviasse, por forma à boa decisão da causa.
zz) Pode ler-se no texto da sentença recorrida (pp.9) na parte da motivação de facto (ponto C):"A formação da nossa convicção para efeitos da fundamentação dos factos atrás dados como provados teve por base os documentos iuntos aos autos pelas partes e o processo administrativo junto pela Entidade Demandada ".
aaa) O Recorrente não entende como é que o Mm. Juiz se baseia no processo administrativo para formar a sua convicção quanto a determinados aspetos, mas depois considera que a Entidade Demandada não o enviou para efeitos de aplicação do n.º 6 do artigo 84.º
bbb)Ainda que se pudesse considerar que o processo administrativo não tivesse sido entregue, não poderia extrair o efeito jurídico daquela norma sem mais.
ccc) O legislador apenas cominou tal efeito jurídico. de considerar provados os factos alegados pelo autor. se a prova desses factos alegados se tiver tornado impossível ou de considerável dificuldade. o que também não se verificou no presente caso uma vez que os documentos poderiam bem ter sido solicitados.
ddd) O tribunal limita-se a aplicar a norma contida no n.2 6 do artigo 84.2 do CPTA, sem que para tanto estivessem reunidos os pressupostos legais para a sua aplicação, dando como provado que os documentos que constituem a proposta da Recorrida, incorporados na plataforma eletrónica, estavam assinados digitalmente com recurso a assinatura eletrónica qualificada.”

O Recorrido nas contra-alegações não formulou conclusões.
A DMMP apresentou a pronúncia de fls. 161 e 162, no sentido da improcedência do recurso.
Sem vistos, atenta a natureza urgente do processo, vem o processo à conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO

II.1 – OS FACTOS

Na decisão recorrida foram dados por provados os seguintes factos, que se mantém:

1. A Entidade Demandada dirigiu convites à Autora e à Contra-interessada, no âmbito do procedimento de ajuste directo 36/2017, tendo por objecto a celebração de contrato para “Aquisição de Oxigénio Medicinal para Corporação de Bombeiros de Santa Cruz.”
2. O critério de adjudicação do procedimento de ajuste directo referido em 1. supra é o critério do mais baixo preço e, em caso de empate de duas ou mais propostas, o desempate é efectivado por recurso ao sorteio das propostas que se encontrem em situação de empate.
3. A Autora e a Contra-interessada apresentaram propostas no procedimento de ajuste directo referido em 1. supra com o preços de €6.012,50 e de €6.840,00, respectivamente.

5. No Relatório Preliminar do procedimento referido em 1. supra, que aqui se dá por integralmente reproduzido, consta, entre o mais, que:
“7. Admissão e exclusão de propostas Concorrentes
501576436 – A.......... Medicinal, S.A. Admitido
510183751 – G...... II, Gases Industriais, Unipessoal, Lda. Admitido
8. Ordenação das Propostas
N.º Valor da Proposta s/IVA
1 - 510183751 – G...... II, Gases Industriais, Unipessoal, Lda. 6.012,50 Euros
2- 501576436 – A………….., S.A. 6.840,00 Euros
10. Proposta de adjudicação
Valor s/IVA
510183751 – G...... II, Gases Industriais, Unipessoal, Lda. 6.012,50 Euros.”
6. No 1.º Relatório Final do procedimento referido em 1. supra, que aqui se dá por integralmente reproduzido, consta, entre o mais, que:
“7. Admissão e exclusão de propostas Concorrentes
501576436 – A………..Medicinal, S.A. Admitido
510183751 – G...... II, Gases Industriais, Unipessoal, Lda. Excluído
8. Motivos de exclusão Concorrentes
510183751 – G...... II, Gases Industriais, Unipessoal, Lda.
Fundamentação
De facto: Os documentos submetidos na plataforma electrónica pela concorrente não se encontram todos assinados com recurso a assinatura electrónica qualificada.
De direito (art. 70.º e art. 146.º, 2 e 3 CCP): Incumprimento do plasmado no artigo 54.º da Lei n.º 96/2015, de 17 de Agosto.
9. Ordenação das propostas
N.º 1 501576436 – A……………..Medicinal, S.A. Valor da proposta s/IVA 6.840,00 Euros
10. Audiência Prévia
A concorrente A………Medicinal, S.A., em sede de audiência prévia, veio aduzir o facto de nem todos os documentos que constituem a proposta da concorrente G...... II, Lda., se encontrarem assinados com recurso a assinatura electrónica qualificada nos termos plasmados no artigo 54.º da Lei n.º 96/2015, de 17 de Agosto, razão que lhe assiste.
Nestes termos, o Júri delibera a exclusão da referida concorrente G...... II, Lda.
Nos termos do artigo 123.º do CCP, aprovado pelo DL n.º 18/2008, de 29 de Janeiro, o júri vai proceder à audiência prévia escrita dos concorrentes.
11. Proposta de adjudicação
501576436 – A………….Medicinal, S.A. Valor s/IVA: 6.840,00 Euros
7. A Autora exerceu o direito de audição prévia no procedimento referido em 1. supra, que aqui se dá por integralmente reproduzido, e do qual consta, entre o mais, que:
“(…) 2. Trata-se de um evidente equívoco, na medida em que os documentos submetidos pela aqui concorrente se encontram, todos eles, assinados com recurso a assinatura electrónica qualificada.
1. Nem a plataforma electrónica usada permite que assim não fosse.
(…).”
8. No 2.º Relatório Final do procedimento referido em 1. supra, que aqui se dá por integralmente reproduzido, consta, entre o mais, que:
“(…) 5. Audiência Prévia
A concorrente G...... II, Lda. pronunciou-se, no âmbito do direito de audiência prévia que lhe assiste, propugnando pela revogação da deliberação do Júri concernente à respectiva exclusão do procedimento, exposição que se dá aqui como integralmente reproduzida.
Analisado o dito documento, o Júri delibera manter a anterior deliberação, uma vez que é facto que os documentos que constituem a proposta apresentada pela concorrente G...... II, Lda., não se encontram todos assinados com recurso a assinatura electrónica qualificada, o que se traduz no incumprimento do plasmado no artigo 54.º da Lei n.º 96/2015, de 17 de Agosto.
6. Proposta de Adjudicação
501576436 – A…………….Medicinal, S.A. Valor s/IVA: 6.840,00 Euros”
9. Em 28/03/2017, José …………………. proferiu um despacho, no âmbito do procedimento 36/2017, nos termos do qual consta:
“Autorizo nos termos propostos.
De acordo com as peças do procedimento e proposta do concorrente, determino a adjudicação e minuta do contrato.”
10. A Entidade Adjudicante adjudicou no procedimento de ajuste directo 36/2017 a proposta da Contra-Interessada A…………….Medicinal, S.A., pelo preço contratual de €6.840,00 + IVA, para celebração do contrato de aquisição de fornecimento contínuo de oxigénio medicinal.

II.2 - O DIREITO

As questões a decidir neste processo, tal como vêm delimitadas pelas alegações e contra-alegações de recurso e respectivas conclusões, são:
- aferir da omissão de pronúncia da decisão recorrida, por ter silenciado qualquer apreciação sobre a exigência pela Recorrida da assinatura electrónica de cada um dos documentos da proposta, efectuada antes da sua submissão na plataforma;
- aferir do erro decisório na fundamentação de facto, por se ter dado por provado o facto 4. com base na aplicação do art.º 86.º, n.º 6, do CPTA, quando o Recorrente não violou os princípios da cooperação e boa-fé, pois apresentou o processo administrativo instrutor (PA) em 19-06-2017, na versão que se lhe afigurou necessária e lhe foi possível, porque o procedimento de contratação público é electrónico e ainda porque o Recorrente fez juntar à sua contestação os documentos relativos à proposta de cada um dos concorrentes;
- aferir do erro decisório por a Recorrida dever ser excluída do procedimento, tal como o foi, por apenas ter apresentado o certificado de autenticação na plataforma, mas não ter assinado electronicamente - com assinatura electrónica qualificada - cada um dos documentos da proposta antes de os submeter na plataforma e igualmente no momento do carregamento dos documentos, o que era exigido nos termos dos art.ºs. 68.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 96/2015, de 17-08, 62.º e 146.º, n.º 2, al. l), do Código de Contratos Públicos (CCP).

É jurisprudência pacífica que só ocorre a nulidade da decisão por omissão de pronúncia, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil (CPC), quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devia apreciar, que são todas as que lhe forem submetidas e que não se encontrem prejudicadas pela solução dada a outras (cf. art.º 608.º, nº 2, do CPC). Deve o juiz apreciar as questões respeitantes ao pedido e à causa de pedir, e ainda, os argumentos, as razões ou fundamentos invocados pelas partes para sustentarem a sua causa de pedir. Mas só a falta absoluta de fundamentação gera a nulidade da decisão. Também nos termos da al. c) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, para ocorrer a nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e decisão, terá de se verificar uma situação grave, patente, que implique uma incongruência absoluta.
Ora, no caso em apreço, o Tribunal ponderou as questões em litígio e decidiu-as. Para tanto, indicou o Tribunal as razões de facto e de direito que levavam à sua decisão.
Falece, pois, a invocada omissão de pronúncia enquanto nulidade decisória.

Vem o Recorrente invocar um erro na fixação do facto 4., por o mesmo ter decorrido de uma errada aplicação do art.º 86.º, n.º 6, do Código de Processo nos Tribunais Admirativos (CPTA), porquanto foi apresentado o PA em 19-06-2017 e foram juntos à contestação os documentos relativos à proposta de cada um dos concorrentes. Mais diz o Recorrente, que o procedimento de contratação público é electrónico e o PA enviado para tribunal é uma impressão desses documentos, que pode não ficar inteiramente completa. Na incompletude desse PA, havia o juiz de pedir ao Recorrente os documentos em falta ou que considerasse em falta.
Na decisão recorrida motivou-se a resposta dada ao facto 4. indicando-se que a mesma resultava da aplicação do art.º 86.º, n.º 6, do CPTA, porque notificado o R. e ora Recorrente do despacho de 09-06-2017, para juntar o PA, esse PA foi junto de forma não completa e integral, faltando os documentos que integravam o fluxo do procedimento na plataforma electrónica relativamente à proposta da A. e Recorrida. Mais se diz na decisão recorrida, que o R. Município ao não enviar aquele PA de forma completa e integral violou os princípios da cooperação e boa-fé, indicados no art.º 8.º, n.º 3, do CPTA. Diz-se, igualmente, que estando alegado pela A., precisamente, que todos os documentos que constituíam a sua proposta continham a assinatura electrónica qualificada, a relevância da junção dos citados documentos era “por demais evidente” e a sua falta tornou a prova impossível ou de considerável dificuldade, sendo de aplicar, por isso, o citado art.º 86.º, n.º 6, do CPTA.
Nos art.ºs 5, 6, 12, 13, 27, 29, 31 e 32 da petição inicial (PI), a A. alega que tinha assinado todos os documentos submetidos na plataforma com assinatura electrónica qualificada. Para prova daquele facto, a A. remete para os docs. 4 e 6, correspondentes aos docs. de fls. 19 a 22 verso e de fls. 14 a 22 dos autos em suporte físico, a saber, a resposta apresentada pela A. em sede de audiência prévia e uma impugnação administrativa, à qual se anexou os docs. 1 e 2, parcialmente ilegíveis, que serão referentes a uma certificação, sendo que num dos quadros se pode ler que se trata do comprovativo do envio de um documento ou de um ficheiro em 20-02-2017, que “foi verificada com sucesso a assinatura digital” e que se fez esse envio com uma assinatura digital certificada. Na PI, a A. também indica prova testemunhal.
Apresentada a contestação pelo R. e Recorrido, não foi junta à mesma o PA, não se cumprindo o determinado no art.º 84.º, n.º 1, do CPTA.
Na contestação o R. diz aceitar “parcialmente” os factos alegados em 5, 12, 13, 29 e 31 da PI, por deles não se poder retirar a interpretação dada pela A. – cf. art.º 10 da contestação. Entretanto, nos art.ºs 29, 30, 34 a 39, 60, 79 e 80 da contestação, o R. acaba por impugnar as afirmações constantes dos art.ºs 5, 6, 12, 13, 27, 29, 31 e 32 da PI, dizendo-se que se se aceita que a A. assinou a proposta com a aposição da assinatura electrónica qualificada – gerada pela própria plataforma – já não se aceita que a A. tenha assinado previamente os diversos documentos da proposta. Referindo-se especificamente à assinatura electrónica qualificada da proposta da Contra-interessada, no art.º 60 da Contestação do Município remete-se para o documento junto como doc. 6, agora de fls. 52 verso a 54 verso dos autos em suporte físico, que corresponde à proposta da Contra-interessada, que ostenta no campo superior direito a indicação de ter tido uma assinatura digital em 20-02-2017. Por seu turno, no art.º 79 da contestação, aludindo-se à “confessada não utilização da exigível assinatura electrónica por parte da Autora antes da apresentação da sua proposta”, remete-se para o doc. n.º 7 junto com a contestação, de fls. 55 a 56 verso dos presentes autos, que corresponde à proposta apresentada pela A., que não ostenta no campo superior direito a indicação de ter tido uma assinatura digital. Na contestação, o R. Município não apresenta prova testemunhal, cingindo-se à documental.
Apresentada a contestação pela Contra-interessada, no art.º 10 aceitam-se os factos indicados na PI em 5, 27 e impugnam-se os factos indicados na PI em 6, 12, 13, 29, 31 e 32. Nesta contestação a Contra-interessada não apresenta qualquer prova.
Com este enquadramento, ter-se-á de considerar impugnado o facto alegado pela A. e que ficou dado por provado no ponto 4 da decisão recorrida, a saber, que: “Os documentos que constituem a proposta da Autora incorporados na plataforma electrónica, estavam assinados digitalmente com recurso a assinatura electrónica qualificada”.
Tal facto terá sido alegado pela A. nos art.ºs 5, 6, 12, 13, 27, 29, 31 e 32 da PI – com outra configuração, pois a A. alega de forma misturada os factos e o direito, dificultando a percepção do facto “em seco” que se queria efectivamente invocar.
Igualmente aquele facto terá sido impugnado especificadamente pelo R. Município – nos art.º 10.º, 2.º parte e 29, 30, 34 a 39, 60, 79 e 80 da contestação e pela Contra-interessada.
Entretanto, após despacho proferido em 09-06-2017, o R. em 19-06-2017 vem juntar aos autos o PA.
Marca-se, ainda, a audiência de partes indicada no art.º 102.º, n.º 5, do CPTA e requer-se a comparência de um técnico para auxiliar o Tribunal no funcionamento da plataforma electrónica de compras públicas.
De seguida prolata-se a decisão recorrida e na sua motivação refere-se que o técnico presente na audiência pública “esclareceu, nomeadamente, os procedimentos de realização de assinaturas electrónicas qualificadas prévios ao acto de carregamento dos ficheiros na plataforma e os procedimentos de assinatura electrónica qualificada na plataforma”.
Como dissemos, o facto dado por provado em 4. estava impugnado, pelo que frente à posição das partes no processo tal facto havia de considerar-se como controvertido.
Trata-se de um facto que era necessariamente do conhecimento da A. e da R. Município.
Para a prova de tal facto, a A. tinha junto à PI documentos que corresponderão à digitalização do comprovativo da certificação electrónica facultada pela plataforma de contratação pública e ao comprovativo da própria aposição da assinatura digital sobre os documentos constantes da proposta, documentos estes que estão parcialmente ilegíveis, sendo de muito difícil inteligibilidade. Por serem quase ininteligíveis, face à sua ilegibilidade, estes documentos não seriam prova cabal do que se alegava. No entanto, não decorre dos autos que não fosse possível à A. entregar documentos legíveis. Esses mesmos documentos legíveis não foram pedidos, por despacho do juiz, à A.
O R. Município, por seu turno, impugnou o facto ora dado por provado em 4. e juntou aos autos outros documentos - de fls. 52 verso a 56 verso dos presentes autos - que diz corresponderem às propostas apresentadas pela Contra-interessada e pela A. na plataforma electrónica, sendo que só na proposta da Contra-interessada figura uma indicação de que foi apresentada com assinatura digital. Portanto, o R. Município impugnou o facto aduzido pela A. e apresentou contra-prova, retirada do PA, nos termos do art.º 346.º do Código Civil (CC).
Mas junto com a contestação, o R. não entregou o PA. O ónus do R., enquanto entidade pública, de juntar o PA, vem previsto nos art.ºs. 8.º, n.º 3, primeira parte e 84.º, n.º 1 e 2, do CPTA.
Trata-se de um ónus processual que visa facilitar a prova dos factos que sejam invocados no processo, quer pela A., quer pelo RR, entidade pública e Contra-interessado e que visa o acesso directo ao procedimento administrativo pelo juiz, porquanto aqui encara-se o processo administrativo não como um processo de partes (iguais), mas como um processo que ainda tem uma feição marcadamente objectivista, que aponta para a reposição de uma legalidade que terá sido violada.
Daí, igualmente, indicar-se no art.º 83.º, n.º 4, do CPTA, que sem prejuízo do disposto no art.º 84.º, n.º 6, nas acções relativas a actos administrativos ou a normas, a falta de impugnação especificada não importa a confissão dos factos articulados pelo autor, mas o tribunal aprecia livremente essa conduta para efeitos probatórios. O que significará, que se o R. não apresentar uma contestação em que faça uma impugnação especificada, ainda assim, os factos alegados pela A. não podem ser dados por provados, por confissão, porque o juiz, com base nos elementos constantes dos autos e desde logo do PA que tenha sido entregue, deve apreciar essa mesma conduta processual e a prova que conste do processo – cf. ainda os art.ºs. 94.º, n.º 4 e 95.º, n.º 3, do CPTA.
Na mesma lógica, à entidade demandada, quando pertencente à Administração Pública, é exigida a comunicação aos autos das superveniências que decorram da sua actuação procedimental – cf. art.º 8.º, n.º 4, do CPTA.
Nos mesmos termos, da junção do PA é dado conhecimento ao Ministério Público (MP), para que este possa pronunciar-se sobre o mérito da causa em defesa dos direitos referidos no art.º 9.º, n.º 2, do CPTA – cf. art.ºs. 62.º e 85.º, n.º 2 a 4 do CPTA.
Por seu turno, estipula-se no art.º 84.º, n.º 6, do CPTA, que a falta de envio do PA determina que os factos que sejam alegados pela A. se considerem provados “se aquela falta tiver tornado a prova impossível ou de considerável dificuldade”.
Aqui, não está em causa um ónus do R., mas uma regra que tendo por base a “presunção de que a recusa persistente do envio dos documentos em falta se funda no propósito de sonegar ao tribunal o acesso a elementos de prova que favoreceriam a parte contrária” (in ALMEIDA, Mário Aroso de; CADILHA, Carlos Alberto Fernandes - Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos. 4.ª ed. Coimbra: Almedina, 2017, p. 630), vem inverter o ónus (inicial) da prova, permitindo à A. apenas provar os factos que servem a base da presunção – a recusa persistente do R. Município na entrega do PA, ou do documento que se reporte à sua proposta com a os documentos assinados electronicamente e a dificuldade que dai deriva para fazer prova do facto que alegou – ao invés de ter que provar o facto presumido – que apresentou aquela proposta com tal modo de assinatura (cf. art.ºs. 349.º e 350.º, n.º 1, do CC).
“Para beneficiar da presunção da prova prevista no preceito, o autor tem, pois, de demonstrar que o processo administrativo ou alguns documentos atinentes à matéria da causa não foram enviados e que essa circunstância impediu ou, pelo menos, dificultou consideravelmente a prova dos factos que articulou na petição” (in ALMEIDA, Mário Aroso de; CADILHA, Carlos Alberto Fernandes – Comentário, ob. cit. pp. 632-633).
Este art.º 84.º, n.º 6, do CPTA, é uma regra similar à indicada no art.º 344.º, n.º 2, do CC, mas mais exigente para a entidade pública demanda, pois não abrange apenas as situações de impossibilidade de prova, mas ainda aquelas que se configurem como de considerável dificuldade (a propósito do art.º 344.º do CC, vide, RANGEL, Rui - O ónus da prova no processo civil. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 2006, pp. 192-198 e 226-237; REGO, Lopes - Comentários ao Código de Processo Civil. Vol. I, 2.ª ed. Coimbra: Almedina, 2004, p. 455).
Assim, ainda que inicialmente o ónus da prova seja da A. – nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do CC - porque invoca um direito fundado num dado facto, se essa prova se tiver tornado “impossível ou de considerável dificuldade” frente à conduta omissiva do R., porque não tenha enviado o PA, provada que esteja aquela conduta do R. e a sua relevância em termos de prova para os autos, invertem-se os ónus e dá-se por provado o facto alegado pela A., por presunção decorrente da regra do art.º 84.º, n.º 6, do CPTA.
Nos termos do art.º 350.º, n.º 2, do CC, pode ainda o R. Município ilidir a presunção, provando que não se verificam os factos que servem base à presunção, ou o facto presumido. Depois, pode a parte favorecida com a presunção legal tentar provar o contrário, competindo-lhe o ónus desse rebate (cf. neste sentido, RANGEL, Rui - O ónus, ob. cit., pp 230- 231).
Para operar a indicada presunção do art.º 84.º, n.º 6, do CPTA, é necessário, no entanto, que a conduta do omissiva do R. se revele culposa (seja por dolo ou mera negligência), com uma quebra dos deveres de cooperação e de boa-fé, tal como vêm indicados no art.º 8.º do CPTA. Nas expressões de Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha é necessário alicerçar-se numa “recusa persistente”, de enviar ao processo documentos com real “relevo probatório” (in ALMEIDA, Mário Aroso de; CADILHA, Carlos Alberto Fernandes – Comentário, ob cit., p. 630)
Ora, na decisão recorrida conclui-se pela violação dos citados deveres de cooperação e de boa-fé e, portanto, considerou-se, pelo menos implicitamente, que a R. Município actuou com culpa quando não enviou um PA completo e integral.
Acontece, porém, que a indicada violação dos deveres de cooperação e de boa-fé, por existir culpa do Município, decorrente de uma atitude de recusa firme ou persistente no envio dos documentos do PA, não está suportada pela factualidade dos autos, desde logo porque nunca ocorreu uma recusa de envio, seja do PA, seja de quaisquer outros documentos que estivessem na sua posse.
Temos por certo que o R. não juntou o PA no prazo para contestar. O R. incumpriu, pois, o ónus imposto pelo no art.º 84.º, n.º 1 e 2, do CPTA.
Mas uma vez notificado por despacho de 09-06-2017, para proceder a essa junção, o R. vem fazê-lo por requerimento de 19-06-2017. Ou seja, o R. falhou o ónus de entregar o PA no prazo da contestação, mas ainda fez essa entrega findos os articulados, antes do início da fase da instrução e logo após o despacho do juiz que assim determinou.
Nessa mesma medida, não se pode dizer que haja aqui uma quebra do dever imposto no art.º 8.º, n.º 2, 1.ª parte, do CPTA, quando remete para “em tempo oportuno”.
Esta oportunidade corresponde à utilidade que se possa retirar pela junção do PA aos autos, porque se esteja a preparar a fase da instrução, com a necessidade de prova relativamente aos factos que se mantém controvertidos. A oportunidade do art.º 8.º, n.º 2, 1.ª parte, do CPTA, sob quebra dos princípios da boa-fé e da cooperação, liga-se ao determinado no art.º 84.º, n.º 5 e à regra da presunção da prova – decorrente da culpa da contraparte - regulada no n.º 6 daquele art.º 84.º. A oportunidade do art.º 8.º, n.º 2, 1.º parte, do CPTA, não corresponde ao não envio do PA no prazo para a apresentação da contestação, mas, antes, ao não envio desse PA, sem que haja justificação para tal e ainda num momento em que vise a instrução efectiva dos autos, assim se comprometendo o necessário apuramento da verdade material. Liga-se a oportunidade do art.º 8.º, n.º 2, 1.ª parte, do CPTA, a uma ideia de conduta culposa, logo, violadora daqueles princípios.
Ora, essa mesma conduta culposa não pode ser aqui imputada ao R. Município, que nunca se recusou à entrega do que lhe tenha sido requerido pelas contrapartes no processo ou solicitado pelo juiz.
Dos autos resulta que o R. Município enviou o PA logo que lhe foi expressamente solicitado pelo juiz.
Contudo, o Município não enviou um PA integral e completo, isto é, uma impressão completa e total dos documentos electrónicos que constavam da plataforma de contratação pública, respectivos fluxos e correspondentes certificações ou verificações, que constituiriam o procedimento administrativo efectivo.
Nos termos do art.º 1, n.º 1, do Código de Procedimento Administrativo (CPA), procedimento administrativo é a “sucessão ordenada de atos e formalidades relativos à formação, manifestação e execução da vontade dos órgãos da Administração”.
Já no n.º 2 daquele artigo define-se o PA como o “conjunto de documentos devidamente ordenados que se traduzem os actos e formalidades que integram o procedimento administrativo”.
Assim, se a definição de procedimento administrativo tal como resulta do CPA é adequada quer para um procedimento com suporte escrito, quer para um procedimento apenas tramitado electronicamente, já a definição de PA parece restringir-se ao processo em suporte físico, ao conjunto de documentos ordenados, por confronto com o conjunto de pastas, ficheiros, ou a sucessão de fluxos e certificações de um procedimento totalmente electrónico.
Nesse sentido, a doutrina ao referir-se a este n.º 2 do art.º 1.º do CPA, vem indicando o PA como o “suporte físico” do procedimento (cf. MONCADA, Luiz S.Cabral - Código do Procedimento Administrativo, anotado. 1.ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2015, p. 44; DIAS, José Eduardo Figueiredo; OLIVEIRA, Fernanda Paula – Noções fundamentais de direito administrativo. 2ª Ed.. Coimbra: Almedina, 2010, p. 204, ou, OLIVEIRA, Mário Esteves de; GONÇALVES, Pedro Costa; AMORIM, João Pacheco de - Código do Procedimento Administrativo. Comentado. 2.ª ed. (5.ª reim). Coimbra: Almedina, 2005, p. 53).
Na mesma lógica, o art.º 84.º, n.ºs. 1 e 2, do CPTA, está pensado para um PA em suporte físico, que seja digitalizado, ou para um PA que não funcione como uma aplicação ou programa informático, mas que possa ser transmutado num conjunto, numa série sequencial de ficheiros electrónicos, que possam ser enviados para tribunal por via electrónica. Quanto à apensação ao SITAF (Sistema Informático dos Tribunais Administrativos e Fiscais) desse mesmo PA, a que alude o art.º 84.º, n.º 1, parte final, é uma simples apensação de pastas e ficheiros electrónicos, não a apensação de aplicações e programas informáticos, que depois se tornem operacionais.
Ou seja, no caso dos autos, porque o procedimento administrativo ocorreu na plataforma de contratação pública, o envio do PA e o acesso ao mesmo de forma integral e completa significaria, na verdade, que se pudesse consultar directamente aquela plataforma no que concerne ao concurso em causa, eventualmente com uma interoperacionalidade e interligação com o SITAF. No entanto, o acesso a essa consulta directa bule com o texto literal do art.º 84.º, n.º 2 e 3, quando remete para documentos enviados via electrónica que sejam apensados aos autos por via do SITAF.
Mais se indique, que o diploma a que alude o n.º 4 do art.º 64.º do CPA, sobre documentação e integridade do procedimento administrativo electrónico, ainda não foi publicado.
Por seu turno, no art.º 31.º da Lei n.º 96/2015, de 17-08, que regula a disponibilização e a utilização das plataformas electrónicas de contratação pública, exige-se que essas plataformas electrónicas mantenham “em vigor um sistema que documenta as várias fases do procedimento conduzido por meios eletrónicos, permitindo, em cada momento, fornecer informação adequada e fidedigna que se revele necessária” e que disponibilizem “as funcionalidades necessárias para o cumprimento desta obrigação de forma a permitir manter os documentos no seu formato original, devidamente conservados, bem como um registo de todas as incidências do procedimento apto a servir de prova, em caso de litígio.”
Nos n.ºs. 3 e 4 do art.º 31.º, daquela lei, exige-se, ainda, que as plataformas permitam “identificar, entre outras informações: a) A entidade e o utilizador que acedeu às peças do procedimento;
b) A data e hora exatas da submissão dos documentos;
c) O documento enviado, bem como a entidade e o utilizador que o enviou; e
d) A duração da comunicação.
4 - O sistema previsto no presente artigo deve manter-se atualizado, incluindo a informação cronológica nas peças do concurso, até ao ato de adjudicação, sem prejuízo do disposto no artigo 74.º”
No art.º 51.º da Lei n.º 96/2015, de 17-08, estipula-se o seguinte: “Arquivo
1 - As plataformas eletrónicas devem garantir que conseguem gerar arquivos em suporte lógico adequado.
2 - As plataformas eletrónicas devem garantir a guarda e o processamento dos arquivos de modo a poderem vir a constituir-se como meio de prova.
3 - Os registos de acesso e toda a documentação relativa aos procedimentos de formação de contratos públicos devem ser arquivados.
4 - As plataformas eletrónicas devem garantir a manutenção e o arquivo dos registos de utilização e acesso dos documentos nela carregados.
5 - O registo dos arquivos de auditoria deve ser realizado de preferência em texto com codificação UTF-8 (unicode transformation format) e exportável.
6 - Os arquivos devem ser armazenados e organizados de forma sequencial, diariamente, sendo assinados eletronicamente e com aposição de selo temporal emitido por uma entidade certificadora que preste serviços de validação cronológica.
7 - A plataforma eletrónica deve garantir, do ponto de vista tecnológico, que a destruição de um arquivo só pode ser levado a cabo com a autorização expressa por escrito do administrador de sistema, do administrador de segurança e do auditor de sistemas.xige-se que as plataformas de contratação pública “
Por conseguinte, se é certo que do procedimento administrativo que correu na plataforma de contratação pública seria possível extrair um PA completo e integral relativamente a esse mesmo procedimento, tal tarefa pode não ser algo fácil, apontando a Lei n.º 96/2015, de 17-08, para a possibilidade de a plataforma fornecer apenas a informação que seja a necessária em caso de litigio. Visto de outra forma, a criação das plataformas electrónicas não está concebida para a partir delas se extrair toda a tramitação documental, fluxos de informação e correspondentes certificações ou verificações, formando-se, depois, um PA em suporte de papel, um “clone” da documentação inserida na plataforma e um registo do que foram os fluxos ali constantes. Diversamente, a criação das plataformas estará concebida para permitir extrair-se toda essa mesma informação, mas na precisa medida em que a mesma se afigure necessária, lógica e adequada, designadamente na medida em seja necessária para servir de prova em caso de litígio - cf. especificamente os art.ºs. 31.º e 51.º, n.º 2, da Lei n.º 96/2015, de 17-08.
Consequentemente, a interpretação a dar à exigência dos art.ºs. 8.º, n.º 3, primeira parte e 84.º, n.º 1 e 2, do CPTA, quando impõem ao R. o envio de um PA, sob pena de violação dos princípios da boa-fé e cooperação, no caso dos processos electrónicos – desde logo, os de contratação pública – deve rodear-se de alguma parcimónia, pois não se pode pretender que aquele R. envie para o Tribunal o tal PA “clone” de toda a documentação inserida na plataforma, acrescido do registo de todos os fluxos e correspondentes certificações ou verificações daquela mesma plataforma.
Nestes casos, na falta de regras legais que clarifiquem o assunto, há que aceitar que fique a cargo da entidade pública a “criação” daquele PA, que inclua a documentação e as vicissitudes procedimentais principais e, ainda, as que importem para a discussão da causa. Nesta criação, a entidade pública dever-se-á nortear pelos princípios que parametrizam a sua actividade, desde logo os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade, da justiça, da boa-fé ou da isenção.
Assim, não se pode considerar, como se fez na decisão recorrida, que pelo facto de o R. Município não ter enviado um PA completo e integral, que comportasse toda a documentação e fluxos que se verificaram no procedimento electrónico, estava a violar os seus deveres de cooperação e boa-fé, ou que violou o próprio dever de envio do PA para juízo.
Diz o Recorrente que enviou para tribunal, como PA, não a documentação completa da plataforma electrónica, mas os documentos do “processo lógico subjacente à decisão de contratar” e que fez juntar à sua contestação os restantes documentos com relevo para a questão em apreciação nos autos. Alega o Recorrente que fez juntar aos autos as propostas da A. e da Contra-interessada, que provavam que a proposta da A. e ora Recorrida não foi assinada electronicamente, por ser notória essa não assinatura naquela proposta. Alega o Recorrente, identicamente, que se o Tribunal entendia que haviam documentos em falta no PA, poderia ter ordenado a sua junção e que a prova do facto 4. não se tornou impossível ou de considerável dificuldade, não estando nos autos reunidos os pressupostos para a aplicação do art.º 84.º, n.º 6, do CPTA.
Ora, também esta alegação do Recorrente terá de proceder.
Como decorre da tramitação dos presentes autos, após a junção do PA pelo R. Município, foram as partes notificadas e nada vieram dizer, designadamente, a A. nada disse quanto à falta de algum documento naquele PA.
Da mesma forma, o juiz do processo nada apontou com relação ao PA recebido, não referindo que o mesmo era falho. Diversamente, o juiz limitou-se a marcar a audiência pública, prevista no art.º 102.º, n.º 5, do CPTA, sem referir mais nada com relação ao PA recebido. Para essa audiência foi convocado um técnico perito nos termos do art.º 601.º, n.º 1, do CPC.
Nesta sequência, estava terminada a fase dos articulados e verificava-se existir matéria essencial para o litígio que permanecia controvertida – desde logo a que se fixou no ponto 4. da matéria de facto. Exigia-se, assim, que se iniciasse uma fase de instrução.
Quanto à audiência do art.º 102.º, n.º 5, do CPTA, serve apenas para a “discussão da matéria de facto e de direito”, não para a produção de prova, com a prestação de depoimentos de parte, inquirição de testemunhas, ou a prestação de esclarecimentos verbais pelos peritos (cf. neste sentido, ALMEIDA, Mário Aroso de; CADILHA, Carlos Alberto Fernandes – Comentário, ob cit., p. 822).
O contencioso pré-contratual está configurado no CPTA como um processo urgente, que se quer mais abreviado, ágil ou rápido, mas através do mesmo tem necessariamente que se cumprir o princípio do direito à prova plena e contraditória.
Logo, existindo factos que se consideram controvertidos, não há que abrir lugar à audiência pública prevista no art.º 102.º, n.º 5, do CPTA, que não serve para um verdadeiro momento de instrução da causa, mas há que marcar a audiência final que vem prevista no art.º 91.º do CPTA, com os formalismos exigidos por esse artigo e pela aplicação supletiva do CPC. Antes pode ocorrer, ou não, a audiência prévia do art.º 87.º-A, do CPTA, porquanto o art.º 87.º-B, em certos casos, permite a dispensa desta e a prolação, de imediato, do despacho saneador. Certo é, também, que findos os articulados, havendo matéria controvertida que deva ficar sujeita a prova por depoimento de parte, inquirição de testemunhas ou peritagem, se deve emitir um despacho que identifique o objecto do litígio e que enuncie os temas da prova, permitindo-se, depois, que as partes se pronunciem sobre esse despacho, nomeadamente, aditando ou alterando os seus róis de testemunhas – cf. o art.º 89.º-A do CPTA.
A audiência pública do art.º 102.º, n.º 5, do CPTA, está orientada apenas para “discussão da matéria de facto e de direito” e por isso mesmo está concebida como um momento processual único, a ocorrer após a fase dos articulados e antes da prolação da sentença. Logo, em caso de necessidade de produção de prova, aquela audiência não se coaduna com a garantia de prévia indicação às partes do objecto do litígio e dos temas da prova, nem assegura cabalmente o direito das partes a virem a alterar os seus róis de testemunhas, se assim quiserem. Basicamente, aquela audiência pública não servirá para nela se concentrarem os momentos que ora vêm previstos nos art.ºs 87.º-A a 89.º- A do CPTA (e que têm aplicação supletiva ao contencioso pré-contratual por via do art.º 102.º, n.º 1), nem poderá substitui a audiência final, que vem consagrada no art.º 91.º do CPTA (que, igualmente, pode aqui ocorrer, ex vi, art.º 102.º, n.º 1, do CPTA).
Assim, a audiência pública do art.º 102.º, n.º 5, do CPTA, apenas pode ser entendida como uma mera audiência de partes, que se enquadra num princípio de cooperação, audiência semelhante àquela que vem prevista no art.º 7.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC), ou poderá ser vista como algo próximo a uma audiência prévia coarctada, por apenas visar o fim que vem previsto para esta na al. b), do n.º 1, do art.º 87.º-A, do CPTA (audiência que aqui também pode aplicação supletiva, ex vi art.º 102.º, n.º 1, do CPTA).
Já como “substituta” da audiência final que vem prevista no art.º 91.º do CPTA, a audiência pública do art.º 102.º, n.º 5, do CPTA, não serve.
Sem embargo do que ficou acima assinalado, no caso dos autos, porque o facto que se pretende provar é, eventualmente, passível de prova documental, sem a necessidade de recurso a outros meios de prova, será admissível, igualmente, que no uso do poder que vem conferido no art.º 90.º, n.º 3, do CPTA, o juiz inicie diligências de prova que visem a junção aos autos da impressão dos documentos e fluxos produzidos pela plataforma electrónica de contratação pública, assim como, das correspondentes certificações ou verificações, por forma a aferir se os documentos juntos pela A., na sua proposta, estariam assinados digitalmente, ou não.
Por razões substanciais, relativas à própria factualidade que funda o agir administrativo, quando se invocam “factos” no processo administrativo está-se, muitas, vezes a remeter para algo que é normativo e que está exteriorizado num documento e não tanto para realidades da vida. Igualmente, os factos no processo administrativo, porque frequentemente têm por base o próprio procedimento – com os seus actos e formalidades – acabam por clamar, sobretudo, por prova documental.
Por tais razões e também por razões históricas – advenientes da figura do recurso contencioso de anulação, que vedava outra prova para além da documental, salvo no caso da impugnação de actos da administração autárquica – o actual CPTA manteve a preponderância da prova documental (por contraponto com a prova “rainha” do processo civil, que é a testemunhal).
Corolário dessa preponderância é a exigência da apresentação do PA pela entidade pública, ou da junção aos autos dos demais documentos com relevo para a causa, ou a regra do art.º 84.º, n.º 6, do CPTA.
A prova documental, enquanto prova principal, cimeira ou aquela que se privilegia no processo administrativo, faz todo o sentido, pelas duas primeiras razões que atrás se aduziram.
Trata-se, ainda, de uma prova mais rápida e acessível, a que menos morosidade traz a um processo e, portanto, frequentemente, a prova eleita pelo juiz administrativo, nomeadamente nos processos pré-contratuais, quando se invocam vícios que se relacionam com a tramitação procedimental ou com o cumprimento das regras procedimentais.
Mas, essa mesma prova, não pode afastar a possibilidade das partes usarem outros meios de prova – desde logo a prova testemunhal ou a prova pericial – para alcançarem a comprovação de um facto que tenham alegado e que também possa ser provado por essas vias.
Isso mesmo decorre do preceituado no art.º 90.º, n.º 2, do CPTA, quando estipula que no processo administrativo são admissíveis todos os meios de prova.
Portanto, só após a abertura de uma fase de instrução - que não tem de ficar restrita à prova documental, mas que tem de admitir que as partes façam uso de qualquer meio de prova para comprovarem o que alegam - é que pode invocar-se o preceituado no art.º 84.º, n.º 6, do CPTA e entender que a não junção do PA tornou impossível ou de considerável dificuldade a prova dos factos alegados pela A.
No caso em apreço, era lícito ao juiz, no uso do poder indicado no art.º 90.º, n.º 3, do CPTA, solicitar ao R. para vir juntar aos autos nova cópia da proposta apresentada pela A. – documento que seria idêntico ao já junto a fls. 59 – mas que fizesse essa apresentação de forma integral e completa, isto é, que a correlacionasse com os documentos a que se refere na sentença recorrida, a saber, aqueles que “integram o fluxo do procedimento na plataforma electrónica”. Ou poderia o juiz ter indicado ao R. que deveria completar o PA com a indicação de todos esses fluxos e restantes comprovativos do modo de entrega e assinatura das propostas e da documentação que estivesse inserta nas mesmas.
Nessa mesma lógica, poderia o juiz ter solicitado à A. a apresentação dos documentos que fez juntar à sua PI e que visavam comprovar que entregou a sua proposta e respectivos documentos assinados digitalmente, mas agora em formato legível. Tratando-se de documentos que seriam o comprovativo da forma de entrega e de confirmação do recebimento pela plataforma electrónica, também serviriam os mesmos como prova do facto 4.
Se a prova documental que viesse a ser junta não fosse suficiente para a prova do facto alegado, permanecendo este controvertido, exigir-se-ia, então, facultar às partes a continuação da instrução com a prestação de prova mediante os restantes meios – por depoimento de parte, testemunhal, pericial ou por inspecção - o que haveria de ocorrer com a realização da audiência final, tal como vem prevista no art.º 91.º do CPTA.
Mas, o que não poderia ter ocorrido, sob pena de se ferirem as regras dos ónus da prova e do direito à prova, foi o que se verificou nos presentes autos. Pressupondo que o facto que veio a ser dado por provado em 4. estava controvertido, sem que se abrisse um momento de instrução, considerou-se tal facto provado, alegadamente no uso da previsão constante do art.º 84.º, n.º 6, do CPTA, porque a prova do indicado facto se tinha tornado “impossível ou de considerável dificuldade”.
Quanto à confirmação da impossibilidade ou considerável dificuldade de prova pela A., não resulta feita nos autos. Neles a A. não alega essa impossibilidade ou dificuldade e até juntou prova documental para suportar o facto 4, que, no entanto, está parcialmente ilegível.
Por seu turno, o R. juntou cópia dos documentos das propostas da A. e da Contra-interessada e só esta última ostenta a indicação de estar assinada digitalmente.
Admite-se que a confirmação do alegado pela A. e contrariado pelo R. Município quanto à assinatura dos documentos da proposta da A. se devesse fazer por apreciação dos documentos insertos na plataforma electrónica e respectivos fluxos e certificações. Eventualmente, poder-se-ia ter que discutir nos autos se não teria havido algum erro da própria plataforma, já que a A. juntou comprovativos – ainda que parcialmente ilegíveis – do envio da documentação que diz devidamente assinada.
Fosse qual fosse a discussão à volta da instrução da causa e seu desfecho, o certo é que para considerar, no caso, que a A. estava impossibilitado, ou com consideráveis dificuldades, em provar o que alegava, por culpa do R., por omissão do seu dever de entrega dos documentos constantes do PA e na sua posse, era necessário que primeiro se discutisse essa mesma questão nos autos.
No caso em apreço, após a apresentação dos articulados pelas partes, com a junção de prova documental e a apresentação de prova testemunhal pela A., o juiz, sem abrir uma fase de instrução, sem prévia arguição da impossibilidade ou dificuldade de prova por banda da A. e sem a verificação efectiva dessa impossibilidade ou dificuldade, prolatou a decisão recorrida dando por provado o facto 4. – que estava controvertido, como se disse – invocando para o efeito da presunção de prova inserta no art.º 85.º, n.º 6, do CPTA.
Em suma, a decisão recorrida, ao fixar o facto 4. como provado, com base no art.º 85.º, n.º 6, do CPTA, sem que tivesse antes aberto uma fase de instrução e sem que se tivessem verificados os pressupostos da impossibilidade ou dificuldade de prova por banda da A. e por culpa do R. Município, violou o indicado art.º 85.º, n.º 6, do CPTA, as regras do ónus de prova e do próprio direito à prova.
Ao dar-se o facto 4. como provado, errou-se, também, na fixação da matéria de facto quanto a esse ponto.
Altera-se, assim, a factualidade fixada na decisão recorrida, suprimindo-se o que foi dado por provado em 4.
O apuramento do facto indicado no ponto 4 da decisão recorrida e designadamente o facto seguinte: “Os documentos que constituem a proposta da Autora incorporados na plataforma electrónica, estavam assinados digitalmente com recurso a assinatura electrónica qualificada”, exige que se abra um momento de instrução da causa, com a produção de prova, o que ainda não foi feito pela 1.ª instância.
Razão porque se terá de anular a decisão recorrida e determinar, nos termos do art.º 662.º, n.º 2, als. b),c) e 3, a) e c), do CPC, ex vi art.º 90.º, n.º 2, do CPTA, do que seja aberta pela 1.ª instância uma fase de instrução, para aferir da prova relativamente ao facto acima indicado.

Vem o Recorrente invocar um erro decisório por a A. e Recorrida dever ser excluída do procedimento, tal como o foi, por apenas ter apresentado o certificado de autenticação na plataforma, mas não ter assinado electronicamente - com assinatura electrónica qualificada - cada um dos documentos da proposta antes de os submeter na plataforma e igualmente no momento do carregamento dos documentos, o que era exigido nos termos dos art.ºs. 68.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 96/2015, de 17-08, 62.º, 146.º, n.º 2, al. l), do Código de Contratos Públicos(CCP).
Nos autos mantém-se controvertida a questão de saber se a A. e Recorrida assinou digitalmente os documentos que constituíam a sua proposta, pois o facto 4. não poderia ter sido dado por provado, nos moldes em que o foi.
O apuramento dessa factualidade é essencial para a procedência ou improcedência do recurso e prejudica o conhecimento da última questão suscitada, não podendo, por essa razão, este tribunal substituir-se ao tribunal da 1.ª instância na apreciação da questão em litígio.

III- DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam:
- em conceder provimento ao recurso interposto, revogando a decisão recorrida e ordenar a baixa dos autos para que seja aberta pela 1.ª instância uma fase de instrução, para aferir da prova relativamente ao facto erradamente dado por provado em 4.
- custas pelos Recorridos em partes iguais (cf. art.ºs. 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC, 7.º, n.º 2 e 12.º, n.º 2 do RCP e 189.º, n.º 2 do CPTA).

Lisboa, 31 de Janeiro de 2018.
(Sofia David)

(Nuno Coutinho)

(José Correia)