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Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:141/19.0BCLSB
Secção:CT
Data do Acordão:05/07/2020
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:OMISSÃO DE PRONÚNCIA;
INCONSTITUCIONALIDADE;
QUESTÃO;
ARGUMENTO.
Sumário:I - Compete ao Tribunal Arbitral conhecer de todas as questões que as partes hajam suscitado nos seus articulados tendo em vista o reconhecimento da sua pretensão, sem prejuízo de lhe ser permitido não conhecer de uma questão nas situações em que a sua apreciação esteja já prejudicada pela decisão dada a outra anteriormente decidida.
II. É uma verdadeira questão, e não um mero argumento, a alegação de que uma determinada disposição legal, interpretada num determinado sentido é inconstitucional.
III. Tendo a Administração Tributária suscitado no seu articulado a questão enunciada em III, e não tendo o Tribunal Arbitral - que perfilhou na sua decisão a interpretação do normativo no sentido reputado de inconstitucional - apreciado expressamente essa questão, há que concluir que o acórdão arbitral impugnado padece de nulidade por omissão de pronúncia.
IV – Justifica-se a dispensa do remanescente da taxa de justiça se a questão apreciada pelo Tribunal não assume elevada complexidade e a parte que pelo seu pagamento é responsável não teve uma conduta processualmente censurável por, nestas situações, o montante da taxa de justiça dever ser entendido como manifestamente desproporcionado ao concreto serviço prestado, pondo em causa a relação sinalagmática que aquela taxa pressupõe.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acórdão

1. Relatório

1.1.A Autoridade Tributária e Aduaneira, ao abrigo do preceituado nos artigos 26º e 27º, ambos do Decreto-Lei nº10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem Voluntária, doravante apenas designado por RJAT), impugnou a decisão do Tribunal Arbitral, proferida no processo arbitral nº35/2019-T, que, julgando procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pela B..., SGPS, S.A., anulou a decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra o acto de autoliquidação de IRC do ano de 2014, na parte em que não relevou fiscalmente os encargos suportados pela Impugnada nos exercícios de 2004 a 2007, no valor de €22.626.128,74.

1.2. No articulado inicial, resumindo a sua pretensão, formula a Impugnante as seguintes conclusões:

«1.ª A presente impugnação visa reagir contra a decisão arbitral proferida a 2019-10-21 pelo Tribunal Arbitral constituído no âmbito do processo n.º 35/201-T que correu termos no CAAD;

2.ª A decisão proferida pelo referido Tribunal Arbitral padece de nulidade pelo facto de não ter conhecido de duas questões essenciais sobre as quais se deveria ter pronunciado [artigo 28.º/1-c) do RJAT];

3.ª Por via do pedido de pronúncia arbitral visou a Impugnada colocar em crise e pedir a anulação da «Reclamação Graciosa n.º 4..., em que se discutia a legalidade da autoliquidação de IRC referente ao exercício de 2014 e refletida nas Declarações Modelo 22 individual, com o código 4..., e do GRUPO B...- SGPS, S.A., com o código 4… (cf. Doc.1), vem, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º , n.º 1, alínea a), 3.º , n.º 1, e 10.º , n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, REQUERER A CONSTITUIÇÃO DE TRIBUNAL ARBITRAL EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA, com vista à obtenção da declaração de ilegalidade da mencionada decisão e, bem assim, dos referidos atos de autoliquidação de IRC, na parte em que não consideram a dedução do valor de € 2.626.128,74, referente aos encargos financeiros acrescidos em anos anteriores em cumprimento do disposto no artigo 32.º , n.º 2, do Estatuto dos Benefícios Fiscais e da Circular n.º 7 /2004, de 30 de março.»

4.ª Pugnando pela legalidade dos actos tributários colocados em crise por parte da Impugnada, a Impugnante deduziu oportunamente Resposta ao pedido de pronúncia arbitral, mediante a apresentação de articulado através do qual, suscitou a inconstitucionalidade da interpretação pugnada pela Requerente

5.ª Cada uma destas questões foi devidamente desenvolvida pela Impugnante ao longo do seu articulado e era perfeitamente identificável por parte de qualquer leitor;

6.ª Conforme se pode verificar, cada uma destas questões foi devidamente desenvolvida pela Impugnante ao longo do seu articulado e era perfeitamente identificável por parte de qualquer leitor.

7.ª Como referido, a 2019-10-21 o Tribunal Arbitral proferiu decisão final, tendo julgado procedente o pedido da ora Impugnada e condenado a Impugnante ao pagamento das custas do processo.

8.ª Tal decisão deveria ter sido o corolário da resolução de todas as questões suscitadas pelas partes em litígio do processo, designadamente a inconstitucionalidade da interpretação feita pela Impugnada.

9.ª Porém, assim não foi.

10.ª o Tribunal Arbitral entendeu que as questões a decidir se limitavam ao seguinte:

«A principal questão que se coloca nos presentes autos reconduz-se a saber se os encargos financeiros incorridos pela Requerente respeitantes à aquisição de participações sociais, no período de 2004 a 2007, podem ser deduzidos à matéria colectável, atenta a revogação do artigo 32.º, n.º 2 do EBF.

(…)

Face ao exposto, relativamente à posição das Partes e aos argumentos apresentados, para determinar se o acto tributário sub judice é ou não ilegal será necessário verificar qual é a interpretação que deve ser efectuada à norma constante do artigo 32.º, n.º 2 do Código do IRC.»

11.ª O Tribunal Arbitral apreciou as questões por si elencadas, as quais correspondem, no essencial, às questões suscitadas pela própria Impugnada;

12.ª Contudo, não só este elenco de questões fixado pelo Tribunal Arbitral omitiu totalmente a questão suscitada por banda da Impugnante, a saber:

- As diversas inconstitucionalidades que a interpretação propugnada pela Impugnada – e adoptada pelo Tribunal Arbitral - padece.

13.ª Como também – e mais importante ainda – a própria fundamentação da decisão não dedicou uma palavra sequer àquelas questões não despiciendas.

14.ª As questões a decidir não eram exclusivamente as questões suscitadas pela Impugnada, mas, sim, também as questões suscitadas pela Impugnante, pois de outro modo de nada serve o contraditório corporizado na Resposta oportunamente apresentada;

15.ª tudo se processou como se, pura e simplesmente, a Impugnante jamais tivesse suscitado as questões das diversas inconstitucionalidades (suscitadas pela Impugnante) que a interpretação propugnada pela Impugnada – e adoptada pelo Tribunal Arbitral - padece.

16.ª Ao ignorar estas duas questões fundamentais o Tribunal Arbitral não incorreu em qualquer erro de apreciação da prova ou erro de julgamento, mas, sim, numa inequívoca omissão de pronúncia;

17.ª Nenhuma relação de dependência jurídica existe entre a interpretação da lei em torno do thema decidendum feita pelo Tribunal Arbitral e as questões da inconstitucionalidade suscitadas pela Impugnante que justificasse a preterição ou omissão em que incorreu aquele areópago.

18.ª Na realidade, a razão de ser das suscitadas questões da inconstitucionalidade permaneceram inteiras quando o Tribunal Arbitral aderiu à tese defendida pelo Impugnado.

19.ª A decisão arbitral não padece de uma “mera” fundamentação lacónica ou deficiente, antes configura uma “decisão surpresa”;

20.ª Acresce que, ao não cumprir um dos requisitos essenciais inerentes a uma decisão (i.e., a de convencer os seus destinatários) o Tribunal Arbitral coartou irremediável e incompreensivelmente um dos poucos mecanismos de controlo que assistem à Impugnante: o recurso para o Tribunal Constitucional [artigo 70.º/1-b) da Lei 28/82, de 15 de novembro];

21.ª Motivo pelo qual não deve ser mantida na ordem jurídica a decisão arbitral ora colocada em crise, devendo antes ser aquela declarada nula.

Termos em que, por todo o exposto supra e sempre com o douto suprimento de V.Exas., deve a presente Impugnação ser julgada procedente e, consequentemente, ser declarada nula a decisão arbitral, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.

Mais se requer, desde já, atendendo a que o valor da ação é superior a € 275.000, seja a Autoridade Tributária e Aduaneira dispensada do pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos do art.º 6.º n.º 7 do Regulamento de Custas Processuais, tendo em consideração o valor e a natureza da causa.»

1.3. Admitida a impugnação e notificada a B..., SGPS, S.A., foi apresentada resposta na qual se conclui nos seguintes termos:

«A) A Fazenda Pública apresentou impugnação da decisão arbitral proferida no processo n.º 35/2019-T com fundamento na omissão de pronúncia sobre «a inconstitucionalidade da interpretação pugnada pela Requerente, ora impugnada», que tinha sido invocada pela mesma em sede de resposta ao pedido de pronúncia arbitral.

B) No entanto, as inconstitucionalidades invocadas pela Administração tributária não figuram como verdadeiras questões sobre as quais o Tribunal Arbitral devesse ter tomado uma posição individualizada, mas consistem, por outro lado, em meros argumentos introduzidos na Resposta ao pedido arbitral de forma completamente descontextualizada daquela que era a verdadeira questão decidenda.

C) Para além disso, os vícios invocados pela Fazenda Pública à interpretação do regime especial do artigo 32.º, n.º 2, do EBF, através de integração de lacunas da lei e em alegada violação do princípio da legalidade, nunca poderiam constituir uma omissão de pronúncia da decisão arbitral, pois, no momento em que o Tribunal arbitral decidiu que deveria ser feita uma interpretação do regime contido no artigo 32.º, n.º 2 do EBF - de acordo com o entendimento da Circular n.º 7/2004- e fixou, ao abrigo de outros princípios constitucionais e legais, os efeitos que deveriam ser extraídos no momento da revogação do referido regime especial, a Administração tributária apenas poderia (se tal fosse admissível) recorrer do mérito da decisão, por não concordar com a solução adotada na mesma.

D) Para que a questão da inconstitucionalidade suscitada pela Administração tributária na Resposta pudesse constituir uma verdadeira questão, sobre a qual devesse recair uma apreciação individualizada pelo Tribunal, era necessário que a mesma tivesse explicitado, claramente, as razões de facto e direito do entendimento que defendia e de cuja decisão, indubitavelmente, pretendia que fossem extraídos efeitos para a decisão dos autos, o que não aconteceu.

E) Conforme foi decidido pelo Supremo Tribunal Administrativo, no Acórdão proferido em 20 de setembro de 2017, no processo n.º 945/17, segundo a qual «A falta de concretização das alegadas violações dos preceitos constitucionais invocados impede que o tribunal emita também uma apreciação individualizada sobre as mesmas, não se podendo, por isso, configurar como verdadeiras questões que mereçam um tratamento singular e individualizado, antes tendo a sua apreciação que se reconduzir à procedência ou improcedência da questão principal» (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo disponível para consulta em www.dgsi.pt) [Sublinhado nosso].

F) Naquele segmento decisório, o Supremo Tribunal Administrativo referiu que «Não tendo autonomizado qualquer vício de inconstitucionalidade, não pode assacar à sentença recorrida omissão de pronúncia, pois recai sobre os sujeitos processuais o deve de identificarem de forma clara as questões que pretendem que sejam apreciadas pelo tribunal - art. 608° do CPC - e só nessa medida se pode censurar o tribunal por omissão na sua apreciação» [Sublinhado nosso].

G) Partilhamos, aqui, do entendimento avançado no Acórdão supra mencionado, segundo o qual «aliás, o modo como a recorrente invoca a violação de tais parâmetros constitucionais neste recurso revela que não assume tal violação de per se, antes o vendo como um argumento adicional à questão por si suscitada».

[...]

Ou seja, a causa de pedir consubstancia -se na arguição conjugada de factos e de regras de direito que se entende terem sido violadas pelo acto impugnado, devendo o autor adiantar uma argumentação concretizadora e explicativa da razão pela qual entende que as normas ou princípios jurídicos foram ofendidos, cm obediência ao princípio do dispositivo».

H) Ora, a própria Administração tributária não explica, nem na sua Resposta, nem na presente Impugnação da decisão arbitral, a forma como aqueles princípios constitucionais poderiam ser individualmente interpretados e analisados e, dessa forma, inviabilizar o direito à dedução dos encargos financeiros peticionado pela IMPUGNADA.

I) Em suma, a forma abstrata e descontextualizada de que a Administração tributária lança mão para invocar os referidos princípios constitucionais nunca poderia consubstanciar uma verdadeira questão a decidir, sobre a qual o Tribunal devesse tomar posição de forma individualizada.

J) Assim, não se podendo configurar tal alegação como uma verdadeira questão, sendo, por outro lado, um mero argumento da questão principal, é evidente que não tinha o tribunal que se pronunciar, individualmente, sobre a mesma.

K) Para além disso, sempre se teria de olhar para as considerações feitas pela Administração tributária - relativamente às quais considera existir omissão de pronúncia - e confrontá-las com aquela que é a verdadeira questão decidenda no processo arbitral, por forma a analisar a relevância das mesmas em face do objeto do litígio.

L) E, dessa análise, apenas é possível concluir que não existiu uma omissão de pronúncia por parte do Tribunal Arbitral, mas sim uma falta de acolhimento, pelo mesmo Tribunal, dos argumentos invocados pela Administração tributária.

M) De todo o exposto resulta que, para além de as questões invocadas pela Administração tributária para fundamentar a omissão de pronúncia constituírem meros argumentos e não verdadeiras questões, sobre as quais o Tribunal tivesse que se pronunciar de forma individualizada, acresce ainda que, confrontando os argumentos trazidos pela Fazenda Pública para a presente impugnação, ter-se-á que concluir que, os vícios apontados pela Administração tributária à decisão arbitral impugnada apenas consubstanciam uma discordância daquela quanto à decisão de mérito proferida pelo Tribunal Arbitral e não, como se pretende, uma nulidade por omissão de pronúncia.

N) Termos em que deverá ser negado provimento à presente impugnação da decisão arbitral declarando-se a inexistência de omissão de pronúncia pelo Tribunal Arbitral, devendo ser mantida a decisão arbitral impugnada.

NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO QUE VOSSAS EXCELÊNCIAS NÃO DEIXARÃO DE SUPRI R, DEVE SER NEGADO PROVIMENTO À IM PUGNAÇÃO DA DECISÃO ARBITRAL APRESENTADA PELA FAZENDA PÚBLICA, MANTENDO-SE A DECISÃO ARBITRAL PROFERIDA

1.5. Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal Central, notificado nos termos do disposto no artigo 146.º, nº1, do CPTA ex vi artigo 27º, nº2, do Decreto-Lei nº10/2011, de 20 de Janeiro, nada disse.


1.6. Foram colhidos «vistos» dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos.

2. Objecto da Impugnação das decisões arbitrais

Como é sabido, o âmbito de intervenção do tribunal ad quem encontra-se delimitado pelas conclusões do recurso jurisdicional.

Nas situações em que a apreciação pelo Tribunal Central Administrativo tem por objecto decisões dos tribunais arbitrais constituídos sob a égide do RJAT, não obstante a opção do legislador em qualificar o meio processual previsto para provocar essa sindicância como “Impugnação de Decisão Arbitral”, do que se trata é, do ponto de vista substantivo, de um verdadeiro recurso jurisdicional. A particularidade deste meio processual de reacção reside, como resulta dos eu regime, do facto de o objecto do “recurso” se encontrar pré-definido e limitado às nulidades das sentença previstas no artigo 28.º do RJAT, à violação dos princípios consagrados no artigo 16.º (para que somos remetidos por aquele mesmo artigo 28.º) ou, excepcionalmente, em casos justificados, com fundamento em outras nulidades processuais cujo reconhecimento se mostre imposto pela unidade e completude do sistema jurídico para que nos remete o artigo 29.º do mesmo diploma legal.

Posto isto, e revertendo ao caso concreto, conclui-se, especialmente da leitura do articulado inicial, que a questão que nos é colocada é a de saber se o acórdão impugnado padece de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos previstos no artigo 28.º do RJAT, por a ora impugnante ter suscitado na resposta apresentada no processo arbitral questões de inconstitucionalidade do regime consagrado no artigo 32.º do EBF que o Tribunal Arbitral não apreciou.

3. Fundamentação de facto

3.1. A decisão arbitral possui, na parte relevante para a apreciação do mérito da presente Impugnação de Decisão Arbitral, o seguinte teor:

“I - RELATÓRIO

(…)

II. MATÉRIA DE FACTO

Com base nos elementos que constam do processo junto aos autos, consideram-se provados os seguintes factos:

a) A Requerente é uma Sociedade Gestora de Participações Sociais (“SGPS”), nos termos previstos no Decreto-Lei n.° 495/88, de 30 de Dezembro, e tem como objecto social a gestão de participações de outras sociedades como forma indirecta de exercício de actividades económicas;

b) A Requerente é também a sociedade dominante do grupo sujeito ao Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (“RETGS”), previsto nos artigos 69 ° e seguintes do Código do IRC, na redacção em vigor em 2014, designado por GRUPO B... - SGPS, S.A.;

c) No exercício de 2014, o GRUPO B... era constituído pela Requerente e pelas seguintes sociedades:

• J..., TRANSPORTES FERROVIÁRIOS, S.A.;

• H..., LDA.;

C…, S.A.;

R… - SOCIEDADE GESTORA DE PARTICIPAÇÕES SOCIAIS S.A.;

E…, S.A.;

• B... TRANSPORTES, S.A.;

• R…, S.A.;

• R…, S.A.;

• T…, S.A.;

• E… - TRANSPORTES, S.A.;

• F… - TRANSPORTES E TURISMO LDA.;

T… - TRANSPORTES PÚBUCOS, LDA.;

• F… - TRAVESSIA DO TEJO, TRANSPORTES, S.A.;

• R… - TRANSPORTES RODOVIÁRIOS DE MERCADORIAS, S.A.;

• T…, S.A.;

• J… - TRANSPORTE RODOVIÁRIO DE PASSAGEIROS, UNIPESSOAL LDA.;

• R… - TRANSPORTES RODOVIÁRIOS DE PASSAGEIROS, UNIPESSOAL LDA.;

• P…, S.A.;

• T… - TRANSPORTES E TURISMO S.A.;

• M… LDA.; e

• R…, INFORMÁTICA APLICADA AOS TRANSPORTES, S.A..

d) Em cumprimento do preceituado na Circular n.° 7/2004, de 30 de Março, da Direcção de Serviços do IRC (“DSIRC”) - que estabelecia o método de imputação de encargos financeiros às participações sociais detidas pelas SGPS para efeitos de aplicação do regime previsto no referido artigo 32.°, n.° 2, do EBF - nos períodos de tributação compreendidos entre 2004 e 2007, a Requerente acresceu, para efeitos do apuramento do seu lucro tributável e, em consequência, do lucro tributável do GRUPO B..., O montante global de €3.677.616,81, a título de encargos financeiros imputáveis à aquisição de participações sociais;

e) Em 11 de Maio de 2015, a Requerente apresentou a sua declaração Modelo 22 de IRC individual, respeitante ao exercício de 2014, no âmbito da qual apurou um prejuízo fiscal de €11.023.016,21, e um imposto a recuperar de €214.382,39;

f) A 2 de Junho de 2015, a Requerente procedeu ao apuramento do lucro tributável e do IRC do Grupo B..., referente ao exercício de 2014, e submeteu a correspondente declaração de rendimentos modelo 22 de IRC;

g) A 31 de Maio de 2017, a Requerente apresentou Reclamação Graciosa contra a autoliquidação de IRC, respeitante ao exercício de 2014;

h) A 30 de Julho de 2018, a Requerente foi notificada do projecto de decisão de indeferimento da referida Reclamação Graciosa;

i) Não tendo sido exercido o direito de audição prévia, a Reclamação Graciosa n 0 4... foi indeferida por despacho do Senhor Director de Finanças Adjunto, da Direcção de Finanças de Lisboa, datado de 16 de Outubro de 2018;

j) Nos períodos de tributação compreendidos entre 2004 e 2007, a Requerente acresceu, para efeitos de apuramento do seu lucro tributável, o montante global de €3.677.616,81, a título de encargos financeiros imputáveis à aquisição de participações sociais (documentos n.° 2,3,4 e 5 juntos aos autos);

k) Do referido valor, o montante de €2.626.128,74 respeita às participações detidas pela Requerente, a 31 de Dezembro de 2013 (documentos n.° 6 a 10 juntos aos autos);

l) A Requerente não beneficiou da isenção de tributação de mais-valias ao abrigo do artigo 32°, n.° 2 do EBF, na redacção vigente até 1 de Janeiro de 2014, relativamente ao conjunto de participações sociais por si detidas, uma vez que as mesmas não chegaram a ser alienadas até ao momento da revogação do regime previsto no n.° 2 daquele preceito legal.

Considerando que o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, foram seleccionados os factos relevantes para a decisão (Cfr. artigo 123 °, n.º 2 do CPPT e artigo 607 °, n.° 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29. °, n.° 1 a) e) do RJAT.

Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (Cfr. artigo 596. °, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.°, n.° 1 e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110°, n.° 7 do CPPT e a prova documental junta aos autos, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

III. MATÉRIA DE DIREITO

A- Excepção de incompetência

(…)

B - Questão decidenda

B - Questão Decidenda

A principal questão que se coloca nos presentes autos reconduz-se a saber se os encargos financeiros incorridos pela Requerente respeitantes à aquisição de participações sociais, no período de 2004 a 2007, podem ser deduzidos à matéria colectável, atenta a revogação do artigo 32. °, n.° 2 do EBF.

A este propósito, a Requerente alega no seu pedido de pronúncia arbitrai o seguinte: 

1. Na redacção dada pelo artigo 144° da Lei n.° 64-B/2011, de 30 de Dezembro, o n.° 2 do referido artigo 32do EBF previa que “As mais-valias e as menos-valias realizadas pelas SGPS de partes de capital de que sejam titulares, desde que detidas por período não inferior a um ano, e, bem assim, os encargos financeiros suportados com a sua aquisição não concorrem para a formação do lucro tributável destas sociedades"-,

2. De acordo com o artigo 3 o, n.° 3, do EBF, na redacção dada pela Lei do Orçamento do Estado para 2012, o artigo 32. ° do EBF constitui um benefício fiscal excluído do princípio da vigência por cinco anos, estabelecido no n.° 1 do artigo 3. ° do EBF;

3. Segundo o Relatório do Orçamento do Estado para 2003 (ROE), sob o título “Principais alterações em sede de IRC," e a epígrafe "Alargamento da base tributável e medidas de moralização e neutralidade”, aponta-se a isenção de tributação em IRC das mais-valias realizadas pelas SGPS com a alienação de partes de capital detidas há mais de um ano, acompanhada de medidas conducentes a evitar o planeamento fiscal abusivo, aproximando o regime nacional do modelo holandês.

4. No Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 42/2014, proferido no processo n.° 564/12 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), defendeu-se que “a intervenção legislativa operada neste domínio em 2003 assumiu preocupação balanceada e intrinsecamente conexionada nos dois campos que regula: ao mesmo tempo que se procura atingir maior competitividade ao regime fiscal nacional, aproximando-o de outros modelos reputados mais atractivos através da isenção de tributação em sede de IRC de mais-valias realizadas, desde que verificadas certas condições (...), procedeu-se ao alargamento da base tributável, desconsiderando os encargos financeiros que estavam na base da aquisição das participações sociais, contrabalançando dessa forma o beneficio concedido às SGPS face aos demais sujeitos passivos de IRC";

5. A este respeito, importa ter em consideração que, à luz do previsto no artigo 23.º do Código do IRC, os encargos de natureza financeira em geral beneficiam de uma presunção legal de indispensabilidade nos termos previstos na alínea c) do n.° 1 do artigo 23. ° do Código do IRC (na redacção em vigor antes da reforma de 2014), concorrendo, portanto, como componente negativa, para o apuramento do lucro tributável;

6. Este regime de não-tributação das mais-valias realizadas com a alienação daquelas participações, encontrava-se, pois, umbilicalmente ligado com a não-dedutibilidade dos encargos financeiros directamente associados à aquisição de tais participações sociais por parte das SGPS (entre outros, JOSÉ ENGRÁCIA ANTUNES, in “A tributação dos grupos de sociedades” in Revista de Direito e Gestão Fiscal, n.° 45, janeiro- março 2001, p. 20);

7. A Direcção de Serviços do IRC emitiu a Circular n.° 7/2004 de 30 de Março, na qual estabeleceu, com carácter geral e vinculativo para os Serviços, o momento e o modo como deveriam ser deduzidos os encargos financeiros para efeitos de aplicação do referido n.° 2 do então artigo 31do EBF;

8. No ponto 6 da referida Circular n0 7/2004, a AT veio estabelecer o seguinte:

“Relativamente ao exercido em que deverão ser desconsiderados como custos, para efeitos fiscais, os encargos financeiros, dever-se-á proceder, no exercício a que os mesmos disserem respeito, à correcção fiscal dos que tiverem sido suportados com a aquisição de participações que sejam susceptíveis de virem a beneficiar do regime especial estabelecido no n° 2 do art° 31° do EBF, independentemente de se encontrarem já reunidas todas as condições para a aplicação do regime especial de tributação das mais-valias

9. No mesmo número, a AT determinava também que "Caso se conclua, no momento da alienação das participações, que não se verificam todos os requisitos para aplicação daquele regime, proceder-se-á. nesse exercício, à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores".

10. Tal como foi explicitado no Acórdão do Tribunal Arbitrai de 10 de Maio de 2018, proferido no processo n.° 645/2017-T do CAAD, “Para a Autoridade Tributária e Aduaneira, embora, à face do referido regime previsto no EBF, as mais-valias só fossem desconsideradas para efeitos de formação do lucro tributável no exercício em que fossem realizadas, os encargos financeiros suportados com a aquisição de partes de capital deveriam ser desconsiderados como gastos (custos, na terminologia a redacção do CIRC de 2009) no exercício em que os mesmos fossem suportados, acrescendo ao lucro tributável de cada um desses exercícios, independentemente de se encontrarem já reunidas todas as condições para a aplicação do regime especial de tributação das mais-valias, que só era possível apurar no momento da realização. Mas, como a aplicação deste regime especial dependia da verificação de condições a apurar posteriormente, a Administração Tributária adoptava naquele n.° 6o da Circular n° 7/2004 o entendimento de que "caso se conclua, no momento da alienação das participações, que não se verificam todos os requisitos para aplicação daquele regime, proceder-se-á, nesse exercício, à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores" - (cf. citado Acórdão, tal como os demais citados infra, disponíveis em www.caad.org.pt);

11. Assim, no ponto 7 da referida Circular n.° 7/2004, de 30 de Março, a AT estabeleceu que "Quanto ao método a utilizar para efeitos de afectação dos encargos financeiros suportados à aquisição de participações sociais, dada a extrema dificuldade de utilização, nesta matéria, de um método de afectação directa ou específica e à possibilidade de manipulação que o mesmo permitiria, deverá essa imputação ser efectuada com base numa fórmula que atenda ao seguinte: os passivos remunerados das SGPS e SCR deverão ser imputados, em primeiro lugar, aos empréstimos remunerados por estas concedidos à$ empresas participadas e aos outros investimentos geradores de juros, afectando-se o remanescente aos restantes activos, nomeadamente participações sociais, proporcionalmente ao respectivo custo de aquisição

12. O valor de €2.626.128,74 corresponde a encargos financeiros suportados, em exercícios anteriores, por referência a participações sociais que não chegaram a ser alienadas até ao dia 1 de Janeiro de 2014 pela Requerente.

13. O regime previsto no artigo 32.° do EBF, foi revogado pela Lei n.° 83-C/2013 de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2014).

14. Tendo em consideração que relativamente às participações sociais que mantinha em 31 de Dezembro de 2013 não seria possível à Requerente beneficiar do regime previsto no artigo 32.° do EBF, entende a mesma que dever poder deduzir, no exercício de 2014 (isto é, no exercício em que ocorreu a revogação daquele benefício fiscal), os encargos financeiros que acresceu, por referência a tais participações sociais, de acordo com o método previsto na Circular n.° 7/2004;

15. A revogação do regime previsto no referido preceito legal determina, por maioria de razão, a impossibilidade futura da sua aplicação, pelo que, no entender da Requerente, deverá ser deduzido, no exercício de 2014, o valor global dos encargos financeiros que foram acrescidos por referência às participações sociais que a mesma tinha e relativamente às quais não lhe seria já possível usufruir do benefício, em virtude da sua revogação;

16. Quanto a esta matéria e em situações idênticas à da Requerente, a jurisprudência arbitrai tem entendido que se deve considerar a existência de uma correspetividade entre o comportamento do sujeito passivo, traduzido no acréscimo dos encargos financeiros suportados com a aquisição de partes de capital, e a atribuição do benefício do artigo 32.º, n.° 2, do EBF, encontrando-se essa mesma correspetividade plasmada na Circular n.° 7/2004 da Direcção de Serviços do IRC, quando prevê que, no momento da alienação das participações, se consideraria como custo fiscal todos os encargos financeiros não considerados nos exercícios anteriores, caso se concluísse pela inaplicabilidade do regime especial de isenção de mais-valias {neste sentido, vd, os Acórdãos do Tribunal Arbitrai de 10 de Maio de 2018 e de 24 de Maio de 2018, proferidos, respectivamente, nos processos números 645/2017-T e 285/2017-T);

17. Foi, pois, com base nessa ideia de correspectividade, que o Tribunal Arbitrai determinou o seguinte: “No pressuposto, adotado na referida Circular, a desvantagem fiscal que constitui a desconsideração dos encargos financeiros está condicionada à obtenção do ulterior benefício fiscal que constitui a não tributação de mais-valias. A vantagem fiscal será uma contrapartida da desvantagem que constitui a não consideração dos encargos financeiros, pelo que tem de se concluir que, na perspectiva da referida Circular, a impossibilidade de vir a ser aplicado um regime privilegiado a nível da alienação será justificação para que seja eliminada a desvantagem referida. Utilizando a terminologia da referida Circular, poderá dizer-se que, tendo sido revogado o regime referido antes do «momento da alienação das participações», tem de se concluir, definitivamente, que o regime do artigo 32.°, n.° 2, não poderá ser aplicado” - (cf. Acórdão proferido no processo n.° 645/2017-T);

18. No âmbito do processo arbitral n.° 285/2017-T, o Tribunal Arbitrai entendeu também que “a rigidez deste princípio "da especialização dos exercícios’’ está longe de ser uniformemente, ou invariavelmente, defendida — porque em várias circunstâncias se percebe que tal princípio tem que ser colmatado ou temperado com a invocação do valor da justiça: por exemplo, em situações em que, estando já ultrapassados todos os prazos de revisão do acto tributário e não havendo prejuízo para o Estado, se deve evitar cair numa injustiça não justificada para o administrado

19. Para sustentar essa posição e citando o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 9 de Maio de 2012, proferido no processo n ° 269/12, o Tribunal Arbitrai afirma que "O princípio da justiça é um princípio básico que deve enformar toda a actividade da Administração Tributária, como resulta do preceituado nos artigos 266°, n° 2, da CRP e 55° da LGT, cuja relevância não se esgota no âmbito dos actos praticados no exercício de poderes discricionários, embora tenha aí um domínio primacial de aplicação. Não fazendo o artigo 266°, n.° 2, da CRP, qualquer distinção, na aplicação da legalidade, tanto pela Administração como pelos tribunais, não pode ser encarada isoladamente cada norma que enquadra uma determinada actuação da Administração, antes terá de se atender â globalidade do sistema jurídico, que é o elemento primacial da interpretação jurídica (artigo 9°, n°1, do CC). Não se pode afirmar, que, nos casos de exercício de poderes vinculados, a obediência a uma determinada lei ordinária se sobrepõe aos princípios constitucionais referidos, pois estes princípios fazem também parte do bloco normativo aplicável, eles são também definidores da legalidade e, como normas constitucionais, são de aplicação prioritária em relação ao direito ordinário

20. Neste contexto, o Tribunal Arbitral esclareceu, ainda, que, «Liberta do espartilho de uma leitura rígida do principio “da especialização dos exercícios”, a interpretação do n.° 6 da Circular n° 7/2004 permitia concluir que, por um lado, a desconsideração dos encargos financeiros estava dependente da verificação, no momento da alienação das participações sociais, das condições para aplicação daquele regime, pelo que, até esse momento ocorrer, estava sempre em aberto a possibilidade de relevância daqueles encargos como gastos do exercício em que se viesse a ocorrer a alienação; e, por outro lado, que, embora se refira na Circular o momento da alienação como aquele em que se pode concluir pela verificação, ou não, de todos os requisitos de aplicação do regime, deve a Circular ser entendida, por interpretação declarativa do final do seu n° 6, como admitindo a aplicação desse entendimento às situações em que possa concluir-se, antes do momento da alienação, que o regime já não pode ser aplicado, pois o que é relevante para viabilizar a dedução dos encargos é apenas a conclusão segura de que não se verificam os requisitos de aplicação daquele regime 

21. Uma eventual interpretação em sentido contrário, contenderia com a proteção da confiança dos contribuintes que, em cumprimento do preceituado pela Administração tributária, acresceram os encargos financeiros, deparando-se, no momento da revogação do regime, com uma impossibilidade superveniente de retirar vantagem daquele benefício.

22. Note-se que “A decisão de ingresso da Requerente no regime do artigo 32°, 2 do EBF, envolvendo o "sacrifício" do direito à dedução dos encargos de natureza financeira associados à aquisição de partes sociais por parte das SGPS, toma por base inequívoca a expectativa assumida, e, por correspectividade, o resultado prometido, de ocorrer posteriormente uma compensação do sacrifício com a isenção fiscal atribuída no momento de realização das mais-valias. Tornando-se impossível efectivar essa isenção posterior, o sacrifício que a precede, e que existia para legitimá-la, perde o seu objecto próprio, devendo, em nome da justiça aí implicada, desencadear-se um processo materialmente equivalente a uma restituição: se existiu um sacrifício visando uma contrapartida, e essa contrapartida directa se toma impossível, deixa aquele que recebeu o sacrifício, e não presta a contrapartida, de ocupar uma posição legítima na relação de correspectividade" (cf. Acórdão arbitral, já anteriormente citado, proferido no âmbito do processo n° 285/2017-T).

23. Com efeito, como se explicitou no Acórdão arbitrai proferido no processo 645/2017-T, a solução que acima se preconiza não decorre unicamente da revogação daquele preceito, mas assenta, essencialmente, no facto de a Administração tributária, invocando que se encontrava a interpretar o mesmo, ter divulgado, com caráter geral e vinculativo para os Serviços, os procedimentos que os sujeitos passivos deveriam adotar para efeitos de aplicação do mesmo;

24. Acresce que o entendimento da Administração tributária, vertido na decisão da Reclamação Graciosa, colide ainda como princípio da igualdade fiscal e da capacidade contributiva, na medida em que discrimina negativamente as SGPS que tenham sido surpreendidas numa situação como a da Requerente;

25. De facto, estas são discriminadas negativamente face às SGPS que tenham deduzido a totalidade dos encargos financeiros suportados sem adoptar o critério circulatório e que apenas tenham procedido ao acréscimo dos encargos imputáveis às participações sociais no momento da venda das participações; 

26. Com efeito, nesse caso, os encargos financeiros suportados pelas SGPS apenas seriam acrescidos se e quando o sujeito passivo viesse a apurar uma mais ou menos valia com a transmissão de partes de capital;

27. Nessa circunstância, caso a Requerente se tivesse afastado do critério adoptado pela Circular n.° 7/2004, os encargos financeiros suportados com a aquisição das partes de capital que permaneceriam no seu balanço a 31 de Dezembro de 2013 nunca teriam sido acrescidos para efeitos do apuramento do seu lucro tributável;

28. Dito de outro modo, acatando o entendimento preconizado na Circular n 0 7/2004, nos períodos de tributação compreendidos entre 2004 e 2007, a Requerente acresceu, para efeitos do apuramento do seu lucro tributável, montantes correspondentes aos encargos financeiros incorridos (€2.626.128,74) com a aquisição de partes de capitai que não haviam sido alienadas a 31 de Dezembro de 2013 e que, por conseguinte, não deram origem a qualquer mais ou menos valia que pudesse beneficiar do regime previsto no artigo 32.° do EBF. Por sua vez, as SGPS que optaram por se afastar daquele entendimento (legitimamente, em face das diversas dúvidas que se colocaram quanto ao momento em que os encargos financeiros deviam ser acrescidos ao seu lucro tributável) veriam os encargos financeiros suportados com a aquisição de partes de capital concorrer para o apuramento do seu lucro tributável;

29. Assim, para que da aplicação daquela Circular não resultasse qualquer efeito contrário à lei ou que contrariasse os princípios atrás indicados, impunha-se à Administração proceder - como peticionado em sede de Reclamação Graciosa - à correcção da situação fiscal da Requerente e do Grupo B..., permitindo a dedução dos encargos financeiros acrescidos relativos às partes de capital de que esta era titular à data da revogação do artigo 32.° do EBF;

30. Em suma, à luz dos princípios da justiça, da confiança dos interessados, bem como do princípio da igualdade, os encargos financeiros acrescidos, e que foram imputados a partes de capital cuja mais-valia associada acabou por não beneficiar do regime previsto no n.° 2 do artigo 32.° do EBF, deverão ser reconhecidos como gasto fiscal no período de tributação de 2014, momento em que se concluiu pela impossibilidade efectiva de aplicação daquele regime, em virtude da sua revogação;

31. Deve ser declarada a ilegalidade dos actos de autoliquidação referentes ao exercício de 2014 e da decisão que os manteve na ordem jurídica, sendo a Administração tributária condenada a proceder à correcção da autoliquidação da Requerente e do Grupo B..., no sentido de ser reflectida dedução do valor de €2.626.128,74, respeitante ao valor de encargos financeiros que foram desconsiderados nos exercícios anteriores no pressuposto de que seria aplicado o benefício fiscal de isenção de tributação de mais-valias previsto no regime do artigo 32.°, n.° 2, do EBF.

Por sua vez a AT alega, em síntese, o seguinte:

1. Defende a Requerente que, tendo desconsiderado, nos exercícios de 2004 a 2007, a dedução ao lucro tributável dos encargos financeiros associados à aquisição das partes de capital detidas à data de 31.12.2013, a revogação do artigo 32.° pelo artigo 210° da Lei n.° 83-C/2013 permite considerar a dedutibilidade dos encargos financeiros acrescidos ao lucro tributável individual e do grupo Fiscal, do exercício de 2014;

2. A AT desconhece se os valores reclamados pela Requerente são definitivos ou se foram objecto de alguma correcção; A AT não sabe quais foram os cálculos efectuados pela Requerente que permitiram determinar os encargos financeiros que respeitam às partes de capital alienadas até 2013 e as partes de capital detidas à data de 31.12.2013, o que equivale a dizer que o montante cuja dedução é peticionada carece de confirmação;

3. A linha argumentativa desenvolvida pela Requerente peca, desde logo, por duas omissões relevantes: por um lado, nada refere sobre a falta de previsão, na sequência da revogação do artigo 32.° do EBF, de um regime transitório que dê suporte legal às SGPS para a dedução dos encargos suportados nos exercícios anteriores e, por outro lado, obnubila que o regime especial constante do artigo 32.° do EBF foi substituído, por redundante, por um regime de participation exemption que alarga a todos os sujeitos passivos de IRC que detenham uma participação qualificada (aquelas que são típicas das SGPS, refira-se) a isenção das mais valias geradas na alienação de participações sociais, permitindo ainda a dedução dos encargos financeiros incorridos para a sua aquisição. 

4. O regime do artigo 32.° do EBF, instituído pela Lei do Orçamento de Estado para 2003, era um misto de [não] tributação de mais-valias ou menos-valias geradas pelas SGPS com a alienação de partes de capital e ao mesmo tempo de captação de imposto ao impedir a dedução dos encargos financeiros suportados para a sua aquisição, como de forma evidente resulta do próprio Relatório do OE 2003;

5. Nos termos da Circular n 0 7/2004, “Caso se conclua, no momento da alienação das participações, que não se verificam todos os requisitos para aplicação daquele regime, proceder-se-á, nesse exercício, à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores.".

6. Em 2014, a Lei n.° 2/2014, de 16.01, que procedeu à reforma da tributação das sociedades (comummente designada "reforma do IRC’), introduziu no nosso ordenamento jurídico o denominado regime de participation exemption, que determinou assim a revogação do regime fiscal das SGPS (Cfr. artigo 210.° da Lei n.° 83-C/2013), em virtude de o mesmo ter passado a abranger todas as sociedades independentemente da natureza jurídica que apresentem, passando a prever-se a dedutibilidade dos encargos financeiros nos termos dos artigos 23.° e 67.° do Código do IRC;

7. Aliás, embora a revogação do artigo 32.° do EBF tenha sido promovida pela Lei n.° 83-C/2013 e não pela Lei n.° 2/2014, a verdade é que a eliminação foi proposta pela Comissão para a Reforma do IRC, conforme consta do Relatório sobre o Anteprojecto de Reforma (páginas 128/129)1: «[...] a adopção do novo regime de participation exemption veio tornar redundantes na perspectiva da Comissão de Reforma, diversos regimes especiais actualmente existentes. Por esta razão, propõe-se a eliminação dos seguintes regimes: (...) c) uma vez que o novo regime também consome o regime fiscal previsto para as SGPS, e atendendo a que estas não lograram atingir o objectivo originariamente proposto de se afirmarem como veículo de investimento fiscalmente competitivo no plano internacional, propõe-se a eliminação do artigo 32.° do EBF [.

8. A este respeito, pela sua clareza, importa transcrever o resumo feito no acórdão arbitrai proferido no processo n.° 610/2017: 

“Como resulta do Relatório da Comissão de Reforma do IRC, a eliminação do regime das SGPS’s esteve sempre relacionado com a entrada em vigor do regime de participation exemption, motivo pelo qual o intérprete não pode desligar os dois acontecimentos legislativos, a revogação do regime de tributação das SGPS’s c a introdução do regime de participation exemption previsto no novo artigo 51.°-C do Código do IRC. É assim sobretudo no que respeita ao ponto de vista da continuidade dos regimes de exclusão de tributação de mais e menos-valias de participações sociais. No que concerne aos encargos financeiros, a revogação do artigo 32.° do EBF implica a aplicação às SGPS do regime de dedução de encargos financeiros previsto nos artigos 23.° e 67.° do Código do IRC."

9. Deste modo, pode afirmar-se sem qualquer margem de dúvida que o denominado regime de participation exemption sucedeu, porque o substituiu, ao regime especial das SGPS.

10. Acresce que, na presente situação, o legislador deixou expressa a razão da opção tomada, explícita no Relatório sobre o Anteprojecto de Reforma, pelo que resulta de forma inequívoca que a revogação do artigo 32.° do EBF e a inexistência de regime transitório não se tratou de lapso;

11. Ademais, por força da natureza do regime especial de tributação das SGPS qualificado como benefício fiscal estrutural, ie , não abrangido pela regra de caducidade quinquenal (Cfr. n.° 3 do artigo 3 o do EBF), entendeu o legislador que, à luz do disposto no artigo 11.° do EBF, não subsistiam direitos adquiridos a salvaguardar;

12. Como bem assinala a decisão arbitrai proferida no processo n.°6l0/2017-T:«[...] "não se previram normas transitórias para a situação de revogação de benefícios fiscais, contrariamente a outras situações de revogação e alteração legislativa que mereceram a atenção do legislador’, incluindo as disposições - números 3, 12 e 14 do art.° 12 ° da Lei n.° 2/2014 - sobre alguns efeitos da aplicação do art..° 51.°-C do Código do IRC relativamente às situações pré-existente. Pelo que, o legislador não ignorou que a entrada em vigor da Reforma do Código do IRC poderia ter efeitos em relações jurídicas pré-existentes, que começaram a produzir efeitos ao abrigo da lei antiga que se prolongavam no domínio da lei nova. Mas, ainda assim, no caso da revogação do artigo 32° do EBF o legislador optou por não salvaguardar quaisquer efeitos.”

13. Efectivamente, não cabe à AT, nem mesmo aos Tribunais, corrigir opções de política legislativa, permitindo o preenchimento de lacunas, contrariando a motivação expressa da Comissão de Reforma do IRC, criando regimes transitórios que não constam da lei;

14. Isto, sob pena de violação do princípio da legalidade tributária, também na vertente da generalidade e abstracção que permitem e potenciam a igualdade dos contribuintes perante a lei fiscal, e portanto, sob pena de violação do princípio da igualdade na vertente fiscal, os quais decorrem do disposto no artigo 13. ° e no artigo 103. ° da CRP;

15. Por conseguinte, a pretensão da Requerente não pode proceder por falta de base legal que a sustente e também não tem razão ao invocar o ponto 6 do Circular n.º 7/2004, porque aí expressamente era dito que a possibilidade de dedução dos encargos financeiros apenas havia de fazer-se no momento da alienação das partes de capital, facto que não ocorreu no exercício de 2014;

16. Ora o que a Requerente pretende é, sem alienar as partes de capital, deduzir ao lucro tributável de 2014, os encargos incorridos no passado com a sua aquisição, num quadro jurídico em vigor que lhe garante simultaneamente a isenção da tributação de eventuais mais-valias que possa vir a obter;

17. Lembra-se que o binómio dedução dos encargos financeiros-alienação das partes de capital, para o Tribunal Constitucional, no acórdão n 0 42/2014, constituía o corolário lógico do "principio da homogeneidade entre custos dedutíveis e os rendimentos ou proventos sujeitos a imposto a que estejam ligados, de forma a que não seja atribuído um tratamento à causa (custo) e outro ao efeito (rendimento ou proveito), mormente no plano do âmbito de aplicação temporal do regime pertinente sem atentar contra os princípios da tributação do lucro real e da capacidade contributiva.”

18. Entende-se, assim, por todo o exposto, como materialmente inconstitucional a interpretação normativa proposta pela Requerente, no sentido de ser permitida a dedução dos encargos financeiros incorridos entre 2004 e 2007, na vigência do artigo 32.° do EBF, ao lucro tributável de 2014, em face da absoluta inexistência de norma legal que o preveja, por violação do principio da legalidade tributária; 

19. Por fim, reputa-se tal interpretação normativa, de materialmente inconstitucional, por violação do princípio do Estado de Direito democrático, da reserva da lei fiscal, e da separação de poderes, com a consequente subordinação dos tribunais à lei, os quais decorrem, nomeadamente, do disposto nos artigos 2.°, 103 °, 165.° e 202.° da CRP;

20. Tal pretensão desrespeita ainda, frontalmente, o princípio constitucional da capacidade contributiva e tributação do lucro real (artigo 104.°, n.° 2 da CRP). É que mesmo que se aceite que a lacuna da lei possa ser integrada, o que, face ao antedito, se admite por mera cautela e dever de representação, nunca poderá, atento tal princípio constitucional, aceitar-se a dedução integral dos encargos financeiros em 2014;

21. Com efeito, a imputação dos gastos suportados ao lucro tributável de cada período de tributação rege-se pelo princípio da especialização dos exercícios e tratando-se de gastos de natureza financeira, como os juros dos empréstimos, o critério geral de imputação está ligado ao tempo de utilização dos capitais alheios e ao capital em dívida em cada exercício, sendo que este critério geral pode sofrer adaptações, em situações específicas tipificadas em norma especial, como era o caso dos n.°s 2 e 3 do artigo 32 0 do EBF, tal como interpretado pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.° 42/2014 e pela Administração fiscal na Circular n.° 7/2004;

22. Dali resulta que é dada prevalência ao princípio da correlação entre gastos e rendimentos/ganhos, ínsito no princípio da especialização dos exercícios, considerando que as mais-valias estão associadas a valorizações de activos que, em regra, não são geradas num só exercício, mas antes ao longo de um período mais ou menos longo.

23. Ora, pretender fazer valer uma solução em que apenas os encargos financeiros suportados em exercícios passados seriam deduzidos ao lucro tributável desligados da incorporação de quaisquer rendimentos ou ganhos associados, isto é, sem a alienação das correspondentes participações sociais, afronta as regras de periodização do lucro tributável enunciadas no artigo 18 ® do Código do IRC, e por não ter sido salvaguardada em norma transitória, enferma de vício de ilegalidade, violando igualmente o princípio constitucional da capacidade contributiva e tributação do lucro real (artigo 104.°, n.º 2 da CRP); 

24. Em suma, a não dedutibilidade dos encargos financeiros estava sempre associada à isenção das mais-valias que, por sua vez, se encontrava sujeita a condicionalidades que, em última instância, redundavam no decurso de um período de tempo mínimo (1 ano ou 3 anos), ou seja, se as partes sociais fossem alienadas antes do cumprimento desse prazo, as mais-valias estariam sujeitas ao regime geral de tributação e os encargos financeiros seriam dedutíveis, desde que observadas as regras gerais de dedutibilidade dos gastos e perdas;

25. A opção do legislador, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, de alterar expressamente, com a Lei n ° 2/2014, a partir de 01-01-2014, a concepção de balanceamento entre gastos e rendimentos não colide com o princípio da igualdade, da capacidade contributiva, da segurança jurídica ou da tutela da confiança legítima, decorrentes do princípio do Estado de Direito Democrático, constante do artigo 2.° da CRP, na medida em que foi assegurada a manutenção de um dos pilares do regime especial de tributação das SGPS - a isenção das mais-valias, até com maior extensão, por ter sido alargada a outros instrumentos de capital próprio associados às partes sociais;

26. Ademais, quanto ao princípio da segurança jurídica reforce-se que, segundo jurisprudência constante do TC (cf. entre outros, Acórdão n.° 287/90, n° 42/2014, n.° 309/2018), para que haja lugar à tutela sobre o princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança é necessário que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados “expectativas” de continuidade; tais expectativas devem ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do comportamento" estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa;

27. Face a todo o exposto, resulta, pois, que a revogação do regime especial de tributação das SGPS e a sua abrangência pelo regime da participation exemption, que confere maiores vantagens fiscais, visou a prossecução do interesse público de atracção de investidores e de reforço do tecido empresarial, pelo que não está em causa a segurança jurídica articulada com o princípio da tutela da confiança ou sequer o princípio da igualdade;

28. Razões pelas quais deve o pedido de pronúncia arbitral ser julgado improcedente.

29. Por máxima cautela e sem conceder, mais se dirá a pretensão da Requerente reconduz-se ao preenchimento de uma lacuna, ao referir que a revogação do regime do artigo 32.° do EBF deixa um vazio legal;

30. Cabe a este propósito mencionar a jurisprudência recente do Tribunal Constitucional n.° 139/2016, citando o acórdão do mesmo Tribunal n.°. 753/14 o seguinte: “ainda que, em tese geral, o princípio da capacidade contributiva implique que deva ser considerado como tributável apenas o rendimento líquido, com a consequente exclusão de todos os gastos necessários à produção ou obtenção do rendimento, o certo é que não pode deixar de reconhecer-se ao legislador- como admite a doutrina - «uma certa margem de liberdade para limitar a certo montante, ou mesmo excluir, certas deduções específicas, que, embora relativas a despesas necessárias à obtenção do correspondente rendimento, se revelem de difícil apuramento» (Casalta Nabais, ob. cit, pág. 521) [a obra em causa é O Dever Fundamental de Pagar Impostos]. O ponto é que tais limitações ou exclusões tenham um fundamento racional adequado e se apliquem à generalidade dos rendimentos em causa. Trata- se de opções de política fiscal que assentam numa ideia de praticabilidade, que exige ao legislador a elaboração de leis cuja aplicação e execução seja eficaz e económica ou eficiente, e que conduzam a resultados consonantes com os objetivos pretendidos. Com essa finalidade, com que se pretende também assegurar os princípios materiais da igualdade e da justiça fiscal, é constitucionalmente justificável que o legislador possa recorrer não apenas às referidas presunções legais, mas também a técnicas de tipificação e de simplificação, que permitam disciplinar certos aspetos do direito dos impostos segundo critérios de normalidade, afastando as situações atípicas ou anormais (idem, págs. 622-622). [.. J Como se deixou exposto num outro momento, o artigo 104.°, n.° 2, não institui um critério absoluto e rigoroso de tributação das empresas segundo o lucro real, apontando antes para uma aproximação tendencial entre a matéria coletável e os lucros efetivamente auferidos, sem excluir o recurso a rendimentos presumidos e a métodos indiciários.”;

31. Efectivamente, não cabe à Administração Fiscal, nem mesmo aos Tribunais, corrigir opções de política legislativa, permitindo, afinal, a repristinação de regimes de benefício e o preenchimento de lacunas, contrariando a motivação expressa da Comissão de Reforma do IRC, criando regimes transitórios que não constam da lei;

32. No acórdão arbitrai de 20-07-2018, proferido no processo n.° 21/2018-T , onde também se julgou um pedido arbitrai que se sustentava num entendimento que, caso viesse a ser acolhido pelo Tribunal, resultaria na correcção de opções de política legislativa e permitiria a repristinação de regimes de benefício e o preenchimento de lacunas, contrariando a motivação expressa da Comissão de Reforma do IRC e criando regimes transitórios que não constam da lei, entendeu o Tribunal que “A interpretação normativa que a Requerente propõe teria como consequência a própria abrogação do regime legai vigente quanto à dedução de prejuízos fiscais, permitindo que o sujeito passivo - em detrimento do estabelecido no artigo 52 °, n.° 1 - pudesse deduzir em 2014 prejuízos fiscais de exercícios anteriores'' e que una falta de norma expressa que salvaguarde esse efeito, será impossível, por via interpretativa, vir a reabrir situações jurídicas já consolidadas na ordem jurídica nacional.”

33. Com efeito, a interpretação, rectius, integração da lei fiscal, nos termos propostos pela Requerente no presente processo, atentaria contra os princípios da certeza e segurança jurídica e da igualdade entre todos os cidadãos, bem como contra o princípio da legalidade;

34. Entende-se, por todo o exposto, como materialmente inconstitucional a interpretação normativa proposta pela Requerente, no sentido de ser permitida a dedução dos encargos financeiros incorridos entre 2009 e 2013, portanto na vigência do artigo 32.° do EBF, ao lucro tributável de 2014, em face da absoluta inexistência de norma legal que o preveja, por violação do princípio da legalidade tributária.

35. Bem assim, reputa-se tal interpretação normativa de materialmente inconstitucional, também por violação do princípio da legalidade tributária, na vertente da generalidade e abstracção da lei fiscal, decorrentes do princípio da legalidade e enquanto instrumentos da igualdade fiscal, e portanto, igualmente por violação do princípio da igualdade tributária, os quais decorrem, nomeadamente, do disposto no artigo 13.° e no artigo 103.° da CRP; 

36. Por fim, reputa-se tal interpretação normativa, qual seja, a de permitir a dedução dos encargos financeiros incorridos entre 2009 e 2013, portanto na vigência do artigo 32.° do EBF, ao lucro tributável de 2014, e em face da absoluta inexistência de norma legal que o preveja, de materialmente inconstitucional, por violação do princípio do Estado de Direito democrático, da reserva da lei fiscal, e da separação de poderes, com a consequente subordinação dos tribunais à lei, os quais decorrem, nomeadamente, do disposto nos artigos 2.º, 103.°, 165.° e 202.° da CRP;

37. Concluindo-se pela necessária improcedência da pretensão formulada pela Requerente;

38. Importa recordar que o desiderato da Requerente consubstancia-se numa aplicação retroactiva da lei, de uma só vez, por via da imputação ao lucro tributável de 2014 da regra de dedutibilidade dos encargos de natureza suportados entre 2004 a 2007 com a aquisição de partes sociais e, cujas mais-valias e menos-valias realizadas não entravam para o cômputo do lucro tributável, nos termos do disposto no n.° 2 do artigo 32 0 do EBF;

39.Deve a Requerida ressalvar também que a Requerente não demonstra os factos que invoca, diferentes dos constantes das suas declarações periódicas, as quais gozam da presunção de veracidade, de acordo com o disposto no artigo 74.° da LGT;

40. Daí decorrendo, mesmo sem mais considerandos, a improcedência do pedido arbitrai, como decorre das regras atinentes ao ónus da prova Veja-se que «O ónus da prova pode ser entendido num sentido subjectivo e num sentido objectivo. Na primeira acepção, o ónus da prova refere-se à exigência que é imposta às partes de provarem os factos em que assenta a sua pretensão ou a sua defesa, e que será definida, em cada caso, segundo os critérios de repartição do ónus da prova que se encontram estabelecidos nos artigos 342° e seguintes do Código Civil. O ónus da prova objectivo, por sua vez, respeita às consequências da não realização da prova pela parte que com ela está onerada, permitindo determinar qual o sentido ou conteúdo da decisão a proferir pelo juiz quando, finda instrução do processo, se chega a uma situação de incerteza ou de non liquet sobre os factos relevantes. (...) verificando-se uma situação de falta ou insuficiência da prova relativamente a algum ou alguns dos factos alegados indispensáveis para a decisão da causa, estes devem ter-se como inexistentes, na medida em que não podem ser considerados como provados nem como não provados (Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, 4o vol. (policopiadas), pág 114), implicando que o tribunal emita uma pronúncia desfavorável em relação à parte a quem incumbia fazer a prova desses factos.(...) A solução pode estar, neste tipo de processos, em distribuir o ónus da prova, não em função da posição que as partes ocupam na relação processual, mas antes por referência às posições que lhes correspondem na relação jurídica material que está subjacente ao processo. Assim haveria que distinguir essencialmente entre os actos de conteúdo positivo em que a Administração impõe comandos, proibições e ablações, em que se justifica que seja a entidade administrativa a provar a existência dos pressupostos legais da sua actuação, e os actos de conteúdo negativo, pelos quais a Administração nega um interesse pretensivo do administrado, e em que competiria já a este demonstrar, em sede jurisdicional, que preenche os requisitos legais da autorização ou beneficio que pretende obter.» - cfr. Carlos Alberto Fernandes Cadilha, in Dicionário de Contencioso Administrativo, Coimbra, Almedina, 2006.

41. Em anotação ao artigo 100.° do CPPT, escreveu o Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, “Trata-se da concretização prática da eliminação no domínio do contencioso tributário da presunção de legalidade dos actos da administração tributária, substituída por uma presunção de veracidade dos actos do cidadão-contribuinte, que foi anunciado no ponto 1 do preâmbulo do CPT. Esta regra consubstancia uma aplicação no processo de impugnação judicial da regra geral sobre ónus da prova no procedimento tributário enunciada no artigo 74.°, n° 1 da LGT, em que se estabelece que o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque. Embora esta regra esteja prevista para o procedimento tributário, o seu conteúdo deve ser transposto para o processo judicial que se lhe seguir, por forma a que quem tinha o ónus da prova de certos factos no procedimento tributário tenha o respectivo ónus no processo judicial tributário”

42. Bem como, cabe referir a Jurisprudência dos nossos tribunais superiores, de que é exemplo o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no proc. 0338-07, em 31-10-2007: “em sido entendimento pacifico da jurisprudência de que “à Administração Tributária cumpre apenas, tendo em conta o princípio da legalidade administrativa e em termos correspondentes ao disposto no art° 342° do CC, o ónus da prova da verificação dos respectivos indícios ou pressupostos da tributação, ou seja, dos pressupostos legais da sua actuação. Ao contribuinte cabe provar a existência de factos tributários que alegou como fundamento do seu direito, isto é, a efectiva existência das alegadas transacções'' (acórdão desta Secção do STA de 23/5/07, in rec. n° 128/07). Como se escreveu no Acórdão desta Secção do STA de 17/4/02, in rec. n° 26.635, “cabe à administração o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais (vinculativos) da sua actuação, ou seja,... da existência dos factos de que depende legalmente que ela deva agir ou possa agir em certo sentido”, como factos constitutivos de tal direito, em termos daquele princípio da legalidade, segundo a sua actual compreensão, entendido como mero limite à actividade da administração mas como fundamento de toda a sua a sua actividade.

43. Apresentando-se a Requerente à Administração Tributária invocando haver liquidado IRC em situações em que não seria devido, em suma, por haver acrescido, nos cinco exercícios anteriores, imposto que pretende dedutível em 2014, nos termos de um hipotético regime transitório, que entende aplicável (por analogia), inequivocamente está onerada com a demonstração dos factos constitutivos do imposto que alega ter sido indevidamente liquidado;

Face ao exposto, relativamente à posição das Partes e aos argumentos apresentados, para determinar se o acto tributário sub judice é ou não ilegal será necessário verificar qual é a interpretação que deve ser efectuada à norma constante do artigo 32.°, n.° 2 do Código do IRC.

Vejamos o que deve ser entendido.

A) Enquadramento jurídico das SGPS

Como decorre do Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 42/2014, de 11 de Fevereiro, “12.1 — As SGPS têm como antecedentes as sociedades holding, as quais encontram a primeira regulação no Decreto -Lei n.° 46032, de 27 de abril de 1965. Seguiu -se -lhe o Decreto -Lei n° 271/72, de 2 de agosto, estabelecendo o regime jurídico das sociedades que comportem como objeto a gestão de participações, distinguindo entre “sociedades de controlo", “sociedades de investimento" e “sociedades de aplicações de capitais”, e reconhecendo-lhes papel importante na organização e reforço do tecido empresarial nacional, através do estabelecimento e dinamização de um mercado financeiro que lhe sirva de apoio. Já assim se lhes referira o legislador, na edição de isenção da tributação de Imposto de Capitais sobre juros e dividendos, através do Decreto -Lei n° 44561, de 10 de setembro de 1962, dizendo: 7tjrata -se de remover um obstáculo de peso à criação de empresas cuja atividade consiste na mera gestão de uma carteira de títulos, e que no estrangeiro, por toda a parte — e até, nos últimos anos, particularmente em países em vias de desenvolvimento — tão grande papel desempenham, sobretudo as sociedades de colocação de capitais, na mobilização do aforro de certas classes, e na sua criteriosa aplicação naquele ou naqueles setores que um eficiente serviço de estudos económico -financeiros demonstre serem os de menor risco e de melhores expectativas de rendabilidade. Desnecessário será encarecer o alcance desta inovação".

Em 1988, o regime jurídico dessas sociedades viria a ser alterado — modificação inscrita na reforma fiscal que entrou em vigor em 1989 -, através do Decreto-Lei n° 495/88, de 30 de dezembro, passando a adotara designação de sociedades gestoras de participações sociais. Logo aí se sinalizou a essencialidade do estabelecimento de um regime que comportasse vantagens fiscais para tais sociedades, mormente no domínio da tributação de mais-valias e menos-valias obtidas, referindo o preâmbulo do diploma que, de outro modo, as SGPS teriam viabilidade duvidosa e pouco interesse prático

Na verdade, resulta do preâmbulo do decreto-Lei n.° 495/88, de 30 de Dezembro que o propósito subjacente ao regime previsto para as SGPS foi o de “proporcionar aos empresários um quadro jurídico que lhes permitisse reunir numa sociedade as suas participações sociais, em ordem à sua gestão centralizada e especializada.’' Mais se diz que "O regime fiscal que o presente diploma adopta para as SGPS, em sequência da Lei n° 98/88, de 17 de Agosto, tem em vista a concessão de benefício, sem os quais, de resto, tais sociedades teriam viabilidade duvidosa ou pouco interesse prático.”

No fundo, desde a sua criação que a atractividade pela constituição e manutenção das SGPS tem andado de mão dada com a maior ou menor atractividade do respectivo regime fiscal. Com o propósito de incentivar os grupos societários a reorganizarem-se, com vista a reforçar a sua competitividade, instituiu-se um regime específico de tributação das SGPS, que incidia sobre os principais rendimentos resultantes da gestão de participações sociais: os dividendos e as mais-valias.

Tendo em conta que, no presente caso, está em causa precisamente a aplicação do regime específico de tributação das mais-valias realizadas pela Requerente - SGPS, iremos analisar de seguida o regime fiscal àquela aplicável, até à revogação operada pela Lei 83-C/ 2013, de 31 de Dezembro.

B) Regime específico de tributação das mais e menos-valias obtidas por SGPS

Aquando da criação do regime jurídico das SGPS previa-se, em relação aos dividendos, que as SGPS estavam dispensadas do cumprimento dos requisitos relativos à participação e permanência exigidos para efeitos de aplicação do regime de eliminação da dupla tributação económica. No que respeita às mais-valias e menos-valias, o regime de tributação previa inicialmente a não concorrência para a formação do lucro tributável das mais-valias e das menos-valias realizadas por SGPS mediante a transmissão onerosa de partes de capital, desde que detidas por um período não inferior a 1 ano. De igual modo, previa-se a não dedutibilidade dos encargos financeiros suportados com a aquisição das partes de capital.

O regime fiscal aplicável às SGPS passou, após a publicação e a entrada em vigor do Decreto-Lei n.° 198/2001, de 3 de Julho, a constar do EBF.

Tendo presente o propósito de reforço da competitividade expresso no Relatório do OE 2003, a Lei n.° 32-B/2002, de 30 de Dezembro (Lei do OE 2003), aditou o n.° 2 ao artigo 31.° do EBF, que corresponde ao artigo 32.°, n.° 2 do EBF, em discussão nos presentes autos:

“2 - As mais-valias e as menos-valias realizadas pelas SGPS e pelas SCR mediante a transmissão onerosa, qualquer que seja o título por que se opere, de partes de capital de que sejam titulares, desde que detidas por período não inferior a um ano, e, bem assim os encargos financeiros suportados com a sua aquisição, não concorrem para a formação do lucro tributável destas sociedades.”

A este propósito foi sendo entendido que o objectivo do regime instituído em 2003 foi o de contrabalançar a atribuição de um benefício - a exclusão total de tributação das mais-valias - com a não concorrência de certos encargos financeiros suportados, criando um ambiente de neutralidade entre os eventuais ganhos com determinados activos (certas imobilizações financeiras) e o passivo necessário à criação das condições para a obtenção de tais ganhos, isto é, o passivo relacionado com a aquisição de tais participações."

Sobre o regime fiscal específico introduzido neste domínio em 2003, o Tribunal Constitucional pronunciou-se também, no Acórdão n.° 42/14, de 11 de Fevereiro de 2004, considerando que “a intervenção legislativa operada (...) assumiu preocupação balanceada e intrinsecamente conexionada nos dois campos que regula: ao mesmo tempo que se procura atingir maior competitividade ao regime fiscal nacional, através da isenção das mais-valias realizadas desde que verificadas certas condições, procedeu-se ao alargamento da base tributável, desconsiderando os encargos financeiros suportados com a aquisição das participações sociais numa preocupação de matching entre ganhos e custos das SGPS."

Consta-se, assim, que, desde a entrada em vigor do regime jurídico das SGPS que o enquadramento fiscal aplicável à diferença positiva entre as mais e menos-valias de partes de capital foi sempre mais favorável quando comparado com o tratamento fiscal conferido ao apurado por outras sociedades comerciais.  

Vejamos a natureza jurídica do normativo em discussão.

C) Natureza Jurídica do artigo 32.°, n.° 2 do EBF

Encontrando-se o artigo 32.°, n ° 2 do EBF inserido na parte II, do capitulo lll, do Código dos Benefícios Fiscais, entende-se, no quadro da dogmática do Código, tratar-se de um beneficio fiscal de carácter estrutural e não de um benefício fiscal de carácter temporário. Não obstante parte da doutrina e da jurisprudência defender que o artigo 32.°, n.° 2 do EBF não se configura como uma medida que impeça a tributação, não sendo, portanto, um benefício fiscal, tendo em conta o seu carácter desvantajoso, certo é, no entanto, que a base legal aqui em discussão constava do EBF, como um benefício fiscal estrutural, resultando do regime previsto uma vantagem fiscal potencial, comparativamente ao regime de tributação- regra previsto para as SGPS.

Como ensina Nuno Sá Gomes, “a definição normativa do sistema de benefícios fiscais articula-se com o próprio sistema de tributação-regra cujo universo tributário pretende, excepcionalmente, desagravar, isto é, os benefícios fiscais hão-de articular-se, orgânica e sistematicamente, com a própria tributação-regra, em termos qualitativos, enquanto excepções ao modelo da mesma tributação-regra.” 

Neste sentido, entende-se que o artigo 32.°, n.° 2 do EBF constitui um benefício fiscal, enquanto desagravamento fiscal derrogatório do principio da igualdade tributária, instituído para a tutela de interesses extrafiscais de maior relevância.

Considerando a natureza da norma sub judice, iremos proceder à sua interpretação, no âmbito do quadro legal aplicável.

D) Interpretação jurídica do artigo 32.°, n.° 2 do EBF

Resulta do artigo 11.° da Lei Geral Tributária (LGT) que a interpretação da lei fiscal deve ser efectuada atendendo aos princípios gerais de interpretação.

Os princípios gerais de interpretação estão estabelecidos no artigo 9.° do Código Civil (CC), nos seguintes termos:

"Artigo 9.°

Interpretação da lei

1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições especificas do tempo em que é aplicada.

2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados."

De acordo com o disposto na Lei Geral Tributária, a interpretação de normas fiscais obedece aos seguintes cânones:

“Artigo 11.°

Interpretação

1- Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.

2- Sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm salvo se outro decorrer directamente da lei.

3- Persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários.

4 - As lacunas resultantes de normas tributárias abrangidas na reserva de lei da Assembleia da República não são susceptíveis de integração analógica.''

Sobre a interpretação de benefícios fiscais determina-se no EBF, o seguinte:

“Artigo 10.°

Interpretação e integração das lacunas da lei

As normas que estabeleçam benefícios fiscais não são susceptíveis de integração analógica, mas admitem interpretação extensiva."

Assim, considerando o quadro normativo aplicável, importa atender ao disposto no artigo 32 °, n.° 2 do EBF, que estabelece o seguinte:

“As mais-valias e as menos-valias realizadas pelas SGPS de partes de capital de que sejam titulares, desde que detidas por período não inferior a um ano, e, bem assim, os encargos financeiros suportados com a sua aquisição não concorrem para a formação do lucro tributável destas sociedades

Do ponto de vista literal, entende-se que a norma em análise incide sobre as mais-valias, as menos-valias e os encargos financeiros, estatuindo-se em relação àqueles factos tributários como consequência a sua irrelevância para efeitos de determinação do lucro tributável.

Tendo em conta que para que qualquer obrigação tributária nasça é necessário que se preencham todos os elementos que compõem o facto que gera essa obrigação, os factos tributários constantes da norma em análise só existem quando se verificam os pressupostos exigidos na sua definição jurídica, no caso concreto em análise, a alienação de participações sociais. Embora os factos tributários previstos possam ocorrer em diferentes momentos temporais, estão os mesmos sujeitos à mesma estatuição normativa, sendo certo que a não dedutibilidade dos custos, que se pretendem afectar ao beneficio fiscal, depende da realização das mais ou menos valias das participações sociais em causa. Na verdade, caso se isole o facto - encargos financeiros - dos restantes factos tributários - mais ou menos-valias - o benefício fiscal em análise converter-se-ia num “prejuízo fiscal” injustificado, em face das regras gerais de dedutibilidade dos gastos e em absoluta contradição com os propósitos subjacentes à criação do regime fiscal específico aplicável às SGPS. Também considerando que a norma foi criada com um propósito de neutralidade, certo é que sem o referido “balanço” ou conexão não é possível considerar a tributação agravada dos encargos financeiros, como facto tributário relevante, por falta de coerência.

No fundo, do ponto de vista literal entende-se que a norma em análise prevê a realização de três factos tributários distintos: as mais-valias, as menos-valias e os encargos financeiros, que se subordinam à mesma estatuição - a sua irrelevância para efeitos de determinação do lucro tributável - sendo certo que esses factos tributários têm como fonte de obrigação tributária a alienação das participações sociais, isto é, a estatuição da norma só pode operar em termos definitivos com a alienação das participações sociais.

Do ponto de vista teleológico, isto é, atendendo ao sentido e fim da norma a interpretar, a criação do benefício fiscal em análise teve como propósito proporcionar às SGPS vantagens fiscais relativamente à obtenção de mais-valias com a alienação de participações sociais. Como decorre do Acórdão do TC n.° 42/20014, de 11 de Fevereiro, “Denota -se, então, que a intervenção legislativa operada neste domínio em 2003 assumiu preocupação balanceada e intrinsecamente conexionada nos dois campos que regula: ao mesmo tempo que se procura atingir maior competitividade ao regime fiscal nacional, aproximando-o de outros modelos reputados mais atrativos através da isenção de tributação em sede de IRC de mais -valias realizadas, desde que verificadas certas condições (sobre os modelos comparados, designadamente o modelo holandês, Júlio Tormenta, ob. cit., pp. 73 a 95), procedeu -se ao alargamento da base tributável, desconsiderando os encargos financeiros que estavam na base da aquisição das participações sociais, contrabalançando dessa forma o beneficio concedido às SGPS face aos demais sujeitos passivos de IRC.”

Contrariamente ao defendido pela AT, não se perceciona que o regime instituído no artigo 32.° do EBF, pela Lei do Orçamento de Estado para 2003, fosse um misto de [não] tributação de mais-valias ou menos-valias geradas pelas SGPS com a alienação de partes de capital e ao mesmo tempo de captação de imposto ao impedir a dedução dos encargos financeiros suportados para a sua aquisição, como de forma evidente resulta do próprio Relatório do OE 2003.” Na verdade, o que resulta destacado daquele Relatório é o propósito de “No que respeita ao reforço da competitividade das empresas nacionais, "criar “um novo sistema de tributação das SGPS, com um regime semelhante ao vigente nos Países Baixos;

Na verdade, desde a sua criação, as SGPS sempre tiveram associadas a um conjunto de vantagens fiscais, em especial, no que respeita à obtenção de mais-valias, que serviram o propósito subjacente à sua criação, que foi o de incrementar a competitividade das empresas em Portugal.

Analisada a norma jurídica em apreço constata-se, no entanto, que o benefício fiscal atribuído, consistente na não concorrência para a formação do lucro tributável' das mais-valias e menos-valias obtidas com a alienação de participações sociais era ‘‘contrabalançado’’ com a igual “não concorrência para a formação do lucro tributável' dos encargos financeiros subjacentes.

Pretendeu o legislador, ao criar o benefício fiscal em análise, potenciar a neutralidade fiscal subjacente ao negócio de compra e venda de participações sociais, não tributando as mais- valias, nem deduzindo os custos associados à sua obtenção.

A relação entre os factos tributários previstos - mais-valias, menos-valias e encargos financeiros - é conduzida pelo vocábulo “bem assim" à mesma estatuição - não concorrem para a formação do lucro tributável destas sociedades.

Como ensina Alberto Xavier, “o facto tributário é a “fonte da obrigação tributária’’. Esta última nasce directamente da realização do facto tributário, embora o seu fundamento normativo seja sempre a lei, de acordo com o princípio da legalidade tributária”. Para que qualquer obrigação tributária nasça é necessário que se preencham e se conjuguem todos os elementos que compõem o facto que gera essa obrigação, ou seja, o facto tributário não existe enquanto não se verificarem todos os pressupostos exigidos na sua definição jurídica.'

Considerando tal como Gianni de LUCA que “o facto tributário contém quatro elementos que o compõem e que a doutrina tradicional apoia: material, espacial, temporal e quantitativo.", constata-se que os factos tributários identificados correspondem ao rendimento/gasto que se pretende tributar/isentar, de acordo com as taxas de IRC aplicáveis, em Portugal.

Relativamente ao elemento temporal, tem sido entendido que “todo o facto tributário necessita de um determinado período, ainda que ínfimo, para se realizar. Todavia, noutros casos, dada a sua maior complexidade, o aspecto temporal adquire autonomia, carecendo de fixação através de preceitos legais especiais que, por especificarem um elemento do facto tributário, integram as normas de incidência do imposto."'6

No que concerne aos rendimentos decorrentes de mais-valias, a doutrina maioritária sustenta que o facto tributário que está subjacente à percepção do rendimento que constitui a mais-valia é um facto tributário de formação instantânea, que se reporta ao momento em que ocorre a alienação ou transmissão de activos.

Relativamente aos encargos financeiros, à semelhança do que tem sido entendido em matéria de tributação autónoma, entende-se que os encargos financeiros constituem um facto de formação instantânea que se verifica sempre que o contribuinte incorre em determinada despesa sujeita a tributação.

Sucede que, como resulta da teleologia da norma em análise, a não dedutibilidade dos encargos financeiros depende da verificação dos factos tributários constantes da previsão da norma - realização de mais-valia ou menos-valia.  

Tendo em conta que os momentos temporais associados aos factos tributários em análise não seriam coincidentes, a AT, através da Circular n.° 7/2004, de 30 de Março, da DSIRC, veio esclarecer que os encargos financeiros incorridos com vista à obtenção de mais-valias pela alienação de participações sociais, consideram-se sujeitos à estatuição da norma em análise, no momento em que ocorrem, isto é, não são dedutíveis no momento em que ocorrem, para que possam ser susceptíveis de usufruir do benefício fiscal, em análise, sendo certo que, outros encargos financeiros incorridos por SGPS ou outros sujeitos passivos são, em regra, dedutíveis, nos termos gerais. Caso não venha a ocorrer o facto gerador de imposto - a obtenção de mais ou menos-valias, através da alienação de participações sociais - nas condições previstas no n.º 2 do artigo 32.® do EBF, “proceder-se-á, nesse exercício. à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores."

Encontrando-se a estatuição dependente da verificação da previsão da norma, parece claro que a não dedutibilidade dos encargos financeiros depende da verificação de outro facto tributário - a obtenção de mais ou menos-valias, através da alienação de acções. No fundo, o facto gerador do imposto, enquanto situação abstracta descrita na lei, que se verifica em concreto, é que dá origem à obrigação tributária, ao relacionamento jurídico entre o contribuinte e o Estado.

Entende-se, por isso, que qualquer outra interpretação que não aceite a subordinação jurídica da verificação/consumação dos factos tributários à sua estatuição, não permite sustentar a racionalidade/sistematicidade da norma.

Assim, não tendo a Requerente obtido as mais ou menos-valias associadas aos encargos financeiros incorridos, registados nos exercícios fiscais correspondentes aos anos de aquisição das participações sociais, com a revogação da norma em análise com efeitos a 1 de Janeiro de 2014, o anterior regime específico das SGPS deixou de produzir efeitos, não podendo ser aplicável à Requerente, no futuro, isto é, aquando da verificação das condições anteriormente previstas no n.° 2 do artigo 32.° do EBF.

Assim, na falta de disposição transitória estabelecida pela Lei n.° 83-0/2013, de 31 de Dezembro são aqui aplicáveis as regras previstas na LGT e no Código Civil relativamente à sucessão de leis no tempo, que determinam a aplicação das novas normas tributárias aos factos posteriores à sua entrada em vigor, prevendo-se que a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor, quando o facto for de formação sucessiva.

Vejamos, então, quais são as consequências.

e) Efeitos da revogação da norma em análise

Na falta de disposição transitória sobre os efeitos da revogação do n.° 2 do artigo 32.° do EBF, os efeitos da revogação da norma são todos os que resultam da cessação da sua vigência, sendo certo que nova norma (regime) só é aplicável aos factos posteriores, nos termos previstos no artigo 12.° da LGT.

Na verdade, a Lei revogada cessa a sua vigência, deixando, em regra, de se aplicar para o futuro. Tendo a situação fáctica em análise ocorrido, aquando da vigência da lei antiga, o novo regime fiscal denominado de “participation exemptiori' só é aplicável aos factos tributários que se venham a projectar na vigência da Lei nova, sob pena de violação do princípio da proibição da retroactividade da Lei fiscal. Acresce que, os regimes em causa têm diferentes âmbitos de incidência, quer subjectivos, quer objectivos, não sendo, portanto, regimes substancialmente equiparáveis, desde logo pela diferença no que respeita à tributação/não tributação dos gastos incorridos.

Deste modo, com a cessação de vigência do disposto no n.° 2 do artigo 32.° do EBF, não mais se verificará o facto gerador de imposto subjacente ao registo e qualificação dos encargos financeiros associados às participações sociais adquiridas pela Requerente, ao abrigo da Lei antiga. Em consequência, os encargos financeiros, que foram acrescidos ao lucro tributável com base na expectativa de ser obtido o benefício fiscal constante do n.° 2 do artigo 32 0 do EBF (devidamente registados contabilisticamente para esse fim), aquando da verificação do facto gerador de imposto (no passado, ao abrigo da Lei antiga), estão incorretamente registados e tributados, como factos tributários isolados, isto é, gastos, em face da revogação da norma. Conquanto, na sequência da revogação da norma sub judice, o benefício fiscal extinguiu-se.

Acresce que, as SGPS tinham a expectativa legítima de manutenção do benefício fiscal em causa e, assim, de que a desconsideração dos encargos financeiros num determinado momento teria como contrapartida a ulterior não tributação das mais-valias.

Neste sentido, a Requerente adoptou a interpretação prevista neste ponto 6 da Circular n ° 7/2004, tendo desconsiderado no exercício de 2014 os encargos financeiros suportados com a aquisição de participações sociais.

Uma alteração legislativa que impossibilite a obtenção do benefício fiscal de não tributação das mais-valias implica a extinção da razão que legitimava a desconsideração dos encargos financeiros, pelo que deve ser aplicada a tributação regra, isto é, a tributação nos termos aplicáveis na ausência da norma entretanto revogada.  

O que não é admissível, à luz dos princípios da tutela da confiança e da boa-fé, é o entendimento segundo o qual a revogação do regime comtemplado no art. 32.°, n.° 2, do EBF implica simultaneamente a não obtenção do benefício que o mesmo previa e a cristalização da desconsideração dos encargos financeiros, que se conexionavam com aquele beneficio, o que se traduziria, verdadeiramente, numa alteração das “regras do jogo” no decorrer do “jogo”. Ora, de acordo com o disposto no artigo 14 ° do EBF, configurando-se a revogação da norma como um acto extintivo do benefício fiscal, "A extinção dos benefícios fiscais tem por consequência a reposição automática da tributação-regra."

Como, aliás, decorre da Circular n.° 7/2004, de 30 de Março ao prescrever que "Caso se conclua, no momento da alienação das participações, que não se verificam todos os requisitos para aplicação daquele regime, proceder-se-á, nesse exercício, à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores:

Assim, considerando a relação de subordinação entre a norma relativa aos encargos financeiros e a integralidade das condições para a aplicação do regime de não concurso entre mais ou menos-valias, devem ser alterados os registos dos encargos financeiros, em razão da sua “desafectação” contabilística e fiscal ao benefício fiscal revogado, com as demais consequências, mormente a anulação do acto de autoliquidação de IRC de 2014.

Conclui-se, assim, que o indeferimento da reclamação graciosa e do acto de autoliquidação de IRC de 2014, enferma de erro de interpretação do artigo 32.°, n.° 2 do EBF, na redacção aplicável à data dos factos.

Face ao exposto, fica prejudicado, por inútil, o conhecimento das restantes questões de violação de lei colocadas pela Requerente».

3.2. Damos aqui por reproduzido o teor da resposta apresentada pela Autoridade Tributária e Aduaneira no processo arbitral identificado em 1. e 2. supra (cfr. fls. do CD apenso aos autos,).

4. Fundamentação de direito

Deixámos já consignado no ponto 2 deste acórdão que a questão a decidir se reconduz a uma alegada omissão de pronúncia em que o Tribunal Arbitral incorreu no julgamento realizado, a qual constitui fundamento de Impugnação, nos termos previstos no artigo 28.º, n.º 1 al. c) do RJAT, que mais não é, como sabemos, equivalente ao vício da sentença previsto no artigo 615.º al. d) do Código de Processo Civil: é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.

Considerando que a jurisprudência se vem pronunciando, pacificamente, sobre o que deve entender-se por omissão de pronúncia para efeitos de reconhecimento deste tipo de nulidade, limitar-nos-emos, como enquadramento jurídico, a referir o seguinte: recaindo sobre o juiz o dever de resolver todas as questões que as partes hajam submetido à sua apreciação exceptuadas aquelas cuja decisão esteja ou fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. art. 608.º, n.º 2 do CPC), impõe-se-lhe que aprecie toda a matéria de facto que as partes aleguem e que analise todos os pedidos que, em consequência dessa alegação, lhe formulem, excepto se tais alegações ou pedidos forem irrelevantes ou a sua apreciação e/ou decisão se tenha tornado inútil por força do enquadramento jurídico escolhido ou na sequência de resposta dada previamente a outras questões.

Em suma, o dever de pronúncia impõe que o juiz aprecie «todas as pretensões processuais formuladas pelas partes que exigem decisão do julgador, bem como, ainda, os pressupostos processuais [gerais e específicos] debatidos nos autos, sendo que não podem confundir-se aquilo que são as questões que os litigantes submetem à apreciação e decisão do tribunal com o que são as questões de facto ou de direito, os argumentos, ou os pressupostos em que cada parte funda a sua posição nas questões objecto de litígio» (1)

Do que vimos expondo conclui-se, assim, que não padecerá do vício de nulidade por omissão de pronúncia a sentença em que o juiz apreciando na decisão todos os problemas ou questões fundamentais objecto de litígio, não se pronunciou, todavia, sobre a bondade de todas as considerações, razões ou argumentos apresentados pelas partes, por aquela nulidade pressupor, necessariamente, uma omissão absoluta da questão (ões) fundamental (ais) colocada (as). Ou seja, só há omissão de pronúncia e, consequentemente, nulidade da sentença, se no processo tiver sido suscitada por qualquer uma das partes uma questão e esta não seja apreciada pelo Tribunal nem, por este, seja expressamente declarada prejudicada.

Tendo presente as considerações acabadas de expor, e analisado o acórdão recorrido, concluímos que o Tribunal Arbitral começou por apreciar e decidir a excepção de incompetência suscitada pela Administração Tributária, julgando-a improcedente.

Posteriormente, enunciou a “Questão Decidenda”, reconduzindo-a à questão de “saber se os encargos financeiros incorridos pela Requerente respeitantes à aquisição de participações sociais, no período de 2004 a 2007, podem ser deduzidos à matéria colectável, atenta a revogação do artigo 32.º, n.º 2 do EBF”.

Por fim, analisou e decidiu a questão por si enunciada, nos termos que deixámos reproduzidos no ponto 3. supra.

É conta a validade dessa decisão que se insurge nesta Impugnação a Administração Tributária e Aduaneira, alegando, como vimos, que na sua resposta suscitou a questão da inconstitucionalidade do artigo 32.º, n.º 2 do EBF na interpretação perfilhada pela Impugnada e que esta foi absolutamente ignorada.

Mais alegou que aquela questão - substanciada na violação de vários princípios constitucionais - não ficou prejudicada pelo julgamento realizado, por nenhuma relação de dependência jurídica existir entre a interpretação da lei em torno do thema decidendum feita pelo Tribunal Arbitral e as questões de inconstitucionalidade suscitadas pela Impugnante que justificasse a preterição ou omissão suscitada.

Para a Impugnada a pretensão da Impugnante não tem fundamento, aduzindo neste sentido, se bem interpretamos a sua resposta, três argumentos nucleares.

O primeiro traduz a sua posição de princípio relativamente ao concreto fundamento da presente Impugnação: independentemente do objecto do litígio e da apreciação de mérito realizada, é irrelevante apurar se foi ou não invocada qualquer inconstitucionalidade, por essa alegação não constituir uma questão, mas um mero argumento, o que significa que o Juiz, mesmo que tenha sido esgrimido pelas partes, não está vinculado à sua apreciação.

O segundo e o terceiro prendem-se já com o concreto objecto do litígio e com o teor da decisão de mérito proferida e reconduzem-se, em palavras nossas, no seguinte: a qualificação das suscitadas inconstitucionalidades como questões pressupunha uma densificação de facto e de direito que a Impugnante não realizou, nem na resposta no processo arbitral, nem nesta Impugnação; tendo o Tribunal Arbitral conhecido a questão essencial que lhe estava imposto decidir, convocando outros princípios constitucionais, deixou firmado o entendimento de que a interpretação do artigo 32.º, n.º 2 do EBF, que perfilhou no seu julgamento, não padece de inconstitucionalidade.

Nenhum destes argumentos merece o nosso acolhimento.

Para que se perceba bem esta nossa posição, importa realçar, antes de mais, que a resposta apresentada pela Autoridade Tributária e Aduaneira ao pedido de anulação da decisão da Reclamação Graciosa e dos actos de autoliquidação de IRC se encontra ancorada em duas grandes vias de ataque. Por um lado, a título de excepção, suscitou a incompetência do Tribunal Arbitral para apreciar o reconhecimento do direito peticionado. Por outro, a título de impugnação, colocou em causa a interpretação do artigo 32.º, n.º 2 do EBF defendida pela ora Impugnada e em que estão suportados os pedidos formulados.

No que respeita à segunda das indicadas vias de ataque ou “contestação” - a primeira é irrelevante porque a decisão sobre a mesma tomada não integra o objecto desta Impugnação de Decisão Arbitral - a então Requerida suportou-a em dois planos: ilegalidade da interpretação por não ter acolhimento no próprio normativo invocado e inconstitucionalidade da norma quando interpretada no sentido preconizado pela então Requerente/Impugnada.

Nesta última vertente, aduziu a Impugnante na sua resposta, com pertinência para a questão que ora nos ocupa, tudo quanto se deixou reproduzido no ponto 3.2. que, atenta a sua extensão, nos limitamos aqui a convocar.

Posto isto, no que respeita ao argumento de princípio - é irrelevante apurar se foi ou não invocada qualquer inconstitucionalidade por essa alegação não constituir questão, mas mero argumento, e, consequentemente, o Juiz não está vinculado à sua apreciação - a falta de fundamento da posição da Impugnada é manifesta.

Na verdade, concordando com a Impugnada quando diz que são as questões, não os argumentos, que vinculam o juiz a um dever de apreciar - decisão que, em bom rigor, deverá ser feita por referência aos principais argumentos aduzidos pelas partes - e que não é o facto de o Tribunal ignorar ou não mencionar um determinado argumento que, per se, preenche as apertadas exigências da declaração de nulidade da decisão, discordamos que a invocação de que uma norma, quando interpretada num determinado sentido, é inconstitucional, seja um mero argumento.

Ou seja, essa alegação de inconstitucionalidade, por princípio, é uma verdadeira questão, ainda que a sua apreciação fique dificultada ou votada ao insucesso por falta de densificação de facto e/ou de direito, o que, como está bem de ver, é já outra questão.

Chamando à colação a distinção entre questões e argumentos suscitados pelas partes, salientamos que, nos termos do preceituado no artigo 608.º, n.º 2, do CPC, são questões os pontos de facto ou de direito, atinentes ao pedido, à causa de pedir e às excepções; são argumentos os motivos ou razões que fazem sustentar a pretensão inerente às questões.

Como a doutrina e a jurisprudência não se cansam de afirmar as questões “reportam-se aos pontos fáctico-jurídicos estruturantes da posição das partes, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir, pedido e exceções, não se reconduzindo à argumentação utilizada pelas partes” (2)

Ora, da resposta dada por reproduzida no ponto 3.3. deste acórdão é patente que foram invocadas várias inconstitucionalidades, todas imputadas ao artigo 32.º do EBF, se interpretado no sentido defendido pela Impugnada, sendo igualmente evidente que, com fundamento nessa alegação, pretendia aquela ver mantidos na ordem jurídica os actos impugnados.

Donde, estamos perante uma verdadeira questão e não face a um mero argumento.

Aliás, como este Tribunal Central tem vindo a sublinhar, a constitucionalidade da norma constitui, inclusive, questão de conhecimento oficioso, uma vez que, por força do preceituado no artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa (CPR), nos “feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”.

Tudo, pois, para dizer, que a alegação de constitucionalidade não deve ser equacionada como um argumento e, neste contexto, não deve ser ignorada pelo Juiz perante quem é suscitada.

Questão distinta, para que nos remete o segundo dos fundamentos - a ser uma questão teria que ter sido devidamente densificada, de facto e de direito, o que não aconteceu, nem na resposta apresentada no processo arbitral nem nesta Impugnação da Decisão arbitral - é a de saber se essa alegação deve ser substanciada e, não o sendo, qual a opção que o Tribunal pode adoptar.

Também aqui discordamos da Impugnada, sendo que, para refutar a sua tese argumentativa não é necessário discutirmos se a questão deixa de poder ser qualificada como tal se não for, de todo ou suficientemente, fundamentada, ou se essa falta de densificação apenas determinará a sua manifesta improcedência.

É que, salvo o devido respeito, nem sequer se logra compreender, no caso concreto, o argumento adiantado pela Impugnada.

Efectivamente, como resulta da transcrição realizada no ponto 3.3., que aqui convocamos de novo, não há qualquer falta de concretização na alegação da questão de inconstitucionalidade, estando, outrossim, devidamente evidenciados na resposta apresentada no processo arbitral, os factos e argumentos jurídicos em que a Autoridade Tributária e Aduaneira sustenta a invocada violação dos princípios constitucionais de legalidade tributária, reserva da lei fiscal, separação de poderes, da capacidade contributiva e da tributação pelo lucro real.

É extensa a argumentação apresentada. É clara indicação dos preceitos legais. São vários os contra-argumentos apresentados aos argumentos de “constitucionalidade” adiantados pela então Requerente. E, por fim, cumpre ainda salientar, são múltiplos os apoios jurisprudenciais citados, especialmente acórdãos do Tribunal Constitucional, em ordem a “enriquecer” a argumentação.

Impõe-se, assim, neste contexto factual e jurídico, não só concluirmos que a alegação de inconstitucionalidade da norma, se interpretada num determinado sentido perfilhado pela Impugnada é uma verdadeira questão, como, que a, mesma se mostra amplamente densificada ou concretizada no local próprio, isto é, na resposta apresentada no processo arbitral, sendo irrelevante que na petição inicial destes autos o esteja ou não, por não caber a este Tribunal decidir do mérito da mesma.

Por fim, quanto ao terceiro argumento - o Tribunal Arbitral conheceu da questão essencial que lhe estava imposto decidir e ao fazê-lo, designadamente convocando outros princípios constitucionais, deixou firmado o entendimento de que não julga padecer de inconstitucionalidade a interpretação do artigo 32.º, n.º 2 do EBF que perfilhou no seu julgamento - também não podemos concordar com a Impugnada quando afirma que o Tribunal conheceu a questão essencial.

Tudo quanto o Tribunal Arbitral fez foi apreciar e decidir uma das questões essenciais colocadas no processo, como, desde logo, deixou indiciado na delimitação do objecto do litígio em que surge identificada como “a principal questão”.

Diz a Impugnante, e com razão, questões do processo não são apenas as suscitadas pelos Requerentes. São questões do processo todas as suscitadas pelas partes e são todas estas questões que o Juiz tem que decidir, salvo se prejudicada pela decisão dada às demais.

Ora, que essa questão não ficou prejudicada pelo julgamento efectuado pelo Tribunal Arbitral resulta, desde logo, do facto de a decisão proferia se encontrar suportada precisamente na norma cuja inconstitucionalidade vinha suscitada e na decisão ter sido aplicada com o sentido invocado pela Impugnante como desconforme os princípios constitucionais invocados.

Este é, aliás, um aspecto que assume no presente caso extrema relevância por duas ordens de razões.

A primeira prende-se com a distinção entre nulidade de sentença e erro de julgamento, sendo que, como temos vindo a defender “Se o Tribunal equacionou a questão suscitada pela Impugnante, a enunciou como questão a decidir e, posteriormente, decide expressamente não proceder à sua apreciação, por a julgar prejudicada por força de decisão anteriormente tomada em relação a outra questão, não há nulidade por omissão de pronúncia mas, eventualmente, erro de julgamento, independentemente da questão que se julgou prejudicada ser ou não de conhecimento oficioso.” (3)

Ou seja, se o Tribunal Arbitral tivesse identificado a questão de inconstitucionalidade como questão a decidir e posteriormente a tivesse julgado expressamente prejudicada não estaríamos perante uma questão de nulidade de sentença por omissão de pronúncia, mas de (eventual) erro de julgamento, insusceptível de ser sindicado por este Tribunal Central Administrativo Sul, atentos os poderes e competências que lhe estão atribuídos pelo RJAT.

Note-se que o acórdão arbitral não identificou as inconstitucionalidades suscitadas como questões a decidir pelo que, a sua decisão limitada à conclusão de julgar prejudicada “por inútil, as restantes questões de violação de lei colocadas pela Requerente”, não pode, formal ou substancialmente, assumir qualquer significado para a decisão em apreciação.

A segunda razão que se impõe salientar está relacionada com a ideia de que a própria decisão do Tribunal Arbitral também se mostra ancorada em preceitos constitucionais, o que significa que entende que a interpretação do artigo 32.º, n.º 2 do EBF que perfilhou no seu julgamento não viola qualquer princípio constitucional.

Em suma, se bem interpretamos as alegações da Impugnada nesta parte, a entender-se que há uma questão e mesmo que não tenha sido directamente apreciada, a posição do julgador sobre essa questão (de inconstitucionalidade) resulta implícita do julgamento que fez, tanto mais que, este, também e louva em princípios constitucionais.

Discordamos novamente. Se há questão suscitada pelas partes, ao juiz impõe-se o dever de expressamente a apreciar ou de expressamente a julgar prejudicada, sob pena de violação do dever consagrado no artigo 608.º do CPC.

Aliás, para além da existência de um dever de pronúncia e de este se mostrar violado sempre que não haja pronuncia expressa, como é o caso, o entendimento professado pela Impugnada conduziria a que nunca houvesse omissão de pronúncia se o Juiz não aprecie uma questão de inconstitucionalidade que lhe seja expressamente invocada, ainda que fiquemos sem saber porque é que o Tribunal a não julgou inconstitucional, com os efeitos negativos daí decorrentes do ponto de vista de um eventual recurso com esse fundamento.

E se, no ordenamento jurídico em geral, esse entendimento não encontra qualquer suporte legal, são sobremaneira acrescidos os impactos negativos que projecta quando se trata do especial regime jurídico em aplicação, uma vez que, como é sabido, dessa invocação e da decisão que da sua apreciação decorra está dependente a utilização de um dos mecanismos de sindicância da decisão arbitral, isto é, o recurso para o Tribunal Constitucional (artigo 25.º, n.º 1, in fine, do RJAT).

Acresce que, como se colhe da leitura da sentença impugnada, os princípios constitucionais a que a Impugnada se refere, limitados ao princípio da confiança jurídicas e de legitimas expectativas, não surgem invocados na sentença arbitral para sustentar a falta de fundamento da inconstitucionalidade suscitada pela Impugnante, isto é, para expressamente a afastar, antes constitui uma manifestação da adesão do Tribunal exactamente à tese interpretativa da Impugnante.

Por fim, face à alegação da Impugnada, importa ainda consignar que a Impugnante, na sua resposta, não se quedou por uma argumentação tendente a afastar a interpretação que, com base no princípio da confiança e salvaguarda de direitos adquiridos, a Impugnada aduzira e o Tribunal Arbitral acolheu como fundamento nuclear da sua decisão. Como se constata, em especial do teor dos artigos 38.º a 144.º da resposta apresentava no processo arbitral, a Impugnada foi bem mais longe, suscitando expressamente a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 32.º do EBF, se interpretado naquele sentido, por violação dos princípios da legalidade, da capacidade contributiva, da separação de poderes e da tributação do rendimento segundo o lucro real e da igualdade na vertente fiscal, enunciando, outrossim, os fundamentos de facto e, muito especialmente, de direito, em que se louvava a sua arguição, desta forma cumprindo suficientemente o dever de fundamentação que a Impugnada julga não observado.

Concluindo.

Tendo sido suscitada pela Impugnante no processo arbitral a questão de inconstitucionalidade de uma norma se interpretada no sentido preconizado pelo Impugnado (artigo 32.º, n.º 2 do EBF) e tendo o Tribunal Arbitral fundado a sua decisão na aplicação dessa concreta norma com aquela interpretação, impunha-se que o Tribunal Arbitral a tivesse apreciado ou a julgasse (bem ou mal, é irrelevante), prejudicada.

Não o tendo feito, há que concluir que o Tribunal Arbitral violou o dever de pronúncia que sobre si recai e, consequentemente, pela nulidade do acórdão arbitral, nos termos do artigo 125.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável ex vi artigo 30.º do RJAT.

Julgar-se-á, pois, a final, integralmente procedente a presente Impugnação da Decisão Arbitral.

4. 2. Da dispensa do remanescente da taxa de justiça.

Na parte final do ser articulado e nas suas conclusões, veio a Impugnante requerer a este Tribunal Central Administrativo Sul que fosse dispensada do pagamento do remanescente da taxa de justiça “nos termos do art.º 6.º n.º 7 do Regulamento de Custas Processuais, tendo em consideração o valor e a natureza da causa.»

Considerando que a Impugnada venceu a acção, o pedido ora formulado, no que a si respeita, carece de sentido de apreciação, atento o disposto no artigo 14.º do Regulamento das Custas Processuais (“Nas situações em que deva ser pago o remanescente nos termos do n.º 7 do artigo 6.º, o responsável pelo impulso processual que não seja condenado a final fica dispensado do referido pagamento, o qual é imputado à parte vencida e considerado na conta a final”).

Todavia, como é sabido, a dispensa do pagamento de taxa de justiça, prevista no artigo 6.º, n.º 7 do RCP - nas causas de valor superior a (euro) 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento – pode ser determinada a pedido das partes ou oficiosamente decidida pelo Tribunal.

Considerando o que ficou exposto, entende-se que no caso concreto essa dispensa deve ser determinada, uma vez que nem a única questão apreciada pelo Tribunal não revestiu complexidade relevante ou, pelo menos, que justifique que seja imposto o remanescente da taxa de justiça, nem este surge como corolário legitimo de uma conduta processual da Impugnada merecedora de censura, já que se limitou a defender-se nos autos de uma pretensão que contra si foi aduzida.

Em suma, sem prejuízo da natureza excepcional que a dispensa do remanescente da taxa de justiça possui, justificar-se-á sempre que a causa revista menor complexidade e a conduta processual das partes seja isenta de reparo.

Donde, não apresentando a questão apreciada nos autos especial complexidade e não sendo censurável a intervenção processual da Impugnada, entende-se que o valor do remanescente da taxa de justiça é desproporcionado em face do serviço prestado, considerando-se adequado dispensar a Impugnante do pagamento do remanescente da taxa de justiça, na parte que corresponderia ao excesso sobre o valor tributário de € 275.000.

5. Decisão

Face ao exposto, acordam, em conferência, os Juízes da 2.ª Subsecção da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, julgando totalmente procedente a presente Impugnação Judicial, em anular, por omissão de pronúncia, o acórdão proferido no processo arbitral n.º 35/2019-T, determinando, em conformidade, para apreciação da questão de inconstitucionalidade omitida, a remessa dos autos ao CAAD.

Custas pela Impugnada, que fica dispensada de pagamento do remanescente da taxa de justiça.

Registe e notifique.

Lisboa, 7 de Maio de 2020


(Anabela Russo)

(Vital Lopes)

(Luísa Soares)


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(1) Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 17-9-2015, processo 637/15, integralmente disponível em www.dgsi.pt.

(2) António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Reimpressão, Almedina, Coimbra, 2019, pág. 727.

(3) Neste sentido, entre muitos outros, os acórdãos deste Tribunal Central Administrativo Sul, proferidos a 18-12-2014, 22-10-2015 e 29-6-2017, respectivamente nos processos nos 8070/14, 8101/14 e 8595/15, todos integralmente disponíveis em www.dgsi.pt