Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:824/14.1BELLE
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:06/01/2017
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
Sumário:I - Só há cumulação real de pedidos quando o autor pretende simultaneamente mais do que uma prestação, quando formula mais do que um pedido substancial, mais do que um pedido a respeito da relação jurídica material controvertida.

II – No caso presente, há dois pedidos em cumulação real, pois existem duas relações jurídicas materiais subjacentes, a saber: a referente ao ato administrativo invalidado e a relativa à lentidão anormal do TCA Sul e do Tribunal Administrativo de Círculo no âmbito do processo que conduziu à invalidação do ato administrativo.

III - Mas aplicam-se ali as mesmas normas jurídicas, que são as dos artigos 1º a 10º do RRCEEP/2007; no caso do pedido e causa de pedir referentes à violação do direito fundamental previsto no artigo 20º/4 da CRP, o artigo 12º do RRCEEP remete para aqueles artigos 1º a 10º, que são igualmente aplicáveis à relação jurídica do direito a reparação de danos decorrente (não da inexecução ilícita da sentença anulatória, mas) das ilegalidades do ato administrativo que o TCA Sul e o Tribunal Administrativo de Círculo declararam nulo.

IV – Pelo que é legal (cf. artigo 4º, nº 1, al. b), do CPTA) a presente cumulação de pedidos indemnizatórios.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

MARIA ……………………………, contribuinte fiscal n.º ……………., residente em Loulé, intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de Loulé ação administrativa comum contra

ESTADO PORTUGUÊS.

O pedido formulado foi o seguinte:

Condenação da entidade demandada ao pagamento da indemnização para reparação:

- Dos danos patrimoniais, que liquida no total de € 57.118,50: € 775,89, correspondente ao abono de família que, como alega, teria direito a receber, e não recebeu, entre Fevereiro de 2007 e Março de 2010 (artigo 36.º); € 40.506,30, correspondente à quantia que “pagou a mais”, a título de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), por ter sido aplicada, sobre a quantia total das prestações recebidas (como “rendimento anual”) de € 170.000,00, a taxa de retenção na fonte que se encontrava em vigor no ano de 2014, e desconsiderado um elemento que antes compunha o agregado familiar (cfr. artigos 37.º a 41.º); € 15.836,40, a título de compensação face às despesas com taxas de justiça e encargos e com honorários do mandatário judicial, no âmbito do procedimento administrativo disciplinar e do processo judicial para impugnação desse ato administrativo ilegal (artigos 62.º a 72.º); € 16.728,14, a título de juros de mora vencidos sobre todas estas quantias;

- Dos danos não patrimoniais, em montante a fixar pelo tribunal (mas que estima em € 75.000,00), que alega ter sofrido: Causados pela decisão ilegal de aplicação da pena disciplinar de aposentação compulsiva: a privação do exercício da profissão e, com ela, do rendimento que auferia, a perda dos bens pessoais que estimava e dos quais foi “forçada a desfazer-se”, o sofrimento emocional, a humilhação pública e a “perda” da sua “imagem bancária” (cfr. artigo 89.º da petição inicial); Causados pela demora de decisão no processo judicial (pela qual diz ter aguardado sete anos e quatro meses).

Por despacho de 09-03-2016, o referido tribunal veio a prolatar decisão, onde absolveu o réu da instancia por cumulação ilegal de pedidos.

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Inconformado com tal decisão, o autor interpôs o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

1. A douta sentença faz errada aplicação do disposto no art. 4 do CPTA, que instituiu o princípio da livre acumulação simples de pedidos na ação administrativa comum;

2. Nos presentes autos, todos os pedidos se fundam na mesma relação jurídica material controvertida ou causa de pedir – a ilicitude da aposentação compulsiva e suas consequências – mas a cumulação também é admissível pois se trata do conhecimento dos mesmos factos e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito;

3. Não está em causa a função jurisdicional, mas a responsabilidade da administração pela ilegalidade os atos ilícitos e culposos que praticou, incluindo os que fizeram concorrer para a demora da realização da justiça;

4. Todos os pedidos formulados são de indemnização pelos danos causados por tais atos, não havendo incompatibilidade entre os pedidos de compensação de impostos, de despesas suportadas com o processo e de indemnização por danos morais, agravadas pelo tempo.

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O réu, através do M.P., contra-alegou, concluindo assim:

1. O princípio da livre cumulação de pedidos está sujeito à verificação de (i) identidade de causa de

pedir; (ii) relação de prejudicialidade ou dependência entre pedidos; (iii) apreciação dos mesmos factos; (iv) interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras do direito.

2. A causa de pedir é o facto jurídico concreto ou específico invocado pelo autor como fundamento da sua pretensão; não é um facto jurídico como categoria abstracta, mas o facto jurídico concretamente invocado, aquele de que emerge o direito do autor e fundamenta legalmente o seu pedido.

3. No caso dos autos, e ainda que decorrentes da mesma situação de vida (a aposentação da ora Autora), são diversos os factos jurídicos que fundamentam cada uma das pretensões da Autora: serão eles (a) a (alegada) execução defeituosa de uma sentença judicial, (b) a prática de um acto administrativo (alegadamente) ilegal, (c) a (alegada) actuação processual ilícita do Ministério da Justiça e (d) a (alegada) excessiva morosidade de um processo judicial.

4. Não existe igualmente qualquer relação de prejudicialidade ou dependência entre pedidos já que

nenhum deles depende da apreciação dos demais: cada um pode ser apreciado de per se independentemente da solução dada aos restantes pedidos.

5. Finalmente, as regras de direito aplicáveis a cada um dos factos indicados pela Autora são diferentes entre si: (a) cumprimento de uma decisão proferida por um tribunal administrativo encontra o seu fundamento no disposto no art.º 173.º do CPTA, (b) a conduta da administração no processo disciplinar que ditou a aposentação da Autora, e a conduta no decurso do processo judicial terá que ser apreciada à luz do disposto nos art.ºs 7.º a 10.º da Lei n.º 67/2007, de 31/12, e (c)os (alegados) danos ilicitamente causados pela administração da justiça terão ser apreciados nos termos do disposto no art.º 12.º da citada Lei n.º 67/2007.

6. Ao interpretar da forma acima mencionada o art.º 4.º do CPTA bem andou o Tribunal a quo e, considerando a postura assumida pela Autora na sequência da notificação que lhe foi efectuada nos

termos do disposto no art.º 47.º, n.º 3, do CPTA, outra não podia ter sido a decisão que não a da absolvição da instância do Réu Estado Português.”

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Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

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Delimitação do objeto do recurso - questões a apreciar:

Cabe, ainda, sublinhar que os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido e respetivos fundamentos, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso (cfr. artigos 144º/2 e 146/4 do CPTA, 5º, 608º/2, 635º/4/5, e 639º do CPC/2013, “ex vi” artigos 1º e 140º do CPTA), alegação que apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas.

Por outro lado, nos termos do artigo 149.º do CPTA, o tribunal “ad quem”, em sede de recurso de apelação, não se limita a cassar a decisão judicial recorrida, porquanto, ainda que a revogue ou declare nula, deve decidir o objeto da causa apresentada ao tribunal “a quo”, conhecendo de facto e de direito, reunidos que se mostrem no caso os pressupostos e condições legalmente exigidos.

As questões a resolver neste recurso são as identificadas no ponto II.2, onde as apreciaremos.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

Ora, o presente recurso de apelação coloca a seguinte questão:

Erro de direito, por violação do artigo 4/1 do CPTA.

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O problema a resolver é de Direito Processual (Administrativo).

Estamos perante uma ação administrativa comum (artigos 37º ss do CPTA), para efetivação da responsabilidade civil extracontratual do Estado (por atos de gestão pública) (artigo 37º/2/f) do CPTA), no âmbito do CPTA/2002-2003 e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais/2002-2003.

A A. formula contra o Estado apenas um pedido de indemnização compósito, de condenação no pagamento de certas quantias, por referência a várias e distintas condutas danosas imputadas ao Estado (causas de pedir), M.J., M.P. e Jurisdição Administrativa:

-As concretas ilegalidades de um ato administrativo do M.J., já anulado por esta jurisdição (com seus danos consequentes) (cf. artigos 12º e 1º a 10º do RRCEEP/2007);

-A morosidade na administração da justiça para anular tal ato administrativo ilegal, em sede da ação de anulação do mesmo (com seus danos consequentes) (cf. artigos 1º a 10º do RRCEEP);

-Litigância abusiva por parte do Estado/M.J.-réu/M.P. nessa ação (com seus danos consequentes), integrada no artigo 12º cit. Neste último caso, parece de entender que caberia em litigância de má fé, talvez aqui irrelevante de um modo autónomo.

No essencial, as indemnizações solicitadas pela autora resultam

(i) da ilegalidade do ato administrativo ilegal anulado (responsabilidade civil extracontratual por conduta da função administrativa) e

(i) da lentidão desta Jurisdição em julgar o processo impugnatório respetivo, onde se pode incluir ainda a condita ou o resultado da suposta conduta dilatória do M.P. (responsabilidade civil extracontratual por conduta das funções judiciárias)

O Tribunal Administrativo de Círculo entendeu que há vários pedidos e uma cumulação de pedidos ilegal, com referência ao artigo 4º/1 do CPTA cit. (conexão objetiva), porque

(i) haveria várias causas de pedir e

(ii) os supostos diferentes pedidos não teriam qualquer relação entre si (de dependência, de prejudicialidade, a mesma relação jurídica material controvertida),

(iii) não se tratando de aplicar na ação normas jurídicas iguais.

O Tribunal Administrativo de Círculo confundiu ou igualizou, na sua fundamentação, (i) o direito à reparação dos danos causados por atos administrativos ilegais (responsabilidade civil) com (ii) a reconstituição da situação atual hipotética a que se refere o artigo 173º/1 do CPTA (sobre esta diferença, cf. hoje MARIO AROSO/C.C., Comentário ao CPTA, 4ª ed., 2017).

E, assim, o Tribunal Administrativo de Círculo descortinou um pedido que não foi feito na petição inicial: “de condenação da Administração à adoção das condutas necessárias ao restabelecimento dos direitos e interesses violados com a prática do ato administrativo ilegal, (…) mediante a reconstituição da situação (tributária) atual hipotética, fundado na responsabilidade pelos danos causados pela prática de um ato administrativo ilegal”.

A recorrente discorda do Tribunal Administrativo de Círculo, porque está em causa uma mesma relação jurídica material, os mesmos factos e o mesmo direito.

Vejamos, pois.

Será que a petição inicial contém uma cumulação (real) de pedidos? Não será apenas um só pedido contra o Estado, condenação no pagamento de certos valores parcelares a título de indemnização por factos ilícitos, ainda que com diversas factualidades na causa de pedir?

Pedido, em teoria do direito processual, é o efeito prático-jurídico que o autor pretende retirar da ação interposta, traduzindo-se na providência que solicita ao tribunal (ALBERTO DOS REIS, CPCA, 2º, pág. 338; MARIO AROSO, Manual…, nº 2.4); ou na forma de tutela jurisdicional requerida ao tribunal (cf. M. TEIXEIRA DE SOUSA, Introdução…, pág. 23; ANTUNES VARELA et al., Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 245, e in RLJ, 115º, pág. 245).

Materialmente, o pedido corresponde ao direito invocado (direito subjetivo à reparação de danos; processualmente, corresponde à pronúncia jurisdicional (aqui é condenatória; cf. CASTRO MENDES, DPC, II, pág. 287; ANSELMO DE CASTRO, DPCD, I, pág. 201).

Por isso, só há cumulação real de pedidos quando o autor pretende simultaneamente mais do que uma prestação, quando formula mais do que um pedido substancial, mais do que um pedido a respeito da relação jurídica material controvertida (cf. ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código de Processo Civil, 3º, págs. 127 ss).

Pelo que concluímos que há aqui dois pedidos em cumulação real, pois existem duas relações jurídicas materiais subjacentes, a referente ao ato administrativo invalidado e a relativa à lentidão anormal do TCA Sul e do Tribunal Administrativo de Círculo.

Mas, ao contrário do que disse o Tribunal Administrativo de Círculo, aplicam-se ali as mesmas normas jurídicas, que são as dos artigos 1º a 10º do RRCEEP/2007; no caso do pedido e causa de pedir referentes à violação do direito fundamental previsto no artigo 20º/4 da CRP, o artigo 12º do RRCEEP remete para aqueles artigos 1º a 10º, que são igualmente aplicáveis à relação jurídica de direito a reparação de danos decorrente (não da inexecução ilícita da sentença anulatória, mas) das ilegalidades do ato administrativo que o TCA Sul e o Tribunal Administrativo de Círculo declararam nulo.

Assim, a procedência dos pedidos condenatórios em reparação de danos, com causas de pedir diferentes, dependem aqui essencialmente ou sobretudo da interpretação e aplicação das mesmas normas jurídicas (os artigos 1º a 10º do RRCEEP/2007).

E tanto basta para considerar que o artigo 4º/1/b) do CPTA/2002 é respeitado na petição inicial.

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III. DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os juizes deste Tribunal Central Administrativo Sul em, concedendo provimento ao recurso, julgá-lo procedente e revogar o despacho recorrido.

Sem custas.

Lisboa, 01-06-2017

(Paulo Pereira Gouveia - relator)

(Nuno Coutinho)

(J. Gomes Correia)