Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:714/19.1BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:02/27/2020
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:AÇÃO POPULAR;
INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÉNEOS;
ILEGITIMIDADE PROCESSUAL ATIVA.
Sumário:
I – Nos interesses difusos em sentido estrito e nos interesses comuns de grupo, a satisfação de um titular implica necessariamente a satisfação de todos os titulares. O objeto do interesse ou direito é indivisível em ambos os casos.

II – Os interesses individuais homogéneos, que estão apartados da ação popular, são os interesses de grupo, categoria ou classe de pessoas determinadas ou determináveis que compartilhem prejuízos ou interesses divisíveis e de origem comum.

III - O interesse de vendedores de obras de arte em não perder clientela e rendimentos é apenas um interesse comercial e económico, sem conexão ou correspondência alguma com interesses difusos. Para este tipo de situações, o sistema jurídico prevê o litisconsórcio ativo dos particulares com interesse pessoal, e não a ação popular.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA 1.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL

I – RELATÓRIO

E............, com os demais sinais nos autos, intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de LISBOA PROCESSO CAUTELAR, invocando o artigo 9º/2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e a proteção dos interesses comuns dos seus Associados, “procurando restaurar a legalidade formal e material no bloco legislativo que lhes é aplicável”, contra

MINISTÉRIO DA ECONOMIA (ASAE).

A pretensão formulada perante o tribunal a quo foi a seguinte:

- suspensão com força obrigatória geral, nos termos e para os efeitos do artigo 130º, nº 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, da norma contida no artigo 2º, nº 2 do Regulamento da ASAE nº 314/2018, de 25 de Maio, conquanto ela abranja no âmbito subjetivo regulatório, relativo às medidas contra o Branqueamento de Capitais e o Financiamento do Terrorismo, os “comerciantes que procedam à venda de obras de arte”.

O tribunal a quo decidiu julgar verificada a exceção de ILEGITIMIDADE da Requerente COMO AUTORA POPULAR, absolvendo, em consequência, a Entidade Requerida da instância.

Inconformada, a ré interpôs o presente recurso de apelação contra aquela decisão, formulando na sua alegação o seguinte prolixo quadro conclusivo:

A.A Recorrente é uma associação de galeristas de arte, i.e., de profissionais dedicados à promoção e divulgação da arte nacional e internacional e à comercialização de obras de arte (cfr. facto provado n.º 2 na Sentença).

B.O objeto social da Recorrente compreende “Apoiar a criação artística, a sua projeção, promoção e difusão, e o comércio de obras de arte.”

C.A Recorrente requereu providência cautelar conservatória de suspensão de eficácia, com força obrigatória geral, da norma de incidência subjetiva vertida no artigo 2.º, n.º 2, do seu Regulamento n.º 314/2018, de 25 de maio, aprovado pela ASAE, relativo aos deveres gerais e específicos de prevenção e combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo. O artigo 2.º, n.º 2 sujeitou “os comerciantes que procedam à venda (…) de obras de arte” ao cumprimento das disposições do Regulamento, sem que, para tanto, dispusesse de habilitação legal.

D.A Recorrente requereu a providência cautelar de suspensão da norma do Regulamento para tutela e no interesse da liberdade da iniciativa privada, do princípio da autogestão e do direito à propriedade privada, todos eles valores e direitos constitucionalmente protegidos.

E.O Tribunal a quo proferiu Sentença em 21 de junho de 2019, na qual decidiu pela extinção da instância, por entender, em suma, que a ora Recorrente não deteria a legitimidade processual ativa invocada para requerer a providência cautelar pretendida.

F.Entendeu o Tribunal a quo na Sentença que (i), por um lado, a ora Recorrente não reuniria os pressupostos subjetivos do “autor popular”, nos termos e para os efeitos do artigo 52.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, do artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto (LAP) e do artigo 9.º, n.º 2, do CPTA; e (ii), por outro, o interesse que a Recorrente pretende tutelar não ser (supostamente) tutelável por via da ação popular.

G.Tal decisão encontra-se viciada por erro quanto à matéria de Direito; e mesmo que assim não fosse, i.e., que a interpretação do Direito feito pelo Tribunal a quo fosse admissível, sempre redundaria numa violação fragrante do Direito Constitucional e, como tal, deveria ser recusada.

H.Na norma suspendenda, a ASAE veio a incluir no âmbito subjetivo do Regulamento n.º 314/2018, de 25 de maio “os comerciantes que procedam à venda (…) de obras de arte” sem que, para tanto, dispusesse de habilitação legal.

I.A Recorrente requereu a providência cautelar de suspensão da norma do Regulamento para tutela e no interesse da liberdade da iniciativa privada, do princípio da autogestão e do direito à propriedade privada, todos eles valores e direitos constitucionalmente protegidos.

J.O Tribunal a quo considerou na sua sentença que “a Requerente não está estatutariamente incumbida do dever de proteção de qualquer dos valores constitucionalmente protegidos por si invocados – liberdade de iniciativa económica privada ou direito à propriedade privada” e, portanto, “não se encontra observado no caso sub judice um principio de especialidade, legalmente exigido, na medida em que o exercício da ação popular, de acordo com a alegação da Requerente, não se circunscreve à respetiva área de ação principal”.

K.O Princípio da Especialidade encontra concretização no artigo 160.º do Código Civil.

L.Independentemente do seu caráter controverso quanto à capacidade de gozo das pessoas coletivas em respeito ao princípio da especialidade, dúvidas não restam, por um exercício exegético de interpretação simples, que o princípio da especialidade não esgota taxativamente a sua capacidade de gozo e de exercício, mas sim a enquadra – tendo a pessoa coletiva, em consequência, capacidade ainda para aquilo que seja conveniente ao seu objeto social.

M.É necessário sim um exercício de exegese mais enérgico para chegar à conclusão de que requerer a suspensão de eficácia de uma norma regulamentar que ilegalmente impõe significativas onerações à atividade de comércio de obras de arte não se encontra pelo menos dentro do feixe de atos convenientes ao cumprimento do fim e objeto social da Recorrente, expresso em “Apoiar (…) o comércio de obras de arte”.

N.Despender tempo e recursos, financeiros e humanos, para buscar a suspensão – e de seguida a eliminação – de um bloco regulamentar ilegal e que gravemente afeta a atividade dos comerciantes de obras de arte é, numa palavra, apoiar o comércio de obras de arte, reconduzindo-se à invocada defesa da liberdade de iniciativa privada e o princípio da autogestão dos comerciantes de obras de arte.

O.Mais: tendo em conta que está em causa a violação – clara e grosseira – do princípio da legalidade (por falta de lei habilitante que habilitasse (passe o pleonasmo) a ASAE a emanar uma norma de incidência subjetiva que afete os comerciantes de obras de arte no quadro do Regulamento) é evidente que este facto levaria, de per se, ao preenchimento do critério objetivo de legitimidade quanto à ação popular, porquanto de trata de tutelar em ultima ratio a legalidade democrática.

P.Encontra-se preenchido o pressuposto da legitimidade processual da Recorrente porque a ação judicial se enquadra efetivamente na “respetiva área de intervenção principal” (usando a expressão da Sentença recorrida, para efeitos precisamente contrários àqueles para que serviu).

Q.Errou, assim, o Tribunal a quo ao declarar a ilegitimidade processual ativa da ora Recorrente por violação do princípio da especialidade, uma vez que se encontra preenchido o requisito especial constante do artigo 3.º, alínea b), da LAP e do artigo 9.º, n.º 2, do CPTA. Deve, pois, a Sentença ser revogada, determinando-se a baixa dos autos à primeira instância para prosseguimento dos autos.

R.Acresce que a Sentença ora colocada em crise se encontra viciada por falta de fundamentação, na modalidade de contradição ou obscuridade.

S.O Tribunal a quo conclui, sem fundamentar, que os “interesses, por [alegadamente] não se integrarem no núcleo de bens e valores constitucionalmente protegidos definidos no artigo 9.º, n.º 2 do CPTA, [supostamente] não conferem à Requerente legitimidade para a instauração da presente ação cautelar”. A esta conclusão se chega, sem mais, e declaradamente sem mais, uma vez que o Tribunal a quo afirma não pretender dirimir a “questão de saber se tais interesses ou valores constitucionais que a Requerente expressamente refere estar a defender na presente ação cautelar integram ou não o núcleo de interesses que o artigo 9.º, n.º 2 (e, bem assim, o artigo 1.º da LAP) visam tutelar”.

T.Ora, salvo o devido respeito, não é admissível que a Sentença absolva o Requerido da instância com fundamento em ilegitimidade da Requerente (ora Recorrida) por alegadamente não prosseguir, com a providência cautelar, interesses enquadráveis no artigo 9.º, n.º 2, do CPTA e, ao mesmo tempo, se abster de avaliar se efetivamente esses interesses que a Requerente (ora Recorrida) prossegue se incluem (como é efetivamente o caso) no núcleo de bens e valores constitucionalmente protegidos definidos nessa mesma disposição do CPTA.

U.A falta de fundamentação é geradora de nulidade de sentença, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC ex vi legis artigo 1.º, do CPTA, cuja declaração se requer, devendo os autos baixar ao Tribunal a quo para reforma da Sentença.

V.Sem prejuízo da nulidade identificada e que se requer seja declarada em sede do presente recurso, a verdade é que a conclusão, sem mais, da Sentença quanto à suposta ausência de interesses da Recorrente enquadráveis no artigo 9.º, n.º 2, do CPTA, soçobram perante uma análise jurídica atenta.

W.O elenco de “valores e bens constitucionalmente protegidos” fundamento do uso da legitimidade ativa alargada oferecida pelo artigo 9.º, n.º 2 do CPTA, que corresponde aos do artigo 1.º da LAP e do artigo 52.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa não é taxativo.

X.A intenção do Legislador Constituinte (em primeiro lugar) e do Legislador Constituído nunca foi o de restringir o conjunto de valores e bens constitucionalmente protegidos tuteláveis através da legitimidade processual advinda da ação popular, mas sim, em listagem aberta, admitir a tutela jurisdicional de todos os valores e bens com material dignidade constitucional.

Y.A Recorrente socorreu-se da presente ação cautelar em busca de tutela para os princípios da liberdade de iniciativa privada, do princípio da autogestão e do direito à propriedade privada, lesados pela norma aprovada pela ASAE no Regulamento. Adicionalmente, a Recorrente buscou proteção judicial perante uma clamorosa violação do princípio da legalidade democrática e do princípio da legalidade estrita. Assim, a Recorrente pretende fazer suspender os efeitos de uma norma jurídica que reputa ilegal, inconstitucional e violadora dos aludidos bens jurídicos (e pretenderá de seguida, com a ação impugnatória correspondente, fazer cessar a sua vigência).

Z.Todos os bens jurídicos apontados pela ora Recorrente como interesse processual são bens constitucionalmente protegidos; todos eles, em consequência, são tutelados pela legitimidade popular conferida pelo artigo 52.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, pelos artigos 1.º, 2.º e 3.º da LAP e pelo artigo 9.º, n.º 2, do CPTA, em tudo coincidentes.

AA.Tendo errado o Tribunal a quo na aplicação do Direito ao considerar inadmissível a tutela dos interesses invocados ao abrigo do artigo 52.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, dos artigos 1.º, 2.º e 3.º da LAP e do artigo 9.º, n.º 2, do CPTA, deve a mesma ser revogada e ser determinada a baixa dos autos à Primeira Instância para prosseguimento dos autos.

BB.Subsidiariamente, Caso o supra exposto não proceda – o que não se concede nem concebe e apenas se alvitra por mero dever de patrocínio -, sempre se dirá que tal a interpretação seguida pela Sentença (rectius o critério normativo extraído da interpretação conjugada) dos artigos 1.º, 2.º e 3.º da LAP e do artigo 9.º, n.º 2 do CPTA, é desconforme com a Lei Fundamental por violação do direito de ação popular consagrado no artigo 52.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e do princípio da universalidade, devendo, em consequência, ser desaplicado no caso dos autos, nos termos do artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa.

CC.A interpretação inconstitucional a que se aluda é aquela da qual resulta que é inadmissível a tutela dos interesses invocados pela Recorrente (i.e., princípios da liberdade de iniciativa privada, do princípio da autogestão e do direito à propriedade privada) ao abrigo dos artigos 1.º, 2.º e 3.º da LAP e do artigo 9.º, n.º 2 do CPTA e de que a tutela dos interesses de pessoas coletivas em sede de ação popular depende de expressa menção desses interesses no objeto estatutário da pessoa em questão.

Em detalhe: o Tribunal a quo considerou na sua Sentença que o requisito de legitimidade processual ativa na ação cautelar deve ser aferido, quando o exercido o direito de ação popular seja feito por pessoa coletiva de tipo associativo, do seguinte modo:

A associação deverá encontrar-se em juízo para tutelar um dos bens expressamente contidos no artigo 1.º, n.º 2, da LAP, no artigo 9.º, n.º 2, do CPTA e no artigo 52.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa; e

A associação deverá conter expressa menção no seu objeto estatutário da defesa dos interesses invocados na ação para os quais requer tutela.

DD.Tal critério normativo é, no entanto, desconforme com o texto e com o espírito da Constituição da República Portuguesa, sendo desconforme com o direito de ação popular como configurado no seu artigo 53.º, n.º 3, e com o princípio da universalidade, vertidos respetivamente sobre os seus artigos 12.º e 13.º.

EE.A ação popular é vista pela Doutrina como uma figura ampla e aberta, “uma das mais importantes conquistas processuais para a defesa de direitos e interesses fundamentais constitucionalmente consagrados”.

FF.É entendimento doutrinal consistente, e em particular, de GOMES CANOTILHO, que “A ação popular não tem de limitar-se aos casos individualizados nas duas alíneas do n.º 3. A norma tem carácter exemplificativo, como decorre do seu próprio enunciado textual («nomeadamente») no final do proémio”.

GG.A doutrina jusconstitucional diga-se, é neste ponto relativamente consistente ao longo do tempo: ainda que não possa ser entendido como uma extensão da legitimidade processual sem limites, uma coisa é certa, dentro do critério do princípio da especialidade, as pessoas coletivas em geral têm direito de propor a ação popular para a tutela de interesses difusos e interesses constitucionalmente protegidos – entre os quais os constantes da listagem exemplificativa do artigo 52.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa. É esta a única interpretação conjugada dos artigos 1.º, 2.º e 3.º da LAP e do artigo 9.º, n.º 2 do CPTA que a Constituição da República Portuguesa consente.

HH.O critério normativo utilizado pelo Tribunal a quo na sua Douta Sentença viola o princípio da universalidade, tal como entre nós definido pelo artigo 12.º da Constituição da República Portuguesa. O princípio da universalidade como entre nós definido pelo artigo 12.º da Constituição da República Portuguesa implica que as pessoas coletivas tenham capacidade de gozo de direitos (e submissão de deveres) na medida em que estes não sejam “incompatíveis com a sua natureza”.

II.O exercício por pessoa coletiva do direito de ação popular é direta e expressamente consentido pelo texto fundamental, no artigo 52.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa não sendo, portanto, incompatível com a sua natureza.

JJ.O requerimento de uma providência cautelar cujo objeto é a suspensão de eficácia de uma norma regulamentar por violação da liberdade de iniciativa privada, do princípio da autogestão e do direito à propriedade privada de todos os comerciantes de obras de arte é uma forma útil e / ou conveniente de apoiar esse comércio de obras de arte. A exigência da inclusão de um exciso de objeto social que refira que esse objeto inclui “Promover a ação popular na tutela dos direitos e interesses constitucionalmente protegidos que fazem parte do âmbito da Associação” nos Estatutos da Requerente (ora Recorrente), como parece pretender o Tribunal a quo, é um manifestamente contrário ao sistema jurídico, ilegal e inconstitucional.

KK.É inadmissível e intolerável, e desconforme ao princípio da universalidade, que seja negado especificadamente à pessoa coletiva o direito de ação popular por incumprimento de um requisito formal (a expressão textual do seu objeto social) quando materialmente se encontra contido no mesmo a capacidade de gozo e de exercício dos direitos que forem úteis ou convenientes à prossecução do objeto social.

LL.É, ainda, frontalmente desconforme ao direito de ação popular consagrando na Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 52.º, n.º 3, o critério normativo utilizado pelo Tribunal a quo, por desconformidade com o seu espírito.

MM.O critério normativo extraído da interpretação conjugada dos artigos 1.º, 2.º e 3.º da LAP e do artigo 9.º, n.º 2, do CPTA, donde resulta a legitimidade subjetiva abstrata das pessoas coletivas nos autos de ação popular conforme aplicado pelo Tribunal a quo padece de inconstitucionalidade material por desconformidade com o direito de ação popular consagrado no artigo 52.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e do princípio da universalidade, devendo em consequência ser desaplicado nos termos e para efeitos do artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa.

NN.Tendo a Sentença adotado um critério normativo inconstitucional extraído por via interpretativa do quadro normativo descrito, resulta à saciedade que a Douta Sentença de que se recorre aplicou o Direito de forma contrária à Constituição, devendo também, por inconstitucionalidade, ser revogada e ser determinada a baixa dos autos à Primeira Instância para prosseguimento dos autos.

*

Cumpridos que estão neste tribunal superior os demais trâmites processuais, vem o recurso à conferência para o seu julgamento.

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Delimitação do objeto da apelação - questões a decidir

Os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal a quo, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso. Esta alegação apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de Direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas.

Assim, tudo visto, cumpre a este tribunal apreciar e resolver aqui o seguinte:

-Nulidade da decisão jurisdicional recorrida;

-Erro de julgamento de direito quanto à legitimidade processual ativa popular da requerente, por violação do princípio da especialidade em sentido amplo das pessoas coletivas, dos artigos 1º, 2º e 3º-b) da L.A.P., do artigo 9º/2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, e dos artigos 12º e 52º/3 da Constituição.

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II – FUNDAMENTAÇÃO

II.1 – FACTOS PROVADOS

O tribunal a quo fixou o seguinte quadro factual:

1 - Foi emitido pela ASAE o Regulamento dos deveres gerais e específicos de prevenção e combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo, publicado sob o nº 314/2018 no Diário da República, 2ª Série, nº 101, de 25/05/2018, de cujo teor se extrai, designadamente, o seguinte:

“(…)

Artigo 2.º

Âmbito

(…) 2-Em particular, não obstante a obrigação genérica referida no nº 1 do presente artigo, tendo em atenção o elevado valor unitário dos bens que transacionam, devem dar cumprimento às obrigações previstas no regulamento, nomeadamente, os comerciantes que procedam à venda de ouro e metais preciosos, de antiguidades, de obras de arte, de aeronaves, de barcos ou de veículos automóveis. (…)” – cfr. fls. 53 e seguintes dos autos (numeração do SITAF);

2 - Por deliberação da Assembleia Geral Extraordinária de 26 de março de 2019 foram aprovados os “estatutos” da associação ora Requerente, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido e do qual se extrai, designadamente, o seguinte:

“(…)

Artigo 2. Objeto

A Associação tem como objeto:

Apoiar a criação artística, a sua projeção, promoção e difusão, e o comércio de obras de arte.

Intervir e colaborar na defesa e proteção das obras de arte que fazem parte do património artístico e cultural nacional.

Prestar assistência técnica e profissional, em tudo o relacionado com a autenticação e valorização das obras de arte.

Promover a ética profissional.

Participar, associar-se, federar-se e, em geral, colaborar com entidades nacionais e internacionais afins. (…)

Artigo 4. Da qualidade de associado

São Associados todas as pessoas singulares que o requeiram e cumulativamente:

A título profissional realizam a atividade de Galeristas de Arte;

ii)Partilham dos fins e princípios da Associação (…)”

– cfr. fls. 34 e seguintes dos autos.

*

II.2 – APRECIAÇÃO DO RECURSO

Tendo presente o exposto, passemos agora à análise dos fundamentos do presente recurso.

1 – SOBRE A NULIDADE DA DECISÃO RECORRIDA, cf. o artigo 615º/1-b) do Código de Processo Civil

A decisão recorrida está fundamentada e não padece de qualquer contradição lógica ou obscuridade, ao contrário do invocado pela requerente.

Com efeito, o Tribunal Administrativo de Círculo disse claramente a p. 9 da sentença o motivo pelo qual considerou que a atuação da requerente não respeitava o artigo 3º-b) da L.A.P. (“a Requerente não está estatuariamente incumbida do dever de proteção de qualquer dos valores constitucionalmente protegidos por si invocados - liberdade de iniciativa económica privada ou direito à propriedade privada.”)

E fez tal afirmação, “independentemente” de ser correto ou incorreto que os interesses e valores constitucionais que a Requerente expressamente refere estar a defender no presente processo cautelar integrarem ou não integrarem o núcleo de interesses abrangidos pelo artigo 9º/2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (e, bem assim, pelo artigo 1º da LAP).

2 – SOBRE OS ERROS DE DIREITO IMPUTADOS À DECISÃO RECORRIDA – sobre a legitimidade processual ativa da aqui requerente ao abrigo do instituto da “ação popular”

2.1.

A requerente E............ diz expressamente no r.i. (cf. artigos 8 e 9 do r.i.) que visa aqui defender

(i) o anonimato dos compradores das obras de arte dos seus associados comerciantes-vendedores de obras de arte

e, assim, (ii) a manutenção da clientela e dos rendimentos dos seus associados,

tudo com referência aos seguintes bens jurídicos: liberdade de iniciativa privada e autogestão privada dos comerciantes e direito à propriedade privada (cf. artigos 61º e 62º da Constituição).

O que resulta do r.i. é que a norma em causa, além de ser ilegal por outro motivo, implicará perda de clientela e de rendimentos aos comerciantes de obras de arte associados da requerente. E desta perda logo conclui a requerente que estarão em crise os direitos previstos nos artigos 61º/1 e 62º/1 da Constituição.

Desde já cumpre sublinhar que o que a Constituição prevê é que a iniciativa económica privada se exerce livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei, tendo em conta o interesse geral (artigo 61º/1 da Constituição). Não se trata de apenas “liberdade de iniciativa privada”.

Portanto, a iniciativa económica privada está constitucionalmente limitada pelo interesse geral, nos termos da lei.

Por seu lado, o artigo 62º/1 da Constituição “apenas” prevê que a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.

2.2.

O teor dos artigos 2º e 3º do Regulamento nº 314/2018 da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica sobre os deveres gerais para a prevenção e combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo, emitido no seguimento da Lei nº 83/2017, de 18 de agosto, lei que veio estabelecer medidas de natureza preventiva e repressiva de combate ao branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo – cf. o Diário da República, 2ª Série, nº 101, de 25/05/2018 – é o seguinte:

Artigo 2.º

Âmbito

1 - Ficam sujeitas ao cumprimento das disposições do presente regulamento todas as entidades a que se refere o artigo 4.º da Lei, cuja supervisão ou fiscalização não seja da competência exclusiva de outra entidade setorial, concretamente:

a) Prestadores de serviços a sociedades, a outras pessoas coletivas ou a centros de interesses coletivos sem personalidade jurídica;

b) Outros profissionais que intervenham em operações de alienação e aquisição de direitos sobre praticantes de atividades desportivas profissionais;

c) Operadores económicos que exerçam a atividade leiloeira, incluindo os prestamistas;

d) Operadores económicos que exerçam as atividades de importação e exportação de diamantes em bruto;

e) Entidades autorizadas a exercer a atividade de transporte, guarda, tratamento e distribuição de fundos e valores, prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio;

f) Comerciantes que transacionem bens ou prestem serviços cujo pagamento seja feito em numerário.

2 - Em particular, não obstante a obrigação genérica referida no n.º 1 do presente artigo, tendo em atenção o elevado valor unitário dos bens que transacionam, devem dar cumprimento às obrigações previstas no regulamento, nomeadamente, OS COMERCIANTES QUE PROCEDAM À VENDA de ouro e metais preciosos, de antiguidades, DE OBRAS DE ARTE, de aeronaves, de barcos ou de veículos automóveis.

3 - Ficam igualmente sujeitas ao cumprimento das disposições do presente regulamento as entidades que operem, de forma parcial ou exclusiva, sob a forma de contratação à distância no comércio de bens ou prestação de serviços.

4 - Para efeitos do disposto no número anterior, entende-se que o contrato à distância é aquele celebrado entre o consumidor e o fornecedor de bens ou o prestador de serviços sem presença física simultânea de ambos, e integrado num sistema de venda ou prestação de serviços organizado para o comércio à distância mediante a utilização exclusiva de uma ou mais técnicas de comunicação à distância até à celebração do contrato, incluindo a própria celebração.

Artigo 3.º

Deveres das entidades obrigadas

As entidades abrangidas pelo presente regulamento estão sujeitas, na sua atuação, e de acordo com as regras estabelecidas na Lei e no presente regulamento, ao cumprimento dos seguintes deveres preventivos:

a) Dever de controlo - Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, as entidades obrigadas devem definir e adotar políticas e procedimentos que permitam controlos que se mostrem adequados à gestão de risco e ao cumprimento das normas legais e regulamentares aplicáveis, em matéria de prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo, nos termos dos artigos 12.º e seguintes da Lei.

b) Dever de identificação e diligência - Sem prejuízo do disposto no artigo 5.º, as entidades obrigadas devem proceder à identificação dos clientes e representantes, sempre que tal dever seja aplicável, nos termos dos artigos 23.º e seguintes da Lei.

c) Dever de comunicação - Sempre que saibam, suspeitem ou tenham razões suficientes para suspeitar que certos fundos ou outros bens, independentemente do montante ou valor envolvido, provêm de atividades criminosas ou estão relacionados com o financiamento do terrorismo, as entidades obrigadas devem informar de imediato o Departamento Central de Investigação e Ação Penal da Procuradoria-Geral da República (DCIAP) e a Unidade de Informação Financeira, nos termos dos artigos 43.º e 44.º da Lei.

d) Dever de abstenção - As entidades obrigadas abstêm-se de executar qualquer operação ou conjunto de operações, presentes ou futuras, que saibam ou que suspeitem poder estar associadas a fundos ou outros bens provenientes ou relacionados com a prática de atividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo, nos termos do artigo 47.º e seguintes da Lei.

e) Dever de recusa - As entidades obrigadas recusam iniciar relações de negócio, realizar transações ocasionais ou efetuar outras operações, quando não obtenham os elementos identificativos e os respetivos meios comprovativos previstos para a identificação e verificação da identidade do cliente, do seu representante e do beneficiário efetivo, nos termos do artigo 50.º da Lei.

f) Dever de conservação - As entidades obrigadas conservam toda a documentação recolhida e produzida para cumprimento do disposto na Lei.

g) Dever de exame - Sempre que detetem a existência de quaisquer condutas, atividades ou operações cujos elementos caracterizadores as tornem suscetíveis de poderem estar relacionadas com fundos ou outros bens que provenham de atividades criminosas ou que estejam relacionados com o financiamento do terrorismo, as entidades obrigadas examinam-nas com especial cuidado e atenção, intensificando o grau e a natureza do seu acompanhamento, nos termos do artigo 52.º da Lei.

h) Dever de colaboração - As entidades obrigadas prestam, de forma pronta e cabal, a colaboração que lhes for requerida pelo DCIAP e pela Unidade de Informação Financeira, bem como pela ASAE, nos termos do artigo 53.º da Lei.

i) Dever de não divulgação - As entidades obrigadas, bem como os membros dos respetivos órgãos sociais, os que nelas exerçam funções de direção, de gerência ou de chefia, os seus empregados, os mandatários e outras pessoas que lhes prestem serviço a título permanente, temporário ou ocasional, não podem revelar ao cliente ou a terceiros quaisquer informações sobre os procedimentos que foram, estão a ser ou serão aplicáveis, naquela relação de negócio ou transação ocasional, em matéria de prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo, nos termos do artigo 54.º da Lei.

j) Dever de formação - Sem prejuízo do disposto no artigo 10.º, as entidades obrigadas adotam medidas proporcionais aos respetivos riscos e à natureza e dimensão da sua atividade para que os seus dirigentes, trabalhadores e demais colaboradores cujas funções sejam relevantes para efeitos da prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo tenham um conhecimento adequado das obrigações decorrentes da Lei e do presente regulamento.

Já vimos que a requerente ataca o cit. nº 2 do artigo 2º do cit. regulamento. Certamente em conexão com o nº 1 desse artigo 2º e, em especial, com os deveres previstos no artigo 3º cit. e, ainda, por causa dos deveres previstos na lei que veio estabelecer medidas de natureza preventiva e repressiva de combate ao branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo (Lei nº 83/2017, alterada pela Lei nº 144/2019).

E vimos também que a requerente - E............ - tem como objeto social apoiar o comércio de obras de arte.

E é, precisamente, o comércio de obras de arte que este processo cautelar visa defender, segundo o r.i.

2.3.

Ora, o Tribunal Administrativo de Círculo, em síntese, considerou que a requerente não tem legitimidade processual popular, como outorgada pelos artigos 130º/2 e 9º/2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e ainda pela Lei nº 83/95 atualizada, porque:

- a atuação da requerente não respeita o princípio da especialidade das pessoas coletivas, concretizado no artigo 3º-b) da L.A.P. (Lei nº 83/95), uma vez que os bens previstos nos artigos 61º/1 e 62º/1 da Constituição não constam dos fins estatutários da requerente, sendo que esta visa sim defender a atividade comercial dos associados;

- a requerente não visa defender nenhum interesse difuso, sendo que a invocada defesa da legalidade e da unidade do sistema jurídico não corresponde a um bem daquele tipo.

2.4.

Para a recorrente E............, a decisão recorrida violou as normas resultantes das seguintes disposições normativas:

-Princípio da especialidade - em sentido amplo - das pessoas coletivas,

-Artigos 1º, 2º e 3º-b) da L.A.P.,

-Artigo 9º/2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, e

-Artigos 12º e 52º/3 da Constituição.

Vejamos, pois.

2.5.

Na presente análise, por causa do estado da legislação sobre este tema, vamos prescindir de separar as noções jurídicas de valores constitucionais comuns ou coletivos, de bens jurídicos constitucionais e de interesses difusos.

Ora, de acordo com o artigo 130º/2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, “o Ministério Público e as pessoas e entidades referidas no n.º 2 do artigo 9.º podem pedir a suspensão, com força obrigatória geral, dos efeitos de qualquer norma em relação à qual tenham deduzido ou se proponham deduzir pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral.”

E, de acordo com esse artigo 9º/2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, “independentemente de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa, bem como as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público têm legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, assim como para promover a execução das correspondentes decisões jurisdicionais.”

2.6.

O artigo 52º/3-a) da Constituição, instituindo (i) um direito fundamental de participação política e (ii) um modo de alargamento da normal legitimidade processual ativa (contra as teorias tradicionais baseadas no interesse direto e pessoal ou na proteção da norma), confere a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de ação popular nos casos e termos previstos na lei (artigos 2º, 3º e 12º ss da Lei nº 83/95 atualizada), incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações contra certos direitos fundamentais sociais, como

a saúde pública,

os direitos dos consumidores,

a qualidade de vida,

a preservação do ambiente e do património cultural (cf. MÁRIO AROSO, Manual…, ponto nº 97).

O objeto normal da ação popular é, assim, a defesa de interesses difusos, i.e., de interesses de toda a comunidade com refração em cada pessoa, por contraposição (i) ao interesse individual, (ii) ao interesse público e (iii) ao interesse comum a certos grupos.

Mas as “ações de grupo” ou coletivas (para defesa de interesses comuns de grupo) também podem caber nos artigos 52º/3-a) da Constituição e 9º/2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, sejam elas ações coletivas egoísticas ou altruístas, desde que preencham os requisitos materiais e processuais definidos na Lei nº 83/95 para este tipo de legitimidade processual ativa – cf. assim G. CANOTILHO/V.M., Constituição…Anotada, I, 4ª e., p. 698, e, quando abordam a correspondência entre um interesse difuso e um interesse particular comum a um grupo, MÁRIO AROSO/C.C., Comentário…, nota 6 ao artigo 9º.

Ora, é, por causa deste segundo caso (interesse particular comum a um grupo, diferente de interesses individuais homogéneos), que cumpre aferir se o Tribunal Administrativo de Círculo decidiu bem, obviamente com referência aos requisitos materiais e processuais definidos na Lei nº 83/95 para este tipo de legitimidade processual ativa.

Importante é que se retenha que, nos interesses difusos em sentido estrito e nos interesses comuns de grupo e coletivos (ou coletivos em sentido estrito), a satisfação de um titular implica necessariamente a satisfação de todos os titulares no âmbito de uma relação jurídica. O objeto do interesse ou direito é indivisível em ambos os casos.

Nos interesses difusos em sentido estrito, os titulares são pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de facto.

Nos interesses comuns (coletivos em sentido estrito), ou seja, naqueles provenientes de grupos ou categorias unidas por uma relação jurídica, de titularidade determinada ou passível de identificação e com objeto indivisível, os titulares são as pessoas integrantes de um determinado grupo, categoria ou classe.

Já os interesses individuais homogéneos, apartados da ação popular, são os interesses de grupo, categoria ou classe de pessoas determinadas ou determináveis, que compartilhem prejuízos ou interesses divisíveis e de origem comum.

2.7.

O artigo 1º da Lei nº 83/95 atualizada, lei que concretiza a cit. disposição constitucional, prevê o seguinte:

1 - A presente lei define os casos e termos em que são conferidos e podem ser exercidos o direito de participação popular em procedimentos administrativos e o direito de ação popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações previstas no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição.

2 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, são designadamente interesses protegidos pela presente lei

a saúde pública,

o ambiente,

a qualidade de vida,

a proteção do consumo de bens e serviços,

o património cultural e

o domínio público.

Como se vê, além dos interesses referidos no nº 3 do artigo 52º da Constituição, a L.A.P. aditou ainda outros. O mesmo o fez o nº 2 do artigo 9º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

O artigo 2º/1 da Lei nº 83/95 prevê o seguinte:

1 - São titulares … do direito de ação popular … as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse direto na demanda.

Portanto, na decorrência da concretização infraconstitucional pela Lei nº 83/95 e pelo artigo 9º/2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos do previsto no artigo 52º/3 da Constituição, são titulares do direito de ação popular as associações e fundações defensoras

1)da saúde pública,

2)do ambiente,

3)dos direitos dos consumidores,

4)da qualidade de vida,

5)da preservação do ambiente e do património cultural,

6)do domínio público,

7)do urbanismo,

8)do ordenamento do território,

9)do património cultural e

10)dos bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais.

Dali não consta, nem a unidade do sistema jurídico, nem o comércio, que são os supostos “bens jurídicos” que a requerente visa defender.

Enfatizamos “atividade comercial”, (i) porque o fim estatutário da requerente inclui a defesa do comércio de obras de arte e, sobretudo, (ii) porque os direitos sociais previstos nos artigos 61º/1 e 62º/1 da Constituição, que, supostamente, a requerente visaria aqui defender, não são interesses difusos, nem interesses coletivos-grupais conexos com interesses difusos.

Enfim, o que a requerente visa aqui defender não é nenhum dos interesses tutelados pelo artigo 9º/2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e pelo artigo 52º/3 da Constituição. Visa apenas defender os rendimentos económicos de uma dada atividade comercial regulada e condicionada, como todas, ao interesse geral, nos termos do artigo 61º/1 da Constituição. Estão em causa, sim, interesses individuais homogéneos, que a requerente “individe” sob a capa artificial do chamamento dos artigos 61º/1 e 62º/1 da Constituição.

Estes interesses são defensáveis através da legitimidade processual ativa normal, singular ou plural (cf. artigos 9º/1, 55º/1 e 68º/1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e artigos 30º e 32º do Código de Processo Civil).

Portanto, a decisão recorrida não violou os cits. artigos 2º da L.A.P., 9º/2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e 52º/3 da Constituição, com referência aos bens jurídicos e interesses não individuais ali previstos, pela simples razão de que a requerente está a defender, utilizando indevidamente a L.A.P., interesses individuais homogéneos dos seus associados.

2.8.

Mas, caso assim não fosse e pudesse estar em causa o previsto nos artigos 61º/1 e 62º/1 da Constituição como verdadeiros interesses difusos ou como interesses particulares comuns conexos com – ou com correspondência a - interesses difusos, seria necessário ter presente o artigo 3º da Lei nº 83/95 atualizada, que prevê o seguinte:

Constituem requisitos da legitimidade ativa das associações e fundações:

a) A personalidade jurídica;

b) O incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objetivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de ação de que se trate;

c) Não exercerem qualquer tipo de atividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais.

A legitimidade processual ativa popular das associações, como esta E............, está legal e constitucionalmente condicionada pela exigência de elas terem como escopo a defesa dos interesses em causa (artigo 3º-b) da L.A.P.).

Significa isto que se exige aqui a aplicação do princípio da especialidade do fim e ainda a existência de uma certa conexão entre os efeitos dos atos ou situações que se pretendem prevenir ou fazer cessar e o fim estatutário da associação (assim, por ex., G. CANOTILHO/V.M., Constituição…Anotada, I, 4ª e., p. 698).

Mas, como já vimos, o fim estatutário da requerente (defesa do comércio de obras de arte) não corresponde a nenhum dos direitos previstos nos artigos 61º/1 e 62º/1 da Constituição, nem a nenhum dos interesses difusos identificados a partir da Constituição, da Lei nº 83/95 e do artigo 9º/2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos. Nem tem conexão ou correspondência alguma com eles.

O interesse (dos vendedores de obras de arte) em não perder clientela e rendimentos é apenas um interesse comercial e económico, sem conexão ou correspondência alguma com interesses difusos.

Para este tipo de situações, o sistema jurídico prevê o litisconsórcio ativo dos particulares com interesse pessoal.

Portanto, a decisão recorrida não violou o artigo 3º cit.

2.9.

O artigo 12º da Constituição, referido pela recorrente, prevê (i) que todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição e (ii) que as pessoas coletivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza.

A decisão recorrida não colocou em crise que as associações têm também alguns direitos fundamentais, compatíveis com a sua natureza. Antes pelo contrário, aceitou-o de imediato para então analisar a exceção dilatória invocada e concluir, no pressuposto (a nosso ver, incorreto) de estar em causa a defesa dos bens jurídicos previstos nos artigos 61º/1 e 62º/2 da Constituição, que a requerente não cumpria com o artigo 3º-b) da L.A.P.

Portanto, a decisão recorrida não violou o artigo 12º cit.

*

III - DECISÃO

Nestes termos e ao abrigo do artigo 202.º da Constituição e do artigo 1.º, nº 1, do EMJ (ex vi artigo 57.º do ETAF), os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul acordam em, com esta diferente fundamentação, negar provimento ao recurso e manter o decidido.

Custas a cargo da recorrente.

Lisboa, 27-02-2020


Paulo H. Pereira Gouveia - Relator

Catarina Jarmela

Paula de Ferreirinha Loureiro