Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:08707/15
Secção:CT
Data do Acordão:11/24/2016
Relator:JORGE CORTÊS
Descritores:IMPUGNAÇÃO DE DECISÃO ARBITRAL. PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
Sumário:1) O princípio da investigação jurisdicional dos factos da causa (ou princípio do inquisitório) constitui-se como simétrico do princípio do dispositivo, enquanto máxima que impõe ao juiz o dever de julgar secundum allegata et probata, isto é, que veda ao juiz qualquer poder de interferir na delimitação do tema da prova.
2) O princípio do dispositivo tem por base a ideia segundo o qual o livre jogo espontâneo entre as partes, orientado pela contraposição de interesses, constitui o instrumento mais eficaz para a descoberta da verdade.
3) Perante a necessidade jurídica da parte alegar e demonstrar factos concretos que contrariem a presunção da propriedade dos veículos que estão na origem das liquidações dos autos que advém do registo automóvel, o acto de instauração da impugnação das referidas liquidações implica a formulação do pedido, dos seus fundamentos, dos concretos factos que, no entender da impugnante, justificam a asserção inversa à que serve de esteio aos actos tributários questionados, incluindo a indicação dos meios de prova que estão na base de tais asserções de facto.
4) A falta de cumprimento dos ónus de alegação e de prova que recaem sobre a impugnante não torna a decisão arbitral nula por omissão de pronúncia.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO

I- Relatório
I..., Lda. deduz a presente impugnação contra a decisão arbitral proferida no Processo 785/2014- T, que correu termos no Centro de Arbitragem Administrativa e Tributária, a qual julgou improcedente o pedido de anulação deduzido contra as liquidações adicionais de Imposto Único de Circulação.
A impugnante termina as alegações de impugnação, formulando as conclusões seguintes:
1) A presente impugnação vem deduzida na sequência da decisão arbitral proferida no processo arbitral n.º 785/2014-T, notificada à ora recorrente, em 17.04.2015, a qual julgou improcedente o pedido de pronúncia arbitral deduzido contra as liquidações adicionais de Imposto Único de Circulação (IUC) melhor identificado nos autos.
2) O pedido de pronúncia arbitral foi julgado improcedente com fundamento no facto de não terem sido apresentados documentos susceptíveis de fazer prova da transferência de propriedade dos veículos referenciados no aludido pedido – quais sejam, os respectivos contratos de compra e venda e recibos comprovativos de pagamento do preço, que, no entendimento do Tribunal, beneficiam da presunção de veracidade tendente à demonstração da transferência de propriedade.
3) No caso sub judice, a falta de iniciativa do Tribunal na notificação da impugnante para a junção dos específicos elementos probatórios que reputava essenciais para a prova dos factos inquina a decisão arbitral de nulidade.
4) Com efeito, sendo certo que sobre as partes recai o ónus da prova quanto aos factos necessários para fazer valer a sua pretensão, é igualmente certo que o tribunal detém um papel activo na descoberta da verdade material, sendo-lhe imputável a não realização de diligências necessárias e disponíveis para alcançar esse objectivo.
5) Efectivamente, o princípio do inquisitório, tradicionalmente contraposto no âmbito processual ao princípio do dispositivo que coloca na disponibilidade das partes a condução do processo e o ónus de alegar a factualidade que servirá de base à decisão, bem como de tomar a iniciativa na prova dos factos controvertidos, atribui ao Tribunal um poder-dever de condução do processo, designadamente, de realizar ou ordenar oficiosamente as diligências necessárias para a descoberta da verdade material.
6) No processo arbitral tributário deve entender-se que o poder-dever do inquisitório resulta da consagração do princípio da livre determinação das diligências de produção de prova necessárias (artigo 16.º, alínea e), do RJAT) e, em qualquer caso, é resultado da aplicação subsidiária do artigo 114.º do CPPT ou do artigo 411.º do CPC por força do disposto no artigo 29.º do RJAT.
7) Deste modo, estando na disponibilidade do juiz do processo a requisição de documentos que reputa essenciais para a prova dos factos, só lhe é lícito concluir pela falta de prova de um determinado facto se, após a requisição dos aludidos documentos, não decorrer prova desse facto.
8) Já não lhe será possível, pois, concluir a priori, pela falta de prova de um determinado facto sem desencadear, primeiro, a devida investigação.
9) Assim, se o Tribunal reputava essencial a junção de contratos de compra e venda e recibos comprovativos do preço, impunha-se-lhe indagar sobre a existência desses documentos, sob pena de violação do princípio do inquisitório e da verdade material.
10) No caso sub judice, a violação do princípio do inquisitório inquina a presente decisão de nulidade, pelo desvalor que encerra e por influir na decisão da causa, já que não se trata de um mero erro de julgamento do Tribunal na determinação das diligências probatórias que se afiguram úteis para a descoberta da verdade material e que inquina a decisão arbitral de mera insuficiência instrutória, mas de uma situação em que o Tribunal identifica de forma clara e precisa os documentos que julga essenciais para a descoberta da verdade material – quais sejam, os contratos de compra e venda e os recibos comprovativos do pagamento do preço – e persiste na falta de investigação da existência destes documentos cuja veracidade e credibilidade não é, pelo menos do ponto de vista legal, afastada e colocou à disposição do Tribunal a possibilidade de diligenciar pela obtenção e junção de outros que se reputem essenciais (cf. Artigo 85 do pedido de pronúncia arbitral).
11) Efectivamente, importa ter presente que o princípio do inquisitório é um poder-dever que recai sobre o Tribunal, no sentido de que este deve ordenar a realização de diligências probatórias quando as repute essenciais para a descoberta da verdade material (cf. Guia da Arbitragem Tributária, coord. Nuno Villa-Lobos e Mónica Brito Vieira, 2013, Almedina, pp. 188).
12) De facto, não se trata de uma singela decisão de dispensa de produção de prova, por o Tribunal entender que ela não havia sido requerida ou que, tendo-o sido, ela não era necessária ou pertinente para a decisão da causa – circunstância a que os tribunais reconhecem a natureza de vício de erro de julgamento – mas de uma decisão de dispensa de produção de prova que reputadamente se considerou essencial, que, à luz da jurisprudência dos tribunais administrativos e fiscais (cf. Acórdão do STA, datado de 23.10.2013, proferido no processo n.º 0388/13) não pode deixar de se considerar que inquina de nulidade a decisão arbitral.
13) Assim, e em face de todo o exposto, resulta evidente no caso sub judice a violação do princípio do inquisitório, e que tal violação teve influência na decisão da causa, constituindo uma nulidade processual, nos termos do art.º 195.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º do RJAT, devendo, em consequência, todo o subsequente processado – no qual se inclui a presente decisão arbitral – ser anulado, nos termos do n.º 2 do artigo 195.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º do RJAT.
14) Sem prejuízo do acima exposto, e independentemente do desvalor que se impute à violação do princípio do inquisitório no caso sub judice, importa referir que a violação deste princípio constitui fundamento de impugnação da decisão arbitral nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1, alínea c), do RJAT que abrange as situações em que o tribunal foi além ou ficou aquém da sua competência decisória,
15) Com efeito, os conceitos de “pronúncia indevida” ou de “omissão de pronúncia” referenciados na aludida norma, que não têm paralelo, como se reconhece na doutrina (cf. Guia da Arbitragem Tributária, Coord. Nuno Villa-Lobos e Mónica Brito Vieira, 2013, Almedina, pp. 234 e 235), com os conceitos de falta de pronúncia ou omissão de pronúncia consagrados, quer no artigo 616.º do CPC, quer no artigo 125.º do CPPT, não se circunscrevem ao conhecimento ou ao desconhecimento de questões que o Tribunal deveria ou não ter conhecido.
16) São evidência desta conclusão, por um lado, o facto de o legislador não ter seguido a terminologia proposta na própria lei de autorização legislativa (Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), desvendando uma evidente intenção de afastamento da terminologia tradicionalmente consagrada naquelas normas e, por outro lado, o facto de somente interpretando aqueles conceitos da forma ampla que supra se tece se compreende que o legislador tenha optado por uma enunciação exaustiva dos fundamentos e impugnação constantes do artigo 28.º do RJAT e não tenha previsto nos mesmos, como fundamento de impugnação, situações de reconhecida gravidade como a irregularidade da constituição do tribunal arbitral ou outras nulidades processuais.
17) Deste modo, neste contexto em que o Tribunal ficou aquém do seu poder-dever do inquisitório, só pode entender-se que a ilegalidade invocada constitui fundamento de impugnação da decisão arbitral nos termos do artigo 28.°, n.° l, alínea c), do RJAT, na vertente de "omissão de pronúncia";
18) Com efeito, a interpretação do artigo 28.°, n.° l, alínea c), do RJAT, no sentido de que aquela "omissão de pronúncia" não compreende a violação do princípio do inquisitório sub judice, incorre em violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20.°, n.° 5, da CRP, o que se invoca para todos os efeitos legais;
19) De facto, é esta a única interpretação que se pode sufragar num contexto em que a arbitragem tributária vem reforçar a tutela eficaz dos direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes (cf. preâmbulo do Decreto-Lei n.° 10/2011);
20) Sem prejuízo do exposto, e a entender-se, ao invés, que a única interpretação normativa do disposto no artigo 28.° do RJAT é a de que a violação do princípio do inquisitório nos termos invocados não cabe nos fundamentos de impugnação, desde já se invoca, para todos os efeitos legais, que a aludida norma viola, também ela, o princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20.°, n.° 5, da CRP;
21) Com efeito, aquela norma compromete o direito do contribuinte ao recurso e a plenitude/efetividade do contencioso arbitrali tributário, incorrendo em manifesta divergência com as regras aplicáveis no processo civil e no processo judicial tributário;
22) Em face do exposto, resulta evidente que a falta de iniciativa do tribunal teve manifesta influência na decisão da causa, constituindo uma nulidade por violação do princípio do inquisitório, nos termos do disposto no artigo 195.° do CPC, aplicável ex vi artigo 29.° do RJAT, devendo em consequência conduzir à anulação da decisão arbitral, nos termos do artigo 28.° do RJAT e do n.° 2 do artigo 195.° do CPC, aplicável ex vi artigo 2.°, alínea e),
X
A fls. 60/89, a impugnada apresentou pronúncia, na qual pugna pela improcedência da impugnação e pela manutenção da decisão impugnada.
Formula as conclusões seguintes:
1) Não merece reparo a sentença arbitral proferida a 2015-03-17 pelo Tribunal Arbitral Singular constituído no âmbito do CAAD, nos termos do qual foi julgado improcedente o pedido de pronúncia arbitrai deduzido pela ora Impugnada.
2) É destituída de fundamento legal a questão da nulidade da decisão arbitral por violação do princípio do inquisitório (artigo 195.°/1 do CPC ex vi do artigo 29.° do RJAT), para mais quando no intróito do seu articulado recursório a Impugnante se estriba somente nos artigos 27.° e 28.° do RJAT.
3) As emissões previstas no artigo 29.° do RJAT apenas devem ser efetuadas no pressuposto do próprio RJAT não dar solução a um determinado problema, sendo que no caso vertente a questão suscitada pela Impugnante não constitui qualquer caso omisso.
4) O legislador foi muito claro ao determinar a regra da irrecorribilidade do decidido pelo tribunal arbitral, pelo que, ao não consagrar no RJAT nem ao remeter expressamente para as regras gerais da nulidade dos atos constantes do CPC ou de outro corpo legal, o legislador, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, pretendeu que os únicos fundamentos suscetíveis de sustentar um ataque às decisões arbitrais fossem aqueles que consta da reduzida e taxativa lista de fundamentos constantes do próprio RJAT (cfr. artigo 25.°/1 e 2 e artigo 28.° do RJAT).
5) Nenhum sentido faz afirmar-se que a nulidade prevista no artigo 195.°/1 do CPC é subsidiariamente aplicável ao RJAT quando este último regime consagra uma lista de nulidades de sentença ainda mais restrita do que aquela que resulta do CPPT (cfr. artigo 125.° deste último corpo legal).
6)Estabelecendo o RJAT uma lista de nulidades mais restrita do que a lista de nulidades constante do corpo legal que contém o meio processual com o qual o pedido de pronúncia arbitral apresenta mais afinidades (i.e., a Impugnação Judicial), forçoso é concluir que o legislador pretendeu limitar fortemente os meios e os fundamentos de reação contra as decisões arbitrais, designadamente quaisquer meios previstos num corpo legal geral em matéria processual (i.e., o CPC).
7) A nulidade da decisão arbitral por eventual violação do princípio do inquisitório (artigo 195.°/1 do CPC) não é minimamente subsumível na reduzida e taxativa lista de fundamentos constantes do artigo 28.° do RJAT, e, menos ainda, a Impugnação da Decisão Arbitral constitui o meio próprio para tal invocação, conforme Doutrina e Jurisprudência citadas.
8) Também não é apta a proceder a questão da nulidade da decisão arbitral por omissão de pronúncia [artigo 28.°/1-c) do RJAT].
9) Não se registou qualquer falta de iniciativa do Tribunal Arbitral Singular na notificação à Impugnante para juntar os elementos probatórios que reputava essenciais para a prova dos factos ao abrigo do princípio do inquisitório, como vem agora alegar a Impugnante, sendo certo que a pretensa violação daquele princípio está longe de redundar ou se subsumir no conceito de "omissão de pronúncia".
10) Não só porque o princípio do inquisitório não constitui um princípio absoluto, como também porque este princípio não permite ir mais além daquilo que a Impugnante alegou.
11) Apesar de vigorar nos processos judicial tributário e arbitral tributário o princípio do inquisitório, este não possui uma abrangência tão alargada como invoca a Impugnante, mas uma mera intervenção de segunda linha, conforme é pacificamente entendido pela Doutrina e Jurisprudência citadas.
12) Com a apresentação do pedido de pronúncia arbitral cabe à impugnante oferecer os documentos de que dispuser, arrolar as testemunhas que julgar convenientes e requer a realização ou produção das demais provas que não dependam de ocorrências supervenientes [cfr. artigo10.°/2-d) do RJAT], pelo que é à Impugnante, em primeira linha, que cabe ajuizar da utilidade e necessidade da prova dos factos por si articulados e que melhor permitam obter a procedência da sua pretensão.
13) O princípio do inquisitório não prejudica o ónus de alegação e o ónus da prova que recai sobre a própria Impugnante, como reiteradamente tem entendido a Jurisprudência, ónus esses que a Impugnante - sibi imputet - não cumpriu.
14) Em obediência ao princípio do dispositivo e aos ónus de alegação e prova era à Impugnante quem cabia juntar toda a prova que sustentasse os factos por si alegados, sendo certo que o momento legalmente aprazado para tal junção seria sempre e só a apresentação do pedido de pronúncia arbitral, como, aliás, vários tribunais arbitrais constituídos sob a égide do CAAD assim têm entendido.
15) Nenhuma obrigação (e suporte legal) tinha o Tribunal Arbitrai Singular de suprir a inércia da Impugnante, inércia essa que, aliás, a Impugnante não só não justifica, como também não demonstra minimamente, mediante o avanço de prova, que evidencie que a
Impugnante, efetivamente, possuía à altura os elementos probatórios que, em sua opinião, o tribunal a quo lhe devia ter exigido.
16) A lide e o objeto do processo são individualizados não apenas pelo pedido formulado pela Impugnante, como também pela causa de pedir, uma vez que no nosso direito processual se acolheu a teoria da substanciação.
17) O poder-dever de investigação por parte do tribunal (seja ele judicial ou arbitral) está limitado aos factos alegados pelas partes ou que, oficiosamente, seja lícito ao juiz conhecer (cfr. artigo 99.°/1 da LGT).
18) No pedido de pronúncia arbitral apresentado pela Impugnante nenhuma referência nele se no que tange (i) especificamente aos contratos subjacentes às liquidações de IUC, (ii) aos meios de pagamento utilizados para pagamento do preço de venda das viaturas subjacentes às liquidações e (iii) à emissão de recibos de quitação pelo pagamento do preço de venda das viaturas subjacentes às liquidações colocadas em crise.
19) Todo o pedido de pronúncia arbitral foi construído na tese da ilisão de uma presunção, ilisão essa no entanto amparada exclusivamente, quer no plano dos factos quer no plano da prova, na existência de faturas emitidas pela Impugnante.
20) Pelo que, não tendo a Impugnante feito uma menção sequer aos meios de pagamento utilizados nem aos eventuais recibos de quitação, então forçoso é concluir que NUNCA o Tribunal Arbitral Singular se poderia substituir à Impugnante no seu ónus de alegar e de provar os factos que lhe interessavam para obter vencimento de causa, conforme Doutrina e Jurisprudência citadas.
21) Não se subsume minimamente no conceito de factos de conhecimento oficioso os factos relacionados com a existência, ou não, de contratos, meios de pagamento utilizados e emissão de recibos de quitação referentes ao pagamento do preço de venda das viaturas.
22) O poder-dever de investigação por parte do Tribunal Arbitral Singular ficou necessariamente balizado por aquilo que a Impugnante verteu para os autos.
23) Dado que a Impugnante construiu toda a sua argumentação (e prova documental) única e exclusivamente nas faturas por si emitidas, o Tribunal Arbitral Singular nunca poderia investigar factos não alegados por aquela.
24) Não é apto a proceder o argumento que a Impugnante colocou à disposição do Tribunal Arbitral Singular a possibilidade de diligenciar pela obtenção e junção de outros documentos que reputasse essenciais, uma vez que é à Impugnante (e não ao Tribunal Arbitral Singular) que cabe a principal avaliação de quais os meios de prova adequados a provar os factos que a invoca a seu favor.
25) O nosso sistema processual integra os princípios da auto-responsabilidade e da igualdade das partes, daqui resultando que impende sobre as partes o ónus da iniciativa quanto à prova (no caso vertente, documental), sob pena de, se assim não for, se incorrer numa completa confusão dos papéis de cada interveniente no processo.
26) A um juiz pede-se/exige-se que preserve sempre o necessário equilíbrio de interesses, o qual só poderá ser alcançado se aquele mantiver relativamente a ambas as partes a equidistância e imparcialidade inerentes à função jurisdicional e se providenciar por uma efetiva igualdade de tratamento das partes.
27) A seguir-se a conceção paternalista do processo aqui sugerida pela Impugnante, então deixaríamos de ter um "juiz-árbitro", para, afinal, termos um "árbito-parte-interessada-no-processo-contra-a-Autoridade-Tributária-e-Aduaneira".
28) O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque (cfr. artigo 74.° da LGT), que será sobre aquele contra quem são invocados aqueles factos que recai o ónus da prova dos factos impeditivos, modificativos e extintivos dos direitos invocados, o que está em sintonia com a regra patente no artigo 342.°/2 do Código Civil.
29) A isto acresce outra regra patente no artigo 10.°/2, alíneas c) e d) do RJAT, nos termos da qual do pedido de constituição do tribunal arbitral, deve constar (i) a identificação do pedido de pronúncia arbitral, (ii) a exposição das questões de facto e de direito objecto do referido pedido de pronúncia arbitral e (iii) os elementos de prova dos factos indicados e a indicação dos meios de prova a produzir.
30) A dedução do pedido de constituição do tribunal arbitral por parte da Impugnante constituiu o momento adequado para a exposição das questões de facto e de direito objeto do pedido de pronúncia arbitrai, para apresentar elementos de prova dos factos por si invocados e para indicar todos os meios de prova a produzir, sendo que apenas e só a Impugnante cabia diligenciar pela obtenção e junção de outros documentos que reputasse essenciais, e nunca ao Tribunal Arbitrai Singular.
31) Nenhuma violação do princípio do inquisitório se verificou no caso subjudice, mas, quando muito, o não cumprimento dos ónus de alegação e da prova que incumbiam à própria Impugnante, e não ao Tribunal Arbitral Singular.
32) O não cumprimento dos ónus de alegação e da prova que impendiam à Impugnante (i) não constitui qualquer erro de julgamento, (ii) não constitui qualquer nulidade processual (iii) nem tão pouco constitui fundamento de Impugnação da Decisão Arbitrai à luz dos artigos 27.° e 28.° do RJAT.
33) Constitui uma tese peregrina afirmar-se que a violação do princípio do inquisitório é fundamento de impugnação por omissão de pronúncia.
34) Ainda que por hipótese se admitisse uma violação do princípio do inquisitório no caso vertente, tal violação NUNCA redundaria na omissão de pronúncia arvorada pela Impugnante, mas antes na falta de realização de diligências, a qual, porém, não é minimamente subsumível na reduzida e taxativa lista de fundamentos constantes do artigo 28.° do RJAT, designadamente no conceito de omissão de pronúncia.
35) Não se verifica no caso vertente qualquer violação princípio da tutela jurisdicional efetiva, porquanto nenhuma violação do princípio do inquisitório se verificou no caso sub judice, mas, quando muito, o não cumprimento dos ónus de alegação e da prova que incumbiam à própria Impugnante.
36) A questão da (pretensa) violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, tal como foi colocada pela Impugnante, configura uma fiscalização abstraía do artigo 28.°/1-c) do RJAT, sendo que o tribunal ad quem não será competente para efetuar tal fiscalização abstraía, porquanto tal competência é exclusiva do Tribunal Constitucional (artigo 281.° da Constituição).
37) Tão pouco a Impugnante possui legitimidade para suscitar a (pretensa) inconstitucionalidade aqui em causa, porquanto apenas podem requerer a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral as entidades taxativamente elencadas no artigo 281.°/2 da lei fundamental, elenco no qual não consta a Impugnante.
38) A argumentação segundo a qual não se compagina com o RJAT que se coarte a possibilidade do contribuinte arguir nulidades como as que inquinam a decisão arbitrai sub judice é própria de quem pretende "o melhor de dois mundos", porém sem cuidar ou ponderar se efetivamente tal cumulação era possível.
39) A celeridade na resolução de litígios e a redução de pendências que se pretendeu atingir mediante a criação da arbitragem tributária (cfr. preâmbulo do RJAT) só poderão ser atingidas mediante a instituição de um regime processual mais simples e ao mesmo tempo mais "severo", simplicidade e severidade essas que, naturalmente, resultam das seguintes opções expressa e intencionalmente tomadas pelo legislador: (i) o estabelecimento da regra da irrecorribilidade do decidido pelo tribunal arbitral; e (ii) a fixação de uma reduzida e taxativa lista de fundamentos suscetíveis de obter um controlo judicial sobre a decisão arbitral.
40) Ao optar pela jurisdição arbitral, em prejuízo da jurisdição administrativa e tributária, o Impugnante agiu de forma livre e consciente, isto significando, portanto, que a Impugnante terá previamente pesado os prós e os contras em torno da opção de deduzir (i) uma Impugnação Judicial ao abrigo do CPPT ou (ii) um Pedido de Pronúncia Arbitral ao abrigo do RJAT, com as inerentes consequências/limitações processuais daí advenientes, designadamente em sede recursória.
41) Consequentemente, ao ter optado pelo RJAT a Impugnante só poderá queixar-se de si mesma e não daquilo que está prescrito naquele regime jurídico, nomeadamente no que tange às legais limitações de recurso.
42) Conclui-se então que a decisão arbitral sub judice fez uma correta interpretação e aplicação da lei, motivo pelo qual a mesma deve ser mantida na ordem jurídica.
X
Colhidos os vistos legais, vem o processo à conferência para decisão.
X
II- Fundamentação
2.1. De Facto
Não tendo havido impugnação da matéria de facto nas conclusões da impugnação deduzida, igualmente não se vislumbrando a necessidade de alteração da factualidade constante do probatório, o Tribunal remete para a decisão arbitral impugnada, junta a fls. 7/21, a qual se dá por integralmente reproduzida (artigo 663.º/6, do CPC, ex vi artigo 29.º/1/e), do RJAT).
X
2.2. De Direito.
2.2.1. Nos presentes autos, está em causa decisão arbitral proferida no Processo 785/2014- T, que correu termos no Centro de Arbitragem Administrativa e Tributária, a qual julgou improcedente o pedido de anulação deduzido contra as liquidações adicionais de Imposto Único de Circulação.
2.2.3. A impugnante censura a decisão impugnanda por entender que a mesma incorre em preterição do princípio do inquisitório, em omissão de pronúncia, o que corporiza, defende, vício de nulidade da sentença.
A tese da impugnante sintetiza-se nos termos seguintes.
O pedido de anulação das liquidações de IUC, em causa nos autos, assentava na alegação segundo a qual, no artigo 3.º/1, do Código do IUC, está consagrada uma presunção ilidível, ou seja, que admite prova em contrário, nomeadamente, através da demonstração da alienação das viaturas na origem das liquidações de IUC, em data anterior à verificação do facto gerador do imposto nos anos de 2013 e 2014.
Por seu turno, a sentença arbitral julgou improcedente o pedido de anulação, porquanto, como aí se consigna:
«6.63. Ora, da análise das facturas e notas de débito (enquanto documentos particulares e unilaterais, cuja emissão não supõe a intervenção da contraparte), anexadas pela Requerente ao processo, deverá aos mesmos ser reconhecido um reduzido valor para provar a existência de um contrato sinalagmático, como é o caso da compra e venda, porquanto qualquer daqueles documentos contabilísticos não prova sequer o pagamento do preço pelo comprador.
6.64. Com efeito, em termos gerais, tanto as facturas, como as notas de débito, constituem documentos contabilísticos elaborados pelas empresas, devendo:
6.64.1. As facturas ser enquadradas como documentos contabilístico através dos quais o vendedor envia ao comprador as condições gerais da transacção realizada e;
6.64.2. As notas de débito ser enquadradas como documentos contabilísticos em que o emitente comunica ao destinatário que este lhe deve determinado montante pecuniário.
6.65. Como ambos os documentos surgem na fase de liquidação da importância a pagar pelo comprador, mas não farão prova do pagamento do preço pelo mesmo, em consequência, não fazendo prova de que se concluiu o contrato de compra e venda (na verdade, somente a emissão de factura/recibo ou de recibo faz prova do pagamento e quitação).
6.66. Na verdade, não tendo sido anexadas ao processo, nomeadamente, cópia dos contrato de compra e venda, cópia do documento comprovativo de pagamento do preço (cheque ou comprovativo de transferência do montante que foi recebido pela venda de cada uma viatura) ou cópia do recibo, a transmissão da propriedade efectiva das viaturas não conseguiu ser comprovada.
6.67. Assim, só com a apresentação de tais documentos (com presunção de veracidade e idoneidade), é que teria havido força bastante para ilidir a presunção que resulta das liquidações, de acordo com o disposto no artigo 73° da LGT.
6.68. Nestes termos, será forçoso concluir que a Requerente não conseguiu provar a transmissão da propriedade dos veículos que constituem o objecto das liquidações de IUC que fazem parte do Pedido Arbitral e, em consequência, não conseguiu ilidir a presunção derivada da inscrição do Registo Automóvel».
2.2.4. A impugnante considera que o presente segmento decisório incorre em preterição do princípio do inquisitório, o que, no caso consubstancia vício gerador de nulidade, dado que não foram apreciadas todas as questões de que cumpre conhecer, concretamente, o tribunal não exerceu os poderes de instrução da causa, que lhe compete exercer, em nome do princípio do inquisitório aplicado ao processo arbitral tributário.
O princípio do inquisitório está consagrado no artigo 114.º do CPPT, aplicável ao presente processo, ex vi artigo 29.º/1/a), do RJAT.
A este propósito, afirma-se que, «[p]ara além das diligências requeridas, o tribunal deve realizar ou ordenar oficiosamente todas as diligências que lhe afiguram úteis para conhecer a verdade relativamente aos factos alegados ou de que oficiosamente pode conhecer»(1).
Sem embargo, a valia preceptiva do princípio do inquisitório postula a precisão do sentido de outro princípio, o qual estrutura também o processo judicial fiscal, a saber: o princípio do dispositivo(2).
O princípio da investigação jurisdicional dos factos da causa (ou princípio do inquisitório) constitui-se como simétrico do princípio do dispositivo, enquanto máxima que impõe ao juiz o dever de julgar secundum allegata et probata, isto é, que veda ao juiz qualquer poder de interferir na delimitação do tema da prova. Ora, o princípio do dispositivo tem por base a ideia segundo o qual o livre jogo espontâneo entre as partes, orientado pela contraposição de interesses, constitui o instrumento mais eficaz para a descoberta da verdade. Por outras palavras, «[à]s partes - e só a elas – cabe alegar os factos principais da causa, isto é, os que integram a causa de pedir e os que fundam as excepções. A alegação de uns e de outros é feita nos articulados, incluindo não só os articulados normais (…), mas também o articulado superveniente»(3). O princípio do dispositivo implica a responsabilidade das partes pela delimitação do material probatório. «À ideia de responsabilidade liga-se a de ónus. Sem prejuízo de os factos da causa poderem ser alegados por qualquer das partes, a falta de alegação dos factos constitutivos do direito do autor, gerando a falta ou deficiência da causa de pedir, dá lugar à absolvição do réu, ao passo que a falta de alegação dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos em que se funda a excepção ou contra-excepção deduzida, gerando a improcedência desta, faz precludir a possibilidade de a fazer valer, podendo dar lugar à condenação do réu no pedido»(4).
A questão que se suscita consiste, pois, em saber em que termos se realiza a distribuição de tarefas entre o juiz e as partes, no que respeita à realização das diligências de prova com vista a integração probatória dos factos da causa. Na tese da impugnante, o tribunal impugnado ficou aquém dos deveres de diligência e pronúncia. Na tese da impugnada, pelo contrário, o tribunal ofenderia os princípios da igualdade e da imparcialidade das partes, caso optasse pela realização de diligências de prova ulteriores, para além do que foi requerido pelas partes.
Julgamos que assiste razão à impugnada pelas razões que se enunciam de imediato.
1) «(…) os únicos fundamentos legalmente admissíveis como suporte de reacção da decisão dos Tribunais arbitrais para os Tribunais Centrais, consistem na impugnação de tal decisão, consagrada no art. 27.º, com os fundamentos previstos no transcrito art. 28.º, n.º 1, do RJAT. // Na verdade, a impugnação prevista no art. 27.º, n.º 1, do RJAT, funciona como um verdadeiro “recurso de cassação” (vide o ac. deste TCAS de 27.02.2014, proc. n.º 7088/13). Por isso, está vedado ao TCA – e decorre linearmente do disposto no art.º 24.º, n.º 1, do RJAT –, pronunciar-se sobre o mérito da decisão arbitral numa perspectiva de reexame da mesma, tal como sucede nos recursos ordinários previstos no art. 280.º, n.º 1, do CPPT (a regra geral de irrecorribilidade da decisão proferida pelos tribunais arbitrais constitui, de resto, o padrão comum na maioria dos ordenamentos jurídicos que acolhem a arbitragem jurisdicional como meio de solução alternativa de litígios – v. o aresto acabado de citar)» [Ac. do TCAS, de 12.06.2014, P. 06224/12].
2) No caso, não foi consubstanciada nos autos a omissão de pronúncia sobre questão de que cumpra conhecer, dado que a decisão impugnada apreciou os fundamentos da impugnação considerando que os mesmos se mostravam não provados.
3) A alegação de que a impugnante, na petição inicial, deixou em aberto a possibilidade de apresentação de outros meios de prova, para além dos que foram juntos com o pedido de pronúncia arbitral, não procede, porquanto o pedido de pronúncia arbitral corresponde a verdadeira petição inicial de impugnação(5), cabendo à autora o ónus de identificar o pedido, os fundamentos do pedido e os meios de prova em que estes repousam (artigo 10.º/1/b), c) e d), do RJAT). Ónus que no caso, por não ter sido observado convenientemente, ditou o desfecho da impugnação.
4) O princípio do inquisitório não implica a livre iniciativa de apuramento judicial dos factos. Perante a necessidade jurídica da parte alegar e demonstrar factos concretos que contrariem a presunção da propriedade dos veículos que estão na origem das liquidações dos autos que advém do registo automóvel, o acto de instauração da impugnação das referidas liquidações implica a formulação do pedido, dos seus fundamentos, dos concretos factos que, no entender da impugnante, justificam a asserção inversa à que serve de esteio aos actos tributários questionados, incluindo a indicação dos meios de prova que estão na base de tais asserções de facto.
5) Sem a observância dos referidos ónus de alegação e de prova a cargo da impugnante, não se vê como acompanhar a tese de que cabe ao tribunal, em nome do invocado princípio do inquisitório, tomar a iniciativa da prova e da construção fáctica, aí onde a parte decaiu ou claudicou.
Mais se refere que a aplicação dos ónus da prova objectivos por parte da decisão impugnada não contende com o princípio constitucional da tutela judicial efectiva, pois que se trata de estabelecer regras para os casos de non liquet – artigo 8.º/1, do Código Civil (artigo 73.º da LGT).

Motivo porque se julga improcedente a presente impugnação.
DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam, em conferência, os juízes da secção de contencioso tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, em julgar improcedente a impugnação e confirmar a decisão arbitral.
Custas pela impugnante.
Registe.
Notifique.
(Jorge Cortês - Relator)


(Cristina Flora - 1º. Adjunto)


(Ana Pinhol - 2º. Adjunto)


(1) Jorge Lopes de Sousa, CPPT, anotado, 6.ª Edição, Vol. II, p. 254.

(2) Consagrado no artigo 5.º do CPC.

(3) José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios gerais, Coimbra Editora, 2009, pp. 144/145.

(4) José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios gerais, Coimbra Editora, 2009, pp. 146/147.

(5) No sentido de que o pedido de pronúncia arbitral constitui verdadeira petição inicial em sentido material, V. Carla Castelo Trindade, Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, anotado, Almedina, 2016, p. 270.