Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:498/13.7BELLE
Secção:CT
Data do Acordão:06/25/2019
Relator:VITAL LOPES
Descritores:EXECUÇÃO DE JULGADO; REFORMA DA LIQUIDAÇÃO; CADUCIDADE.
Sumário:1. As vias judiciais previstas no CPTA para a execução de sentença (aplicáveis ao processo tributário por força do disposto no art.º146/1 do CPPT), podem ser utilizadas pelos interessados para obter a execução de actos administrativos e tributários inimpugnáveis.
2. Se os reclamantes apenas atacam parte das correcções que estão na base da liquidação reclamada mas formulam pedido de anulação da liquidação, e a decisão de reclamação graciosa decida pela anulação da liquidação conforme pedido, só pode entender-se que a extensão e alcance anulatório da liquidação reclamada se circunscreve à parte da liquidação assente na correcção com que os reclamantes se não conformam e não à restante parte, assente em correcções que não integraram o objecto da reclamação graciosa.
3. A divisibilidade do acto tributário constitui o argumento utilizado pela jurisprudência para fundamentar a possibilidade da decisão judicial ou administrativa de anulação parcial dos actos tributários. Baseando-se na classificação dos actos administrativos divisíveis, a jurisprudência dos Tribunais Superiores abundantes vezes já afirmou que os actos que imponham a obrigação de pagamento de uma quantia, como é o caso dos actos de liquidação de tributos, são naturalmente divisíveis uma vez que correspondem a um quantitativo pecuniário e são apurados através de operações aritméticas, divisibilidade essa que igualmente resulta da própria lei, em virtude do que é admissível a sua anulação parcial quando o fundamento da anulação apenas afecte uma parte do acto.
4. Na sequência de anulação parcial da liquidação, se for efectuada uma nova liquidação, relativa à parte não anulada, ela substituirá a primeira, devendo ser-lhe dado o tratamento jurídico próprio da reforma de actos administrativos, previsto no artº.79, nº.1, da L.G.T., e artº.44, nº.1, al. d), do C.P.P.T., que se consubstancia na sanação de um vício de violação de lei que afecta o acto reformado, mantendo o seu conteúdo válido e eliminando ou substituindo a parte afectada pela ilegalidade. A reforma tem efeito retroactivo (artº.137, nº.4, do C.P.A., então em vigor), pelo que, mesmo que seja efectuada uma nova notificação os seus efeitos devem reportar-se à data em que foi efectuada a primeira. É que a retroactividade será meramente aparente, uma vez que, na parte não anulada, o acto anterior produz efeitos desde a respectiva notificação, sendo apenas confirmado pelo acto reformador.
5. 5. Releva, nesta matéria, de forma nuclear como de seguida se compreenderá, a delimitação dos conceitos de acto de anulação, de liquidação adicional e de reforma de tal tipo de actos tributários. Ora, como doutamente doutrina o Prof. Alberto Xavier a anulação é o acto pelo qual a Administração Fiscal revoga, total ou parcialmente, o acto tributário que, em virtude de erro de facto, erro de direito ou omissão, tenha definido uma prestação tributária superior à que decorre directamente da lei. A liquidação definitiva excessiva (ou infundada) padece de um vício em sentido próprio. Os seus efeitos cessam de se produzir mercê de um acto jurídico que os constata e que, consequentemente, os destrói retroactivamente. Por sua vez, o acto tributário adicional é aquele através do qual a Administração Fiscal, verificando que mercê de uma omissão foi definida uma prestação inferior à legal, fixa o quantitativo que a esta deve acrescer para que se verifique uma absoluta conformidade com a lei. Ao invés do que sucede com a anulação, o acto adicional não revoga o acto tributário viciado. Porque se trata de uma nulidade simplesmente parcial, a lei mantém todos os efeitos do acto primitivamente praticado, limitando-se a exigir que a Administração, pela prática de um novo acto, titule juridicamente o excedente ou diferença que não fora previamente objecto de declaração. Longe de o destruir, o novo acto “adiciona-se” ao primeiro concorrendo ambos para a clarificação da prestação legalmente devida. Por último, a reforma do acto tributário verifica-se quando, por posterior variação da matéria colectável, a lei manda substituir a liquidação praticada, ainda que correctamente, com base na expressão daquela matéria ao tempo em que a Administração Fiscal a realizou. Ao contrário do que se passa na anulação e no acto tributário adicional não se verifica aqui um vício originário mas uma modificação superveniente do seu objecto.
6. Assim, se o acto reformado foi notificado ao sujeito passivo dentro do prazo de caducidade, é irrelevante para esse efeito a data da prática do acto reformador, no caso, a decisão de reclamação graciosa.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA SECÇÃO DO CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL


1 – RELATÓRIO


M……. e Â....recorrem da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé na parte em que julgou improcedente a execução de julgados e manteve a liquidação de IRS/2008 n.º2013.500006….

Termina o recurso com as seguintes e doutas Conclusões:
«
(“texto integral no original; imagem”)
».

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Exmo. Senhor Procurador-Geral-Adjunto emitiu mui douto parecer concluindo pela improcedência do recurso, mantendo-se a sentença recorrida na ordem jurídica.

Colhidos os vistos legais e nada mais obstando, vêm os autos à conferência para decisão.

2 – DO OBJECTO DO RECURSO

Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação dos Recorrentes (cf. artigos 634.º, n.º4 e 639.º, n.º1 do CPC), a questão central que importa resolver reconduz-se a indagar se a sentença incorreu em erro de julgamento, de facto e de direito, ao concluir que a liquidação n.º2013.50000… efectuada no seguimento do deferimento da reclamação graciosa deduzida da liquidação de IRS/2008 e reflectida na nota de demonstração de compensação n.º2011.000063…., no valor de 103.749,91Euros, não consubstancia, para efeitos de caducidade, uma nova liquidação, mas antes, uma reforma da primitiva liquidação, expurgada do vício de ilegalidade que a afectava.

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Na sentença recorrida deixou-se factualmente consignado:
«
Com interesse para a decisão da causa, de acordo com as diversas soluções plausíveis de direito, julgo provados os seguintes factos, com atinência aos meios de prova respectivos:

1.
No dia 18 de Agosto de 2011, M....e Â.... deduziram Reclamação Graciosa contra a liquidação de IRS do ano de 2008, e respectiva nota de demonstração de compensação n.º 2011.000063….., no valor global de € 103.749,91, na parte em que nesta não foi considerado que o valor da alienação da sua casa de habitação própria e permanente, efectuada no ano de 2008, não foi totalmente reinvestido nos 12 meses antecedentes e nos 36 meses posteriores – cfr. fls. 3-5 do procedimento de Reclamação Graciosa apenso aos autos.
2.
Em 7 de Fevereiro de 2012, o Director de Finanças de Faro deferiu aquela Reclamação decisão proferida no procedimento de Reclamação Graciosa n.º 3859-2011/040….., exarando “Concordo.” na Informação que concluiu “que o valor de realização foi totalmente reinvestido” cfr. fls. 239-241 do procedimento de Reclamação Graciosa apenso aos autos.
3.
Entre Março e Outubro de 2012, bem como em Dezembro de 2012 e Janeiro de 2013, M....e Â.... receberam mensalmente, por via postal, um ofício do Serviço de Finanças de Loulé 2, intitulado “Assunto: Dívidas Fiscais – Recomendação de Pagamento”, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido e que, no que ora interessa, tem o seguinte teor:

“(…)
Exmo(s) Senhor(a)
Constatou-se a existência de dívidas fiscais em seu nome, alertando-se para a necessidade de proceder ao seu rápido pagamento.
A persistência da dívida obrigará a AT a adoptar as medidas de coerção adequadas, tais como a penhora e venda de bens, o cancelamento ou suspensão de todos os benefícios fiscais e reembolsos ou a publicitação na internet através da lista de devedores.
A falta de pagamento provoca também o aumento do valor da dívida, pelo vencimento diário de juros de mora, a que acrescem as custas do processo. (…)”
– cfr. fls. 24-43 do processo principal.
4.
Através do ofício n.º 00026…., de 2012/07/17, o Serviço de Finanças de Loulé 2 notificou M.... do projecto de decisão relativo à cessação dos benefícios fiscais relativos a donativos e encargos com seguros de saúde por estar em dívida IRS no valor de € 102.174,38 – cfr. fls. 46 dos autos.
5.
Através do ofício n.º 00026…, de 2012/08/07, o Serviço de Finanças de Loulé 2 notificou M.... que “após reanálise do projecto de decisão foi decidido manter o direito aos benefícios fiscais identificados na notificação do projecto de decisão” – cfr. fls. 49 dos autos.
6.
Através de ofício de 2013-02-12, o Serviço de Finanças de Loulé 2 notificou M.... para “no prazo de 10 dias se pronunciar por escrito sobre a proposta de inclusão de V. Exa. na lista de devedores tributários, no escalão dos devedores acima de 100.001 euros, conforme informação constante dos sistemas informáticos, organizada de acordo com o previsto nos números 5 e 6 do artigo 64.º da LGT, para divulgação na internet. (…)” – cfr. fls. 60 dos autos.
7.
Em Fevereiro de 2013, M.... e Â.... receberam emails do seu banco no qual era afirmado que os saldos das suas contas bancárias seriam penhoradas pela Administração Tributária – cfr. fls. 54, 56 e 58 dos autos.
8.
Em 15 de Novembro de 2013, M.... e Â.... foram notificados da liquidação de IRS relativa ao ano de 2008 com o n.º 2013.500006…., emitida em 2013-02-22, no valor de € 43.917,82 – cfr. a impressão dos resultados da pesquisa efectuada no site dos CTT relativa ao registo n.º RY631302….., bem como fls. 99-100 e 106 dos autos.

II-B. FACTOS NÃO PROVADOS

Não se provou que:

A.
M.... e Â.... tenham efectuado pagamentos, a título de IRS, referentes ao ano de 2008.

II-C. FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Os documentos referidos não foram impugnados pelas partes e não há indícios que ponham em causa a sua genuinidade.

Quanto ao facto A. dado por não provado, alegado a fls. 105 em sede de resposta à posição da Fazenda, não foi produzida prova.».

4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Pretendem os Recorrentes que a prova dos autos suporta factualidade que os pontos 1. e 2. do probatório não evidenciam rigorosamente, devendo ser dada aos mesmos nova redacção, respectivamente, do seguinte teor:
Ø Ponto 1. «M.... e Â....deduziram reclamação graciosa contra a liquidação de IRS do ano de 2008, e respectiva nota de demonstração de compensação n.º2011.000063…, no valor global de €103.749,91, concluindo da forma seguinte: “TERMOS EM QUE EFECTUADA A DEMONSTRAÇÃO DO REINVESTIMENTO DAS MAIS-VALIAS TOTALMENTE REALIZADO, DEVERÁ SER DECLARADA A ANULAÇÃO DA LIQUIDAÇÃO INDEVIDAMENTE EFECTUADA E DO SALDO OBJECTO DA DEMONSTRAÇÃO” – cf. fls.3-5 do procedimento de reclamação graciosa apenso aos autos», e,
Ø Ponto 2. «Em 7 de Fevereiro de 2012, o Director de Finanças de Faro deferiu aquela reclamação através de decisão proferida no procedimento de reclamação graciosa n.º38….-2011/ 04002…, exarando “Concordo”, na PROPOSTA DE DECISÃO “Deferido”, que acolheu o Parecer que concluiu “que o valor de realização foi totalmente reinvestido pelo que deverá a liquidação reclamada ser anulada” – cf. fls.239-241 do procedimento de Reclamação Graciosa apenso aos autos»

Mais, pretendem os Recorrentes em sede de erro de julgamento de facto, que se dê como provado o facto A., julgado na sentença como «não provado».

Vejamos.

Consta no artigo 640º, do CPC, o seguinte:
1) Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Como se vê, os Recorrentes impugnaram eficazmente a decisão de facto posto que indicam os concretos pontos do probatório que consideram incorrectamente julgados, os meios de prova que sustentam a sua leitura dos factos e a decisão que deve ser a proferida.

Relativamente aos pontos 1 e 2 da matéria assente, entende-se ser de alterar o probatório da sentença no sentido propugnado pelos impugnantes por ser em abstracto susceptível de relevar para a questão factual colocada como adiante melhor se verá e, em particular, no que respeita ao ponto 1, porque o segmento “…deduziram Reclamação Graciosa contra a liquidação de IRS do ano de 2008 (…) na parte em que nesta não foi considerado que o valor da alienação da sua casa de habitação própria e permanente, efectuada no ano de 2008, não foi totalmente reinvestido nos 12 meses antecedentes e nos 36 posteriores”, que os impugnantes pretendem ver amputado, encerra já uma leitura conclusiva do objecto da reclamação graciosa, que justamente se assume como a questão factual dos autos.
Quanto ao ponto A., dado como «não provado», o que nele se consignou foi que não se provou que M.... e Â.... tenham efectuado pagamentos a título de IRS referentes ao ano de 2008, coisa bem diferente de dizer que não fizeram pagamentos por conta do imposto, pois os primeiros supõem já praticado o acto de liquidação e os segundos, são efectuados antes da liquidação e são calculados com base no imposto liquidado por referência ao período de tributação imediatamente anterior àquele em que se devam efectuar tais pagamentos.

De resto, há que dar razão aos Recorrentes, tais pagamentos por conta, no valor de 26.697,00Euros estão reflectidos no campo 22 das notas demonstrativas das liquidações efectuadas antes da decisão de reclamação graciosa (fls.12, 13 e 14 dos autos) e após essa decisão (n.º 2013.5000063... – fls.100).

Tudo visto, alteram-se os pontos 1. e 2. do probatório e adita-se ao mesmo, como facto provado, um ponto 9., como segue:
1.
M.... e Â.... deduziram reclamação graciosa contra a liquidação de IRS do ano de 2008, e respectiva nota de demonstração de compensação n.º2011.000063…, no valor global de €103.749,91, concluindo da forma seguinte: “TERMOS EM QUE EFECTUADA A DEMONSTRAÇÃO DO REINVESTIMENTO DAS MAIS-VALIAS TOTALMENTE REALIZADO, DEVERÁ SER DECLARADA A ANULAÇÃO DA LIQUIDAÇÃO INDEVIDAMENTE EFECTUADA E DO SALDO OBJECTO DA DEMONSTRAÇÃO” – cf. fls.3-5 do apenso de reclamação graciosa.
2.
Em 7 de Fevereiro de 2012, o Director de Finanças de Faro deferiu aquela reclamação graciosa através de decisão proferida no procedimento de reclamação graciosa n.º3….-2011/ 0400…., exarando despacho de “Concordo”, sobre anterior parecer do Sr. Chefe de Divisão de “Confirmo a proposta de decisão” lançado na informação burocrática dos serviços de 07/02/2012 em que se conclui “que o valor de realização foi totalmente reinvestido pelo que deverá a liquidação reclamada ser anulada”, fazendo-se constar do campo respectivo da proposta de decisão da reclamação graciosa a indicação de “Deferida”cf. fls.239-241 do apenso de reclamação graciosa.
9.
As notas demonstrativas das liquidações de IRS relativas a 2008, efectuadas antes da decisão de reclamação graciosa e após essa decisão assinalam no seu campo 22 pagamentos por conta, no valor de 26.697,00Euros – cf. demonstrações de liquidações a fls.12, 13 e 14 e demonstração de liquidação n.º 2013.5000….., a fls.100 dos autos.

Estabilizado o probatório, importa avançar na apreciação das demais questões do recurso. Pois bem,

Com interesse, mostram os autos que os ora Recorrentes, não se conformando com a liquidação de IRS/2008, deduziram reclamação graciosa formulando, a final, o seguinte pedido: «Termos em que efectuada a demonstração do reinvestimento das mais-valias, totalmente realizado, deverá ser declarada a anulação da liquidação indevidamente efectuada e do saldo objecto da demonstração» (cf. fls.4 do apenso).

Pretendem os Recorrentes que tendo pedido na reclamação graciosa a anulação da liquidação indevidamente efectuada sobre que veio a recair despacho de “Concordo” do Sr. Director de Finanças de Faro sobre parecer do Sr. Chefe de Divisão de “Confirmo a proposta de decisão” exarado na informação dos serviços cuja proposta de decisão, assinalada no campo III relativo a “proposta de decisão da reclamação” foi de “Deferida” (cf. fls.241 do apenso), só pode entender-se que a liquidação n.º2013.5000….., subsequente à decisão da reclamação graciosa, consubstancia uma nova liquidação e não uma alteração da liquidação reclamada, o que entre o mais, releva para efeitos de contagem do prazo legal de caducidade.

Nessa linha de entendimento, através da presente execução de julgado – forma processual para que foi convolada pelo tribunal a quo a petição inicial de Intimação para um Comportamento (cf. douto despacho a fls.88) – vêm sustentar, nomeadamente e ao que agora importa, que aquela liquidação n.º2013.50000…. não se conforma com o decidido na reclamação graciosa, por se tratar de uma nova liquidação efectuada após o prazo de caducidade, tendo a sentença incorrido em erro de julgamento ao concluir tratar-se de uma reforma da primitiva liquidação, que se limita a dar execução ao decidido na reclamação graciosa. Ora, vejamos.

Antes de mais, diga-se que a execução de julgados, meio processual para que foi convolada a petição inicial de Intimação para um Comportamento, pode ser utilizada para obter a execução judicial de actos administrativos inimpugnáveis, nos termos previstos no art.º157.º, n.º2 do Cód. de Processo nos Tribunais Administrativos, aplicável ao processo tributário por remissão expressa do n.º1 do art.º146.º do CPPT.

Isso assente, não pode ser feita uma leitura fragmentada do procedimento de reclamação graciosa, dele extraindo os elementos que mais convêm aos Exequentes/ Recorrentes, antes devendo ser fixado o alcance do julgado contextualizando o decidido com o pedido e a causa de pedir, ou fundamentos, da reclamação graciosa.

E, o que se constata, é que na reclamação graciosa os Exequentes/Recorrentes se limitaram a apontar à liquidação reclamada erro nos pressupostos, porquanto, entendem ter ficado demonstrado que “o valor da alienação efectuada no ano de 2008, foi totalmente reinvestido nos 12 meses antecedentes e 36 meses posteriores, estando cumpridos os requisitos consagrados no art.º10.º n.º1 e 5.º, alíneas a) e b) do CIRS”.

É certo que, a final e como se levou ao probatório, pedem expressamente que “…deverá ser declarada a anulação da liquidação indevidamente efectuada…”, mas esse pedido, articulado com a causa de pedir, só pode entender-se como visando a anulação da liquidação reclamada na parte afectada da ilegalidade invocada. De igual modo, quando na informação burocrática que sustenta a decisão de reclamação graciosa (consta a fls.239/241 do apenso) se conclui “que o valor de realização foi totalmente reinvestido, pelo que deverá a liquidação reclamada ser anulada”, tal declaração tem de ser articulada com a linha de análise anteriormente feita, que inequivocamente se limita – e só - à questão suscitada do valor de realização reinvestido.

Dito de outro modo, quando naquela informação dos serviços se diz que “deverá a liquidação reclamada ser anulada” e, mais adiante se propõe o seu deferimento – que viriam a merecer superior parecer e despacho concordantes – o sentido que se extrai do contexto da declaração outro não é senão o de que a liquidação deverá ser anulada na parte reclamada.

Os actos administrativos e tributários, como actos jurídicos que são, obedecem às regras comuns de interpretação previstas nos artigos 236.º a 239.º do Código Civil para as declarações negociais.

De acordo com o disposto no n.º1 do art.º236.º, do Código Civil, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante.

E o sentido normal de uma declaração, ainda que ambígua, apreende-se colhendo todos os elementos que auxiliem na descoberta da vontade real do declarante impondo a lei que não se chegue a um resultado sem “um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento” (art.º238.º, n.º1, do Código Civil).

E seguindo essa linha interpretativa, outro sentido não se pode colher senão o de que a anulação da liquidação se circunscreveu à parte do acto inquinada de ilegalidade por erro nos pressupostos, não podendo ter-se por razoável, dentro de um critério objectivista, a interpretação propugnada pelos exequentes, aqui Recorrentes, nem por legítima a expectativa que eventualmente pudessem ter quanto à anulação total do acto de liquidação reclamado.

Com interesse, pode ver-se o Acórdão do TCA Norte, de 09/17/2015, exarado no proc.º00862/12.9BEAVR, em que foi relator o mesmo deste.

E, ainda, o Acórdão do mesmo TCA Norte, de 12/07/2016, tirado no proc.º00979/04.3BEVIS, do mesmo relator, em cujo sumário se consignou: «Se a impugnante apenas ataca parte das correcções que estão na base da liquidação impugnada mas formule pedido de anulação da liquidação, e a sentença decida pela anulação da liquidação conforme pedido, só pode entender-se que a extensão e alcance anulatório da liquidação impugnada se circunscreve à parte da liquidação assente na correcção com que a impugnante se não conforma e não à restante parte, assente em correcções que não integraram o objecto da impugnação judicial».

Concluindo, a liquidação reclamada foi anulada na parte inquinada da ilegalidade invocada pelos Recorrentes, mantendo-se na ordem jurídica quanto à parte restante, isto é, na parte que não foi objecto de reclamação.

Isso assente, como se escreveu no recente Acórdão deste TCA Sul, de 04/18/2018, tirado no proc.º410/17.4BELLE, cuja linha decisória se acompanha, «a divisibilidade do acto tributário constitui o argumento utilizado pela jurisprudência para fundamentar a possibilidade da decisão judicial (e administrativa, acrescentamos nós) de anulação parcial dos actos tributários.

Baseando-se na classificação dos actos administrativos divisíveis, a jurisprudência dos Tribunais Superiores abundantes vezes já afirmou que os actos que imponham a obrigação de pagamento de uma quantia, como é o caso dos actos de liquidação de tributos, são naturalmente divisíveis uma vez que correspondem a um quantitativo pecuniário e são apurados através de operações aritméticas, divisibilidade essa que igualmente resulta da própria lei, em virtude do que é admissível a sua anulação parcial quando o fundamento da anulação apenas afecte uma parte do acto.

Na sequência de anulação parcial da liquidação, se for efectuada uma nova liquidação, relativa à parte não anulada, ela substituirá a primeira, devendo ser-lhe dado o tratamento jurídico próprio da reforma de actos administrativos, previsto no artº.79, nº.1, da L.G.T., e artº.44, nº.1, al. d), do C.P.P.T., que se consubstancia na sanação de um vício de violação de lei que afecta o acto reformado, mantendo o seu conteúdo válido e eliminando ou substituindo a parte afectada pela ilegalidade. A reforma tem efeito retroactivo (artº.137, nº.4, do C.P.A., então em vigor), pelo que, mesmo que seja efectuada uma nova notificação os seus efeitos devem reportar-se à data em que foi efectuada a primeira. É que a retroactividade será meramente aparente, uma vez que, na parte não anulada, o acto anterior produz efeitos desde a respectiva notificação, sendo apenas confirmado pelo acto reformador.

Releva, nesta matéria, de forma nuclear como de seguida se compreenderá, a delimitação dos conceitos de acto de anulação, de liquidação adicional e de reforma de tal tipo de actos tributários. Ora, como doutamente doutrina o Prof. Alberto Xavier (“Conceito e Natureza do Acto Tributário”, Almedina, Coimbra, 1972, pág.127 e seg.), a anulação é o acto pelo qual a Administração Fiscal revoga, total ou parcialmente, o acto tributário que, em virtude de erro de facto, erro de direito ou omissão, tenha definido uma prestação tributária superior à que decorre directamente da lei. A liquidação definitiva excessiva (ou infundada) padece de um vício em sentido próprio. Os seus efeitos cessam de se produzir mercê de um acto jurídico que os constata e que, consequentemente, os destrói retroactivamente. Por sua vez, o acto tributário adicional é aquele através do qual a Administração Fiscal, verificando que mercê de uma omissão foi definida uma prestação inferior à legal, fixa o quantitativo que a esta deve acrescer para que se verifique uma absoluta conformidade com a lei. Ao invés do que sucede com a anulação, o acto adicional não revoga o acto tributário viciado. Porque se trata de uma nulidade simplesmente parcial, a lei mantém todos os efeitos do acto primitivamente praticado, limitando-se a exigir que a Administração, pela prática de um novo acto, titule juridicamente o excedente ou diferença que não fora previamente objecto de declaração. Longe de o destruir, o novo acto “adiciona-se” ao primeiro concorrendo ambos para a clarificação da prestação legalmente devida. Por último, a reforma do acto tributário verifica-se quando, por posterior variação da matéria colectável, a lei manda substituir a liquidação praticada, ainda que correctamente, com base na expressão daquela matéria ao tempo em que a Administração Fiscal a realizou. Ao contrário do que se passa na anulação e no acto tributário adicional não se verifica aqui um vício originário mas uma modificação superveniente do seu objecto» (fim de citação).

Assim, não merece qualquer censura o entendimento da sentença recorrida de que o acto de liquidação reclamado apenas foi objecto de revogação administrativa na parte afectada de ilegalidade, e que a liquidação n.º2013.50000… se limita a dar execução ao acto reformador (acto pelo qual se conserva de um acto anterior a parte não afectada de ilegalidade), sendo que a reforma segue o regime da revogação e retroage os seus efeitos à data dos actos a que respeitam (artigo 137.º do CPA), configurando, no fundo, uma espécie de revogação parcial.

Como assim, logo se alcança que para efeitos de caducidade daquela liquidação n.º2013.5000….., o prazo que releva se afere à data da prática do acto de liquidação reformado (no caso, o reclamado) e este foi notificado aos exequentes e ora Recorrentes logicamente com anterioridade à data de apresentação da reclamação graciosa, portanto, antes de 18/08/2011 (cf. carimbo de entrada do S.F. de Loulé-2, aposto no requerimento, a fls.3 do apenso), ou seja, dentro do prazo de quatro anos previsto no art.º45.º, n.ºs 1 e 4, da Lei Geral Tributária.

Note-se, por último, que embora os exequentes e ora Recorrentes aleguem que também faziam referência na reclamação graciosa à ineficácia da liquidação reclamada por vícios da respectiva notificação, a verdade é que nenhuma pronúncia foi dada na reclamação a essa questão, tendo os Recorrentes aceitado a decisão da reclamação, sendo que nesta forma de processo está unicamente em causa definir o alcance e âmbito da execução da decisão de reclamação graciosa (art.º100.º da LGT), estando vedado ao tribunal proceder à apreciação dos vícios de que eventualmente padeça a decisão administrativa cuja execução se pretende.

O recurso não merece provimento, sendo de confirmar a sentença recorrida.


5 - DECISÃO

Por todo o exposto, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.

Condena-se os Recorrentes em custas.

Lisboa, 25 de Junho de 2019



_______________________________
Vital Lopes




________________________________
Joaquim Condesso




________________________________
Mário Rebelo