Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2317/19.1BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:05/14/2020
Relator:PAULA DE FERREIRINHA LOUREIRO
Descritores:ASILO- RETOMA A CARGO- ITÁLIA;
AUDIÊNCIA PRÉVIA- FALHAS SISTÉMICAS- REFOULEMENT INDIRETO;
ARTIGO 3.º, N.º 2 REGULAMENTO (UE) 604/2013- ARTIGO 3.º CEDH- ARTIGO 4.º CDFUE.
Sumário:I- O exercício do direito de audiência prévia previsto no art.º 5.º, n.º 6 do Regulamento (UE) n.º 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho (doravante, Regulamento Dublin), não obriga a que o relatório ou resumo da entrevista seja notificada ao requerente antes de ser emitida a decisão final deste procedimento especial, nos termos do art.º 17.º da Lei do Asilo, assim como não impõe que ao requerente deva ser notificado o projeto de decisão de inadmissibilidade do pedido de proteção internacional e subsequente transferência para o Estado responsável, por forma a que possa emitir a sua pronúncia.
II- No âmbito do procedimento especial de determinação do Estado responsável ao abrigo do Regulamento Dublin, e de acordo com o disposto no art.º 5.º, n.º 6 do dito Regulamento, o direito de audiência prévia do requerente de asilo pode ser exercido durante a entrevista pessoal a que se refere o art.º 5.º, n.º 1 do mesmo Regulamento, ou no final da mesma entrevista, contanto que ao requerente seja prestado todo o manancial informativo descrito no art.º 4.º do aludido Regulamento, e lhe seja dada a oportunidade de apresentar cabalmente todos os seus argumentos, razões e factos, mormente no caso de uma provável transferência para outro Estado.
III- Entendendo-se que o direito de audiência prévia pode ser exercitado em sede da entrevista pessoal descrita no art.º 5.º, n.º 1 do Regulamento, deve igualmente entender-se que o direito de audiência prévia queda aniquilado no caso de o seu exercício por banda do requerente de proteção internacional ser, algum modo, desadequado, incompleto ou insuficiente.
IV- O direito europeu consagra, em matéria de asilo, a garantia a um procedimento justo, que inclui o direito a uma análise individualizada e atualizada do pedido de proteção internacional.
V- Tal direito a um procedimento justo constitui uma garantia de efetivação do direito de asilo, encarado este como um direito fundamental internacional ao acolhimento, titulado por todos os que reúnam determinadas condições.
VI- Ora, a ausência de procedimento justo e individualizado para efeitos de concessão de asilo, ou o impedimento de acesso ao mesmo, pode constituir infração ao art.º 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, ou ao art.º 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, conduzindo à anulação da decisão de transferência de um requerente de asilo no domínio do Regulamento Dublin, como aliás foi já firmado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no Acórdão promanado em 21/01/2011, M.S.S. vs Bélgica e Grécia, Queixa n.º 30696/09, e pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, em sede de reenvio prejudicial, no Acórdão proferido pela Grande Secção em 21/12/2011, nos processos apensos C-411/10 e C-493/10, N.S. vs Secretary of State for the Home Department.
VII- Impunha-se ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras uma averiguação dos factos mais profunda e cuidadosa relativamente às circunstâncias referenciadas pelo requerente, respeitantes à atuação das autoridades italianas e ao facto do mesmo afirmar perentoriamente não querer regressar a Itália.
VIII- Tal averiguação assoma como crucial, em virtude de subsistir no Direito da União Europeia um princípio de non-refoulement, derivado do art.º 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e do art.º 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que constitui uma barreira de absoluta intransponibilidade, e da qual resulta a proibição de transferência de qualquer pessoa para outro Estado se essa transferência acarreta o risco de tortura, ou de tratamento humano ou degradante.
IX- Este princípio tem sido afirmado desde há muito, tendo o Tribunal de Justiça da União Europeia reiterado o sobredito valor principiológico no Acórdão proferido em 16/02/2017 no processo C-578/16 PPU, C.K. vs Republika Slovenija, e explicitado que deve admitir-se outras circunstâncias fundamentadoras de uma proibição de transferência de um requerente de asilo para o Estado responsável para além das falhas sistémicas que neste Estado possam existir.
X- Nesta senda, o risco de violação do art.º 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia deve ser avaliado de modo completo e individual, abarcando não só o risco de devolução direta ou de devolução em cadeia (ou indireta), como o próprio risco da transferência em si mesma, em concordância com a Jurisprudência cristalizada no Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no Acórdão promanado em 21/01/2011, M.S.S. vs Bélgica e Grécia, queixa n.º 30696/09, bem como no Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia promanado em 16/02/2017, no processo C-578/16 PPU, C.K. vs Republika Slovenija.
XI- A consideração do princípio de non refoulement e a respetiva importância para o sistema Dublin está já estabelecida pela Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, especificamente, nos Acórdãos promanados em 21/01/2011, M.S.S. vs Bélgica e Grécia, Queixa n.º 30696/09, e em 04/11/2014, Tarakhel vs Suíça, Queixa n.º 29217/12.
XII- O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras não possibilitou ao requerente a apresentação de todo o acervo de razões e factos potencialmente obstaculizantes à emissão da decisão de transferência, demitindo-se também da realização de qualquer diligência instrutória apta a confirmar ou infirmar o teor do declarado pelo requerente.
XIII- Neste contexto, valorizando a insuficiência e incompletude do exercício do direito de audiência prévia, impera concluir que tal direito foi, afinal, coartado pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, atendendo ao modo como auscultou o requerente e à absoluta passividade e indiferença com que encarou e tratou as breves declarações do requerente.
XIV- O que quer dizer que, por ter sido exercido de modo deficiente em virtude da concreta atuação do aludido Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, deve concluir-se pela violação do direito de audiência prévia do requerente, violação esta que inquina as decisões de inadmissibilidade e transferência de ilegalidade.
XV- A atuação do Estado não é estritamente vinculada, no sentido em que ocorre impedimento absoluto de análise de um pedido de proteção internacional se o requerente já tiver formulado pedido similar noutro Estado-Membro.
XVI- Para além da cláusula de soberania inscrita no art.º 17.º, bem como para além das situações de existência de falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes e do risco de tratamento desumano, descritas no art.º 3.º, n.º 2 do Regulamento de Dublin, o mesmo instrumento jurídico estipula claramente, em jeito até de “válvula de segurança” e de favorecimento da posição do requerente de asilo, a possibilidade de um Estado-Membro assumir, no âmbito do exercício de um poder discricionário, a responsabilidade pela decisão do pedido de proteção internacional, independentemente dos critérios e regras estabelecidas.
XVII- A existência de um prévio pedido de proteção internacional formulado perante outro Estado-Membro não dispensa o exame cuidadoso da situação apresentada pelo requerente de asilo.
XVIII- A omissão da análise individualizada e cuidadosa da situação do requerente de asilo não só contraria todo o espírito que preside à existência do Regulamento de Dublin- e veja-se a este propósito os considerandos 9, 11, 15, 17, 18, 19, 21, 22 e 39-, como pode conduzir ao desrespeito da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, especialmente dos art.ºs 19.º, 41.º e 47.º.
XIX- É nosso entendimento que subsistem claros, evidentes e demonstrados indícios da existência de falhas sistémicas no sistema de receção e acolhimento de refugiados do Estado Italiano, derivados quer na atual modelação do sistema legal italiano, quer na insuficiência manifesta de condições materiais.
XX- Estas asserções decorrem dos relatos, descrições, informações, conclusões e notícias veiculadas e difundidas por múltiplas ONG’s, bem como por instituições internacionais dedicadas ao acompanhamento, tratamento e análise dos aspetos legais e da implementação prática de todo o sistema internacional de asilo, das quais salientamos o European Council on Refugees and Exiles (doravante, ECRE), a Asylum Information Database (em diante, apenas AIDA), o Conselho da Europa- Comité Europeu para a Prevenção de Tortura e das Penas ou Tratamento Desumano ou Degradante, o Danish Refugee Council, o Swiss Refugee Council, a European Database of Asylum Law (EDAL, em diante), a European Legal Network on Asylum (doravante, ELENA), a European Asylum Support Office (EASO, em diante) e a Associazione per gli Studi Guiridici Sull’ Immigrazione (ASGI).
Votação:UNANIMIDADE, COM DECLARAÇÃO DE VOTO
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acordam, em Conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

O Ministério da Administração Interna- Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (Recorrente), vem interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa em 03/01/2020, que, julgando procedente a ação administrativa especial urgente proposta por A….. (Recorrido), condenou o ora recorrente a proferir nova decisão após instrução adequada do procedimento referente ao pedido de asilo formulado pelo Recorrido em 27/08/2019, e, inerentemente, anulou o despacho emitido em 03/10/2019 pela Diretora Nacional daquele Serviço, que considerou inadmissível o pedido de proteção internacional formulado pelo Recorrido e determinou a transferência do mesmo para a Itália.

 

As alegações de recurso oferecidas pelo Recorrente culminam com as seguintes conclusões:

«II- DAS CONCLUSÕES

1.ª- Resulta evidente que o Tribunal a quo na sua ponderação e julgamento do caso sub judice, e refutando a decisão do recorrente, não deu cumprimento às normas legais vigentes em matéria de asilo, mormente no que respeita ao mecanismo da Retoma a Cargo, ao qual a Itália está vinculada;

2.ª- O ora recorrente deu início ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de asilo, que culminou com o apuramento de que essa responsabilidade pertencia à Itália (cf. Art.º 18.º, n.º 1 b) do citado Regulamento (UE) 604/2013 e art.º 37.º, n.º 1 da Lei n.º 27/2008 (Lei de Asilo)), impondo a lei como consequência imediata (vinculada) que fosse proferido o acto de inadmissibilidade e de transferência;

3.ª- De harmonia com o art.s 18.º n.º 1, b) do Regulamento (UE) 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, e o art.º 37.º, n.º 1 da Lei de Asilo, a ora recorrente procedeu à determinação do Estado-Membro responsável pela análise do pedido de asilo, procedimento regido pelo art.º 36.º e seguintes da Lei 27/2008, de 30 de junho (Lei de Asilo), tendo, no âmbito do mesmo sido apresentado, aos 18/09/2019, pedido de retoma a cargo às autoridades italianas, o qual foi tacitamente aceite, atento o estatuído no n.º 2 do artigo 25 do referido Regulamento Dublin.

4.ª- Consequente e vinculadamente, por despacho da Diretora Nacional do ora recorrente proferido aos 03/10/2019, nos termos dos art.ºs 19.º-A, n.º 1, a) e 37.º, n.º 2 da citada lei, foi o pedido considerado inadmissível e determinada a transferência do requerente para Itália, Estado-Membro responsável pela análise do pedido de Asilo nos termos do citado regulamento, motivo pelo qual o Estado português se torna apenas responsável pela execução da transferência nos termos dos art.ºs 29.º e 30.º do Regulamento de Dublin;

5.ª- “Estamos, portanto, perante um ato estritamente vinculado, sendo que a validade dos atos praticados no exercício de poderes vinculados tem de ser feita em função dos pressupostos de facto e de direito fixados por lei, ou seja pela confrontação da factualidade dada como provada com a consequência jurídica imediatamente derivada da lei (...) é a própria Lei n.º 27/2008, de 30 de Junho, que no seu artigo 37.º, n.º 2, lhe impunha a atuação levada a efeito" (cf. Acórdão do TCA SUL de 19/01/2012, proc. N.º 08319/11);

6.ª- Com a devida Vénia, afigura-se ao recorrente que a Sentença, ora objeto de recurso, carece de fundamentação legal, porquanto não logrou fazer a melhor interpretação do regime que regula os critérios de determinação do estado membro responsável, em conformidade com o Regulamento (EU) que o hospeda.

7.ª- Na verdade, não pode o ora recorrente aceitar o veredicto plasmado na Sentença que considerou boa a tese do recorrido (Autor).

8.ª- Estamos perante um procedimento em que o Estado Membro responsável já estava determinado, sendo este Estado a Itália, Estado onde foi apresentado o pedido de proteção internacional pela primeira vez. Ao deslocar-se para Portugal, cabe às autoridades portuguesas, ora Recorrente, aplicar vinculadamente as regras da retoma a cargo, previstas no artigo 23.º do Regulamento (UE) n9 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de julho, e ao Estado italiano cumprir com as obrigações previstas no artigo 18, do mesmo Regulamento.

9.ª- Estatui a alínea a) do n° 1 do art.º 19.º-A da Lei 27/2008, de 30 de junho, que "o pedido é considerado inadmissível, quando se verifique que está sujeito ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, previsto no capítulo IV".

10.ª- Nesse sentido e em sede de garantias dos requerentes, o regulamento Dublin vem estabelecer no art.º 4.º o Direito à informação e, no art.º  5.º, a realização de uma Entrevista pessoal "Afim de facilitar o processo de determinação do Estado-membro responsável (...). A entrevista deve permitir, além disso, que o requerente compreenda devidamente as informações que lhe são facultadas nos termos do art.º 4.º.";

11.ª- No caso em escrutínio, e em cumprimento do disposto no art.º 5.º do Regulamento 604/2013 (Regulamento Dublin) ex vi art.º 36.º, n.º 1 da Lei 27/2008, a 01/07/2019, foi realizada entrevista pessoal ao requerente (cf. pág. 19 a 25 do PA) que deu origem ao respetivo Relatório;

12.ª- No âmbito desta entrevista, o requerente foi informado da aplicação do referido Regulamento quanto aos critérios de determinação do Estado-Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional que formulou, tendo-lhe sido facultada a possibilidade de pronuncia quanto à eventual decisão de retoma a cargo a proferir pelo Estado onde o pedido foi apresentado, bem como alegar elementos suscetíveis de afastar a aplicação dos critérios de responsabilidade e, consequentemente, a sua transferência para Itália;

13.ª- Quanto à questão da existência de eventuais falhas sistémicas nos procedimentos de receção dos pedidos de proteção internacional por parte das autoridades Italianas, esteve mal o douto Tribunal na sua apreciação.

14.ª- No que respeita ao sistema de análise dos pedidos de asilo da Itália, quer nos elementos constantes nos autos, inexistem quaisquer indícios que permitam concluir pela existência de falhas sistémicas no procedimento de Asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes, que impliquem um risco de tratamento desumano ou degradante, ou que dadas as particulares condições do requerente a transferência implique um risco sério e verosímil de exposição a um tratamento contrário ao art.º 4.º da CDFUE, nem risco objetivo (direto ou indireto) de reenvio para o país de origem, para que Portugal não proferisse a decisão de transferência ora impugnada.

15.ª- Neste sentido, veja-se o Acórdão proferido pelo STA, no processo 2240/18.7BELSB.

16.ª- No caso vertente, também em momento algum, o ora Recorrido, concretizou em que medida foi sujeito a uma situação de falha sistémica ou tratamento desumano durante a sua permanência em solo Italiano.

17.ª- Nesta sede, não podia o Estado Português concluir que estava impedido, por força do disposto no segundo parágrafo do n.º 2, do artigo 3.º do Regulamento (EU) n.º 604/2013, de proceder à transferência do requerente para Itália.

18.ª- Ao contrário do pugnado pela douta sentença recorrida, o procedimento de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional (que culminou com o apuramento de que essa responsabilidade pertencia à Itália) antecede e fundamenta que o pedido apresentado seja considerado inadmissível e seja determinada a transferência da análise do pedido;

19.ª- Crê-se destarte inequívoco, que a Sentença a quo carece de legalidade, porquanto, conforme precedentemente explanado, no estrito cumprimento do estatuto pelo direito vigente sobre a matéria, se lhe impunha considerar impoluto o ato do ora Recorrente.

20.ª- Ao invés, assim não atuou, razão pela qual ora se pugna pela revogação da douta Sentença, atenta a correta interpretação e aplicação da Lei.

21.ª- Neste contexto, e ao invés da douta sentença, o ato administrativo anulado encontra-se legalmente enquadrado face ao disposto nos comandos imperativos ínsitos na legislação supra invocada, devendo assim ser acolhido, porquanto se mostra irrepreensível.

22.ª- Em suma, o entendimento plasmado pelo recorrido conduz à ilegalidade da sentença, devendo, por isso, ser revogada.

Nestes termos e nos melhores de direito, deve o presente recurso e o pedido formulado serem julgados procedentes por provados, e revogar- se a douta sentença recorrida com todas as legais consequências.»

O Recorrido não apresentou contra-alegações.

 


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O Digníssimo Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal Central Administrativo emitiu pronúncia sobre o mérito do recurso, pugnando pelo seu improvimento, uma vez que, no seu entendimento, a sentença revela-se acertada, tendo enxergado os diversos aspetos atinentes às invocadas falhas sistémicas que ocorrem, presentemente, em Itália.


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Com dispensa de vistos, atenta a sua natureza urgente, vem o processo submetido à Conferência desta Secção do Contencioso Administrativo para decisão.

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  Questões a apreciar e decidir:

As questões suscitadas pelo Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respetivas conclusões, consubstanciam-se, em suma, em apreciar se a sentença a quo padece de erros de julgamento. Concretamente, as problemáticas a deslindar são a de apurar, tendo em conta que na situação vertente houve lugar à determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, conducente à decisão de inadmissibilidade deste pedido e à decisão de transferência do Recorrido para Itália:

i) se a decisão de inadmissibilidade do pedido e sequente transferência constitui um ato vinculado nos termos do regime do Regulamento (EU) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho; e

II) se ocorrem, em Itália, falhas sistémicas no procedimento de asilo ou nas condições de acolhimento dos requerentes de asilo.

II- FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA

É a seguinte a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, a qual se reproduz ipsis verbis:

« A) O Autor é natural da República do Gana (fls. 1 do processo administrativo);

B) Em 27.8.2019 o Autor apresentou pedido de proteção internacional junto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (fls. 1 a 12 do processo administrativo);

C) Através do sistema de comparação de impressões digitais Eurodac o Serviço de Estrangeiros e Fronteira verificou que o Autor havia apresentado anteriormente um pedido de proteção internacional a Itália, inserido por este país em 17.12.2015 (fls. 3 do processo administrativo);

D) Em 18.9.2019 o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras formulou um pedido de retoma a cargo do Autor à Itália (fls. 21 do processo administrativo);

E) Em 30.9.2019 o Autor prestou declarações no Gabinete de Asilo e Refugiados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, de cujo auto consta, nomeadamente, o seguinte (fls. 27 a 31 do processo administrativo):




F) Em 3.10.2019 o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras comunicou a Itália que, em face da ausência de resposta em duas semanas, considerava que aquele país aceitava a retoma a cargo do Autor (fls. 32 e 33 do processo administrativo);

G) Em 3.10.2019 o Gabinete de Asilos e Refugiados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras elaborou a informação n.º ….., da qual consta, nomeadamente, o seguinte (fls. 35 a 38 do processo administrativo):



H) Em 3.10.2019 o Diretor Nacional Adjunto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, em suplência da Diretora Nacional, exarou despacho com o seguinte teor (fls. 39 do processo administrativo):


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A convicção do tribunal formou-se com base no teor de documentos que integram o processo administrativo, nos termos que se encontram expressamente referidos em cada um dos pontos do probatório.

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Não existem factos alegados relevantes para a decisão, em face das possíveis soluções de direito, que importe referir como não provados.»
 
            III- APRECIAÇÃO DO RECURSO
O Recorrido, A….., propôs no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa a presente ação administrativa de natureza urgente, demandando o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, do Ministério da Administração Interna, de modo a obter a anulação do ato administrativo que considerou inadmissível o pedido de asilo apresentado no Gabinete de Asilo e Refugiados e, em consequência, determinou a sua retoma a cargo para Itália. Para além da pretensão anulatória, o Recorrido peticiona, ainda, a condenação do Recorrente “a instruir novo processo, que permita a concessão de asilo ao requerente”.
Em 03/01/2020, o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa julgou a ação procedente e condenou o Recorrente “a reconstituir o procedimento (…), de modo a apurar se se verificam, relativamente a Itália, os pressupostos de aplicação da cláusula de salvaguarda constante do artigo 3.º/2 do Regulamento (UE) n.º 604/2013 do parlamento Europeu e do Conselho de 26 de junho de 2013.”
A decisão condenatória inserta na sentença recorrida acarreta, naturalmente, a eliminação da ordem jurídica do ato proferido em 03/10/2019 pelo Recorrente, nos termos prescritos no art.º 66.º, n.º 2 do CPTA.
Discorda o Recorrente do julgado na Instância a quo, invocando a ocorrência de erros de julgamento, pois que, no seu entendimento, a decisão de inadmissibilidade do pedido e sequente transferência constitui um ato vinculado nos termos do regime do Regulamento (EU) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, e que não estão demonstradas nos autos, nem ocorrem, em Itália, falhas sistémicas no procedimento de asilo ou nas condições de acolhimento dos requerentes de asilo.
Vejamos, então, se assiste razão ao Recorrente.

A concessão do direito de asilo ou, subsidiariamente, de proteção subsidiária, está prevista e é regulada, em termos de direito nacional infraconstitucional, pela Lei n.º 27/2008, de 30 de junho, alterada pela Lei n.º 26/2014, de 5 de maio (Lei do Asilo em diante), diploma que estabelece as condições e procedimentos de concessão de asilo ou de proteção subsidiária.
De acordo com a Lei do Asilo, as disposições comuns do procedimento a seguir para apreciação e decisão dos pedidos de proteção internacional estão consignadas nos art.ºs 10.º a 22.º.
No que releva para o caso versado, dispõem os art.ºs 19.º-A e 20.º o seguinte:
Artigo 19.º-A
Pedidos inadmissíveis
1- O pedido é considerado inadmissível, quando se verifique que:
a) Está sujeito ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, previsto no capítulo IV;
[…]
2- Nos casos previstos no número anterior, prescinde-se da análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de proteção internacional.

Artigo 20.º
Competência para apreciar e decidir
1- Compete ao diretor nacional do SEF proferir decisão fundamentada sobre os pedidos infundados e inadmissíveis no prazo de 30 dias a contar da data de apresentação do pedido de proteção internacional.
2 - Na falta de decisão dentro do prazo previsto no número anterior, considera-se admitido o pedido.
3 - A decisão sobre o pedido mencionado nos números anteriores é notificada ao requerente no prazo de dois dias.
4 - Relativamente aos pedidos fundamentados, é proferida pelo diretor nacional do SEF a decisão de admissibilidade.
5 - A decisão referida no n.º 1 é comunicada ao representante do ACNUR e ao CPR enquanto organização não governamental que atue em seu nome, desde que o requerente tenha dado o seu consentimento.

 Por sua vez, os art.ºs 36.º a 40.º, ínsitos no Capítulo IV da Lei do Asilo, consagram um conjunto de regras e princípios aplicáveis às situações em deva haver lugar à determinação do Estado responsável pela análise de um pedido de proteção internacional, conformemente com o estipulado no art.º 19.º-A, n.º 1, al. a) do mesmo diploma.
O art.º 37.º, sob a epígrafe “pedido de proteção internacional apresentado em Portugal”, nos respetivos n.ºs 1 e 2- que são os que interessam para o caso em discussão- reza o seguinte:
1- Quando se considere que a responsabilidade pela análise do pedido de proteção internacional pertence a outro Estado membro, de acordo com o previsto no Regulamento (UE) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, o SEF solicita às respetivas autoridades a sua tomada ou retoma a cargo.
2- Aceite a responsabilidade pelo Estado requerido, o diretor nacional do SEF profere, no prazo de cinco dias, decisão nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 19.º- A e do artigo 20.º, que é notificada ao requerente, numa língua que compreenda ou seja razoável presumir que compreenda, e é comunicada ao representante do ACNUR e ao CPR enquanto organização não governamental que atue em seu nome, mediante pedido apresentado, acompanhado do consentimento do requerente.
Sendo assim, importa escrutinar o regime pertinente estabelecido pelo Regulamento (EU) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho.
Com efeito, os art.º 3.º, 4.º, 5.º e 17.º do sobredito Regulamento n.º 604/2013 assumem determinante relevo na dissolução do conflito posto. Da redação dos indicados preceitos consta o que se segue:
Artigo 3.º
Acesso ao procedimento de análise de um pedido de proteção internacional
1. Os Estados-Membros analisam todos os pedidos de proteção internacional apresentados por nacionais de países terceiros ou por apátridas no território de qualquer Estado-Membro, inclusive na fronteira ou nas zonas de trânsito. Os pedidos são analisados por um único Estado-Membro, que será aquele que os critérios enunciados no Capítulo III designarem como responsável.
2. Caso o Estado-Membro responsável não possa ser designado com base nos critérios enunciados no presente regulamento, é responsável pela análise do pedido de proteção internacional o primeiro Estado-Membro em que o pedido tenha sido apresentado.
Caso seja impossível transferir um requerente para o Estado-Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável.
Caso não possa efetuar-se uma transferência ao abrigo do presente número para um Estado-Membro designado com base nos critérios estabelecidos no Capítulo III ou para o primeiro Estado-Membro onde foi apresentado o pedido, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável passa a ser o Estado-Membro responsável.
(…)

Artigo 4.o
Direito à informação
1- Após a apresentação de um pedido de proteção internacional, na aceção do artigo 20.o, n.o 2, num Estado-Membro, as suas autoridades competentes informam o requerente da aplicação do presente regulamento e, em especial, dos seguintes elementos:
a) Os objetivos do presente regulamento e as consequências da apresentação de um novo pedido num Estado-Membro diferente, bem como as consequências da deslocação de um Estado-Membro para outro durante o processo de determinação do Estado-Membro responsável nos termos do presente regulamento e durante a análise do pedido de proteção internacional;
b) Os critérios e determinação do Estado-Membro responsável, hierarquia desses critérios durante as diversas etapas do procedimento e a duração das mesmas, nomeadamente que a apresentação num Estado-Membro de um pedido de proteção internacional pode implicar que esse Estado-Membro passe a ser o responsável nos termos do presente regulamento mesmo que essa responsabilidade não decorra desses critérios;
c) A entrevista pessoal nos termos do artigo 5.o e a possibilidade de informar da presença de membros da família, de familiares ou de outros parentes nos Estados-Membros, bem como os meios de que o requerente dispõe para transmitir essas informações;
d) A possibilidade de contestar uma decisão de transferência e, se necessário, de pedir a suspensão da transferência;
e) O facto de as autoridades competentes dos Estados-Membros poderem trocar dados sobre o requerente unicamente para dar cumprimento às suas obrigações decorrentes do presente regulamento;
f) O direito de acesso aos dados que lhe digam respeito e o direito de solicitar que os dados inexatos sejam corrigidos e que sejam suprimidos os dados tratados ilicitamente, bem como os procedimentos aplicáveis ao exercício de tais direitos, incluindo os elementos de contacto das autoridades referidas no artigo 35.o e das autoridades nacionais de proteção de dados pessoais competentes para analisar queixas em matéria de proteção de dados pessoais;
2- As informações referidas no n.o 1 devem ser facultadas por escrito numa língua que o requerente compreenda ou que possa razoavelmente presumir-se que compreenda. Para o efeito, os Estados-Membros devem utilizar o folheto informativo comum elaborado nos termos do n.o 3.
Caso se afigurar necessário para a correta compreensão por parte do requerente, as informações também devem ser facultadas oralmente, por exemplo no âmbito da entrevista pessoal a que se refere o artigo 5.º.
3- A Comissão adota os atos de execução relativos à elaboração de um folheto informativo comum e um folheto específico para menores não acompanhados do qual devem constar, pelo menos, as informações referidas no n.o 1 do presente artigo. Daquele folheto informativo comum devem ainda constar informações relativas à aplicação do Regulamento (UE) n.o 603/2013, e, em especial, a finalidade com que os dados de um requerente podem ser tratados no Eurodac. O folheto informativo comum deve ser elaborado de forma a permitir que os Estados-Membros o completem com informações específicas a cada um. Esses atos de execução são adotados pelo procedimento de exame a que se refere o artigo 44.o, n.o 2, do presente regulamento.


Artigo 5.º
Entrevista pessoal
1- A fim de facilitar o processo de determinação do Estado-Membro responsável, o Estado-Membro que procede à determinação realiza uma entrevista pessoal com o requerente. A entrevista deve permitir, além disso, que o requerente compreenda devidamente as informações que lhe são facultadas nos termos do artigo 4.º.
2- A realização da entrevista pode ser dispensada se:
a) O requerente for revel; ou
b) Depois de ter recebido as informações referidas no artigo 4.o, o requerente já tiver prestado por outros meios as informações necessárias para determinação do Estado-Membro responsável. Se a realização da entrevista for dispensada, o Estado-Membro deve dar ao requerente a oportunidade de apresentar novas informações relevantes para se proceder corretamente à determinação do Estado-Membro responsável antes de ser adotada uma decisão de transferência do requerente para o Estado-Membro responsável nos termos do artigo 26.o, n.º 1.
3- A entrevista pessoal deve realizar-se em tempo útil e, de qualquer forma, antes de ser adotada qualquer decisão de transferência do requerente para o Estado-Membro responsável nos termos do artigo 26.o, n.o 1.
4- A entrevista realiza-se numa língua que o requerente compreenda ou que possa razoavelmente presumir-se que compreenda, e na qual esteja em condições de comunicar. Caso necessário, os Estados-Membros designam um intérprete que esteja em condições de assegurar uma comunicação adequada entre o requerente e a pessoa que realiza a entrevista.
5- A entrevista pessoal realiza-se em condições que garantam a respetiva confidencialidade e é conduzida por uma pessoa competente ao abrigo da legislação nacional.
6- O Estado-Membro que realiza a entrevista pessoal deve elaborar um resumo escrito do qual constem, pelo menos, as principais informações facultadas pelo requerente durante a entrevista. Esse resumo pode ser feito sob a forma de um relatório ou através de um formulário-tipo. O Estado-Membro assegura que o requerente e/ou o seu advogado ou outro conselheiro que o represente tenha acesso ao resumo em tempo útil.

Artigo 17.º
Cláusulas discricionárias
1- Em derrogação do artigo 3.o, n.o 1, cada Estado-Membro pode decidir analisar um pedido de proteção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força dos critérios definidos no presente regulamento.
O Estado-Membro que tenha decidido analisar um pedido de proteção internacional nos termos do presente número torna-se o Estado-Membro responsável e assume as obrigações inerentes a essa responsabilidade. Se for caso disso, informa, por intermédio da rede de comunicação eletrónica «DubliNet», criada pelo artigo 18.o do Regulamento (CE) n.o 1560/2003, o Estado-Membro anteriormente responsável, aquele que conduz o processo de determinação do Estado-Membro responsável ou aquele que foi requerido para efeitos de tomada ou retomada a cargo.
O Estado-Membro responsável por força do presente número deve indicar também imediatamente esse facto no Eurodac em conformidade com o Regulamento (UE) n.o 603/2013 acrescentando a data em que foi tomada a decisão de analisar o pedido.
2- Estado-Membro em que é apresentado um pedido de proteção internacional e que está encarregado do processo de determinação do Estado-Membro responsável, ou o Estado-Membro responsável, podem solicitar a qualquer momento, antes de ser tomada uma decisão quanto ao mérito, que outro Estado-Membro tome a seu cargo um requerente a fim de reunir outros parentes, por razões humanitárias, baseadas nomeadamente em motivos familiares ou culturais, mesmo nos casos em que esse outro Estado-Membro não seja responsável por força dos critérios definidos nos artigos 8.o a 11.o e 16.o. As pessoas interessadas devem dar o seu consentimento por escrito.
O pedido para efeitos de tomada a cargo deve comportar todos os elementos de que o Estado-Membro requerente dispõe, a fim de permitir ao Estado-Membro requerido apreciar a situação.
O Estado-Membro requerido procede às verificações necessárias para examinar as razões humanitárias apresentadas e responde ao Estado-Membro requerente no prazo de dois meses a contar da data da receção do pedido por intermédio da rede de comunicação eletrónica «DubliNet», criada pelo artigo 18.o do Regulamento (CE) n.o 1560/2003. As respostas de recusa do pedido devem indicar os motivos em que a recusa se baseia.
Se o Estado-Membro requerido aceitar o pedido, a responsabilidade pela análise do pedido é transferida para ele.

Vejamos então se o Tribunal a quo errou no julgamento que fez acerca da inadmissibilidade do pedido de proteção internacional formulado pelo Recorrido, sucedendo que, para tal desiderato, impera assentar que, por não ter sido impugnada, a matéria de facto encontra-se estabilizada.
Debruçando-nos sobre a factualidade que foi coligida no probatório exposto em momento antecedente, verifica-se, de imediato, que o Recorrido apresentou, anteriormente à sua chegada a Portugal, um pedido de proteção internacional em 17/12/2015, em Itália.     Em 27/08/2019, o Recorrido apresentou pedido de proteção internacional em Portugal, tendo sido entrevistado em 30/09/2019, nos termos que se encontram descritos no ponto E do probatório.
Em 03/10/2019, após o decurso do prazo sem que as autoridades italianas respondessem quanto à aceitação do pedido de retoma a cargo do Recorrido, a Diretora Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras proferiu decisão de inadmissibilidade do pedido formulado pelo Recorrido de acordo com o prescrito no art.º 19.º-A, n.º 1, al. a) da Lei do Asilo, bem como decisão de transferência do mesmo para a Itália.
            Perante a factualidade vinda de elencar, o Recorrente explana o entendimento de que o ato de inadmissibilidade do pedido do Recorrido e sequente decisão de transferência do mesmo para Itália constitui um ato estritamente vinculado, sendo certo que o regime contido no Regulamento (EU) n.º 604/13 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, na medida em que detém natureza “especial”, afasta a aplicação do art.º 17.º da Lei do Asilo. E, ademais, não ocorre qualquer evidência de falha sistémica no procedimento de asilo italiano.
Ora, no que concerne ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, é nosso entendimento de que a entrevista pessoal a que se refere o art.º 5.º Regulamento (EU) n.º 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho (doravante, Regulamento Dublin) permite indagar todos os factos e circunstâncias que possam ser relevantes para o desfecho do procedimento.
Neste contexto enquadra-se, igualmente, o exercício do direito de audiência prévia por parte do requerente de asilo, previsto no art.º 5.º, n.º 6 do Regulamento Dublin, sucedendo que, no âmbito do procedimento especial de determinação do Estado responsável ao abrigo do Regulamento Dublin, o direito de audiência prévia do requerente de asilo pode ser exercido durante a entrevista pessoal a que se refere o art.º 5.º, n.º 1 do mesmo Regulamento, ou no final da mesma entrevista, contanto que ao requerente seja prestado todo o manancial informativo descrito no art.º 4.º do aludido Regulamento, e lhe seja dada a oportunidade de apresentar cabalmente todos os seus argumentos, razões e factos, mormente no caso de uma provável transferência para outro Estado.
Como bem explica CATARINA JARMELA (Audiência prévia nos procedimentos de protecção internacional, in Julgar, Revista do Centro de Estudos Judiciários, 1.º semestre 2019, número 1, junho de 2019, pp. 307 a 311), “neste art. 5.º n.ºs 1, 3, 4 e 5 prevê-se a realização de uma entrevista pessoal, antes de ser adoptada qualquer decisão de transferência do requerente para o Estado-Membro responsável, a fim de facilitar o processo de determinação desse Estado-Membro, em condições que garantam a respectiva confidencialidade e numa língua que o requerente compreenda ou que possa razoavelmente presumir-se que compreenda, e na qual esteja em condições de comunicar. No n.º 6 deste art. 5.º estatui-se ainda a obrigação de elaboração de um resumo escrito do qual constem, pelo menos, as principais informações facultadas pelo requerente durante a entrevista, o qual pode ser feito sob a forma de um relatório ou através de um formulário-tipo.
Quanto à realização desta entrevista pessoal deve-se ter também em atenção as seguintes exigências previstas na Directiva n.º 2013/32/UE17:
- na entrevista pessoal o órgão de decisão deve assegurar que o requerente disponha da possibilidade de apresentar os elementos necessários da forma mais completa possível (cfr. o respectivo art. 16.º);
- os Estados-Membros devem assegurar que, antes de o órgão de decisão tomar uma decisão, o requerente tem a oportunidade de fazer observações e/ou prestar esclarecimentos oralmente e/ou por escrito relativamente a eventuais erros de tradução ou de compreensão constantes do relatório (ou do formulário-tipo), no final da entrevista pessoal ou dentro do prazo fixado; para esse efeito, os Estados-Membros devem assegurar que o requerente seja plenamente informado do conteúdo do relatório (ou do formulário--tipo), se necessário com a assistência de um intérprete; os Estados-Membros solicitam ao requerente que confirme que o conteúdo do relatório (ou do formulário-tipo) reflecte correctamente a entrevista (cfr. o respectivo art. 17.º n.º 3).
Assim sendo, e tendo ainda em conta nomeadamente o estatuído nos arts. 3,º n.º 2, primeiro18 e segundo parágrafos, e 8.º a 17,º, todos do Regulamento (UE) n,º 604/2013, nessa entrevista pessoal deve ser dada a possibilidade ao requerente de protecção internacional de, da forma mais completa possível:
- se pronunciar sobre a sua identificação- maxime nome próprio e apelido, nacionalidade, actual e anterior, e data e local de nascimento-, membros da sua família, familiares e outos parentes, documentos de identidade e de viagem, títulos de residência ou vistos emitidos por um Estado-Membro, data de saída do país de origem, percurso efectuado desde o país de origem até Portugal, data de chegada a Portugal, se regressou ao seu país de origem, onde permaneceu nos últimos cinco meses anteriores ao pedido de protecção, data de apresentação de eventual(ais) pedido(s) de protecção internacional anterior(es), situação do processo e, eventualmente, teor da decisão, tomada, se facultou as impressões digitais para registo e, em caso afirmativo, onde e seu estado de saúde;
- esclarecer as razões que militam contra a adopção de uma decisão de transferência para um determinado país, o qual deverá ser identificado pelo entrevistador, pois o requerente só pode dar a conhecer utilmente o seu ponto de vista sobre a factualidade que justifica a eventual apIicação da excepção prevista no art. 3.º n.º 2, segundo parágrafo, ou das cláusulas discricionárias, previstas no art, 17.º, ambos do Regulamento (UE) n.º 604/2013, caso lhe seja dado a conhecer o concreto país para onde eventualmente pode ser transferido.
(…)
Por conseguinte, defende a articulista que “a audição do requerente de protecção internacional neste procedimento especial de determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de protecção internacional é assegurada pela realização de uma entrevista pessoal, nos termos acima explicitados, complementada pelo acesso do requerente ao relatório ou ao formulário-tipo que contenha as principais informações que facultou durante a entrevista, a fim de o mesmo poder fazer observações, prestar esclarecimentos e/ou confirmar o conteúdo desse relatório ou formulário-tipo, não se encontrando prevista nesses diplomas a exigência de, neste procedimento especial, ser elaborado um documento que contenha o sentido provável da decisão e respectivos fundamentos e da sua notificação ao requerente de protecção internacional, a fim de se pronunciar sobre tal projecto de decisão, sendo certo que a Directiva n.º 2013/32/UE permitia a adopção de disposição mais favorável (cfr. o seu considerando 14 e o respectivo art. 5.º), isto é, permitia que a Lei 27/2008 previsse, neste procedimento especial, a obrigação de o SEF, antes da adopção da decisão de transferência, informar o requerente de protecção internacional do projecto de decisão, para efeitos de pronúncia, tendo o legislador nacional optado por não prever tal exigência.
Cumpre a este propósito salientar que este entendimento mostra-se conforme com o direito da União Europeia e harmoniza-se com o disposto no art. 267.º n.º 5, da CRP, pelos motivos supra explanados no ponto 2 deste artigo, para onde se remete.”
Sendo assim, “para se determinar se o direito de audição do requerente de protecção internacional foi assegurado neste procedimento especial é essencial analisar, por um lado, a decisão tomada e os respectivos fundamentos, e, por outro lado, as concretas perguntas que foram feitas ao requerente aquando da realização da entrevista pessoal, se o mesmo foi convidado, durante essa entrevista, a acrescentar quaisquer outros comentários que considerasse pertinentes e ainda as eventuais observações e/ou esclarecimentos que tenha apresentado na sequência do acesso ao relatório ou formulário-tipo da entrevista.
Caso se venha a apurar que nessas declarações, observações e/ou esclarecimentos o requerente de protecção internacional não teve a possibilidade de dar a conhecer utilmente o seu ponto de vista sobre algum(uns) dos eIementos com base nos quais a Administração tomou a decisão, ter-se-á de concluir no sentido da violação do direito de audição.”
Acrescente-se que esta visão e interpretação do art.º 5.º, n.º 6 do Regulamento Dublin foi já acolhida por este Tribunal de Apelação, designadamente, nos Acórdãos proferidos em 30/01/2020 nos processos n.º 1322/19.2BELSB, 1419/19.9BELSB e 1088/19.6BELSB, em 27/02/2020 no processo n.º 1300/19.1BELSB e em 16/04/2020 no processo 1932/19.8BELSB.
Por conseguinte, entendendo-se que o direito de audiência prévia pode ser exercitado em sede da entrevista pessoal descrita no art.º 5.º, n.º 1 do Regulamento, deve igualmente entender-se que o direito de audiência prévia queda aniquilado no caso de o seu exercício por banda do requerente de proteção internacional ser, algum modo, desadequado, incompleto ou insuficiente. Na verdade, e em bom rigor, o que acontece é que “aligeiramento” da forma através da qual é exercido o direito de audiência reclama, por contraposição, um maior grau de exigência no controlo concreto do conteúdo do exercício de tal direito, bem como uma elevação da exigência do controlo jurisdicional exercido. Principalmente, no caso de o requerente não estar acompanhado de advogado, ou jurista que o aconselhe, como sucedeu no caso versado.
Como explicitou o Tribunal de Justiça da União Europeia, no Acórdão proferido pela Grande Secção em 07/06/2016, caso C-63/15, “o artigo 5.°, n.os 1, 3 e 6, deste regulamento [Regulamento n.º 604/2013] prevê que o Estado‑Membro que procede à determinação do Estado‑Membro responsável realiza, em tempo útil e, de qualquer forma, antes de ser adotada qualquer decisão de transferência, uma entrevista individual com o requerente de asilo, devendo ser assegurado o acesso ao resumo dessa entrevista ao requerente ou ao conselheiro que o represente. Em aplicação do artigo 5.°, n.° 2, do referido regulamento, esta entrevista pode ser dispensada quando o requerente já tiver prestado as informações necessárias para a determinação do Estado‑Membro responsável e, nesse caso, o Estado‑Membro em causa deve dar ao requerente a oportunidade de apresentar novas informações relevantes para se proceder corretamente à determinação do Estado‑Membro responsável antes de ser adotada uma decisão de transferência”.
A propósito também do exercício do direito de audiência no âmbito dos procedimentos atinentes ao asilo é também de convocar o Acórdão prolatado pela mesma Alta Instância Europeia em 05/11/2014, caso C-166/13, em que o Tribunal afirma:
“(…) Em contrapartida, esse direito [o direito de audiência prévia] é parte integrante do respeito dos direitos de defesa, princípio geral do direito da União.
O direito de ser ouvido garante que qualquer pessoa tenha a possibilidade de dar a conhecer o seu ponto de vista, de maneira útil e efetiva, no decurso do procedimento administrativo e antes da adoção de qualquer decisão suscetível de afetar desfavoravelmente os seus interesses (v., nomeadamente, acórdão M., EU:C:2012:744, n.° 87 e jurisprudência referida).
Nos termos da jurisprudência do Tribunal de Justiça, a regra segundo a qual deve ser dada ao destinatário de uma decisão lesiva dos seus interesses a possibilidade de apresentar as suas observações antes de a mesma ser tomada destina‑se a permitir que a autoridade competente tenha utilmente em conta todos os elementos pertinentes. A fim de assegurar uma proteção efetiva da pessoa em causa, essa regra tem, designadamente, por objetivo permitir que esta pessoa possa corrigir um erro ou invoque determinados elementos relativos à sua situação pessoal que militam no sentido de a decisão ser tomada, não ser tomada ou ter determinado conteúdo (v., neste sentido, acórdão Sopropé, EU:C:2008:746, n.° 49).
O referido direito implica igualmente que a Administração preste toda a atenção necessária às observações assim submetidas pelo interessado, examinando, com cuidado e imparcialidade, todos os elementos pertinentes do caso concreto e fundamentando a sua decisão de forma circunstanciada (v. acórdãos Technische Universität München, C‑269/90, EU:C:1991:438, n.° 14, e Sopropé, EU:C:2008:746, n.° 50), constituindo, assim, o dever de fundamentar uma decisão de forma suficientemente específica e concreta para permitir que o interessado possa compreender as razões da recusa oposta ao seu pedido o corolário do princípio do respeito dos direitos de defesa (acórdão M., EU:C:2012:744, n.° 88).
Em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, o respeito do referido direito impõe‑se mesmo quando a regulamentação aplicável não preveja expressamente essa formalidade (v. acórdãos Sopropé, EU:C:2008:746, n.° 38; M., EU:C:2012:744, n.° 86; e G. e R., EU:C:2013:533, n.° 32).
A obrigação de respeitar os direitos de defesa dos destinatários de decisões que afetam sensivelmente os seus interesses incumbe, assim, em princípio, às Administrações dos Estados‑Membros, sempre que estas tomem medidas abrangidas pelo âmbito de aplicação do direito da União (acórdão G. e R., EU:C:2013:533, n.° 35).”

No caso em apreciação, em sede da entrevista pessoal realizada em 30/09/2019, verifica-se que, aparentemente, foi dado nota ao Recorrido da possibilidade de aplicação do procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, bem como de que tal Estado seria, possivelmente, a Itália. Na verdade, esta conclusão fundamenta-se no teor das declarações finais do Recorrido na entrevista, que disse, “não sei a razão das autoridades italianas não me ter dado os documentos”
 Todavia, mesmo que ao Recorrido tenha sido, aparentemente, fornecida a informação de que o Estado responsável pela apreciação do seu pedido de asilo seja a Itália, a verdade é que não lhe foi dada oportunidade de indicar de modo completo, cabal, circunstanciado e suficiente todas as razões e motivos relevantes que pudessem obstaculizar a uma possível ou provável transferência para aquele país.
 É que, examinado integralmente o teor da entrevista realizada ao Recorrido, verifica-se que nada mais lhe foi perguntado no que concerne a eventuais razões para não querer regressar a Itália. Aliás, é o próprio Recorrente que, perante a afirmação do Recorrido consigna que “nada mais lhe foi perguntado”.
  Em concomitância, importa salientar que o direito europeu consagra, em matéria de asilo, a garantia a um procedimento justo, que inclui o direito a uma análise individualizada e atualizada do pedido de proteção internacional, em conformidade com a Diretiva 2013/32/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013. Aliás, tal direito a um procedimento justo constitui uma garantia de efetivação do direito de asilo, encarado este como um direito fundamental internacional ao acolhimento, titulado por todos os que reúnam determinadas condições (neste sentido, ANDREIA SOFIA PINTO OLIVEIRA, A Recusa de Pedidos de Asilo por “Inadmissibilidade”; in Estudos em Comemoração do 10.º Aniversário da Licenciatura em Direito da Universidade do Minho, janeiro, 2004. Almedina, p.83;  ANA RITA GIL, A crise migratória de 2015 e os direitos humanos das pessoas carecidas de proteção internacional: o direito europeu posto à prova, In Estudos em Homenagem ao Conselheiro Presidente Rui Moura Ramos (1 ed., Vol. I, pp. 955-983). Coimbra, 2016, Almedina; A Garantia de um Procedimento Justo no Direito Europeu de Asilo, In O Contencioso do Direito de Asilo e Proteção Subsidiária (pp. 165-197). (Coleção Formação Inicial). Lisboa, 2016, Centro de Estudos Judiciários).
Ora, a ausência de procedimento justo e individualizado para efeitos de concessão de asilo, ou o impedimento de acesso ao mesmo, pode constituir infração ao art.º 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, ou ao art.º 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, conduzindo à anulação da decisão de transferência de um requerente de asilo no domínio do Regulamento Dublin, como aliás foi já firmado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no Acórdão promanado em 21/01/2011, M.S.S. vs Bélgica e Grécia, queixa n.º 30696/09.
Por seu turno, o Tribunal de Justiça da União Europeia, em sede de reenvio prejudicial, trilhou o mesmo percurso no Acórdão proferido pela Grande Secção em 21/12/2011, nos processos apensos C-411/10 e C-493/10, N.S. vs Secretary of State for the Home Department, interpretando os normativos referentes ao sistema Dublin (no caso, Dublin II) do seguinte modo:
“Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:
1) A decisão adoptada por um Estado‑Membro, com fundamento no artigo 3.°, n.° 2, do Regulamento (CE) n.° 343/2003 do Conselho, de 18 de Fevereiro de 2003, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de asilo apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro, de examinar ou não um pedido de asilo pelo qual não é responsável, à luz dos critérios previstos no capítulo III deste regulamento, desencadeia a aplicação do direito da União para efeitos do artigo 6.° TUE e/ou do artigo 51.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
2) O direito da União opõe‑se à aplicação de uma presunção inilidível segundo a qual o Estado‑Membro designado como responsável pelo artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 343/2003 respeita os direitos fundamentais da União Europeia.
O artigo 4.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia deve ser interpretado no sentido de que incumbe aos Estados‑Membros, incluindo os órgãos jurisdicionais nacionais, não transferir um requerente de asilo para o «Estado‑Membro responsável», na acepção do Regulamento n.° 343/2003, quando não possam ignorar que as falhas sistémicas do procedimento de asilo e das condições de acolhimento dos requerentes de asilo nesse Estado‑Membro constituem razões sérias e verosímeis de que o requerente corre um risco real de ser sujeito a tratos desumanos ou degradantes, na acepção desta disposição.
Sem prejuízo da faculdade de examinar ele próprio o pedido referido no artigo 3.°, n.° 2, do Regulamento n.° 343/2003, a impossibilidade de transferência de um requerente para outro Estado‑Membro da União Europeia, quando esse Estado é identificado como Estado‑Membro responsável em conformidade com os critérios do capítulo III deste regulamento, exige que o Estado‑Membro que deveria efectuar esta transferência prossiga o exame dos critérios do referido capítulo, para verificar se um dos restantes critérios permite identificar outro Estado‑Membro como responsável pelo exame do pedido de asilo.
Contudo, o Estado‑Membro em que se encontra o requerente de asilo deve assegurar que a situação de violação dos direitos fundamentais deste requerente não seja agravada por um procedimento de determinação do Estado‑Membro responsável excessivamente longo. Se necessário, deve examinar ele próprio o pedido, em conformidade com as modalidades previstas no artigo 3.°, n.° 2, do Regulamento n.° 343/2003.
3) Os artigos 1.°, 18.° e 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia não conduzem a uma resposta diferente.
(…)”.
 Acresce que, subsiste no Direito da União Europeia um princípio de non-refoulement, derivado do art.º 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e do art.º 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que constitui uma barreira de absoluta intransponibilidade, e da qual resulta a proibição de transferência de qualquer pessoa para outro Estado se essa transferência acarreta o risco de tortura, ou de tratamento humano ou degradante.
Este princípio tem sido afirmado desde há muito, tendo o Tribunal de Justiça da União Europeia reiterado o sobredito valor principiológico no Acórdão proferido em 16/02/2017 no processo C-578/16 PPU, C.K. vs Republika Slovenija, e explicitado que deve admitir-se outras circunstâncias fundamentadoras de uma proibição de transferência de um requerente de asilo para o Estado responsável para além das falhas sistémicas que neste Estado possam existir:
            “(…)
Neste contexto, carece de fundamento o argumento da Comissão segundo o qual decorre do artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento Dublim III que apenas a existência de falhas sistémicas no Estado‑Membro responsável seria suscetível de afetar a obrigação de transferência de um requerente de asilo para esse Estado‑Membro.
Com efeito, nada na redação desta disposição indica que a intenção do legislador da União tenha sido a de regular outra circunstância que não seja a das falhas sistémicas que impedem a transferência do requerente de asilo para um Estado‑Membro determinado. Por conseguinte, a referida disposição não pode ser interpretada no sentido de que exclui que considerações associadas aos riscos reais e comprovados de tratos desumanos ou degradantes, na aceção do artigo 4.o da Carta, possam, em situações excecionais como as descritas no presente acórdão, ter consequências na transferência de um requerente de asilo em especial.
Além disso, tal leitura do artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento Dublim III seria, por um lado, incompatível com o caráter geral do artigo 4.o da Carta, que proíbe os tratos desumanos ou degradantes sob todas as suas formas. Por outro lado, seria manifestamente incompatível com o caráter absoluto dessa proibição que os Estados‑Membros pudessem ignorar um risco real e comprovado de tratos desumanos ou degradantes que afetem um requerente de asilo sob pretexto de que esse risco não resulta de uma falha sistémica no Estado‑Membro responsável.
Do mesmo modo, a interpretação do artigo 4.o da Carta constante do presente acórdão não é infirmada pelo acórdão de 10 de dezembro de 2013, Abdullahi (C‑394/12, EU:C:2013:813, n.o 60), no qual o Tribunal de Justiça declarou, em substância, no que se refere ao Regulamento Dublim II, que, em circunstâncias como as do processo que deu origem a esse acórdão, um requerente de asilo só pode pôr em causa a sua transferência se invocar a existência de falhas sistémicas no Estado‑Membro responsável. Com efeito, para além do Tribunal de Justiça ter declarado, como recordado no n.o 62 do presente acórdão, que, no que se refere aos direitos conferidos aos requerentes de asilo, o Regulamento Dublim III difere, em aspetos essenciais, do Regulamento Dublim II, há que recordar que o referido acórdão foi proferido num processo que envolvia um nacional que não invocou no Tribunal de Justiça nenhuma circunstância especial suscetível de indicar que a sua transferência seria, em si, contrária ao artigo 4.o da Carta. Por conseguinte, o Tribunal de Justiça mais não fez do que recordar o seu anterior acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865), relativo à impossibilidade de proceder a qualquer transferência de requerentes de asilo para um Estado‑Membro cujo processo de asilo ou condições de acolhimento conhecem falhas sistémicas.
Por último, a referida interpretação respeita plenamente o princípio da confiança mútua uma vez que, longe de afetar a existência de uma presunção de respeito dos direitos fundamentais em cada Estado‑Membro, garante que as situações excecionais descritas no presente acórdão são devidamente tidas em conta pelos Estados‑Membros. De resto, se um Estado‑Membro procedesse à transferência de um requerente de asilo em tais situações, o trato desumano e degradante que daí resultaria não seria imputável, direta ou indiretamente, às autoridades do Estado‑Membro responsável, mas unicamente ao primeiro Estado‑Membro. (…).”
 Nesta senda, o risco de violação do art.º 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia deve ser avaliado de modo completo e individual, abarcando não só o risco de devolução direta ou de devolução em cadeia (ou indireta), como o próprio risco da transferência em si mesma, em concordância com a Jurisprudência cristalizada no Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no Acórdão promanado em 21/01/2011, M.S.S. vs Bélgica e Grécia, queixa n.º 30696/09, bem como no Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia promanado em 16/02/2017 e citado imediatamente supra.    
 Esta visão é partilhada, entre nós, por A. SOFIA PINTO OLIVEIRA (Direito de Asilo, in Tratado de Direito Administrativo Especial, Volume VII, coord. Paulo Otero e Pedro Gonçalves, abril, 2017, Almedina, pp. 5 a 131), que salienta, neste ensejo, o Acórdão proferido pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em 07/03/2000, TI vs Reino Unido, como tendo sido o primeiro em que aquela Instância afirmou que “a aplicação dos critérios de Dublin não dispensa os Estados de verificarem se a transferência dos requerentes pode ou não iniciar uma cadeia de transferências dos requerentes que venha no final a resultar numa violação dos direitos da Convenção Europeia dos Direitos do Homem que os Estados tinham o dever de  proteger.”
Ressalte-se, a este propósito, que o sistema Dublin tem sido alvo de ferozes ataques, quer de índole política, quer de natureza jurídica, quer por introduzir desequilíbrios óbvios entre os Estados-Membros no que se refere à organização e gestão do Sistema Europeu Comum de Asilo (SECA), quer por dar azo a procedimentos muitas vezes mais complexos e morosos do que aqueles que se destinam a indagar dos requisitos para a concessão de asilo, para além das constatadas divergências de interpretação e aplicação do sistema Dublin por banda dos Estados-Membros[1].
Seja como for, a consideração do princípio de non refoulement e a respetiva importância para o sistema Dublin está já estabelecida pela Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, especificamente, nos Acórdãos promanados em 21/01/2011, M.S.S. vs Bélgica e Grécia, Queixa n.º 30696/09, e em 04/11/2014, Tarakhel vs Suíça, Queixa n.º 29217/12.
Referindo- se aos mencionados Acórdãos, PATRÍCIA CABRAL (Construção de uma Responsabilidade Europeia Além-Fronteiras, Dissertação apresentada para obtenção do Grau de Mestre, julho de 2015, Faculdade de Direito da Universidade Nova, consultável no Repositório da Universidade Nova, em www.run.unl.pt., pp. 36 e 37) explica: “(…) No primeiro, o TEDH construiu o princípio segundo o qual perante a existência de falhas sistémicas que apresentem um risco de violação do artigo 3.º no Estado que seria responsável pela análise de um pedido de asilo, o Estado-Membro onde o requerente se encontra fica impedido de o transferir para esse país. (…) Por fim no julgamento Tarakhel o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem veio reforçar que esta proteção não se limita a situações de falhas sistémicas, sendo refutada a presunção de cumprimento do artigo 3.º da CEDH sempre que existam razões sérias para crer que a pessoa enfrentaria um risco de tratamento contrário a esta mesma norma.
Os Estados-Membros encontram-se efetivamente adstritos ao nível de proteção mais elevado concedido por decisões como Tarakhel e M.S.S., incorrendo em responsabilidade internacional sempre que tomarem uma posição restritiva que reduza os direitos fundamentais do requerente. Por parte dos tribunais nacionais, estes deverão sempre optar pela mais ampla proteção conferida pelos instrumentos supranacionais, como principais responsáveis pela aplicação do direito da União e sob pena de violar as suas obrigações internacionais, sujeitando-se aos mecanismos de responsabilidade implementados.
Ora da perspetiva do Tribunal de Justiça, o artigo 3.º da CEDH e o artigo 4.º da CDFUE são correspondentes, de tal forma que contêm um texto idêntico. Seguindo a interpretação exigida pelo artigo 6.º do TUE e pelos artigos 52.º e 53.º da CDFUE, o tribunal do Luxemburgo não pode descurar a interpretação que tem sido tomada e crescentemente consolidada por Estrasburgo e encontra-se igualmente obrigado a conferir a mais ampla das proteções concedidas pelo direito da União ou pela CEDH. A posição defendida em Tarakhel permite a extensão da suspensão de transferências a mais situações além daquelas em que sejas provadas falhas sistémicas, bastando a existência de um risco real para o requerente no caso concreto. Abre ainda caminho para que seja dada relevância a outros direitos fundamentais além da proibição de pena ou tratamentos desumanos ou degradantes, não sendo o artigo 3.º da CEDH o único invocável para efeitos de suspensão de transferência. (…)”
  Destarte, sopesando os subsídios doutrinais e jurisprudenciais espraiados, e examinando uma vez mais as declarações do Recorrido emitidas na entrevista pessoal, resulta forçosa a conclusão de que as declarações prestadas pelo Recorrido apresentam-se como insatisfatórias. Em boa verdade, o que sucedeu é que o Recorrente não possibilitou ao Recorrido, sequer, a apresentação do acervo de razões e factos potencialmente obstaculizantes à emissão da decisão de transferência, demitindo-se também da realização de qualquer diligência instrutória apta a confirmar ou infirmar o teor do declarado pelo Recorrido.
 Neste contexto, valorizando a insuficiência e incompletude do exercício do direito de audiência prévia do Recorrido, impera concluir que tal direito foi, afinal, coartado pelo Recorrente, atendendo ao modo como auscultou o Recorrido e à absoluta passividade e indiferença com que encarou e tratou as breves declarações daquele.
 O que quer dizer que, por ter sido exercido de modo deficiente em virtude da concreta atuação do Recorrente, deve concluir-se pela violação do direito de audiência prévia do Recorrido, violação esta que inquina as decisões de inadmissibilidade e transferência de ilegalidade.

Em concomitância, e num outro prisma, ressalte-se que também não assiste razão ao Recorrente na assunção de que a decisão de transferência assume natureza absolutamente vinculada, não restando outra alternativa, perante a verificação de uma situação de “retoma a cargo”, que não a de ordenar a transferência do Recorrido para Itália.        
É que este entendimento espraiado pelo Recorrente denuncia uma visão restritiva, absolutamente formalista e leviana no que concerne ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, revelando, do mesmo passo, um entendimento distorcido relativamente à tramitação de tal procedimento e, especialmente, dos objetivos e finalidades perseguidos pelo Regulamento de Dublin, corporizado pelo Regulamento (EU) n.º 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013- doravante, apenas Regulamento de Dublin.
            Em primeiro lugar, esclareça-se que a atuação do Estado não é estritamente vinculada, no sentido em que ocorre impedimento absoluto de análise de um pedido de proteção internacional se o requerente já tiver formulado pedido similar noutro Estado-Membro. Com efeito, basta atentar no disposto no art.º 17.º do Regulamento de Dublin para, sem qualquer dificuldade, percecionar que, independentemente das regras e dos critérios que dimanam dos art.ºs 3.º e 7.º do citado Regulamento, o Estado-Membro pode sempre “decidir analisar um pedido de proteção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiros ou por um apátrida, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força dos critérios definidos no presente regulamento”.
Sendo assim, a interpretação do Recorrente, de que a existência de um procedimento especial de determinação do Estado-Membro responsável pela decisão do pedido de proteção internacional é conducente obrigatoriamente a uma decisão de inadmissibilidade do pedido e consequente transferência do requerente, não merece acoito.
É que, para além das situações de existência de falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes e do risco de tratamento desumano, descritas no art.º 3.º, n.º 2 do Regulamento de Dublin, o mesmo instrumento jurídico estipula claramente, em jeito até de “válvula de segurança” e de favorecimento da posição do requerente de asilo, a possibilidade de um Estado-Membro assumir, no âmbito do exercício de um poder discricionário, a responsabilidade pela decisão do pedido de proteção internacional, independentemente dos critérios e regras estabelecidas.
De resto, o próprio Regulamento de Dublin assume esse intento, exprimindo-o no considerando preambular n.º 17, em que exara que “os Estados-Membros deverão ter a possibilidade de afastar a aplicação dos critérios de responsabilidade, em especial por razões humanitárias e compassivas, a fim de permitir reunir membros da família, familiares ou outros parentes, e de analisar um pedido de proteção internacional que lhes tenha sido apresentado, ou a outro Estado-Membro, mesmo que tal análise não seja da sua responsabilidade nos termos dos critérios vinculativos previstos no presente regulamento.
 Em segundo lugar, importa realçar o facto da existência de um prévio pedido de proteção internacional formulado perante outro Estado-Membro não dispensar o exame cuidadoso da situação apresentada pelo requerente de asilo. Na verdade, tal laxismo não só contraria todo o espírito que preside à existência do Regulamento de Dublin- e veja-se a este propósito os considerandos 9, 11, 15, 17, 18, 19, 21, 22 e 39-, como pode conduzir ao desrespeito da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, especialmente dos art.ºs 19.º, 41.º e 47.º.
E estas asserções são reforçadas pelas específicas alegações do Recorrido, a que o Recorrente não atendeu ou, sequer, sopesou, dado que, não poderia o Recorrente ignorar, na situação presente, a existência de determinados indicadores de que as condições de acolhimento do Recorrido em Itália não estão de acordo com a Diretiva 2013/33/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013 e, muito menos, com a Jurisprudência- nomeadamente, a já citada antecedentemente- do Tribunal de Justiça da União Europeia e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
           
Dissolvidas as questões arguidas pelo Recorrente, relativamente à audiência prévia no procedimento especial de determinação do Estado responsável pela apreciação do pedido de asilo, e relativamente à natureza não vinculativa das decisões de inadmissibilidade do pedido e de transferência para o Estado responsável, cumpre, agora, indagar se ocorrem, na República de Itália, deficiências sistémicas no procedimento de asilo ou no sistema de acolhimento dos requerentes de asilo.
 Ora, contrariamente ao que é pressuposto no iter do raciocínio exposto na impetração que agora se decide, é nosso entendimento que subsistem claros, evidentes e demonstrados indícios da existência de falhas sistémicas no sistema de receção e acolhimento de refugiados do Estado Italiano, como, de resto, foi patenteado no Acórdão prolatado por este Tribunal de Apelação em 30/01/2020, no processo n.º 1322/19.2BELSB, e que subscrevemos na qualidade de Adjunto.
A grave deficiência do sistema de acolhimento de requerentes e beneficiários de asilo, conducente à constatação de um mau funcionamento endémico e deliberado de todo aquele sistema de receção e acolhimento, ancora-se, aliás, quer na atual modelação do sistema legal italiano, quer na insuficiência manifesta de condições materiais, ditada pelo enorme subfinanciamento das instalações e programas destinados à receção e acolhimento dos requerentes e beneficiários de asilo, bem como dos requerentes de proteção internacional.
Estas asserções decorrem dos relatos, descrições, informações, conclusões e notícias veiculadas e difundidas por múltiplas ONG’s, bem como por instituições internacionais dedicadas ao acompanhamento, tratamento e análise dos aspetos legais e da implementação prática de todo o sistema internacional de asilo, das quais salientamos o European Council on Refugees and Exiles (doravante, ECRE), a Asylum Information Database (em diante, apenas AIDA), o Conselho da Europa- Comité Europeu para a Prevenção de Tortura e das Penas ou Tratamento Desumano ou Degradante, o Danish Refugee Council, o Swiss Refugee Council, a European Database of Asylum Law (EDAL, em diante), a European Legal Network on Asylum (doravante, ELENA), a European Asylum Support Office (EASO, em diante) e a Associazione per gli Studi Guiridici Sull’ Immigrazione (somente ASGI, daqui em diante).
Efetivamente, todo o manancial informativo disponibilizado pelas sobreditas instituições internacionais, especialmente as elencadas expressamente, é claramente evidenciador de uma significativa degradação, desde 2018, das condições de recebimento e acolhimento dos requerentes de asilo, motivadas pela vigência do Decreto Lei n.º 113/2018, implementado pela Lei n.º 132/2018.
No relatório elaborado pela ASGI, intitulado Country Report: Italy e editado pela ECRE (consultável no sítio www.asylumineurope.org), atualizado em abril de 2019, é descrito todo o sistema legal italiano de asilo, incluindo procedimentos legais de acolhimento, receção, tratamento e decisão dos pedidos de asilo, a impugnação das decisões quanto a tais pedidos e as características dos mecanismos judiciais disponíveis para tanto, as condições de deportação e expulsão dos requerentes e beneficiários de asilo, bem como as condições materiais de todo o sistema, mormente, caracterização e descrição das instalações físicas de acolhimento e alojamento, satisfação de necessidades alimentares e de vestuário, cuidados médicos e apoio psicológico, assistência e aconselhamento legal, programas de integração, etc..
No que concerne às transferências para a República Italiana ao abrigo do Regulamento Dublin (Regulamento (EU) n.º 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 013), o citado Relatório faz notar o desaparecimento de um sistema de acolhimento dedicado aos requerentes de asilo, e a adoção de um regime que quase parifica tais requerentes com os demais imigrantes, mormente no que concerne aos obstáculos legais e burocráticos colocados para atribuição de alojamento, possibilidade de formalizar o pedido de asilo, realização da entrevista, notificação das decisões, deportação e repatriamento, e mecanismos de tutela judicial. A descrição constata a existência de dificuldades na receção de muitos dos transferidos ao abrigo do Regulamento Dublin, relatando a espera de dias, sem qualquer tipo de suporte, para serem recebidos pela polícia nos aeroportos de Roma e de Milão- para onde é enviada a grande maioria destes transferidos, especialmente nos casos de aceitação tácita de toma ou retoma a cargo. Relata também a existência de um número crescente de transferidos que se tornam sem-abrigo em Roma, em virtude de, por razões legais e burocráticas, não terem acesso imediato e automático ao sistema de receção e acolhimento. O Relatório referencia, também, que as condições das instalações de receção situam-se abaixo dos standards mínimos, especialmente para transferidos com determinadas características de vulnerabilidade, pessoas para as quais estas instalações não providenciam qualquer apoio. Finalmente, é anotado o risco acrescido de deportação, para o país de origem, que existe para os transferidos ao abrigo do Regulamento Dublin, especialmente atentando nos efeitos não suspensivos da impugnação judicial das decisões de deportação[2].
O mesmo Relatório enuncia a circunstância de que, até fevereiro de 2018, pelo menos 10.000 pessoas foram excluídas do sistema de receção italiano, incluindo os requerentes de asilo e os beneficiários de proteção internacional, registando ainda o facto da apresentação formal do pedido de asilo ter lugar vários meses após a identificação e registo do requerente de asilo, o que implica que a pessoa em causa se depare com reais dificuldades de alojamento, o que acaba por levar à condição de sem-abrigo[3].
O aludido Relatório expressa claramente a redução do montante per capita do financiamento atribuído pelas entidades públicas às empresas ou entidades que realizam a gestão das instalações de acolhimento de estrangeiros, incluindo requerentes e beneficiários de asilo. Tal redução resultou do Decreto Lei 113/2018, e implicou uma descida do montante máximo do financiamento por pessoa de 35,00 Euros para 21,00 Euros. Aliás, nos termos deste Decreto, apenas estão garantidas necessidades básicas, como higiene pessoal, mensalidade para gastos e 5,00 euros em cartão telefónico, sendo que estas, de qualquer forma, não abrangem os requerentes de asilo e beneficiários de proteção internacional que não se encontram ainda alocados a nenhuma instalação de acolhimento. Como resultado do novo quadro legal e da significativa diminuição de financiamento, foram abolidos os serviços e projetos de integração e inclusão (v.g. treino de língua italiana, orientação para serviços locais, formação profissional, atividades de lazer), cessou o apoio psicológico e os serviços de apoio e aconselhamento jurídico foram substituídos por um serviço de informação, reduzido a 3 horas por semana para 50 pessoas (pp. 84 a 86 do Relatório).
É igualmente relatado que a cessação do acolhimento dos requerentes e beneficiários de asilo pode suceder por uma variedade de situações, nomeadamente, protestos contra a qualidade da comida servida nos centros de acolhimento, contra a falta e ausência de condições mínimas de higiene, para obtenção dos respetivos documentos de identificação, por sair do centro à noite ou até por se entender que o requerente possui “recursos suficientes” (o que já sucedeu por as entidades italianas entenderem que a viagem realizada por avião era indicativa de que o requerente teria meios de subsistência…). O Relatório assinala, portanto, a ampla utilização de causas de cessação do sistema de acolhimento, indicando que pelo menos 39.963 requerentes de asilo perderam o acesso às instalações e ao sistema de acolhimento nos anos de 2016 e 2017, e isto apenas contabilizando os casos em 58 das 100 Prefeituras (cfr. pp. 86 a 90 do Relatório).
No que toca aos tipos de instalações que integram o sistema de receção e acolhimento de requerentes e beneficiários de asilo e de proteção internacional, o Relatório enumera 4 tipos: os centros de receção e primeiros socorros (CPSA), também conhecidos como Hotspots; os centros governamentais de primeira receção (CPR), os centros de acolhimento temporário (CAS) e o acolhimento privado de famílias e instituições religiosas (cfr. pp. 93 a 101 do Relatório).
Relativamente aos Hotspots, o Relatório indica a existência de 4 a operar no final de 2018, maioritariamente em locais de desembarque de estrangeiros e destinados a acomodação de curtíssima duração, muito embora na prática acomode as pessoas durante dias e até semanas. No final de 2018, tais centros albergavam 453 pessoas.
Relativamente aos centros de primeira receção (CPR), em finais de 2018, registavam-se 14 em funcionamento em sete regiões italianas, albergando 8.990 pessoas, das quais uma parte é constituída por transferidos ao abrigo do Regulamento Dublin. Quanto a este tipo de instalação, pensada primitivamente para requerentes de asilo, é relatada a grave falha de condições de higiene- verdadeiramente ausentes em vários casos-, bem como a falta de privacidade, quer entre sexos, quer entre adultos e menores, quer entre famílias e outros adultos. É assinalado, também, a falta de prestação de cuidados médicos, mais significativa nuns centros do que outros, bem como a ausência de apoio psicológico e de qualquer tipo de serviços e atividades de integração e inclusão social.
Vários destes CPR localizam-se em sítios remotos e/ou isolados de centros urbanos, impossibilitando, de facto, quaisquer contactos sociais dos acolhidos com a população italiana residente e, bem assim, a implementação de qualquer projeto profissional ou de vida dos requerentes de asilo.
O Relatório realça a gravidade do nível de degradação geral destas instalações, registando mesmo observações de inadequação total ao alojamento e acolhimento, seja por estarem em causa tendas e barracões, sem eletricidade e aquecimento, praticamente sem instalações sanitárias, ou então, muitíssimo degradadas, e por vezes, sem condições de habitabilidade, por falta de colchões, de vestuário apropriado às condições climatéricas, praticamente sem espaços de refeição ou com condições sanitárias impróprias, e sempre com constatada sobrelotação.
O Relatório faz referências, ainda, à existência de prostituição, exploração, mercado negro, tráfico de droga, tudo com a complacência das forças de autoridade e segurança, que não tomam medidas. No caso do CPR Mineo, Catania, Sicília, é também assinalada a suspeita de ligação a rede mafiosa, em investigação.
Os centros de acolhimento temporário- CAS- destinam-se, em termos legais, a colmatar a falta ocasional de lugares nos CPR, oferecendo, somente, as condições mínimas de acolhimento. Não obstante o carácter subsidiário e de emergência deste tipo de instalação, a verdade é que, no final de 2018, contavam-se mais de 9.000 instalações deste tipo, acomodando 138.503 pessoas, em óbvio clima de sobrelotação. Este status quo é claramente demonstrativo de que a política de asilo italiana implica que os requerentes de asilo e beneficiários de proteção internacional sejam acolhidos durante todo o procedimento, e após, em alojamentos destinados a serem temporários e de emergência.
O Relatório menciona a circunstância de muitos dos transferidos ao abrigo do Regulamento Dublin se encontrarem alojados neste tipo de instalação, enumerando, a propósito das condições materiais das instalações e dos serviços fornecidos, observações de cariz idêntico às fornecidas para os CPR, especialmente, no tocante à falta de condições de higiene e de instalações sanitárias, à pobreza e degradação das condições de alojamento, incluindo falta de eletricidade, aquecimento, vestuário, etc., bem como de assistência médica adequada, e de um staff devidamente preparado. O exercício de excessiva violência é igualmente notado neste Relatório, em que é relatado um episódio em que o gestor do CAS de Caserta, Campania, atingiu a tiro um requerente de asilo de 19 anos, proveniente da República da Gâmbia.
Ainda no que tange ao acolhimento e alojamento dos requerentes e beneficiários de asilo, o Relatório- relembrando que em fevereiro de 2018, cerca de 10.000 pessoas tinham sido excluídas do sistema de receção e acolhimento- descreve a existência de aglomerados de estrangeiros, dentre os quais, requerentes de asilo, estabelecidos em edifícios abandonados nos arredores das cidades, ou em campo aberto, sem quaisquer condições mínimas de sobrevivência, ou seja, sem água, gás ou eletricidade, rodeados de lixeiras e com infestações de ratos. A indigência é outra das situações indicadas no Relatório, como abrangendo muitos requerentes de asilo de transferidos ao abrigo do Regulamento Dublin.
O Relatório dedica alguma atenção às situações de detenção dos requerentes de asilo (cfr. pp. 115 a 133 do Relatório), especialmente após a entrada em vigor do Decreto Lei 113/2018, implementado pela Lei 132/2018, que possibilita a detenção dos requerentes de asilo com o propósito de examinar o respetivo pedido de asilo, uma vez que prevê a detenção com vista ao estabelecimento da identidade ou da nacionalidade do estrangeiro, requerente ou não de asilo. O Relatório anota que, em 2018, foram detidas 13.777 pessoas nos Hotspots e 4.092 pessoas nos CPR.
Durante o período de detenção e mesmo após expressar a vontade de requerer asilo, é possível o repatriamento da pessoa, uma vez que, atentos os obstáculos legais e burocráticos, a apresentação e formalização do pedido de asilo está dependente da atuação de terceiros. Tal circunstancialismo é também agravado pela generalizada ausência de informação e aconselhamento jurídico[4]. De todo o modo, atualmente, o período de detenção máximo para os requerentes de asilo está fixado em 12 meses, o que tem levantado grandes objeções, dado que tem sido considerado, para além de violador do art.º 3.º da CEDH e do art.º 4.º da CDFUE, discriminatório em face de outras situações[5].
As observações registadas no Relatório referentemente às condições materiais dos Hotspots e CPR onde ocorrem as detenções de requerentes de asilo são similares às outras já enumeradas, ressaltando-se, em especial, a menção à insuficiência de colchões e à ocasional necessidade das pessoas dormirem ao relento por as instalações não acomodarem tal número de pessoas, à falta grave de condições de higiene e de limpeza, à presença de significativo número de segurança armada e, em geral, a existência de condições degradantes, muito abaixo dos standards mínimos exigíveis, condições essas, em diversos casos, críticas.
Ainda a propósito das condições materiais em que vivem os detidos, incluindo muitos requerentes de asilo, o Relatório narra os relatos provenientes do CPR de Bari, de violência excessiva exercida pelas forças de segurança sobre os detidos, v.g. espancamentos antes da expulsão, bem como do uso de sedativos nos detidos, colocados na comida, tendo sido constatado em 05/08/2018 que muitas das pessoas detidas apresentavam olhos brilhantes, lábios inchados e dificuldade em expressarem-se.
A ocorrência de protestos, entre os detidos, motivados pela falta de condições de higiene, de condições sanitárias e de qualidade da comida são frequentes.
Em momento pouco anterior ao Relatório que vem de se escrutinar e citar, concretamente, em 10 de abril de 2018, foi publicado o Relatório elaborado pelo Conselho da Europa- Comité Europeu para a Prevenção de Tortura e das Penas ou Tratamento Desumano ou Degradante- na sequência de uma visita realizada a Itália em junho de 2017, com o intuito de examinar a situação dos estrangeiros privados de liberdade, incluindo requerentes de asilo, mormente nos Hotspots e CPR(consultável no sítio www.ecre.org). Este Relatório regista já algumas observações quanto às condições de detenção dos requerentes de asilo que, posteriormente, foram acolhidas no Relatório elaborado pela ASGI para o ECRE. Referimo-nos à deficiência ou falta de condições sanitárias, de higiene e de acomodação, à duração das detenções, à falta de refeições e ao clima de violência verificado em algumas instalações.
No Relatório elaborado pela AIDA e publicado pelo ECRE sobre a condições de alojamento dos países europeus recebedores de requerentes de asilo e refugiados, atualizado até 30 de abril de 2019[6], é descrito o novo paradigma legal italiano que regula a situação dos requerentes de asilo e o tipo de instalações de receção e acolhimento de que Itália dispõe, sendo assinalado, entre outros aspetos, a crónica falta de capacidade do sistema de acolhimento italiano para receber os requerentes de asilo[7].
Adicionalmente, no Relatório elaborado pelos Danish Refugee Council e Swiss Refugee Council e publicado em 12 de dezembro de 2018 (consultável no sítio www.refugeecouncil.ch), intitulado Mutual Trust is Still Not Enough- The situation of persons with special reception needs transferred to Italy under de Dublin III Regulation, aquelas instituições concluem claramente pela inadequação do sistema italiano de receção de requerentes de asilo, anotando a existência de falhas graves no sistema de receção e acolhimento de requerentes de asilo transferidos aos abrigo do Regulamento Dublin, gravidade essa que assume maior significância no caso de pessoas com determinadas vulnerabilidades. Ademais, este Relatório clarifica o tipo de cuidados médicos disponíveis para os requerentes de asilo no sistema italiano, concluindo que os requerentes de asilo, por diversas razões, incluindo as legais e burocráticas, não têm, na prática, acesso a cuidados de saúde. Ou seja, este Relatório finda com a assunção da ausência ou, no mínimo, da insuficiência e inadequação dos cuidados de saúde propiciados aos requerentes de asilo em geral[8].
No seguimento da divulgação contínua de notícias e informações dando conta da enorme debilidade do sistema de receção e acolhimento de requerentes de asilo em Itália, a Holanda decidiu, em dezembro de 2018, suspender as ordens de transferência de famílias para Itália ao abrigo do Regulamento Dublin (notícia publicada em 09/12/2018, no sítio www.nos.nl/artikel/2262783).
Em 28/09/2018, no sítio www.ecre.org, foi veiculada notícia (Italy: Latest immigration decree drops protection standards”) alertando para a diminuição substancial dos standards de proteção dos requerentes de asilo na República da Itália, em virtude das alterações legais em curso.
E em 14/12/2018, foi publicada também no sítio www.ecre.org, uma notícia com o título Italy: Vulnerable Dublin Returnees at Risk of destitution, em que se dava conta do que se segue:
“Os requerentes de asilo transferidos para Itália sob o Regulamento de Dublin enfrentam acesso arbitrário a acomodações, riscos de miséria e condições de receção abaixo do padrão, apesar da obrigação da Itália de fornecer garantias de tratamento adequado, de acordo com um relatório publicado esta semana.
O relatório, preparado pelos Conselhos Dinamarquês e Suíço para Refugiados, contém 13 estudos de caso sobre o retorno de Dublin de requerentes de asilo com diferentes vulnerabilidades, variando de famílias monoparentais a pessoas que sofrem de transtornos mentais e vítimas de violência. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos esclareceu em Tarakhel v. Suíça que os Estados-Membros deveriam obter garantias das autoridades italianas de que os requerentes de asilo com necessidades especiais seriam acomodados adequadamente antes de realizar uma transferência.
O relatório ilustra a arbitrariedade subjacente à receção dos retornados de Dublin pelas autoridades, o acesso oportuno ao alojamento e ao procedimento de asilo e a qualidade das condições de receção. Muitos requerentes de asilo tiveram que esperar várias horas ou até dias sem qualquer apoio em aeroportos como Roma Fuimicino e Milão Malpensa antes de serem recebidos pela polícia italiana. Alguns retornados de Dublin vêem negado o acesso ao sistema de receção italiano na chegada ou precisam esperar muito tempo antes de serem acomodados em instalações de receção de segunda linha (SPRAR). As condições precárias nos primeiros centros de receção e nos centros de receção temporária (CAS) são amplamente divulgadas, ficando muito abaixo dos padrões para pessoas com necessidades especiais.
O acesso ao procedimento de asilo é igualmente problemático. Os solicitantes de asilo retornados de acordo com o Regulamento de Dublin precisam entrar em contato com o Serviço de Imigração da Polícia (Questura) para obter uma nomeação para apresentar sua queixa. No entanto, o atraso para esse compromisso chega a vários meses na maioria dos casos.
Os riscos de destituição e exposição a condições inaceitáveis ​​de acolhimento após o retorno de outros países foram exacerbados pela entrada em vigor do Decreto-Lei 113/2018 , recentemente confirmado pela Lei 132/2018 , após o qual apenas os beneficiários de proteção internacional e crianças desacompanhadas são elegíveis para receção no SPRAR. Por conseguinte, a grande maioria dos requerentes de asilo só terá acesso aos primeiros centros de acolhimento e CAS, que oferecem apoio muito limitado.
A reforma levou alguns Estados-Membros a reexaminar a legalidade dos procedimentos de Dublin em relação à Itália, com alguns tribunais nacionais suspendendo as transferências individuais devido a um ambiente cada vez mais hostil da migração. O Serviço Holandês de Imigração e Naturalização (IND) está a rever a sua política de transferências de famílias com filhos para Dublin à Itália, à luz da reforma. As transferências de famílias foram suspensas, aguardando novas investigações sobre a situação dos requerentes de asilo no país.”
Já em janeiro de 2020, o mesmo sítio publicou nova notícia sobre Itália- Italy: Report on Effects of the “Security Decrees” on Migrants and Refugees in Sicily-, realçando a massiva redução de financiamento das instalações temporárias (CAS), o que agrava, ainda mais, as condições de receção e acolhimento de requerentes de asilo, conduzindo à sua exclusão deste sistema, mormente aos cuidados de saúde básicos e aos apoios sociais. Neste seguimento, em 16/01/2020, também no mesmo sítio, foi noticiada a morte de um cidadão tunisino de 34 anos, detido no centro de detenção de Caltanisetta, Sicília, alegadamente por falta de cuidados médicos. No mesmo ensejo, é narrado que a situação no interior do aludido centro de detenção tem sido caracterizada por uma ONG como deplorável, por não ter aquecimento, não possuir janelas, nem serem proporcionados serviços básicos, como cuidados médicos ou aconselhamento legal.
Em 23/01/2020- também no sítio www.ecre.org- foi divulgado que o Conselho Suíço de Refugiados publicou um relatório atualizado sobre a situação dos requerentes de asilo e beneficiários de proteção internacional na Itália, com foco especial nas dificuldades enfrentadas pelas pessoas transferidas sob o Regulamento Dublin III, uma vez que dada a sua posição geográfica, a Itália é o principal destino das transferências da Suíça nos termos do regulamento de Dublin, recebendo 35% de todas as transferências (o comunicado intitula-se Italy: Updated Report on the Reception System with a Focus on the Situation for Dublin Returnees).
Nesse comunicado, anunciava-se que “o chamado decreto Salvini restringiu o acesso aos centros de receção de segunda linha (SIPROIMI) na Itália a pessoas com proteção internacional e menores desacompanhados, deixando os retornados de Dublin incluindo pessoas vulneráveis ​​nos centros de receção de primeira linha. A maioria desses centros foi originalmente estabelecida como centros de emergência (CAS) e a qualidade dos serviços, de acordo com o relatório: "deterioraram-se significativamente". E que “não existe um procedimento padronizado em nível nacional para que os retornados de Dublin retornem ao sistema de receção, as pessoas frequentemente enfrentam dificuldades burocráticas para aceder aos procedimentos legais e de receção, muitas vezes se encontrando irregulares e sem-teto. Além disso, o enfraquecimento de apoio social, de alojamento, emprego e integração contribui para condições geralmente desafiadoras para refugiados e requerentes de asilo na Itália.
Finalmente, é dada especial atenção às condições das pessoas vulneráveis. O relatório denuncia as deficiências sistêmicas no reconhecimento das vítimas do tráfico de pessoas e o impacto da recente reforma nos requerentes de asilo vulneráveis ​​(incluindo famílias), que não têm mais direito a acomodações de segunda linha.”
Por estas razões, o Conselho Suíço de Refugiados recomenda aos Estados que não transfiram pessoas vulneráveis ​​para a Itália ao abrigo do Regulamento Dublin. Em qualquer outro caso- segere-se-, as autoridades responsáveis ​​devem realizar uma avaliação individual detalhada, inclusivé solicitando às autoridades italianas informações precisas sobre a instalação de receção alocada à pessoa.
No que concerne à atuação das instâncias judiciais europeias e dos Estados-Membros- e não exaurindo a enumeração- é relevante assinalar que, após a Jurisprudência estabelecida no Acórdão Tarakhel pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (Acórdão de 04/11/2014, Tarakhel v. Suíça), diversos Estados-Membros passaram a solicitar garantias pessoais e individuais à República italiana em momento prévio à emissão de decisões de transferência de requerentes de asilo para aquele país ao abrigo do Regulamento Dublin. Tal solicitação foi cessando, no caso de alguns Estados, em 2015, 2016 e 2017, após a prestação de uma garantia genérica, em 2015, por banda das autoridades italianas.
Recorde-se que, no Acórdão Tarakhel, o TEDH estabeleceu claramente que as falhas ou deficiências sistémicas de um sistema de receção e acolhimento de requerentes e beneficiários de asilo (no caso versado no Acórdão estavam em causa transferências para Itália ao abrigo do Regulamento Dublin)  constitui somente uma das vias para a demonstração do risco de tratamento desumano ou degradante após a transferência para o Estado-Membro responsável, isto à luz das circunstâncias individuais do requerente. Na senda desta Jurisprudência- que, entre o mais, entendeu ocorrer risco de violação do art.º 3.º da CEDH caso os recorrentes fossem transferidos para Itália sem quaisquer garantias específicas de proteção-, diversos países passaram a exigir garantias à República Italiana para efeitos de transferência de requerentes de asilo ao abrigo do Regulamento Dublin, sendo certo que enquanto alguns Estados apenas exigiam garantia genérica, outros exigiam garantias particulares e, enquanto uns Estados apenas exigiam tais garantias para pessoas com vulnerabilidades, outros estendiam a exigência dessas garantias praticamente a todos os casos de transsferência[9]. Efetivamente, a Alemanha, Bélgica, França, Finlândia, Países-Baixos, Noruega, Suécia, Suíça e Reino Unido registam múltiplos casos em que, ou foi obstada a transferência para a Itália, ou foram solicitadas garantias de que o requerente de asilo não correria risco de sofrer tratamentos desumanos ou degradantes, na aceção do art.º 3.º da CEDH e do art.º 4.º da CDFUE, em virtude da sua transferência para Itália ao abrigo do Regulamento de Dublin. É de assinalar, contudo, que boa parte dos países mencionados recorria a tal exigência apenas nos casos de requerentes de asilo com vulnerabilidades específicas.
Seja como for, a situação quanto à solicitação de garantias alterou-se após o envio a todas as Unidades Dublin dos diversos países, em junho de 2015, de uma Circular do Ministro do Interior Italiano, sobre a capacidade das instalações integradoras do sistema italiano de receção e acolhimento de requerentes e beneficiários de asilo, bem como sobre as condições e melhoramentos neste sistema. Ainda assim, o Tribunal Administrativo de Haia, em sentença proferida em 27/07/2015, entendeu não existirem razões para crer na existência de melhorias significativas no sistema italiano, o que conduziu à anulação de uma ordem de transferência para Itália emitida pelos Países-Baixos.
Já mais recentemente, e acompanhando a degradação das condições de receção e acolhimento dos requerentes e beneficiários de asilo em Itália, diversos Tribunais de diversos Estados têm obstado à transferência de requerentes de asilo para aquele país ao abrigo do Regulamento Dublin. Contam-se, entre outras, as decisões do Tribunal Administrativo de Toulouse (França) em 09/11/2018, do Tribunal Administrativo do Luxemburgo em 10/07/2018, do Tribunal Administrativo de Rennes (França) em 09/01/2018, da Câmara de Recurso para os Refugiados (Dinamarca) em 30/11/2017, so Tribunal Administrativo de Braunschweig (Alemanha) em 12/10/2016, do Tribunal Administrativo de Haia (Países-Baixos) em 18/07/2016, e do Tribunal Administrativo de Nantes (França) em 24/07/2015.
Com a alteração do quadro legal respeitante aos pedidos e procedimentos, motivada pelo Decreto Lei 113/2018 e pela Lei 132/2018, as deficientes e insuficientes condições de receção e acolhimento dos requerentes de asilo recrudesceram, atingindo um status quo descrito como “crítico”, “deplorável” e “inadequado” por diversas instituições e organizações internacionais durantes os anos de 2018, 2019 e 2020.
Ora, convocando a Jurisprudência firmada pelo TJUE no Acórdão prolatado em 19/03/2019, no processo C-163/17, concretamente, os considerandos elencados nos parágrafos 91, 92 e 93, é nosso entendimento que as deficiências e falhas relatadas e narradas pelas diversas instituições e organizações internacionais quanto à receção e acolhimento dos requerentes de asilo, incluindo os transferidos à luz do Regulamento Dublin, não são pontuais ou ocasionais, mas sim reiteradas e contínuas. Por conseguinte, tais deficiências e falhas devem ser qualificadas como sistemáticas.
Adicionalmente, e tendo em conta as descrições contidas nos relatórios identificados supra quanto à realidade do sistema de receção e acolhimento dos requerentes de asilo em Itália, é nossa convicção de que as aludidas falhas sistémicas assumem um limiar de gravidade particularmente elevado, nos termos exigidos pela citada jurisprudência do TJUE. Com efeito, e como é consabido, os requerentes de asilo encontram-se, na sua maioria, completamente dependentes do apoio público. Sendo assim, assoma como evidente que as deficiências e falhas sistémicas identificadas acarretam o risco real e sério dos requerentes de asilo, incluindo os transferidos ao abrigo do Regulamento de Dublin, de se verem “numa situação de privação material extrema, que não lhe permita fazer face às suas necessidades mais básicas, como, nomeadamente, alimentar‑se, lavar‑se e ter alojamento, e que atente contra a sua saúde física ou mental ou a coloque num estado de degradação incompatível com a dignidade humana”. Na verdade, o regime legal italiano para a concessão de asilo, bem como as condições materiais das instalações que integram o sistema italiano de receção e acolhimento dos requerentes de asilo, acrescido dos indicadores numéricos respeitantes aos requerentes de asilo desalojados e deportados, conduzem à convicção de que os transferidos à luz do Regulamento Dublin correm real risco de sofrer tratamento desumano e degradante, nos termos previstos e descritos no art.º 3.º da CEDH e no art.º 4.º da CDFUE.
Destarte, ponderando todo o exposto, entendemos que o caso agora em discussão subsume-se, claramente, na previsão do art.º 3.º, n.º 2 do Regulamento (EU) n.º 604/2013, não podendo, por isso, ser mantida a decisão proferida pelo Recorrente, que ordenou a transferência do Recorrido para Itália.
Refira-se, também que a existência de sinais ou indícios de falhas sistémicas no sistema de acolhimento de refugiados por banda de um Estado-membro não carece, em nosso entendimento, de ser alegada pelo requerente de asilo, até porque não é de supor- e muito menos assumir- que o requerente tenha conhecimento das notícias veiculadas pelos órgãos de informação internacionais, ou das informações constantes dos relatórios das organizações e instituições internacionais. A nosso ver, a exigência de alegação prende-se, somente, com as circunstâncias pessoais do requerente de asilo, mormente através da invocação das suas vivências pessoais ou de circunstâncias relevantes que tenha presenciado ou de que tenha conhecimento, e que possam ser valorizadas em sede de escrutínio da previsão normativa inserta no art.º 3.º, n.º 2 do Regulamento (EU) n.º 604/2013, de 26/06/2013, do Parlamento e do Conselho Europeu. Assinale-se que, em acolhimento desta visão, foram já proferidos por este mesmo Tribunal os Acórdãos nos processos n.º 1705/19.8BELSB, em 13/02/2020, n.º 1119/19.0BELSB, em 19/12/2019, n.º 1157/19.2BELSB e 1059/19.2BELSB, ambos de 21/11/2019.
Seja como for, tal questão é- conforme manda a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia- de conhecimento oficioso, não só por banda das autoridades administrativas dos Estados-membros, mas principalmente por banda dos Tribunais, concordantemente com o previsto no art.º 27.º do Regulamente Dublin, interpretado em harmonia com o art.º 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, como aliás prescreve o considerando 39) do Regulamento Dublin (ver acórdãos do TJUE de 28/07/2011, Brahim Samba Diouf vs Ministre du Travail, de L’Emploi et de L’Immigration, processo C-69/10; de 16/02/2017, C.K. and Others vs Republika Slovenija, processo C-578/16 PPU), assim como de harmonia com o art.º 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (ver acórdãos do TEDH de 11/01/2007, Salah Sheekh vs Holanda, Queixa n.º 1948/04; 17/07/2008, NA vs Reino Unido, Queixa n.º 25904/07; 22/09/2009, Abdolkhani e Karimnia vs Turquia, Queixa n.º 30471/08; e 23/03/2016, Fg vs Suécia, Queixa n.º 43611/11).
Em suma, aos órgãos jurisdicionais dos Estados-membros compete, por um lado, indagar, mesmo oficiosamente, da observância e adequada aplicação do direito da União Europeia, em concretização do princípio da efetividade do direito europeu- e seus corolários, incluindo as inerentes consequências processuais-, e, por outro lado, assegurar a concretização do preceituado no art.º 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

           
Sendo assim, ante todo exposto, somos forçados a concluir que, perante a existência das falhas sistémicas no sistema italiano de receção e acolhimento dos requerentes de asilo, incluindo os transferidos à luz do Regulamento Dublin, subsiste um risco sério e real do Recorrente sofrer tratamento desumano e degradante na aceção do consagrado no art.º 3.º da CEDH e no art.º 4.º da CDFUE. Pelo que, de acordo com o disposto no art.º 3.º, n.º 2 do Regulamento (EU) n.º 604/2013, não deve ser ordenada a transferência do Recorrente para Itália.

Desta feita, ponderando todo o espraiado até ao momento, resulta cristalino que o ato prolatado pelo Recorrente em 03/10/2019- de inadmissibilidade do pedido de proteção internacional e sequente transferência do Recorrido para Itália- padece de ilegalidade por violar o disposto no art.º 3.º da CEDH, no art.º 4.º da CDFUE e no art.º 3.º, n.º 2 do Regulamento (EU) n.º 604/2013.
 Quer isto significar que a impetração dirigida pelo Recorrente contra a decisão recorrida falece em toda a argumentação apresentada, devendo manter-se a sentença a quo por a mesma não merecer censura.
Por conseguinte, verificando-se, além do mais, que subsiste causa obstaculizante à transferência do Recorrido para Itália, atentas as falhas sistémicas do procedimento de asilo e das condições de acolhimento dos requerentes de asilo que se vivenciam hodiernamente em Itália, resta concluir que o Recorrente deve admitir o pedido de asilo formulado pelo Recorrido e proceder à devida tramitação subsequente, por forma a apurar se o mesmo reúne as condições descritas no art.º 3.º ou, subsidiariamente, do art.º 7.º da Lei do asilo.
Deste modo, e em suma, o vertente recurso jurisdicional terá de improceder e, em consequência, impõe-se confirmar o a sentença recorrida com a presente fundamentação.



IV- DECISÃO
Pelo exposto, acordam, em Conferência, os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida, com a presente fundamentação.


Sem custas, atenta a gratuitidade prevista no art.º 84.º da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 26/2014, de 5 de maio.


Remeta cópia do presente acórdão ao Conselho Português para os Refugiados.

Lisboa, 14 de maio de 2020,

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Paula Cristina Oliveira Lopes de Ferreirinha Loureiro

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Jorge Pelicano

(com declaração de voto em anexo)

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Celestina Castanheira

(com declaração de voto anexa)

*** ***


Declaração de voto: não acompanho a fundamentação do acórdão na parte em que conclui pela existência de falhas sistémicas no procedimento de asilo em Itália, ou nas condições de acolhimento aí dispensadas aos requerentes de protecção internacional, pelos motivos que constam do acórdão proferido no âmbito do procº nº 2329/19.5BELSB, de 30 de Abril de 2020, acessível em www.dgsi.pt, por mim relatado.


Jorge Pelicano


***

DECLARAÇÃO DE VOTO


Acompanhamos o sentido da decisão final contida no dispositivo do acórdão, mas não a totalidade da sua fundamentação. Entendemos que, atenta a situação concreta, a Entidade demandada deve indagar e instruir o procedimento com informação fidedigna atualizada sobre o funcionamento do procedimento de asilo italiano e as condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional, recorrendo a fontes credíveis e consolidadas.

Todavia, não acompanhamos as considerações no que respeita à existência de falhas sistémicas tecidas no acórdão.


Celestina Caeiro Castanheira


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[1] Nesta matéria, e para maior desenvolvimento, veja-se SARA RIBEIRO MENDES, A Cláusula de Soberania do Regulamento Dublin III à Luz do Princípio da Confiança Mútua entre os Estados-Membros da União Europeia, Dissertação apresentada para obtenção do Grau de Mestre, dezembro de 2016, Faculdade de Direito da Universidade Nova, consultável no Repositório da Universidade Nova, em www.run.unl.pt..
[2] Concretamente, sobre estes aspetos, o Relatório consagra, a páginas 55 a 58, e além do mais, o seguinte:

Following the Tarakhel v. Switzerland ruling,207 in practice the guarantees requested were ensured mainly to families and vulnerable cases through a list of dedicated places in the SPRAR system (see Types of Accommodation), communicated since June 2015 to other countries’ Dublin Units.208 However, following the 2018 reform of the reception system, Dublin returnees who are asylum seekers no longer have access to second-line reception; SPRAR now renamed SIPROIMI. Accordingly, places in second-line reception for vulnerable Dublin returnees are no longer reserved as asylum seekers do not have access to this type of accommodation.

In a Circular sent to other countries’ Dublin Units in the form of an email on 8 January 2019, the Italian Dublin Unit expressly confirmed this new regime and stated the following:

“Consequently, all applicants under the Dublin procedure will be accommodated in other Centres referred to in Legislative Decree No. 142/2015.

In consideration of the efforts made by the Italian Government in order to strongly reduce the migration flows, these Centres are adequate to host all possible beneficiaries, so as to guarantee the protection of the fundamental rights, particularly the family unity and the protection of minors.”209

(…)

The letter seems to imply that places are no longer reserved in second-line reception even for vulnerable Dublin returnees who are beneficiaries of international protection.

As regards the implementation of incoming transfers, only in cases where it expressly recognises its responsibility under the Dublin Regulation does Italy indicate the most convenient airport where Dublin returnees should be sent in order to easily reach the competent Questura, meaning the Questura of the area where the asylum procedure had been started or assigned. In other cases, where Italy becomes responsible by tacit acceptance of incoming requests, persons transferred to Italy from another Member State usually arrive at the main Italian airports such as Rome Fiumicino Airport and Milan Malpensa Airport. At the airport, the Border Police provides to the person returned under the Dublin Regulation an invitation letter (verbale di invito) indicating the competent Questura where he or she has to go.
On 12 December 2018 the Danish Refugee Council and Swiss Refugee Council published a report with their monitoring of the situation of 13 vulnerable Dublin returnees in Italy in 2017-2018.211 The report illustrates the arbitrariness underlying Dublin returnees’ reception by the authorities, timely access to accommodation and to the asylum procedure, and quality of reception conditions. Many asylum seekers have had to wait for several hours or even days without any support at airports such as Rome Fuimicino Airport and Milan Malpensa Airport before being received by the police. 
Some Dublin returnees were denied access to the Italian reception system upon arrival altogether or had to wait a long time before they were accommodated in SPRAR facilities.212 In its latest report of February 2018, MSF documented an increase of Dublin returnees among the homeless persons in Rome, Lazio who have no immediate and automatic access to the reception system.
It should be noted that if returnees had been placed in reception facilities and they had moved away, they could encounter problems on their return to Italy for their new accommodation request. Due to their first departure, in fact, and according to the rules provided for the Withdrawal of Reception Conditions, the Prefecture could deny them access to the reception system.
Substandard conditions in first reception centres and CAS were widely reported, falling far below standards for persons with special needs. The two organisations also found that oftentimes the receiving authorities were unaware of the specific vulnerability of the Dublin returnees. In one incident at Caserma Caraverzani, Udine, Friuli-Venezia Giulia, an Afghan asylum seeker returned from Austria to Italy committed suicide in August 2018. The person was under treatment by the local mental health service in Austria. It seems that no information was provided about his health status before or after the Dublin transfer.
Re-accessing the asylum procedure
Access to the asylum procedure is equally problematic. Asylum seekers returned under the Dublin Regulation have to approach the Questura to obtain an appointment to lodge their claim. However, the delay for such an appointment reaches several months in most cases. The competent Questura is often located very far from the airport and asylum seekers only have a few days to appear there; reported cases refer to persons arriving in Milan, Lombardy and invited to appear before the Questura of Catania, Sicily. In addition, people are neither accompanied to the competent Questura nor informed of the most suitable means of transport thereto, thereby adding further obstacles to reaching the Questura within the required time. In some cases, however, people are provided with tickets from the Prefecture desk at Milan Malpensa Airport.
Dublin returnees face different situations depending on whether or not they had applied for asylum in Italy before moving on to another European country, and whether or not the Territorial Commission had taken a decision on the application.
v In “take charge” cases where the person had not applied for asylum during his or her initial transit or stay in Italy before moving on to another country, he or she should be allowed to lodge an application under the regular procedure. However, the person could be considered an irregular migrant and be notified an expulsion order. In September 2018 a Libyan national arriving from Germany at Milan Malpensa Airport after Italy had accepted its responsibility was not allowed to seek asylum and received an expulsion order. An ASGI lawyer is representing the individual before the Magistrates’ Court (giudice di pace) of Varese that has not yet decided whether the removal order should be suspended or not. As reported to ASGI, other Dublin returnees were also denied the possibility to apply for asylum in at Milan Malpensa Airport in 2018.
v In “take back” cases where the person had already lodged an asylum application and had not appeared for the personal interview, the Territorial Commission may have suspended the procedure on the basis that the person is unreachable (irreperibile). He or she may request a new interview with the Territorial Commission if a termination decision has not already been taken after the expiry of 12 months from the suspension of the procedure. If the procedure has been terminated, however, the new application will be considered a Subsequent Application and will be subject to the stringent regulations set out by the Procedure Decree following the 2018 reform.
v In “take back” cases where the person’s asylum application in Italy has already been rejected by the Territorial Commission, if the applicant has been notified of the decision and lodged no appeal, he or she may be issued an expulsion order and be placed in a CPR. According to the new notification procedure applied since the end of October 2018 (see Regular Procedure: General), the same could happen even in case the applicant had been not been directly notified of the decision, since in case the applicant is deemed unreachable (irreperibile), the Territorial Commission notifies the decision by sending it to the competent Questura and notification is deemed to be complete within 20 days of the transmission of the decision to the Questura.
Courts from other countries have not taken a uniform approach to the compliance of transfers to Italy with fundamental rights, including following the amendments to the reception system by Decree Law 113/2018. Inconsistent court decisions have been noted in Germany and the Netherlands. In Switzerland, courts have not changed their previous position on the legality of transfers to Italy. In the United Kingdom, however, the Upper Tribunal annulled a transfer to Italy on 4 December 2018 concerning one asylum seeker and one beneficiary of international protection finding that the threshold for ill-treatment prohibited by Article 3 ECHR may be met in cases involving demonstrably vulnerable asylum seekers and beneficiaries of international protection.”

[3] Pode ler-se no dito Relatório, pp. 82 a 84:

            “1.1. Reception and obstacles to access to the procedure

According to the practice recorded in 2016, 2017 and 2018, even though by law asylum seekers are entitled to material reception conditions immediately after claiming asylum and undergoing initial registration (fotosegnalamento), they may access accommodation centres only after their claim has been lodged (verbalizzazione). This implies that, since the verbalizzazione can take place even months after the presentation of the asylum application, asylum seekers can face obstacles in finding alternative temporary accommodation solutions. Due to this issue, some asylum seekers lacking economic resources are obliged to either resort to friends or to emergency facilities, or to sleeping rough.

As reported by MSF in February 2018, at least 10,000 persons were excluded from the reception system, among whom asylum seekers and beneficiaries of international protection. Informal settlements with limited or no access to essential services are spread across the entire national territory, namely Ventimiglia, Turin, Como, Bolzano, Udine, Gorizia, Pordenone, Rome, Bari and Sicily.

Recent examples of asylum seekers facing obstacles to accessing accommodation include the following:

Friuli-Venezia Giulia: Asylum seekers in Pordenone faced severe obstacles to access asylum procedure and accommodation system in 2018. From November 2017, four asylum seekers, one Afghan citizen and three Pakistanis, had to wait 10 months to access the asylum procedure being refused and bounced from Venice Questura to the Pordenone Questura and back, with neither Questura undertaking responsibility. In September 2018, after several legal warnings the asylum seekers got access to the procedure and lodged their applications at Questura of Venice, but they are still waiting to get a place in the reception system. Three of them lodged an appeal to the Administrative Tribunal of Court against the “administrative silence” of the Prefecture of Venice after they had been convicted for unlawful occupation of the abandoned building they were living in. At the end of February 2019, the Administrative Court of Veneto accepted the appeal and ordered the Prefecture of Venice to activate the requested accommodation within 30 days. They are still waiting for a placement at the time of writing. Still in 2018, in Trieste, people waiting to lodge their asylum application and to be accommodated were fined by the police for squatting.

Lazio: On the occasion of the eviction of the building occupied by Eritrean refugees, which took place in Rome on 19 August 2017, UNHCR denounced the fact that hundreds of people fleeing war and persecution in transit in the city of Rome were forced to sleep on the streets in the absence of adequate reception. Due to the chronic lack of places in reception, makeshift settlements are increasingly set up in abandoned buildings far from the city centre, where hundreds of people live under squalid conditions.
Tuscany: In September 2018, a group of 20 to 30 asylum seekers from Pakistan had to wait for about three months to have access to reception facilities in Florence. After the fotosegnalamento, the Questura deferred all responsibility to the Prefecture which has been slow in arranging reception despite the intervention of Medici per i diritti umani (MEDU) and ASGI. As of 10 January 2019, over 80 people excluded from the reception system, some of them holders of humanitarian protection status and removed from facilities after the entry into force of the legislative decree 113/2018, were sleeping in the Parco delle Cascine in Florence.
Trentino-Alto Adige: In September 2018, almost 80 people were sleeping on the street awaiting to lodge their asylum application and to be accommodated in Trento, as their appointment for verbalizzazione at the Questura was for January 2019.”

[4] Com efeito, a páginas 116 do Relatório consta o seguinte:

“Persons applying for asylum in CPR are subject to the Accelerated Procedure. In practice, however, the possibility of accessing the asylum procedure inside the CPR appears to be difficult due to the lack or appropriate legal information and assistance, and to administrative obstacles. In fact, according to the Reception Decree, people are informed about the possibility to seek international protection by the managing body of the centre.

As reported to the Guarantor for the rights of detained persons during his visit to the CPR of Turin, carried out on 1 March 2018, detainees who intend to apply for asylum must address their request to one of the operators of the managing body. The latter then communicates to the Immigration Office that one of the detainees has requested an appointment, without providing any indication of the intention expressed by the interested party. Detainees wait for the appointment on average between two to three days but, due to the lack of documents certifying the intention to seek asylum, they could also be repatriated during this period.”

E a páginas 119:

            “According to ASGI, the new detention ground represents a violation of the prohibition on detention of asylum seekers for the sole purpose of examining their application under see Article 8(1) of the recast Reception Conditions Directive. People fleeing their countries often do not have identitication documents and cannot contact the authorities of the countries of origin as this could be interpreted as re-availing themselves of the protection of that country.”
[5] Relatório, páginas 124 e 125:

            “The Reception Decree does not provide a legal framework for the operations carried out in the CPSA now converted into hotspots. Both in the past and recently in the CPSA, in the absence of a legislative framework and in the name of unspecified identification needs, asylum seekers have been unlawfully deprived of their liberty and held for weeks in conditions detrimental to their personal dignity. The legalvacuum, the lack of places in the reception system and the bureaucratic chaos have legitimised in these places detention of asylum seekers without adopting any formal decision or judicial validation.

In the case of Khlaifia v. Italy, the European Court of Human Rights (ECtHR) has strongly condemned Italy for the detention of some Tunisians in Lampedusa CPSA in 2011, noting the breach, to them, of various rights protected by ECHR. In particular, the Court found that the detention was unlawful, and that the conditions in which the Tunisians were accommodated – in a situation of overcrowding, poor hygienic conditions, prohibition of contacts with the outside world and continuous surveillance by law enforcement, lack of information on their legal status and the duration and the reasons for detention – constituted a violation of Article 3 ECHR, the prohibition of inhuman and degrading treatment, and of Article 5 ECHR, in addition to the violation of Article 13 ECHR due to the lack of an effective remedy against these violation.593 The Grand Chamber judgment of 15 December 2016 confirmed the violation of such fundamental rights.594 Recently, at its meeting held between 12 and 14 March 2019, the Committee of Ministers of the Council of Europe, rejected the request made by the Italian Government to close the supervision processes initiated following the Khlaifia ruling. The Committee asked Italy to send further information on the measures adopted by 31 May 2019.

Although the new Article 6(3-bis) of the Reception Decree foresees the possibility of detention for identification purposes in specific places, such places are not specified and they will not be identified by law. In a Circular issued on 27 December 2018, the Ministry of Interior specified that it will be the responsibility of the Prefects in whose territories such structures are found to identify special facilities where this form of detention could be performed.

According to ASGI, detention in facilities other than CPR and prisons violates Article 10 of the recast Reception Conditions Directive, which does not allow any detention in other locations and also because in these places, the guarantees provided by this provision are not in place. According to ASGI, the amended Reception Decree also violates Article 13 of the Italian Constitution, since the law does not indicate the exceptional circumstances and the conditions of necessity and urgency allowing, according to constitutional law, for the implementation of detention. Moreover, the law makes only a generic reference to places of detention, which will be not identified by law but by the prefectures, thus violating the “riserva di legge” laid down in the Article 13 of the Constitution, according to which the modalities of personal freedom restrictions can be laid down only in legislation and not in other instruments such as circulars.”
[6] “Housing out of reach? The reception of refugees and asylum seekers in Europe”, ECRE, AIDA, disponível no sítio www.asylumineurope.org.
[7] Páginas 13, 22, 37 e 38 do Relatório citado na nota anterior.
[8] A páginas 12 e 13 do Relatório é dito:
“Since Decree No. 113/2018 on Security and Migration (also called the ‘Salvini Decree’) entered into force on 5 October 201851 asylum seekers, except for unaccompanied minors, no longer have access to SPRAR cen­tres. As a result, the name SPRAR was changed to System of Protection for Holders of International Protec­tion and Unaccompanied Minors.
Asylum seekers are now to be accommodated in the collective centres (CARA, CDA or CAS) until a final de­cision on their asylum application has been made. Except for unaccompanied minors, only those granted international protection54 (and their family members) can be accommodated in SPRAR centres. In its press release, the UNHCR voiced concerns about the negative impact of the measures introduced by the Decree on the Italian reception and asylum system.
On 25 October 2018 the Italian Ministry of Interior confirmed the practical consequences of the Salvini De­cree in a letter addressed to all SPRAR centres. The letter specifies that asylum seekers already offered ac­commodation in a SPRAR centre before 5 October 2018 remain entitled to accommodation in a SPRAR cen­tre, but henceforth no asylum seekers, except for unaccompanied minors, are allowed to enter and stay in a SPRAR centre. The letter from the Ministry of Interior explicitly mentions that also vulnerable asylum seekers are henceforth excluded from SPRAR centres.
Access to the Italian health care system, except for emergency treatment, is conditional on a person first obtaining a residence card in order to be issued a European Health Insurance Card, which will be valid for the same period as the residence card. Asylum seekers are only entitled to emergency treatment until their asylum application has been officially registered by the Questura. As the Salvini Decree determines that asylum seekers will no longer be issued with a residence card, asylum seekers will henceforth only have access to the health care services provided at their accommodation centre. The First-Line collective centres, where all newly registered asylum seeker will be accommodated, offer only limited access to emergency health care, whereby the Salvini Decree further restricts asylum seekers’ access to specialized health care.
Other changes introduced by the Salvini Decree include the abolition of the ‘humanitarian residence permit’, the form of protection that was previously the most used in Italy. To replace the humanitarian residence permit, the Salvini Decree introduced new residence permits for ‘exceptional cases’.”
E a páginas 32 e 33 do mesmo Relatório:
“(…)
Thus, it remains arbitrary how vulnerable Dublin returnees are received by the Italian authorities. Most of the monitored vulnerable Dublin returnees had to sleep on the streets upon arrival in Italy and gained ac­cess to reception centres or other shelters only as a result of their participation in the DRMP, as the DRMP’s interviewers often intervened on their behalf. Upon gaining access to reception conditions, these were often far from adequate to meet their special reception needs, in some cases due to the lack of access to special­ized health care.
As documented by cases 4, 10, and 13, there is a real risk of vulnerable asylum seekers being denied access to reception conditions after arriving in Italy as Dublin returnees. Case 4 described a single mother and her children being informed by the Italian authorities that they had lost the right to accommodation because they had previously left Italy after applying for asylum, whereas case 10 described an 18-year-old victim of human trafficking who had to wait nearly four months before he could access the reception system. Case 13 described a man suffering from HIV and a mental disorder who has been transferred to Italy twice, both times unable to find accommodation and without access to the necessary specialized health care.
The case studies also show that even if Dublin returnees are accommodated after arriving in Italy, they risk losing their right to accommodation later on. Although for different reasons, cases 3, 6, 9, 10 and 12 either lost their right to accommodation, or were able to remain the reception system only because the DRMP’s interviewers intervened, or as in case 10, because a legal practitioner from the transferring Member State had continued to follow the case and successfully argued against the withdrawal of the applicant’s reception conditions.
Legal analysis

That poor or inadequate reception conditions for asylum seekers can constitute inhuman or degrading treat­ment in violation of Article 3 ECHR has been stated by the ECtHR in its M.S.S. judgment68 and its Tarakhel judgment, where the Court made it clear that the assessment of ill-treatment must take into account all circumstances of a case, such as the duration of the treatment, its physical or mental effects and, in some instances, a person’s sex, age and state of health.
To ensure that asylum seekers, in particular those considered vulnerable and with special reception needs, are provided access to adequate reception conditions and health care, the access to and quality of reception conditions are regulated at the European level by the Reception Conditions Directive (recast) in particular. The Italian SPRAR system, prior to the Salvini Decree, was meant to provide adequate reception conditions to asylum seekers considered vulnerable, and following the Tarakhel judgment the Italian authorities have guaranteed that families with minor children will be accommodated in a SPRAR centre after being trans­ferred to Italy under the Dublin III Regulation.
However, by monitoring 13 vulnerable individuals or families transferred to Italy under the Dublin III Regu­lation, the DRC and OSAR have reaffirmed the findings of the first DRMP report from February 2017 which documented six families, none of which were provided with adequate accommodation, assistance and care upon arrival to Italy.
Thus, contrary to relevant international, European or national law, none of the 13 vulnerable individuals or families whose experiences have been described in this report had access to adequate accommodation upon arrival to Italy, which was also the case for the six families mentioned in the first DRMP report. It ap­pears to be a matter of chance whether a vulnerable Dublin returnee even has access to reception condi­tions upon arrival, as the Italian authorities neither meet the reception needs of asylum seekers in general nor the special reception needs of vulnerable asylum seekers despite their legal obligation to do so.
In H. and Others v. Switzerland, the ECtHR noted that although the six documented cases in the first DRMP report were not insignificant, the number of documented cases was not so high as to suggest that the as­surances of the Italian authorities following the Tarakhel judgment are per se unreliable. However, having documented an additional 13 cases of vulnerable Dublin returnees transferred to Italy, the DRC and OSAR find that it is clear, that there is a real risk of vulnerable Dublin returnees not being provided with adequate reception conditions upon arrival in Italy, exposing them to a risk of ill-treatment contrary to Article 3 of the ECHR and Article 4 of the EU Charter of fundamental rights.
Furthermore, as illustrated by the case studies and contrary to Italian law, vulnerable asylum seekers risk being denied or losing access to the Italian reception system without due consideration of their vulnerable situation or the principle of proportionality, which can significantly hinder their effective access to the asy­lum procedure.
Considering the inadequate reception conditions at present provided at Italian First-Line reception centres, where all asylum seekers, except for unaccompanied minors, are accommodated as of 5 October 2018, the DRC and OSAR are concerned that the conditions in the Italian reception system are likely to deteriorate. This implies among other things that asylum seekers, including Dublin returnees, will only have access to emergency health care.
(…)
With the experiences of the monitored Dublin returnees in mind, the DRC and OSAR call for a strengthened cooperation between Member States to protect the fundamental rights of persons transferred under the Dublin III Regulation. To this end, the DRC and OSAR find that clearer guidelines must be made concerning the obligations of the transferring Member State prior to a Dublin transfer, in order to ensure that the spe­cial needs of vulnerable asylum seekers are adequately addressed following the transfer.”
[9] Para melhores desenvolvimentos, veja-se a Nota Informativa elaborada em outubro de 2015 pela ELENA e publicada pela ECRE no sítio www.ecre.org, sobre Transferências Dublin Post-Tarakhel: Atualização sobre case law e prática europeia.