Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1442/13.7 BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:03/10/2022
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:IRC
RETRVMRD
ISENÇÃO
BENEFICIÁRIO EFETIVO
Sumário:I. Nos termos do art.º 4.º, n.º 2, do Regime Especial de Tributação dos Rendimentos de Valores Mobiliários Representativos de Dívida (RETRVMRD), são abrangidos pela isenção de imposto sobre o rendimento aí prevista os rendimentos devidos no momento do vencimento do cupão.

II. Para efeitos do RETRVMRD, beneficiário efetivo é todo o que obtenha rendimentos de valores mobiliários representativos de dívida por conta própria.

III. Os ganhos obtidos na transmissão dos valores mobiliários e os rendimentos obtidos na altura do vencimento do cupão são realidades distintas.

IV. Sobre os beneficiários efetivos apenas recai o ónus de comprovação dos pressupostos da sua qualidade de entidade não sujeita a retenção ou de entidade isenta.

Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio apresentar recurso da sentença proferida a 06.12.2017, no Tribunal Tributário de Lisboa, na qual foi julgada procedente a impugnação apresentada por S… (doravante Recorrida ou Impugnante, entretanto incorporada por San…), que teve por objeto o deferimento parcial da reclamação graciosa que, por seu turno, versou sobre a retenção na fonte de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), do exercício de 2010.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Nesse seguimento, a Recorrente apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

“I - A douta sentença a quo entendeu que tendo sido retida a totalidade do imposto devido aquando do vencimento do cupão, e beneficiando a Recorrida da isenção do imposto, nos termos do artigos 4º e 5º do regime especial de tributação dos rendimentos de valores mobiliários representativos de divida, na sequência da sua qualidade de não residente, a mesma tem direito a restituição total do imposto retido, pelo que a decisão administrativa não poderá manter-se na parte em que indeferiu o pedido.

II - Da sentença podemos formular a convicção de que é entendimento do douto Tribunal a quo que a distinção estabelecida pela AT entre os juros atinentes ao período de detenção dos títulos - relativamente aos quais o titular beneficiaria de isenção - e aqueles que correspondem a um período antecedente a essa titularidade, os quais já não beneficiariam daquela detenção, não encontra no regime jurídico em causa previsão legal.

III - Não decorrendo do regime jurídico em causa que a isenção de tributação não abranja a totalidade dos juros vencidos, por ali não se prever uma isenção proporcional a titularidade efectiva do valor mobiliário.

IV - Destarte, assentou a douta sentença a quo que na data do vencimento do cupão, era a impugnante a titular efectiva dos rendimentos, pelo que tinha o direito a isenção da tributação incidente sobre a totalidade dos juros percebidos.

V - Dissente esta RFP da decisão e respectiva fundamentação em que se baseou a douta sentença a quo, porquanto, em face ao regime legal aplicável, verifica-se que, contrariamente ao ali decidido, ficam apenas abrangidos pela isenção de tributação os juros corridos, isto é, os juros que o titular percebeu relativamente ao período em que deteve os títulos de dívida pública, in casu, o valor correspondente a € 30.487,67.

VII - Com efeito, o que está em causa no Regime Especial de Tributação dos Rendimentos de Valores Mobiliários Representativos de Divida, aprovado pelo Decreto-Lei n° 193/2005, de 7/11 não é uma isenção objectiva (do rendimento em si), mas sim uma isenção subjectiva (atendendo as caracteristicas particulares dos beneficiários do rendimentos), pelo que só o beneficiário efectivo do rendimento pode beneficiar da referida isenção.

VIII - Ora, o beneficiário efectivo será o que detém a titularidade dos valores mobiliários representativos da divida, razão pela qual, os juros são contabilizados dia a dia e pagos no momento da transmissão dos títulos ao cedente, sendo ele o beneficiário efectivo dos rendimentos relativamente ao período em que foi o titular dos valores mobiliários.

IX - Assim, no momento da maturação dos valores mobiliários ou do vencimento de juros, o titular que recebe os rendimentos só e o beneficiário efectivo dos rendimentos relativos ao período em que deteve os valores mobiliários, recebendo os restantes rendimentos por conta dos anteriores detentores dos valores mobiliários, uma vez que já pagou esses rendimentos aos mesmos, incluído no preço de aquisição dos valores mobiliários.

X - Neste termos, a entidade requerente apenas e beneficiaria efectiva dos rendimentos relativos ao período de tempo compreendido entre a data de aquisição dos títulos e o respectivo vencimento dos juros, e, como tal só deveria ter direito ao reembolso do imposto relativo aos rendimentos correspondentes a esse lapso temporal.

XI - Razão pela qual, e levando em linha de conta que, de acordo com o disposto no Regime Especial de Tributação dos Rendimentos de Valores Mobiliários Representativos de Divida aprovado pelo Decreto-Lei n° 193/2005, de 7/11, a isenção de tributação de tais rendimentos apenas beneficia o juro corrido, ou seja, o sujeito passivo representado pelo requerente apenas pode beneficiar da isenção de tributação relativamente aos juros que recebeu correspondentes ao período de tempo em que deteve os títulos de divida, o que, no caso em apreço corresponde ao reembolso no valor de € 30.487,67.

XII - É certo que o imposto retido na fonte na data do pagamento dos juros no presente caso incidiu sobre a totalidade dos juros pagos a entidade requerente (ora impugnante), apesar da mesma ter sido detentora dos valores mobiliários em apenas 107 dias, razão pela qual a mesma requer a restituição da totalidade do imposto.

XIII - Acontece, porém que o regime criado pelo Decreto-Lei n° 193/2005, de 7/11, prevê que o reembolso ou a liquidação do imposto vá ocorrendo sempre que há uma transmissão dos títulos, levando-se em linha de conta o estatuto dos intervenientes da transação (artigo 11°), o qual é eficaz se os intervenientes tiverem estatuto diferente, mas se acontecer que os valores mobiliários sejam alienados por um beneficiário do regime de isenção a outro beneficiário do mesmo regime, não haverá nem retenção, nem reembolso.

XIV - O mesmo poderá ocorrer no caso de aplicação do disposto no artigo 17° daquele regime legal, uma vez que a Central de Liquidação Internacional se compromete a não efectuar serviços de registo a entidades não isentas.

XV - Ora, numa situação destas, se não for efectuada a prova do estatuto de entidade isenta pelo titular dos valores mobiliários no momento do pagamento dos juros há lugar a retenção do imposto sobre a totalidade dos rendimentos, acabando por ser este último titular a suportar a totalidade do imposto apesar dos anteriores detentores dos valores também terem beneficiado do regime de isenção.

XVI - Nestes casos, até seria legitima a pretensão do titular dos valores mobiliários de que lhe seja restituída a totalidade do imposto retido na fonte, uma vez que não era só ele que beneficiava do estatuto de entidade isenta, mas também os anteriores detentores dos valores mobiliários.

XVII - Mas, para tanto, tornar-se-ia indispensável que fosse efectuada a prova de que durante todo o período que decorreu desde a emissão dos valores mobiliários ou desde o último vencimento de rendimentos e a data em que ocorre a retenção na fonte, os titulares dos valores mobiliários foram sempre sujeitos passivos beneficiários do regime de isenção.

XVIII - Porem, não se afigurando ter sido efectuada esta prova nos autos, isto é, de que os anteriores detentores dos valores mobiliários geradores do rendimento também beneficiavam do regime de isenção, mostra-se legalmente correcta a decisão da AT de autorizar apenas o reembolso do montante de € 30.487,67, correspondente aos 107 dias de detenção dos títulos por parte da ora impugnante.

XIX - Motivo pelo qual, não padecendo a decisão administrativa de indeferimento do pedido da ora impugnante, proferida em sede de procedimento de reclamação graciosa, de qualquer ilegalidade, devera a mesma manter-se na ordem jurídica.

Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão ser revogada e substituída por acórdão que declare a impugnação totalmente improcedente, tudo com as legais e devidas consequências”.

A Recorrida apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:

1.ª O presente recurso foi interposto pelo Ilustre Representante da Fazenda Pública contra a sentença proferida no âmbito da impugnação judicial deduzida pelo ora Recorrido contra o despacho de deferimento parcial, datado de 25.06.2013, proferido no âmbito do procedimento de reclamação graciosa n.º 308…….. (processo DJT 22…/12) pelo Exmo. Senhor Chefe da Divisão de Justiça Administrativa da Direção de Finanças de Lisboa e, bem assim, contra o ato de retenção na fonte respeitante ao Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) referente ao ano de 2010, incidente sobre os juros auferidos no território nacional referentes a títulos de dívida não pública com o ISIN ……….;

2.ª A douta sentença julgou procedente a impugnação judicial deduzida, considerando que os rendimentos auferidos na data do vencimento do cupão ou do reembolso dos valores mobiliários em causa são atribuídos ao beneficiário efetivo, tendo por referência todo o período temporal considerado, sendo que, estando o Recorrido isento do pagamento de IRC nos termos dos artigos 4.º e 5º, ambos do Decreto-Lei n.º 193/2005, de 7 de novembro, eslte tem direito ao reembolso da totalidade do imposto indevidamente retido e ainda não reembolsado;

3.ª Invoca o Ilustre Representante da Fazenda Pública que a sentença recorrida assenta a sua fundamentação numa errónea valoração da matéria de facto e incorre numa incorreta interpretação das normas legais aplicáveis, alegando que, contrariamente ao que resulta da sentença recorrida, só é beneficiário efetivo dos rendimentos nos termos do Decreto-Lei n.º 193/2005 o titular que aufere os rendimentos respeitantes ao período em que deteve os valores mobiliários;

4.ª Não assiste, com o devido respeito, qualquer razão ao Ilustre Representante da Fazenda Pública, devendo manter-se a sentença recorrida;

5.ª Em primeiro lugar, refira-se que este Tribunal Central Administrativo é incompetente para o conhecimento deste recurso, porquanto as alegações de recurso da Recorrente não encerram qualquer discordância relativamente à matéria de facto, não sendo invocado qualquer erro ou omissão quanto à factualidade dada como provada e não provada e quanto ao julgamento emitido em face da mesma;

6.ª Acresce que, quisesse a Recorrente realmente impugnar a matéria de facto e/ou a valoração que da mesma foi feita na sentença, incumbia-lhe o ónus de especificação previsto no artigo 640.º do Código de Processo Civil (CPC), o qual não foi cumprido;

7.ª Assim, neste contexto, em que apenas se discute nos autos matéria exclusivamente de Direito, sendo o Tribunal Central Administrativo Sul incompetente para o seu conhecimento e competente o Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do disposto no artigo 280.º, n.º 1, do CPPT e do artigo 26.º, alínea b), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), requer-se que seja declarada a incompetência do Tribunal Central Administrativo Sul para a apreciação do presente recurso, com as demais consequências legais;

8.ª Sem prescindir, refira-se por seu turno, e antes de mais, que as doutas alegações de recurso, com o devido respeito, não vêm aportar nada de novo, limitando-se a repetir aquele que tem vindo a ser o entendimento da Recorrente nos presentes autos, e sobre o qual já foi proferida decisão. Só com base nesse motivo, não logrando de modo algum aquelas alegações infirmar o veredicto do Tribunal a quo, deverá julgar-se improcedente o recurso apresentado;

9.ª De todo o modo, resultando desde logo da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida [cf. factos 1) a 3), cf. página 3 da sentença recorrida] e, bem assim, da matéria de facto dada como não provada [“Dos autos não resulta provado que a sociedade impugnante detenha em Portugal estabelecimento estável ao qual possam ser imputáveis rendimentos aqui auferidos.” (cf. página 3 da sentença recorrida)], não impugnada pela Recorrente, que estão verificados todos os pressupostos legais formais de que depende a aplicação daquele diploma, e que as questões controvertidas no âmbito do presente recurso residem na alegada relevância do período de detenção dos títulos e no conceito de beneficiário efetivo para efeitos do referido diploma, é manifesto, atendendo ao regime de isenção neste previsto, que o entendimento sufragado pela Recorrente é ilegal;

10.ª De facto, a isenção prevista no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 193/2005 abrange, nos termos do seu n.º 2, todos os rendimentos obtidos “(…) no momento do vencimento do cupão (…)”, isto é, para efeitos de pagamento/retenção na fonte a título de pagamento do IRC, o valor do imposto suportado incidirá sempre sobre a totalidade dos rendimentos obtidos no período temporal compreendido entre a data de emissão do cupão e a data do vencimento do cupão;

11.ª Prevendo o Decreto-Lei n.º 193/2005 uma isenção total de incidência de imposto sobre todos os rendimentos obtidos, não se alcança qualquer fundamento de facto ou de direito que sustente o entendimento nos termos do qual, para efeitos de restituição do imposto indevidamente retido, deverá ser considerado o período de detenção dos valores mobiliários (cf., designadamente, o acórdão de 18.06.2015 do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido no processo n.º 08456/15);

12.ª Na verdade, não só este entendimento da Recorrente (i) não tem qualquer apoio na letra dos artigos 4.º e 8.º, ambos do Decreto-Lei n.º 193/2005 nos termos supra referidos, (ii) como sendo o Recorrido uma entidade isenta do pagamento do IRC, nos termos do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 193/2005 e tendo suportado o imposto que incidiu sobre a totalidade dos rendimentos dos valores mobiliários obtidos no período temporal compreendido entre a data de emissão do cupão e a data do vencimento do cupão, deve ser restituído o valor total retido na fonte, porquanto caso assim não ocorra, o Recorrido estará a pagar ilegalmente a título de IRC o valor de € 73.512,33 (€ 104.000,00 - € 30.487,67);

13.ª Com efeito, a interpretação dos artigos 4.º e 5.º do Decreto-Lei n.º 193/2005, no sentido de que só é reembolsável o imposto correspondente ao período em que o titular dos rendimentos deteve os títulos, incorre em inconstitucionalidade por violação do princípio da tributação pelo lucro real, nos termos do artigo 104.º, n.º 2, da CRP, o que se invoca para os devidos efeitos legais;

14.ª Em face do exposto, resulta evidente a violação dos artigos 4.º e 5.º do Decreto-Lei n.º 193/2005, pelo que deve ser mantido o entendimento vertido na sentença recorrida e a decisão de anulação do ato de retenção na fonte, com a restituição ao Recorrido do valor do imposto indevidamente suportado, com referência ao ano de 2010;

15.ª De facto, a interpretação sufragada pela Recorrente não só procede a uma incorreta concretização do conceito de beneficiário efetivo para efeitos da aplicação do Decreto-Lei n.º 193/2005, como também trata duas situações diferentes, quais sejam a obtenção de rendimentos por via da transmissão de valores mobiliários ou por via do vencimento do cupão, de forma idêntica;

16.ª Com efeito, a definição do conceito de beneficiário efetivo previsto no âmbito do Decreto-Lei n.º 193/2005 não confere qualquer relevância à detenção dos valores mobiliários ou ao seu período de detenção, resultando antes do artigo 2.º, alínea a), do Decreto-Lei sob análise, que “(…) entende-se por: a) Beneficiário efectivo qualquer entidade que obtenha rendimentos de valores mobiliários representativos de dívida por conta própria (…).”;

17.ª E compreende-se que assim seja, desde logo, porque os valores mobiliários podem gerar rendimentos para os beneficiários em dois momentos distintos, quais sejam: (i) aquando da transmissão dos valores mobiliários antes da data do seu vencimento ou (ii) aquando do seu vencimento, sendo que, o período de detenção só se afigura relevante para efeitos de determinação do valor dos rendimentos obtidos no âmbito da primeira situação;

18.ª De facto, o regime de reembolso do imposto indevidamente retido é diferente consoante os rendimentos obtidos derivem da operação de transmissão de valores mobiliários ou resultem do vencimento do cupão;

19.ª É a entidade registadora direta, que no momento da liquidação das operações de transmissão de valores mobiliários, está obrigada a aplicar a taxa de juro nominal bruta e a reter na fonte ou reembolsar o imposto devido, conforme esteja em causa uma entidade sujeita a retenção ou uma entidade isenta;

20.ª De acordo com a n.º 7/2010, de 15.07. 2010 da Direção de Serviços das Relações Internacionais, quando seja requerido o reembolso do imposto retido aquando da transmissão antes do vencimento dos juros “Deverá, ainda, o requerente facultar a informação que permita controlar os juros contáveis, ou seja, deverá indicar a data do último vencimento (ou, sendo o caso, a data da emissão) anterior à transferência, a data do vencimento (ou, sendo o caso, do reembolso) e o montante dos juros contáveis à data da transferência.”, isto é, nesta situação afigura-se relevante o prazo de detenção dos valores para a determinação dos rendimentos efetivos do beneficiário e consequentemente o valor de imposto que lhe é devido;

21.ª Situação bem diferente ocorre no caso do pagamento de rendimentos decorrentes do vencimento do cupão em que não é relevante para a administração tributária saber qual o período de detenção pois os rendimentos obtidos irão sempre corresponder ao juro relativo a um determinado ao período de tempo (compreendido entre a data da emissão ou a data do último vencimento do cupão até à data de vencimento) e será igual ao valor do capital a multiplicar pelo valor da taxa de juro nesse mesmo período;

22.ª Os regimes de retenção e reembolso previstos respetivamente nos artigos 8.º e 9.º do Decreto-Lei n.º 195/2005, aplicáveis aquando da obtenção de rendimentos decorrentes do vencimento dos valores mobiliários, não se confundem com os regimes de retenção e reembolso previstos respetivamente nos artigos 11.º e 13.º do mesmo diploma aplicáveis aquando da obtenção de rendimentos decorrentes da transmissão dos valores mobiliários;

23.ª Assim, quando estiver em causa o reembolso do imposto indevidamente retido aquando da transmissão dos valores mobiliários, o beneficiário apenas é beneficiário dos rendimentos obtidos até à data da transmissão dos valores mobiliários e por essa razão será reembolsado do valor do imposto suportado correspondente ao período em que os deteve;

24.ª Situação bem distinta ocorre quando o beneficiário recebe rendimentos decorrentes do vencimento dos valores mobiliários pois não existe qualquer incerteza quanto ao montante dos rendimentos obtidos pelo beneficiário, já que o mesmo será sempre igual ao capital a multiplicar pelo valor da taxa de juro nesse mesmo período;

25.ª É precisamente o facto de o Decreto-Lei n.º 193/2005, de 7 de novembro prever que o reembolso ou a liquidação do imposto devido vá ocorrendo sempre que há uma transmissão dos títulos, levando-se em linha de conta o estatuto dos intervenientes da operação (artigo 11.º), que permite que aquando do vencimento dos juros, os mesmos sejam considerados pela sua totalidade;

26.ª Efetivamente, à luz do regime supra transcrito, sempre se deverá entender que caso o transmitente (vendedor) dos valores mobiliários seja titular de conta de entidade sujeita a retenção na fonte de IRS ou IRC (não isenta ou dispensada), aquando da aquisição, o comprador pagou o equivalente ao valor bruto dos juros corridos, pelo que o valor do imposto devido por essa entidade (vendedor) deverá ter sido retido no momento da transmissão, por aplicação do mencionado artigo 11.º, n.º 1 alínea a) do Decreto-Lei n.º 193/2005;

27.ª Já no caso do transmissário (adquirente) dos valores mobiliários seja titular de uma conta de entidade sujeita a retenção na fonte, como no caso concreto, (em que o Recorrido ainda não tinha comprovado a sua isenção) a entidade registadora reembolsa aqueles (vendedores) do valor do imposto suportado na aquisição dos rendimentos de capitais, por aplicação do mencionado artigo 11.º, n.º 1 alínea b) do Decreto-Lei n.º 193/2005;

28.ª No caso concreto, aquando da aquisição daqueles valores mobiliários o Recorrido porque não tinha comprovado a sua qualidade de entidade isenta, não obteve o reembolso do imposto determinado sobre o rendimento dos juros de capital nos termos do artigo 11.º, n.º 1 alínea b) e n.º 5 do Decreto-Lei n.º 193/2005, embora tenha pago ao vendedor, aquando da aquisição dos valores mobiliários, para além do valor do título, o valor bruto dos juros corridos até à data da operação de transmissão;

29.ª Assim, no momento do vencimento do cupão, o rendimento auferido pelo respetivo detentor, neste caso o Recorrido, engloba a totalidade dos juros que lhe são devidos, e são-lhe devidos porque quando os adquiriu pagou o preço corresponde ao somatório entre (i) o valor dos juros respeitantes ao período de detenção dos títulos de dívida (ii) acrescido do valor dos juros corridos apurados até à transmissão dos valores;

30.ª Deste modo, bem andou a sentença recorrida, quando decidiu que o Recorrido era beneficiário efetivo da totalidade dos rendimentos recebidos, independentemente do período em que efetivamente deteve os títulos;

31.ª Pelo que, em face de todo o exposto, resultando por demais evidente a improcedência dos argumentos invocados pela Recorrente, deve ser julgado improcedente o recurso, mantendo-se a sentença recorrida;

32.ª Decorre ainda das alegações de recurso que a Recorrente entende que a procedência do pedido do Recorrido dependeria da apresentação, por este, de prova que certificasse que durante todo o período que decorreu desde a emissão do cupão ou desde o último vencimento de rendimentos e a data em que ocorreu a retenção na fonte, os titulares dos valores mobiliários foram sempre sujeitos passivos beneficiários do regime de isenção;

33.ª Todavia, o Decreto-Lei n.º 193/2005 não impõe aos sujeitos passivos que apresentem aqueles elementos de prova, nem para efeitos da constituição do direito à isenção do imposto nos termos dos artigos 4.º e 5.º daquele diploma, nem para efeitos de pedido de reembolso do imposto indevidamente retido no vencimento, nos termos do disposto no artigo 9.º do diploma sob análise;

34.ª Nesta medida, estando provado que o Recorrido reúne todos os pressupostos de facto e de direito para beneficiar da aludida isenção de imposto e que não lhe é legalmente exigível que proceda a qualquer diligência de prova adicional, bem andou a sentença recorrida quando decidiu no sentido de não ser exigível qualquer prova adicional, atenta a circunstância de o Recorrido ser o beneficiário efetivo direto da totalidade dos rendimentos obtidos;

35.ª De facto, contrariamente ao aduzido nas alegações de recurso, sempre cumpriria notar ainda que a administração tributária teria ao seu dispor todos os mecanismos necessários para obter essas informações diretamente junto das entidades registradoras diretas dos títulos de dívida;

36.ª Nesta medida, se a natureza jurídica dos transmitentes fosse verdadeiramente relevante para a decisão sobre a pretensão do Recorrido, o que apenas por dever de patrocínio se concebe, sem conceder, e se sobre este não impende qualquer obrigação de prova relativamente a esse facto, então impor-se-ia à administração tributária que realizasse todas as diligências convenientes para apurar a natureza jurídica dos transmitentes de valores mobiliários, como decorre do disposto no artigo 58.º da LGT;

37.ª Efetivamente, se a administração tributária omitir a realização de diligências junto das entidades registadoras a fim de averiguar junto das mesmas a natureza jurídica dos transmitentes dos valores mobiliários, mas se continuar a reputar essa informação como essencial para o deferimento da pretensão do Recorrido, estaremos perante uma violação daquele preceito e consequentemente do princípio do inquisitório;

38.ª Neste mesmo sentido já se pronunciou o Supremo Tribunal Administrativo, no seu acórdão de 31.05.2017, proferido no processo n.º 0418/16, citado na sentença recorrido, e inclusivamente respeitante a um outro processo de igual teor em que também é parte o ora Recorrido;

39.ª Assim, também por esta razão deve ser mantido o entendimento vertido na sentença recorrida, mantendo-se a decisão de anulação do ato tributário impugnado;

40.ª Razão pela qual, em face de todo o exposto, deve julgar-se improcedente o recurso apresentado pela Fazenda Pública, mantendo-se a sentença recorrida e a decisão de anulação do ato impugnado, com a restituição ao Recorrido do imposto indevidamente pago.

Por todo o exposto, e o mais que o ilustrado juízo desse Tribunal suprirá, deve o presente recurso ser julgado improcedente, por não provado, mantendo-se a sentença recorrida, assim se cumprindo com o DIREITO e a JUSTIÇA!”.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do então art.º 289.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT) vem o processo à conferência.

São as seguintes as questões a decidir:

Questão prévia suscitada pela Recorrida:

a) É este TCAS incompetente, em razão da hierarquia?

Questão suscitada pela Recorrente:

b) Há erro de julgamento, na medida em que a isenção prevista no regime especial de tributação dos rendimentos de valores mobiliários representativos de dívida, não abrange o período antecedente à titularidade dos títulos em causa e que, de todo o modo, a Impugnante teria de provar que os anteriores titulares dos valores mobiliários foram sempre sujeitos passivos beneficiários do regime de isenção?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

1. A sociedade “S…” é uma sociedade de direito espanhol com o número de identificação fiscal espanhol V8……. e português … … …, com sede em Av. ………., ……. Madrid Espanha – cfr. fls. 34/35 dos autos e fls. 7 do processo de reclamação graciosa aqui em anexo.

2. Em 21/10/2010 auferiu juros de valores mobiliários com o código PT…….., no montante de € 520.000,00, tendo-lhe sido retido imposto no montante de € 104.000,00 pagos pelo B… SA. – cfr. fls. 7 do processo de reclamação graciosa aqui em anexo.

3. Em 05/07/2012, o B… SA., apresentou junto da Administração Fiscal um formulário mod. 22-RFI do sujeito passivo identificado em 1., deste probatório requerendo a restituição do montante retido nos termos que a seguir parcialmente se transcrevem:

“(…)

«Imagem no original»

(…)”

Tudo cfr. fls. 7 do processo de reclamação graciosa aqui em anexo

4. Os serviços da AT converteram o pedido em Reclamação graciosa que autuaram com o n.º 308………… que deferiram parcialmente, por despacho do Chefe de Divisão, por subdelegação de 25/06/2013 – cfr. consta do respetivo processo aqui em anexo.

5. A aqui Impugnante tomou conhecimento por carta registada com aviso de receção que foi assinado em 05/07/2013 - cfr. consta do respetivo processo aqui em anexo.

6. A presente Impugnação foi deduzida em 02/09/2013 – cfr. fls. 3 dos autos”.

II.B. Quanto aos factos não provados, refere-se na sentença recorrida:

“Dos autos não resulta provado que a sociedade Impugnante detenha em Portugal estabelecimento estável ao qual possam ser imputáveis rendimentos aqui auferidos.

Não se provaram outros factos susceptíveis de afectar a decisão de mérito e que, em face das possíveis soluções de direito, importe registar como não provados”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“No tocante aos factos provados e não provados, a convicção do Tribunal fundou-se, em primeira linha, na prova documental junta aos autos, em concreto no teor dos documentos indicados em cada uma das alíneas supra”.

II.D. Atento o disposto no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, acorda-se aditar a seguinte matéria de facto provada:

7. Foi remetido documento, dirigido à administração tributária (AT), retificando a data de aquisição mencionada em 3., para 06.07.2010 (cfr. documentos n.ºs 2 e 4 juntos com a petição inicial).

8. Foi elaborada, na direção de serviços de relações internacionais, informação n.º …../2013, datada de 09.01.2013, da qual consta designadamente o seguinte:

“18. Assim, no momento da maturação dos valores mobiliários ou do vencimento de juros, o titular que recebe os rendimentos só é o beneficiário efectivo dos rendimentos relativos ao período em que deteve os valores mobiliários, recebendo os restantes rendimentos por conta dos anteriores detentores do valores mobiliários, uma vez que já pagou esses rendimentos aos mesmos, incluído no preço de aquisição dos valores mobiliários.

19. Neste termos, a entidade requerente apenas é beneficiária efectiva dos rendimentos relativos ao período de tempo compreendido entre a data de aquisição dos títulos e o respectivo vencimento dos juros, e, como tal só deveria ter direito ao reembolso do imposto relativo aos rendimentos correspondentes a esse lapso temporal, conforme abaixo se discrimina:

20. É certo que o imposto retido na fonte na data do pagamento dos juros no presente caso incidiu sobre a totalidade dos juros pagos à entidade requerente, apesar da mesma ter sido detentora dos valores mobiliários apenas 100 dias, razão pela qual a mesma requer a restituição da totalidade do imposto.

21. Acontece, porém que o regime criado pelo Decreto-Lei n° 193/2005, de 7/11, prevê que o reembolso ou a liquidação do imposto vá ocorrendo sempre que há uma transmissão dos títulos, levando-se em linha de conta o estatuto dos intervenientes da transacção (artigo 11º), o qual é eficaz se os intervenientes tiverem estatuto diferente, mas se acontecer que os valores mobiliários sejam alienados por um beneficiário do regime de isenção a outro beneficiário do mesmo regime, não haverá nem retenção, nem reembolso.

22. O mesmo poderá ocorrer no caso de aplicação do disposto no artigo 17° do regime, uma vez que a Central de Liquidação internacional se compromete a não efectuar serviços de registo a entidades não isentas.

23. Ora, numa situação destas, se não for efectuada a prova do estatuto de entidade isenta pelo titular dos valores mobiliários no momento do pagamento dos juros há lugar à retenção do imposto sobre a totalidade dos rendimentos, acabando por ser este último titular a suportar a totalidade do imposto apesar dos anteriores detentores dos valores também terem beneficiado do regime de isenção.

24. Nestes casos, afigura-se-nos legítima a pretensão do titular dos valores mobiliários de que lhe seja restituída a totalidade do Imposto retido na fonte, uma vez que não era só ele que beneficiava do estatuto de entidade isenta, mas também os anteriores detentores dos valores mobiliários.

25. Para tanto, torna-se indispensável que seja efectuada a prova de que durante todo o período que decorreu desde a emissão dos valores mobiliários ou desde o último vencimento de rendimentos e a data em que acorre a retenção na fonte, às titulares dos valores mobiliários foram sempre sujeitos passivos beneficiários do regime de isenção.

26. Nestes termos, caso não venha a ser efectuada a prova de que os anteriores detentores dos valores mobiliários geradores do rendimento também beneficiavam do regime de isenção; afigura-se-nos ser de autorizar apenas o reembolso do montante de € 28.493,15 relativamente ao ano de 2010…” (cfr. documento n.º 5 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

9. Foi elaborada, na direção de serviços de relações internacionais, informação n.º ……/2013, datada de 04.06.2013, da qual consta designadamente o seguinte:

“15 O B….., SA respondeu agora à nossa solicitação informando que os títulos foram efetivamente registado em nome daquele beneficiário efetivo a 6 de Julho de 2010, a pedido do intermediário financeiro não residente, B…, SA.

16. Nestes termos, afigura-se-nos ser de aceitar como data de aquisição dos valores mobiliários representativos de dívida a data de 6 de julho de 2010.

17. Perante isso, será de se alterar o valor do imposto a restituir de acordo com os dados constantes do quadro seguinte:

…”(cfr. documento n.º 5 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

10. A decisão referida em 5. foi proferida na sequência de informação elaborada a 18.06.2013, da qual consta designadamente o seguinte:

“IV- INFORMAÇÃO SUCINTA

Realizada a instrução do processo, foi elaborado o projecto de decisão o qual foi comunicado à reclamante através do ofício n.º 02……. de 2013/03/20. (...)

O direito de audição foi exercido, via email, pelo B…, em 2013/03/28, conforme fls 25 a 30 dos autos, onde manifestou a sua discordância face à proposta de deferimento parcial.

Os elementos ora apresentados foram enviados à DSRI, com vista à informação sobre a validade dos documentos juntos. A Informação prestada, n.º …../2013, da qual se Junta cópia Anexo 2 págs 1 e 2 conclui ser de alterar o valor do Imposto a restituir, por se aceitar como data de aquisição dos valores mobiliários representativos de dívida a data de 6 de Julho de 2010.

Assim somos de parecer ser de alterar a decisão constante no projecto de decisão, sendo de deferir parcialmente a petição no montante de € 30.487,67” (cfr. documento n.º 5 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Da incompetência em razão da hierarquia

Cumpre, antes de mais, apreciar a (in)competência em razão da hierarquia deste TCAS, suscitada pela Recorrida, em virtude de, na sua perspetiva, estarem apenas em discussão questões de direito.

Vejamos.

Atento o disposto no art.º 26.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF – redação vigente à época):

“Compete à Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo conhecer:

(…) b) Dos recursos interpostos de decisões dos tribunais tributários com exclusivo fundamento em matéria de direito”.

Por seu turno, prescreve o art.º 38.º, al. a), do mesmo diploma que:

“Compete à Secção de Contencioso Tributário de cada tribunal central administrativo conhecer:

a) Dos recursos de decisões dos tribunais tributários, salvo o disposto na alínea b) do artigo 26.º”.

Por outro lado, nos termos do art.º 280.º, n.º 1, do CPPT (na redação então vigente):

“Das decisões dos tribunais tributários de 1.ª instância cabe recurso, no prazo de 10 dias, a interpor pelo impugnante, recorrente, executado, oponente ou embargante, pelo Ministério Público, pelo representante da Fazenda Pública e por qualquer outro interveniente que no processo fique vencido, para o Tribunal Central Administrativo, salvo quando a matéria for exclusivamente de direito, caso em que cabe recurso, dentro do mesmo prazo, para a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo”.

Assim, compete ao Supremo Tribunal Administrativo o conhecimento de recursos, quando a matéria for exclusivamente de direito, competindo aos TCA o conhecimento dos demais.

Nos termos do art.º 16.º, n.º 1, do CPPT, a infração das regras de competência em razão da hierarquia determina a incompetência absoluta do Tribunal.

Para a aferição da competência em razão da hierarquia é fundamental atentar nas alegações e conclusões do recurso.

In casu, não se acompanha o entendimento da Recorrida, atento o teor das conclusões formuladas, do qual resulta a alegação de uma insuficiência do ponto de vista probatório (cfr. conclusões XVII e XVIII), ainda que não tenha sido impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto.

Ademais, considerando o disposto no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, este Tribunal procedeu ao aditamento de factos.

Face ao exposto, improcede a exceção de incompetência absoluta deste Tribunal, em razão da hierarquia.

III.B. Do erro de julgamento

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, porquanto, na sua perspetiva, a isenção, prevista no regime especial de tributação dos rendimentos de valores mobiliários representativos de dívida, não abrange o período antecedente à titularidade dos títulos em causa. Entende ainda que caberia à Impugnante provar que os anteriores titulares dos valores mobiliários foram sempre sujeitos passivos beneficiários do regime de isenção.

Vejamos então.

O Regime Especial de Tributação dos Rendimentos de Valores Mobiliários Representativos de Dívida (RETRVMRD), aprovado em anexo ao DL n.º 193/2005, de 7 de novembro, determinava, no seu art.º 3.º, que:

“São abrangidos por este Regime Especial os valores mobiliários representativos de dívida pública e não pública, incluindo as obrigações convertíveis em ações, independentemente da moeda em que essa dívida seja emitida, integrados em sistema centralizado reconhecido nos termos do Código dos Valores Mobiliários e legislação complementar, incluindo o sistema centralizado gerido pelo Banco de Portugal”.

No que respeita ao âmbito objetivo da isenção, somos remetidos para o art.º 4.º do RETRVMRD, nos termos do qual os rendimentos dos valores mobiliários referidos no art.º 3.º e obtidos em território português são isentos de IRC, sendo que os rendimentos são qualificados como tal atendendo à sua qualificação em sede de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS).

No tocante ao âmbito subjetivo da isenção, há que atentar no art.º 5.º do regime em causa.

No caso dos autos, os rendimentos em causa foram juros de valores mobiliários (cfr. facto 2.), considerados rendimentos de capital para efeitos de IRS, como resulta do art.º 5.º, n.º 2, do respetivo código.

Em termos de âmbito objetivo, é ainda de considerar que o mencionado n.º 2 do art.º 4.º define que:

“A isenção a que se refere o número anterior abrange os rendimentos qualificados como rendimentos de capitais ou como mais-valias para efeitos de IRS, incluindo, nomeadamente, os ganhos obtidos na transmissão dos valores mobiliários, bem como os devidos no momento do vencimento do cupão ou na realização de operações de reporte, mútuos ou equivalentes” (sublinhados nossos).

No caso dos autos, a AT entendeu que, tendo a Recorrida adquirido os títulos em causa cerca de três meses (e não no próprio dia, como, por lapso, refere o Tribunal a quo) antes do vencimento do cupão, a mesma só teria direito à isenção pelo tempo proporcional ao da titularidade dos valores mobiliários em causa, por apenas ter sido beneficiária efetiva dos juros relativos a tal período de tempo.

Esta distinção feita pela AT não encontra no regime jurídico em causa previsão legal.

Como referido por Paula Rosado Pereira (Estudos sobre IRS: Rendimentos de Capitais e Mais-Valias, Almedina, Coimbra, 2005, p. 44), “[u]ma vez que os factos geradores de rendimentos de capitais são, regra geral, factos continuados, verifica-se a necessidade de os periodizar para efeitos de tributação”, o que encontra reflexo, designadamente, no art.º 7.º do Código do IRS.

Como resulta do n.º 2 do art.º 4.º, do RETRVMRD, são abrangidos pela isenção os rendimentos (onde se incluem os juros) devidos no momento do vencimento do cupão.

“O vencimento é o momento no qual, em virtude do decurso do prazo, o credor adquire o direito de exigir do devedor o cumprimento da obrigação” (Paula Rosado Pereira, ob. cit., p. 46).

Ora, no caso dos autos e como aliás é evidenciado pelo valor pago à Recorrida, foram-lhe pagos, no momento do vencimento do cupão, os juros que deveriam ser pagos naquele momento, independentemente de a aquisição dos títulos ter sido três meses antes ou noutro momento.

Não decorre do regime jurídico em causa que essa isenção não abranja a totalidade dos juros vencidos.

Não há qualquer limitação proporcional à titularidade do valor mobiliário, ao contrário do que resulta do entendimento da administração, sendo que, no caso, à data do vencimento do cupão, momento em que a Recorrida adquiriu o direito de exigir do devedor o cumprimento da obrigação, era a Impugnante a beneficiária efetiva.

Com efeito, nos termos consignados no art.º 2.º, al. a), do RETRVMRD, beneficiário efetivo é todo o que obtenha rendimentos de valores mobiliários representativos de dívida por conta própria.

Este entendimento surge reforçado pela leitura dos art.ºs 8.º e 9.º do RETRVMRD, relativos aos regimes de retenção na fonte e de reembolso do imposto indevidamente retido, no qual é sempre tratado como uma realidade una o imposto retido na data do vencimento do cupão, sem que nada esteja previsto em termos de limitação, nos termos pugnados pela AT.

Como tal, o conceito restritivo de beneficiário efetivo, defendido pela Recorrente, carece de fundamento legal.

Por outro lado, o facto de a Recorrida ter adquirido os títulos a outra ou outras entidades tem apenas reflexos na tributação que é feita relativamente às operações de transmissão, quanto aos eventuais juros contáveis (os chamados “juros decorridos”), desde a data da emissão até à data da transmissão dos valores. Essa circunstância não retira à Recorrida a condição de beneficiária efetiva dos rendimentos (daí que os mesmos lhe sejam pagos a si), atendendo a que o direito aos mesmos nasce com o vencimento do cupão, ocorrido quando a Recorrida já era titular dos valores mobiliários.

Aliás, é a esse propósito de chamar à colação a disciplina constante do art.º 5.º, n.º 5, do Código de IRS [ex vi art.º 94.º, n.º 1, al. c), do CIRC], que veio precisamente clarificar a forma de tratamento dos rendimentos relativos aos juros implícitos, aos juros decorridos, aquando da transmissão dos títulos em momento anterior ao do vencimento do cupão (cfr., a este propósito, José Guilherme Xavier de Basto, IRS – Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 241 a 243).

Ora, trata-se de duas situações distintas, que, aliás, o próprio n.º 2 do art.º 4.º, do RETRVMRD, prevê e abarca, a dos ganhos obtidos na transmissão dos valores mobiliários (cfr., a este propósito, o regime específico de retenção e reembolso de imposto, previsto no art.º 11.º, onde aí, sim, é relevante o período de tempo de detenção dos títulos) e a dos rendimentos devidos no momento do vencimento do cupão. Assim, a circunstância de o art.º 11.º do regime em causa consagrar o regime de tributação em termos de operações de transmissão em caso algum colide com o que viemos dizendo, porquanto se trata de realidades distintas.

Sendo pagos à Recorrida, na altura do vencimento do cupão, os rendimentos devidos nesse momento, ou seja, os juros devidos por força de tal vencimento, em virtude de a Impugnante ser a beneficiária efetiva dos valores mobiliários em causa, e por não resultar do regime previsto no RETRVMRD qualquer limitação em termos de isenção, esta abrange a totalidade dos rendimentos.

Carece, pois, de pertinência o alegado em torno da indispensabilidade da prova de que os anteriores titulares dos valores mobiliários foram beneficiários do regime da isenção.

Como referido no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 18.06.2015 (Processo: 08456/15):

“[O] que se mostra estabelecido no artigo 4.º n.º 2 do Regime Especial, conforme já transcrito, é que são abrangidos pela isenção os rendimentos, in casu, os juros devidos no momento do vencimento do cupão, isto é, os juros que naquele momento e em virtude do decurso do prazo a Recorrida adquiriu o direito de perceber (exigir).

Ou seja, o legislador não atribuiu qualquer relevância, directa ou indirectamente, ao momento em que um beneficiário dos juros adquiriu os títulos que lhe deram origem, limitando-se a exigir que nessa data fosse o seu efectivo beneficiário.

E que a Recorrida era nessa data a sua efectiva beneficiária resulta limpidamente de ter sido a ela, sem que se mostre discutido, que os mesmos foram pagos (…), sendo irrelevante os juros que eventualmente esta beneficiária tenha pago à transmitente por esses juros, como bem aduz a Recorrida, os chamados “juros implícitos” no preço - justificados contratualmente pelo hipotético direito daquela transmitente a recebê-los a final (na hipótese de não haver transmissão) e calculados tendo presente um eventual risco de incumprimento da obrigação de pagamento -, nada terem a ver com os juros devidos na data de vencimento do cupão relativamente aos quais, enquanto titular dos valores mobiliários em questão, é e só é a Recorrida beneficiária.

Do que vimos expondo resulta já claro que discordámos da tese adiantada pela Administração Fiscal quanto ao que seja beneficiário efectivo para efeitos deste regime, interpretação que é mesmo incompatível com a definição que daquele foi cuidadosamente realizada pelo legislador no artigo 2.º do regime anexo ao DL n.º 193/2005.

Efectivamente, neste preceito, ficou estabelecido que «Para efeitos do presente Regime, entende-se por: a) «Beneficiário efectivo» qualquer entidade que obtenha rendimentos de valores mobiliários representativos de dívida por conta própria e não na qualidade de agente ou mandatário;».

Ora, sendo inequívoco que está provado que o recebimento em questão foi feito por conta própria e não como intermediário de qualquer terceira entidade ou pessoa singular, não se pode reconhecer razão à Administração Tributária quando defende que a Recorrida não é beneficiária por não ser integrável naquela definição a especifica condição de tempo de aquisição dos títulos que a Recorrente insiste em convocar”

Sempre se acrescente, na senda do que resulta do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 31.05.2017 (Processo: 0418/16), que a Recorrida provou todos os pressupostos que lhe competia provar, não lhe cabendo provar que os anteriores titulares eram beneficiários do regime de isenção.

Refere-se no mencionado aresto:

“[T]odo o controlo das entidades registadas e da sua qualidade como entidades sujeitas e não sujeitas a retenção recai sobre as entidades registadoras, como resulta do disposto nos artigos 6º, 14º, 17º e 21º do Regime.

E sobre os beneficiários efetivos apenas recai o ónus de comprovação dos pressupostos da sua qualidade de entidade não sujeita a retenção ou da isenção.

No caso concreto, como a Recorrida logrou comprovar a sua qualidade de não residente e de beneficiária efetiva e isenta, tem direito à totalidade do imposto retido.

(…) [N]ão cabia à (…) [Impugnante] o ónus da prova de que a transmitente não estava sujeita a tributação, pois esse ónus apenas recai sobre a entidade registadora, a quem cabe verificar se a entidade beneficiária está ou não sujeita a retenção nos termos do disposto no art. 14º” (sublinhado nosso).

Como tal, carece de razão a Recorrente.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Negar provimento ao recurso;

b) Custas pela Recorrente;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 1o de março de 2022

(Tânia Meireles da Cunha)

(Susana Barreto)

(Patrícia Manuel Pires)