Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:11420/14
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:09/11/2014
Relator:CRISTINA DOS SANTOS
Descritores:CONSÓRCIO – FALTA DE PERSONALIDADE JUDICIÁRIA – PRESSUPOSTO INSUPRÍVEL
Sumário:1.O consórcio define-se como o contrato através do qual duas ou mais empresas, singulares ou colectivas, se vinculam a realizar concertadamente determinada actividade ou efectuar certa contribuição com vista a prosseguir um dos tipos de actividade expressamente previstos na lei.

2. O consórcio configura uma actividade concertada e não uma actividade comum, sendo esta a razão, da proibição legal de existência de fundos comuns cfr. artº 20º nº 1, DL 231/81 de 28.07 e, do ponto de vista adjectivo, da insusceptibilidade de se constituir como parte processual por falta de personalidade judiciária que, no caso configura um pressuposto insuprível – cfr. artºs 11º nºs. 1 e 2, 12º e 13º CPC.

3.A intervenção do juiz da causa para regularizar a falta de pressupostos processuais, cfr. artº 6º nº 2 CPC, apenas tem lugar no domínio dos pressupostos susceptíveis de sanação.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: Consórcio...... ………-……….– A…….. – Serviços ………….., com os sinais nos autos, inconformado com o indeferimento liminar da petição inicial em sede de contencioso pré-contratual proferido pelo Mmo. Juiz do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa dele vem recorrer, concluindo como segue:

1. O aqui recorrente, no exercício da sua actividade comercial de prestação de serviços de vigilância e segurança, apresentou uma proposta para fornecimento de serviços ao ITQB - Instituto de Tecnologia Química e Biológica, conforme consta do processo de que agora se recorre.
2. O aqui recorrente, também já apresentou algumas acções e providências em Tribunais as quais sempre foram aceites quer quanto à personalidade jurídica quer quanto à personalidade judiciária, nunca nesses processos anteriores, entre os quais se podem citar entre muitos outros, o processo 1814/13.7BELSB, 4a Unidade Orgânica, e o processo 2888/13.6BELSB, 5a unidade Orgânica ambos do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, foi posto em causa a personalidade do recorrente.
3. Dado tratar-se de duas empresas, e cada uma por si ter personalidade jurídica e judiciária, tendo em conta o seu estatuto e o seu NIPC, conforme referido nos autos, integrando assim o conceito de personalidade judiciária a que alude o art.° 11°, n° l do C.P.C com o art.° 1° do CPTA, só por aqui, se vê que o consórcio representado como está tem personalidade jurídica e judiciária.
4. O consórcio "……. – G………. – C…… - A.. - Serviços ………….", constituído por estas duas empresas, apresentou-se ao concurso para elaboração de Acordo Quadro desenvolvido pela Agência Nacional de Compras Públicas tendo apresentado a respectiva proposta, sendo a mesma aceite por aquela agência,
5. O aqui recorrente foi seleccionado no âmbito do Acordo Quadro que se encontra em vigor para nessa qualidade apresentar propostas para fornecimento de prestação de serviços em todas as entidades aderentes ao respectivo Acordo Quadro.
6. Nessa qualidade, o recorrente apresentou proposta ao procedimento desenvolvido pelo ITQB, procedimento esse que está na base do presente processo, cuja personalidade jurídica e judiciária foi reconhecida e nunca foi posta em causa quer pela ANCP, quer pelo ITQB, quer pelos Tribunais Administrativos onde tem apresentado providências cautelares e acções, como é o caso.
7. A meritíssima juíza "a quo" perante a análise que fez e da sua decisão e conclusão ao considerar que o aqui recorrente não tinha personalidade jurídica e judiciária, deveria a bem da administração da justiça, se ter socorrido do dever de gestão processual a que se refere o art.° 6° do C.P.C por remissão do art.° 1° do CPTA, em vez de, de uma forma incompreensível, indeferir a acção.
8. No presente caso, a meritíssima juíza deveria ter considerado que as representadas do consórcio, elas próprias têm personalidade jurídica e judiciária.
9. Caso fosse outro o seu entendimento, deveria ter notificado o recorrente para que as entidades que ele representa, juntassem aos autos as respectivas procurações ou outras formas de agilização processual de modo a que a presente acção pudesse seguir os seus termos, de acordo com a lei.
10. Não o tendo feito, a meritíssima juíza "a quo" violou por errada interpretação e aplicação do disposto nos arts.° 6°, 11°, 12° do C.P.C e art.° 1° do CPTA.

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O Recorrido contra-alegou, concluindo como segue:

1. O consórcio é um mero negócio jurídico pelo qual se instituem formas de exercício concertado de actividades, não dando origem a uma entidade jurídica autónoma.
2. Pelo que não tem personalidade jurídica nem judiciária.
3. Tal decorre, à saciedade, do respectivo regime jurídico aprovado pelo Decreto-Lei n.° 231 /81, de 28 de Julho.
4. Que o consórcio carece de personalidade jurídica e judiciária já foi por diversas vezes afirmado pela nossa jurisprudência cf. Acórdão do STA de 06-08-2003, processo 01367/03, Acórdão do STA de 02/03/2004, processo 054/04 e Acórdão do TCA5 de 19/01/2012, processo 08363/11)
5. A personalidade jurídica e judiciária das empresas consorciadas mantém-se na esfera jurídica destas e não foram elas a interpor a presente acção mas o consórcio por elas constituído, o qual não é um ente jurídico.
6. Esta excepção dilatória é, in casu, insuprível.
7. Apenas nos casos previstos no artº 4º do CPC é que a falta de personalidade judiciária pode ser sanada.
8. O que, manifestamente, não é o caso dos presentes autos.
9. Pelo que deverá o presente recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a douta sentença recorrida por não padecer dos vícios que o Recorrente lhe imputa.
10.

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Com dispensa de vistos substituídos pelas competentes cópias entregues aos Exmos. Juizes Desembargadores Adjuntos, vem para decisão em conferência.


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Não tendo sido impugnada a factualidade e não sendo caso de introduzir qualquer alteração, aplica-se o regime do artº 663º nº 3 CPC remetendo-se para o elenco de matéria de facto constante da decisão do Tribunal a quo, ora sob recurso.



DO DIREITO


Relativamente à assacada violação do disposto no artº 6º /2 do CPC (anexo à Lei 41/2013 de 26.06) que corresponde ao antigo artº 265º/2 CPC, não tem razão o ora Recorrente na medida em que a intervenção do juiz da causa para regularizar a falta de pressupostos processuais apenas tem lugar no domínio dos pressupostos susceptíveis de sanação. (1)
O que não é o caso, pelas razões que seguem.
A personalidade judiciária consiste na susceptibilidade de ser parte – cfr. artº 11º/1 CPC (ex 5º/1) -sendo que, à luz do princípio da equiparação, cfr. artº 11º/2 CPC (ex 5º/2), quem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária, sem embargo do elenco de excepções a este princípio de estender a personalidade judiciária a entes que não gozem de personalidade jurídica, isto é, entes insusceptíveis de constituir um centro autónomo de direitos e obrigações no plano do direito substantivo, elenco expressamente previsto nos artºs. 12º e 13º CPC (ex artºs. 6º e 7º).

Todavia, tal regime de excepcionalidade não abrange o contrato de consórcio pelos fundamentos exarados no acórdão de 17.06.2014 do Supremo Tribunal de Justiça tirado no procº nº 112/07 que, com a devida vénia, se transcrevem:
“(..)
Quanto ao contrato de Consórcio:
O contrato de consórcio é uma figura contratual regulada pelo DL 231/81, de 28.7 que o define como: “O contrato pelo qual duas ou mais pessoas, singulares ou colectivas, que exercem uma actividade económica se obrigam entre si a, de forma concertada, realizar certa actividade ou efectuar certa contribuição com o fim de prosseguir qualquer dos objectivos referidos no artigo seguinte”.
É um contrato de cooperação empresarial.
Engrácia Antunes, in, “Direito dos Contratos Comerciais”, pág. 209 – “Por contratos de cooperação empresarial designamos genericamente aqueles acordos negociais, típicos ou atípicos, celebrados entre duas ou mais empresas jurídica e economicamente autónomas (singulares ou colectivas, públicas ou privadas, comerciais ou civis), com vista ao estabelecimento, organização e regulação de relações jurídicas duradouras para a realização de um fim económico comum.”
Mais adiante, pág. 390 – “A delimitação dos contratos de cooperação interempresarial é extremamente complexa. Por um lado, domínio profundamente tributário da autonomia privada, a lei e a prática desenvolveram uma multiplicidade insistematizável de figuras contratuais que podem servir a cooperação entre empresas (contratos de sociedade, … de consórcio, de associação em participação, de empreendimento comum, etc.) […].”
O citado Autor considera, pág. 392, serem “cinco as figuras contratuais nodais da cooperação interempresarial – o contrato dejoint venture”, o contrato de consórcio, o contrato de associação em participação, o contrato de agrupamento complementar de empresas e o contrato de agrupamento de interesse económico”.
A fls. 398/399, afirma: “O consórciodesignação através da qual o Decreto-Lei n° 231/81, de 28 de Julho, transplantou para a nossa ordem jurídica a “unincorporated joint venture” do mundo anglo-saxónico – define-se como o contrato através do qual duas ou mais empresas, singulares ou colectivas, se vinculam a realizar concertadamente determinada actividade ou efectuar certa contribuição com vista a prosseguir um dos tipos de actividade expressamente previstos na lei.”
O n.º2 do DL. 231/81, de 28.7, nas suas cinco alíneas, elenca que objecto pode ter o consórcio. No caso, e pela alegação das partes, o objecto era a execução de uma empreitada de construção viária, o que cai na previsão da al. b) “execução de determinado empreendimento”.
O preâmbulo do diploma ajuda a explicar a natureza dos interesses sociais que estão na base do tipo contratual, do mesmo passo que faz luz sobre o seu enquadramento jurídico.
Assim pode ler-se:
“ (...) Quando várias empresas se reúnem para a execução de uma importante obra pública ou privada, é tão absurdo forçá-las a constituir entre si uma sociedade ... como, tendo elas afastado voluntariamente este tipo de enquadramento, pretender que afinal foi uma sociedade – ainda por cima irregular – que elas efectivamente constituíram…O contrato agora expressamente regulamentado no nosso direito aparece chamado de consórcio, por ser essa denominação que a nossa prática tem consagrado e cobre grande parte das chamadas unincorporated joint ventures.
Não se confunde com as sociedades comerciais nem com os agrupamentos complementares de empresas, pois diferentes são os seus elementos.
Quanto às sociedades, basta notar que os membros do consórcio não exercem uma actividade em comum, pois cada um continua a exercer uma actividade própria, embora concertada com as actividades dos outros membros.
Quanto ao agrupamento complementar de empresas, visa também fins de cooperação entre empresas, mas em campos e com estruturas muito diversas das do consórcio. Na regulamentação do contrato de consórcio constante do presente diploma predominam preceitos supletivos.
Como já acima se disse, não é intuito do Governo estancar a imaginação dos interessados, mas, sim, por um lado, criar as grandes linhas definidoras do instituto e, por outro fornecer uma regulamentação tipo da qual os interessados possam afastar-se quando julguem conveniente e à qual eles possam introduzir os aditamentos que considerem aconselháveis”.
O que fundamentalmente distingue o consórcio – que é tributário da figura das “joint ventures” que tiveram o seu advento, na segunda metade do século passado – do contrato de sociedade é que, naquele, cada um dos consorciados continua a exercer uma actividade própria posto que concertada com os outros membros a que está associado. No contrato de sociedade, os sócios exercem uma actividade comum, que não poderá ser de simples fruição, visando a obtenção de lucros – art. 980º do Código Civil.
Como refere Manuel António Pita, in “Contrato de Consórcio”, Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXX, n.º2, 1988, pág. 202 referindo-se ao referido contrato: “...A actividade económica é desenvolvida directamente pelos consorciados; - se o contrato der lugar ao perecimento de alguma organização, o seu objecto será concertar a actividade individual de cada uma das partes e não a prossecução de uma actividade económica”.
Do art. 20º, n.º1 deste diploma resulta, expressa, a proibição de constituição de fundos comuns em qualquer consórcio o que vem sendo entendido como sinal de impossibilidade de considerar o consórcio como dotado de personalidade colectiva, uma vez que esta pressupõe autonomia patrimonial.
O consórcio pode ser externo ou interno.
Assim, nos termos do art. 5º, n.º1, o consórcio diz-se interno quando:
a) - “As actividades ou bens são fornecidos a um dos membros do consórcio e só este estabelece relações com terceiros:
b) - “As actividades ou os bens são fornecidos directamente a terceiros por cada um dos membros do consórcio, sem expressa invocação dessa qualidade”.
E o n.º2 “O consórcio diz-se externo quando as actividades ou os bens são fornecidos directamente a terceiros por cada um dos membros do consórcio, com expressa invocação dessa qualidade”.
Do contexto dos factos articulados e do contrato – fls. 76 e segs. – resulta que o consórcio era externo.
O art. 19º, n.º1, do diploma legal citado, apenas define o regime de responsabilidade perante terceiros, no que se refere ao consórcio externo, afirmando que nas relações dos consorciados com terceiros não se presume o regime da solidariedade seja ela activa ou passiva.
O regime legal do contrato de consórcio afastou, assim, expressamente, o regime de solidariedade entre devedores comerciais previsto no art. 100º do Código Comercial que define como regra: “ Nas obrigações comerciais os co-obrigados são solidários, salvo estipulação em contrário”.
O n.º3 estabelece que, naquela modalidade de consórcio, a obrigação de indemnizar terceiros por facto constitutivo de responsabilidade civil é restrita àquele dos membros do consórcio externo a que, por lei, essa responsabilidade for imputável, a menos que haja estipulação própria quanto à distribuição desse encargo.
Como diz o Autor do estudo citado, pág. 231: “O DL 231/81 regula um contrato obrigacional. Dele nascem direitos e obrigações para as partes contratantes, dando origem a uma associação interna.
Pretendeu-se apagar toda a relevância que tal grupo poderia ter face a terceiros. Estabelecendo-se normas derrogadoras do regime geral, especialmente o regime da solidariedade...São os membros que individualmente estabelecem relações com terceiros...Dada a função económica e social do consórcio, o legislador estabeleceu um regime privilegiado, derrogador do direito comum, afastando soluções jurídicas protectoras dos interesses de terceiros mas limitadoras da liberdade individual dos membros do grupo, especialmente a solidariedade passiva”.
Do contrato de consórcio não nasce um novo ente jurídico próprio, com vida jurídica nova, diferente dos consorciados – o consórcio não tem personalidade jurídica, logo não é susceptível de por si estar em juízo, permanecendo cada um dos seus membros responsável pelos actos que lhe forem imputáveis [2]. (..)”

Em síntese, o consórcio configura uma actividade concertada e não uma actividade comum, sendo esta a razão, do ponto de vista substantivo, da proibição legal de existência de fundos comuns cfr. artº 20º nº 1 do DL 231/81 de 28.07, e, do ponto de vista adjectivo, da insusceptibilidade de se constituir como parte processual por falta de personalidade judiciária, sendo certo que o consórcio não integra a previsão normativa de extensão do pressuposto processual em causa, dos artºs. 12º e 13º do CPC.
O que significa que, no caso específico do consórcio, a falta de personalidade judiciária constitui um pressuposto processual insuprível e, como já referido logo de início, fora do âmbito de competência do juiz no uso dos poderes (discricionários) outorgados pelo artº 6º /2 do CPC.
Pelo que vem de ser dito, improcedem todas as questões trazidas a recurso nos itens 1 a 10 das conclusões.

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Termos em que acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença proferida.

Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 11.SET.2014

(Cristina dos Santos) ……………………………………………………………….

(Paulo Gouveia) …………………………………………………………………….

(Esperança Mealha, em substituição) ………………….


(1) José Lebre de Freitas, CPC – Anotado, Vol. 1º, 2ª ed. Coimbra Editora/2008, págs. 510/511.