Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:597/20.9BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:04/27/2023
Relator:DORA LUCAS NETO
Descritores:CONTRAORDENAÇÃO URBANÍSTICA;
CONTRAORDENAÇÃO PERMANENTE;
(NÃO) PRESCRIÇÃO
Sumário:
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

M. G., enquanto Cabeça de casal da HERANÇA ILÍQUIDA E INDIVISA DE I. F., arguida nos autos, veio interpor recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, de 13.03.2021, que, em sede de impugnação judicial da decisão do Município de Odivelas, no âmbito de processo contraordenacional, manteve a decisão de aplicação da coima no valor de €3.000,00, acrescida de € 71,20 a título de custas, pela prática da contraordenação p. e p. pelo art. 98.°, n.° 1, alínea d), do Decreto-Lei n.°555/99, de 16.12., pela violação do disposto no art. 4.°, n.° 5, do mesmo diploma legal.

Nas alegações de recurso que apresentou, culminou com as seguintes conclusões – cfr. fls. 175 e ss., ref. SITAF:

«(…)

A/ O procedimento contra ordenacional encontra-se extinto pelo decurso do tempo - prescrição - pois, a este propósito alegou-se e, não foi considerado não provado, aliás, o Tribunal não pretendeu que se produzisse prova nesse sentido, que as obras em causa vêm já do tempo dos autores da herança, ambos falecidos, respetivamente, em 01.09.2012 e 04.11.2012, os quais haviam efetuado as mesmas há mais de 40 anos. Ora, decorre que, se mais não fosse, pelo menos, desde o decesso dos causantes, até à notificação da recorrente que ocorreu em 31/01/2019, que se mostra decorrido o prazo prescricional e, desse modo, não pode a acusação proceder, porquanto, até essa data não se verificou qualquer facto que o suspendesse ou interrompesse;

B/ Não se vê donde constem do texto da decisão factos considerados provados que possam integrar o elemento subjetivo do tipo (negligência ou dolo), pois, da acusação e, agora, da decisão, apenas, consta uma conclusão na al. c), com o seguinte teor: “A arguida na qualidade de cabeça de casal da massa da herança, representou a realização do facto típico como consequência possível da sua conduta conformando-se com a sua realização”, sendo esta fórmula uma mera conclusão de conceitos jurídicos, que não de factos e, não tem, pois, a virtualidade, de substituir os factos integradores da negligência ou dolo, impondo-se, assim a rejeição da acusação;

C/ Aliás, o apontado segmento conclusivo, está, até, em contradição com a fundamentação da decisão, agora, em crise, pois, nesta, adianta o Tribunal, o dolo da recorrente, sem que, tenha dado como provado qualquer comportamento desta livre, voluntário e consciente, o que, como se sabe, importa a nulidade da decisão;

D/ O Tribunal afasta a questão da aquisição originária do direito, contudo, ela é relevante, pois, se os causantes já assim detinham a fração há mais de 40 anos é, evidente, que, pelo decurso do tempo, já adquiriram o direito correspondente à sua posse, o qual prevalece sobre a norma de direito administrativo e, desse jeito, já não pode haver a imputação de qualquer facto contra ordenacional;

E/ Assim, mesmo que o Tribunal possa entender sobrevir a CO, não se vêm razões para ser afastada a admoestação, em face do modo de aquisição do direito pela recorrente;

F/ Igualmente, a entender-se de outro modo, no que se não concede, não se vislumbram razões para nos afastarmos do limite mínimo da coima especialmente atenuada, pois, foi a própria A., quem, ainda que sem factos, concluiu pela negligência. De resto, a este título, não se compreende como e onde se baseou o Tribunal para concluir que a conduta da sindicante é dolosa como o escreve na antepenúltima página da sua decisão. (…)».

Admitido que foi, o Ministério Público respondeu ao recurso interposto, pugnando pela sua improcedência e concluindo como se segue – cfr. fls. 187 e ss., ref. SITAF:

a) «(…) - A infração, em causa, trata-se de omissão, permanente. Assim,

b- O momento de consumação coincide com o termo do prazo, em que o Agente devia ter atuado (art°s 5°, 27° do RGCO; Ac do STJ, de 21/02/07, P n° 06P4552)

c- Enquanto perdura a inautorizada utilização habitacional da arrecadação, o ilícito subsiste, apenas terminando com obtenção da necessária Autorização Camarária.

d- No ilícito de mera ordenação social, o juízo de culpa é eminentemente jurídico, não se tratando de facto, nem susceptível de nele se materializar, podendo ser instrumentalmente extraído da conjugação de factos, dos quais o Julgador (n)extrai juízo de censura.

e- Não se trata de culpa jurídico-criminal.

f- A conduta, em causa, foi prolongada no tempo.

g- A sanção e sua medida (próxima do mínimo legal) não afrontam qualquer das dimensões do princípio da proporcionalidade.

h- Está em causa o uso habitacional, sem Autorização, dado a arrecadação.

i- A lei civil arreda da usucapião os direitos de uso e de habitação, não usucapíveis (art° 1287° do CC).

j- Recte e M°P° declararam prescindir de produção de prova, com decisão por simples Despacho.(…).»

Nesta instância, o DMMP teve vista nos autos – cfr. art. 74.º, n.º 4, do RGCO e art.s 416.º e 417.º, nº 1, do CPP e emitiu pronúncia – cfr. fls. 200, ref. SITAF.

I. 1. Questões a apreciar e decidir

O objeto do recurso define-se pelas conclusões do Recorrente e respetiva motivação – cfr. art. 412.º, n.º 1, do CPP (1) sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – cfr. art. 379.º e 410.º, nºs 2 e 3, do CPP. (2)

Neste pressuposto, no presente recurso jurisdicional cumprirá conhecer, antes de mais, da prescrição do procedimento contraordenacional e, em caso de esta não ter ocorrido, dos erros de julgamento imputados à decisão recorrida.

II. Fundamentação de facto e de Direito

Considera-se aqui transcrita a decisão sobre a matéria de facto constante da sentença recorrida.

*
As questões suscitadas pela Recorrente resumem-se, em suma, em determinar se a sentença recorrida incorreu em erro ao considerar que:

i) ainda não decorreu o prazo prescricional – cfr. alínea A) das conclusões de recurso.

ii) a conduta da Recorrente é punível a título de dolo – cfr. alíneas B) e C) das conclusões de recurso, invocando ainda, nesta última, uma possível contradição na decisão recorrida, no seu entender, passível de gerar a sua nulidade; e que

iii) não se encontra adquirido, por aquisição originária, o direito à utilização do edifício nos termos em que está a ser feita – cfr. alínea D) das conclusões de recurso.

Sem conceder, pretende ainda a Recorrente que este tribunal de recurso altere a pena aplicada, para uma pena de admoestação e, se lhe aplique o limite mínimo a coima aplicável – cfr. alíneas E) e F) das conclusões de recurso.

*

Cumprindo conhecer, tendo presente que, ao abrigo do disposto no art. 75º n.º 1, do RGCO, este tribunal de recurso apenas conhece da matéria de direito.

i) Da prescrição do procedimento contraordenacional

Em causa está a utilização da edificação para fim diverso do autorizado no alvará de utilização, que se reconduz a uma violação do art. 4.°, n.º 5, p. e p. pelo art. 98.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16.12. [RJUE], o que motivou a condenação da arguida no pagamento de uma coima de € 3.000 (três mil euros), sendo que a moldura abstrata da mesma ascende a 10.000€.

O art. 27.º, alínea a), do Regime Geral das Contraordenações (doravante RGCO), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27.10., sob a epígrafe «Prescrição do procedimento», dispõe que «o procedimento por contra-ordenação extingue-se por efeito da prescrição logo que sobre a prática da contra-ordenação hajam decorrido os seguintes prazos: (…) Cinco anos, quando se trate de contra-ordenação a que seja aplicável uma coima de montante máximo igual ou superior a (euro) 4 9879,79».

No caso em apreço, será este o prazo de prescrição aplicável, e assim a decisão recorrida entendeu.

Do corpo do citado art. 27.º do RGCO decorre também que o termo a quo do referido prazo de prescrição do procedimento, é o momento da prática da contra-ordenação, tal como está definido no art. 5.º, do mesmo RGCO, que estatui, sob a epígrafe «Momento da prática do facto», que «o facto considera-se praticado no momento em que o agente actuou ou, no caso de omissão, deveria ter actuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido» (sublinhados nossos).

O facto considera-se praticado no momento em que o agente atua ou, no caso de omissão, deveria ter atuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido.

A contraordenação preenchida pela conduta da arguida, ora Recorrente, consiste na utilização de uma edificação para fim diverso do autorizado no alvará de utilização, que se reconduz a uma violação do art. 4.°, n.º 5, p. e p. pelo art. 98.º, n.º 1, alínea d), do RJUE.

Na medida em que a utilização de um espaço é, normalmente, uma conduta prolongada no tempo, suscita-se a questão de se saber qual o ato relevante para a determinação do momento da prática da contraordenação, se o início da utilização diversa, ou se a sua conclusão, ou, a legalização «a posteriori» da mesma.

O RGCO não contém norma que disponha sobre a questão agora enunciada, pelo que, para a dirimir, teremos de nos socorrer das disposições do Código Penal, aplicáveis a título subsidiário, nos termos do art. 32º do RGCO.

Aqui, a propósito do início do prazo prescricional, relativo a certas categorias de crimes, cuja execução se prolonga no tempo, dispõe o nº 2 do art. 119º do CP que o prazo de prescrição só corre:

a) Nos crimes permanentes, desde o dia em cesse a consumação;

b) Nos crimes continuados e nos crimes habituais, o dia da prática do último ato.

«A noção legal de crime continuado é definida pelo nº 2 do art. 30º do CP (… a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro de uma mesma solicitação exterior que reduza consideravelmente a culpa do agente) e manifestamente não se aplica à situação em apreço.

A distinção entre crimes habituais e crimes permanentes tem sido trabalhada pelas doutrina e, a propósito dela, diz Maia Gonçalves (»Código Penal Português. Anotado e Comentado», 16ª ed., 2004, pág. 416):

«Crimes habituais são aqueles que exigem, para que o tipo se verifique, a prática de uma multiplicidade de actos, de modo a revelarem uma certa habituação por parte do agente, como o exercício ilegal de profissão, a prostituição (nos casos em que é punida), o aborto habitual (art. 141º, nº 2), etc. (…)

Não confundir também a categoria de crimes permanentes, que são aqueles cuja execução se prolonga no tempo, como o sequestro, a deserção (crime essencialmente militar) e a omissão do cumprimento do dever de alimentos, com a categoria próxima de crimes de estado, como a bigamia. Nos crimes permanentes, a execução, porque há uma voluntária manutenção da situação anti-jurídica, até que a execução cesse, ficando então o crime exaurido; por isso o início do prazo e prescrição do procedimento criminal só se verifica quando cessa a execução, v. g. quando num crime de sequestro o sequestrado readquire o jus ambulandi. Nos crimes de estado o agente cria uma situação, um estado anti-jurídico, do qual seguidamente se desprende, sem que esteja permanentemente e a todo o momento a persistir na sua resolução (como sucede nos crimes permanentes) ». (3)

Neste pressuposto, podemos concluir que a contraordenação pela qual a Recorrente foi punida, deve ser equiparada, para efeito da determinação do momento em que se inicia o decurso do prazo de prescrição, aos crimes permanentes, porquanto, ao perpetuar uma utilização de um espaço em desconformidade com o que está autorizado no respetivo alvará, cria uma situação antijurídica que se prolonga, pelo menos, até à cessação de tal utilização.

Na verdade, nestes casos, o que a lei pretende, ao punir como contraordenação a utilização de edifícios em desconformidade com a utilização autorizada pelo alvará, é não só evitar tais usos desconformes em si mesmos, mas também combater a proliferação de utilizações abusivas, potencialmente insalubres ou prejudiciais para a saúde da população, fora do controlo do poder público.

Nesta ordem de ideias, a situação antijurídica desencadeada com utilização de uma arrecadação como habitação, como ocorre no caso em apreço, mantém-se, enquanto o agente não repuser a legalidade por qualquer meio legalmente previsto, nomeadamente, regularizando «a posteriori» a situação irregular, reconstruindo o edificado, por exemplo, se assim for necessário e possível, adaptando-o às exigências legais em vigor para o uso que lhe é efetivamente dado.

Não tendo a arguida, ora Recorrente, cessado a sua utilização ou restabelecido a legalidade da situação, a que utilização desconforme da arrecadação deu origem, terá de concluir-se que o prazo de prescrição do procedimento relativo à contraordenação por que foi punida não se iniciou sequer, como, aliás, defende o DMMP, ora Recorrido.

De notar que a natureza permanente da contraordenação vale para aferir da (i)relevância do decurso do tempo passado até à sua regularização, que ainda não ocorreu e que, no caso em apreço, significa a irrelevância «de mais de 40 anos», conforme nos interpela a arguida, ora Recorrente, sobre o tempo de existência da construção aqui em causa, mas sem razão para o efeito que pretende, pois do que se trata, com rigor, é a utilização desse espaço edificado em desconformidade com o alvará emitido – cfr. art.s 4.º, n.º 5 e art. 98.º, n.º 1, alínea d), do RJUE - e não da sua construção.

Em face do que, imperioso se torna julgar improcedente este fundamento do recurso, sendo de manter o decidido pelo tribunal a quo, embora com distinta fundamentação.

Neste pressuposto, avancemos então.

ii) Do erro de julgamento em que incorreu a sentença recorrida ao ter considerado que a conduta da Recorrente é punível a título de dolo eventual.

Atentemos, pois, no discurso fundamentador da sentença recorrida:

«(…) Como resulta da factualidade acabada de descrever, a decisão recorrida não ignorou o elemento subjetivo do tipo contraordenacional; pelo contrário: efetuou uma ponderação da culpa da arguida, tendo concluído pela prática da contraordenação com dolo eventual.

Questão diversa, e que parece ser aquela em que reside o fundamento ora sob apreciação, é a de saber se a acusação contém, ou não, factos suscetíveis de demonstrar a culpa da arguida.

Ora, a apreciação e valoração da culpa do agente, pressuposto necessário para a aplicação de uma sanção administrativa (cf. artigo 8.°, n.° 1 do RGCO), deve ser efetuada em sede de fundamentação de direito da decisão. Tal não significa, contudo, que não se fixem factos, caso os mesmos se verifiquem, demonstrativos da existência de culpa ou de circunstâncias atenuantes e/ou agravantes da culpa.

Um dos princípios basilares do direito contraordenacional é, tal como no direito penal, o princípio da culpa (não há pena sem culpa e a culpa decide da medida da pena — cf. artigos 8.°, n.° 1 e 18.°, n.° 1 do RGCO). Embora o ilícito de mera ordenação social não tenha por base a formulação de uma censura de tipo ético-pessoal, a opção legislativa dá relevo também ao princípio da culpabilidade (nulla poena sine culpa), nos termos do qual toda a sanção contraordenacional tem por base uma culpa concreta.

«[N] ão se trata de uma culpa, como a jurídico criminal, baseada numa censura ética, dirigida à pessoa do agente e à sua atitude interna, mas apenas de uma imputação do facto à responsabilidade social do seu autor. Dito de outra forma, da adscrição social de uma responsabi,idade que se reconhece exercer ainda uma função positiva e adjuvante das fina,idades admonitórias da coima» (cf. Figueiredo Dias, “O movimento da Descriminalização e o ilícito de mera ordenação social”, Direito Penal Económico e Europeu — Textos Doutrinários, p. 29).

Para que exista culpabilidade do agente no cometimento de um facto é então necessário que o mesmo lhe possa ser imputado a título de dolo ou de negligência.

A propósito da desnecessidade de fixação de factos especialmente atinentes à culpa do arguido, veja-se o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 25-03-2020, proferido no processo n.° 1290/18.8BESNT (disponível em www.dgsi.pt), em cujo sumário se pode ler: «comprovando-se que o Recorrido assume a qualidade de proprietário/senhorio da fração dada de arrendamento para o fim de oficina de reparação de automóveis sem que seja titular da respetiva licença de utilização, incorre na violação do artigo 4.°, n.° 5, do D.L. n.° 555/99 de 16/12, na redação dada pelo D.L. n.º 26/2010, de 30/03, na prática de ilícito tipificado como contraordenação pelo artigo 98.°, n.º 1, alínea d) e n.º 4 do mesmo diploma. Verifica-se. por isso, o pressuposto normativo da prática do facto ilícito, traduzido na utilização de fração sem que esteja munido da necessária licença de utilização, assim como o elemento subjetivo, da culpa. pois embora resulte demonstrado que o edifício se encontra arrendado há muitos anos, tal não elimina a prática da infração, nem afasta ou diminui a culpa, antes agrava a censura da conduta do Recorrido, que permanece na prática reiterada e ao longo dos anos na infração contraordenacional em causa.» É patente no citado aresto a ideia de que o facto de o arguido ser proprietário/senhorio da fração que estava a ser utilizada sem a respetiva autorização de utilização é bastante para se considerar verificada a existência do elemento subjetivo do tipo contraordenacional.

E isto mesmo ocorre no caso dos autos.

Com efeito, resulta provado que a arguida, ora Recorrente, é a proprietária do imóvel que estava a ser usado sem a respetiva autorização de utilização (cf. pontos 3 e 14 do probatório, em particular o ponto 9-A do relatório de instrução e proposta de decisão), resultando igualmente provado que da decisão consta a ponderação e a valoração da culpa da arguida (cf. pontos 16 a 23 do relatório de instrução e proposta de decisão — cf., novamente, o ponto 14 do probatório). (…)». (sublinhados nossos).

O assim decidido é para manter, por ter julgado, sem erro, a questão sindicada pela Recorrente, não se vislumbrando qualquer contradição com a fundamentação constante da penúltima e antepenúltimas fls. da sentença recorrida. Antes pelo contrário, tudo o que é depois ali dito pelo tribunal a quo, confirma, e reforça, a conclusão a que aqui já havia chegado, designadamente, na parte em que aduz assertivamente, que «tal como se expôs nos pontos 18 e 19 do relatório de instrução e proposta de decisão, cuja fundamentação foi absorvida pela decisão condenatória recorrida (cf. pontos 14 e 15 do probatório), não resulta da factualidade provada em sede administrativa, nem, bem assim, dos elementos trazidos a juízo pela Recorrente, quaisquer factos suscetíveis de fundar a dúvida sobre a existência de uma falta de consciência do ilícito, muito menos de uma falta de consciência não censurável, pelo que, inevitavelmente, o Tribunal tem de concluir pela verificação do pressuposto da culpa da arguida. Quanto a saber se essa culpa é dolosa ou negligente, atente-se no que sobre a diferença entre dolo e negligência se sumariou no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no processo n.º 1441/16.7T8BRG.G1, em 30-04-2020 (disponível em www.dgsi.pt):

«[a] culpa pode revestir a forma de dolo ou a forma de negligência (também dita mera culpa). Cabem no primeiro os casos em que o agente quis a produção do facto ilícito (dolo directo); ou, não havendo actuado com vista à produção do facto, previu-o como uma consequência necessária da sua conduta mas, apesar disso, não a alterou, aceitando esse resultado (dolo necessário); ou ainda, previu a produção do facto como uma consequência possível da sua actuação, mas conformou-se com essa produção (dolo eventual). A negligência caracteriza-se, essencialmente, por o agente não ter usado da diligência no grau que lhe é exigível, aqui cabendo os casos em que prevê a produção do facto ilícito como possível, mas, por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação, e só por isso não toma as providências necessárias para o evitar – culpa consciente; assim como aqueles em que o agente, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, não chega, sequer, a conceber a possibilidade do facto se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação se usasse da diligência devida – negligência inconsciente.»

Tendo presente a distinção entre dolo e negligência que vem de se referir, afigura-se inarredável a conclusão de que a arguida não agiu de forma negligente, antes dolosa. Com efeito, a contraordenação consubstanciada na falta de autorização para utilização do imóvel para certo fim só comportará uma prática a título meramente negligente em casos muito específicos, como, v.g., quando a condição socioeconómica deficitária associada ao baixo nível de instrução do agente não permita que aquele represente o ilícito e, por essa razão, nada faça para o evitar. Isto, porque é expectável, nos dias de hoje, que o homem médio (i.e., o indivíduo normalmente inserido na sociedade, com uma instrução e inteligência médias) tenha conhecimento de que uma arrecadação não é, na sua génese, um local habitualmente destinado à habitação. Dir-se-á até ser expectável que o homem médio saiba que não pode (porque a lei o proíbe) destinar um certo imóvel a uma determinada utilização que não aquela para a qual ele está naturalmente destinado, exceto se tal for autorizado. O que manifestamente ocorre no caso concreto, em que uma arrecadação se encontrava a ser utilizada para fins habitacionais. Por outro lado, nem a factualidade provada permite formular um juízo no sentido de que a arguida não representou o ilícito, nem tão pouco vêm alegados factos passíveis de ponderar essa hipótese(sublinhados nossos).

iii) Do erro de julgamento em que incorreu a sentença recorrida ao não ter considerado que se encontrava adquirido, por usucapião o direito à utilização do edifício nos termos em que está a ser levada a cabo pela Recorrente.

Sobre esta questão, o tribunal a quo entendeu o seguinte:

«(…) no que concerne à alegada aquisição, pela arguida, do «direito ao espaço tal qual se encontra por usucapião», em virtude de as obras terem sido realizadas há mais de 40 anos, desde já se diga que a mesma também improcede. Isto, porque é irrelevante, para efeitos da verificação da prática de uma contraordenação, a existência de tal direito, e, mais ainda, o modo de aquisição do mesmo. O que importa neste âmbito aferir é, pois, unicamente, se se encontra preenchido o tipo de ilícito contraordenacional imputado à arguida, ora Recorrente, in casu, falta de autorização de utilização do imóvel para o fim para o qual estava a ser usado (cf. artigo 5.°, n.° 4 do RJUE). Ora, perante a ausência, nestes autos, de elementos suscetíveis de colocar em crise a prova produzida e assente na fase administrativa do processo, o Tribunal não pode se não concluir pela prática da contraordenação imputada à arguida, aqui Recorrente, sendo, como se disse, indiferente para tal efeito a circunstância de à data da aquisição do imóvel pela arguida aquele já se encontrar a ser utilizado para fins habitacionais sem a necessária autorização.»

E com inteira razão, não tendo sido abalado, nos seus fundamentos, o assim decidido, pois que a Recorrente se bastou em alegar que o tribunal a quo havia afastado a questão da aquisição originária do direito, mas «contudo, ela é relevante, pois, se os causantes já assim detinham a fração há mais de 40 anos é, evidente, que, pelo decurso do tempo, já adquiriram o direito correspondente à sua posse, o qual prevalece sobre a norma de direito administrativo e, desse jeito, já não pode haver a imputação de qualquer facto contra ordenacional».

Ora, a Recorrente, pelo menos desde 2019 – cfr. factos n.º 10 e ss. da matéria de facto – sabe que a situação existente é ilegal e, não obstante, não promoveu a competente autorização para alteração de uso do espaço em causa nos autos - cfr. art. 4.º do Decreto-Lei n° 555/99, de 16.12. E, dúvidas não há que se impõe uma atuação em conformidade com a lei, pois que inexiste qualquer direito à ilegalidade urbanística, que não é passível de transfiguração, em legalidade, via usucapião.

Razões pelas quais improcede, também nesta parte o recurso interposto.

Aqui chegados, e atendendo a que a Recorrente elege este argumento, o da aquisição originaria do bem, para pugnar para que lhe seja aplicada apenas uma pena de admoestação, «em face do modo de aquisição do direito pela recorrente», assim como não antecipa, também, e pelas mesmas «nos afastarmos do limite mínimo da coima especialmente atenuada», imperioso se torna julgar prejudicado o conhecimento destas questões, em face da fundamentação que antecede.

III. DECISÃO

Nestes termos, acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e, em consequência, manter a decisão recorrida, embora com fundamentação não inteiramente coincidente.

Custas pela Recorrente - cfr. art. 513º n.º 1, do CPP, ex vi art. 74º n.º 4, do RGCO, e art.s 93º n.º 3 e 94º n.º 3, do RGCO -, considerando-se adequado o montante de 3UC de taxa de justiça (cfr. art. 8.º, n.º 9, e tabela III, do RCP.
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Após trânsito, comunique-se, nos termos do art. 70.º, n.º 4, do RGCO.

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DN.

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Lisboa, 27.04.2023

Dora Lucas Neto

Pedro Nuno Figueiredo

Ana Cristina Lameira













1) E jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10, publicado no DR de 28.12.1995, série I-A.
2) cfr. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. III, pgs. 320 e ss
3) Cfr. ac. TRE, de 18.10.2011, P. 372/09.1TBLLE.E1, disponível em www.dgsi.pt