Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1117/20.0BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:11/12/2020
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Sumário:i. Perante a verificação da existência de um pedido de asilo anterior formulado noutro Estado-membro, há que dar início ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de asilo, no qual, no caso concreto, se apurou ser Itália.
ii. Tendo a Itália aceite tal responsabilidade, cabe proferir decisão da respectiva transferência do requerente de protecção internacional, nada vindo invocado que justificasse, nos termos do disposto no artigo 3º nº 2 daquele Regulamento (UE) 604/2013, que fosse outro o Estado-Membro, e designadamente o Estado Português, o responsável por tal análise e decisão.
iii. O Regulamento (UE) n.º 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho, como já sucedia com o Regulamento (CE) n.º 343/2003, que estabelece os critérios e os mecanismos de determinação da responsabilidade da análise dos pedidos de protecção internacional apresentados nos Estados Membros, prossegue dois objectivos essenciais: por um lado, visa garantir um acesso efectivo aos procedimentos de determinação do estatuto de refugiado, sem comprometer a celeridade no tratamento dos pedidos de asilo e assegurando a certeza e segurança jurídicas ao nível da EU; e, por outro lado, visa impedir a utilização abusiva dos procedimentos de asilo, sob a forma de pedidos múltiplos apresentados pelo mesmo requerente em diversos Estados Membros, com o objectivo de neles prolongar a sua estadia, realidade comummente designada como asylum shopping.
iv. Também de acordo com a Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, quando o órgão jurisdicional chamado a conhecer de um recurso de uma decisão de transferência ou de uma decisão que declara um novo pedido de protecção internacional inadmissível dispõe de elementos apresentados pelo requerente, ou que constituam factos notórios, para demonstrar a existência do risco de um trato desumano ou degradante no outro Estado-Membro, esse órgão jurisdicional deve apreciar a existência de deficiências, sistémicas ou generalizadas, ou que afectem certos grupos de pessoas. Ainda assim, de acordo com a mesma Jurisprudência, tais deficiências só são contrárias à proibição de tratamento desumano ou degradante se tiverem um nível particularmente elevado de gravidade, que depende do conjunto dos dados da causa; o que no caso não sucede minimamente, não evidenciado os autos que enquanto residiu em Itália, o requerente de asilo tenha sido sequer sujeito a tratamento desumano ou degradante, nem que o venha a ser.
v. O regime excepcional criado em resultado da pandemia gerada pela doença COVID-19, implementado pelo art. 16.º do Decreto-lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, e art. 1.º do Despacho n.º 3863-B/2020, não contende com os pressupostos de facto e de direito de que depende a concessão de asilo ou protecção subsidiária; bem como não contende com os pressupostos de facto e de direito dos quais depende a decisão de inadmissibilidade em causa nestes autos. O mesmo regime influenciará a execução da medida administrativa determinada, a qual poderá em face das medias provisórias adoptadas e em vigor, ser diferida no tempo.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

D......, cidadão da Guiné-Bissau, intentou o presente processo urgente contra o Ministério da Administração Interna – Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), peticionando a anulação da decisão da Directora Nacional Adjunta do SEF pelo qual se determinou que Itália é o Estado-Membro responsável pela sua retoma a cargo.

O TAC de Lisboa, por sentença de 11.08.2020 , julgou a acção improcedente.

Com o decidido não se conformando, veio interpor recurso para este TCA, contendo o requerimento de recurso as seguintes conclusões:

A. O subprocedimento de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, não se pode sustentar apenas nos regulamentos de Dublin, numa interpretação positivista e não hermenêutica.

B. Antes devendo o Estado que promove o subprocedimento aferir adequadamente se o Estado competente (neste caso Itália) tem condições para apreciar devidamente o pedido de proteção internacional e condições de acolhimento, e definição do estatuto ou situação do aqui Recorrente.

C. Se tal não for ponderado existe, de facto, um claro défice de instrução devendo alterar-se a douta decisão recorrida, do Tribunal a quo.

D. Défice de instrução que tem notória influência e é determinante na negação de Direitos Fundamentais do ora recorrente.

E. O Direito à dignidade e à integridade física e mental, previsto nos art. 1º e 2º e seguintes da Carta Europeia CARTA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA UNIÃO EUROPEIA, traduz a solidariedade internacional subjacente e necessária a todos estes processos e direitos humanitários.

F. É necessário aferir se o caso concreto tem enquadramento na previsão do art. 3º, n.º 2, parágrafo 2º do Reg (EU) 604/2013, de 26 de junho.

G. O facto do Estado considerado competente - onde foi apresentado o primeiro pedido de proteção internacional – depois de solicitado pelo SEF, não responder (se aceita a responsabilidade de retomar a seu cargo o ora requerido), não pode fundamentar “ipsis verbis” a decisão tomada, por assim o determinar o regulamento de Dublin (aceitação por defeito – omissão da aceitação expressa).

H. A formulação expressa no regulamento de Dublin é infeliz induzindo em erro um intérprete apressado.

I. Essa formulação e interpretação positivista não é consistente com o contexto hermenêutico do direito internacional respeitante a Direitos Fundamentais, e como tal deve ser interpretada e aplicada com sentido restritivo, pois está-se a apreciar a situação de pessoas e os seus direitos fundamentais.

J. No caso concreto, atento o contexto existente em Itália (notório e público) deve essa “aceitação por omissão de resposta” ser entendida como incapacidade de dar resposta a todas as solicitações e originar a devida apreciação das condições de acolhimento e de tratamento do ora recorrido.

K. Da matéria constante dos autos deve-se pressupor que deveria ser acionada a clausula de salvaguarda contida no n.º 2, do art. 3º do Regulamento de Dublin III, supra identificado.

L. Acresce, agora a título superveniente a situação gerada pela legislação excecional em vigor – Dec-Lei n.º 10-A/2020, art. 16º, e Despacho n.º 3863-B/2020, através da qual se deve considerar regular a permanência em território nacional da ora Recorrente, nos melhores termos em direito permitidos

O Recorrido não apresentou contra-alegações.



Neste Tribunal Central Administrativo, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, notificado nos termos do disposto nos artigos 146.º e 147.º do CPTA, não emitiu pronúncia.


Com dispensa de vistos, atenta a sua natureza urgente, vem o processo submetido à conferência desta Secção do Contencioso Administrativo para decisão.


I. 1. Questões a apreciar e decidir:

As questões suscitadas pelo Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, traduzem-se em apreciar:

- Se o tribunal a quo errou ao ter concluído pela manutenção do despacho impugnado, apesar do défice de instrução alegado, o qual determinou também a notificação do requerente de protecção internacional para efeitos da sua transferência para a Itália, por ser este o Estado Membro responsável.





II. Fundamentação

II.1. De facto

É a seguinte a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, a qual se reproduz ipsis verbis:

A) D...... nascido em 12/03/1999 é nacional da Guiné-Bissau – cfr. fls. 1 do PA junto aos presentes autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

B) A 9/12/2019 o Autor apresentou pedido de protecção internacional, junto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, tendo-lhe sido entregue o documento designado por “Informação Sobre Direitos e Deveres dos Requerentes de Protecção Internacional”, do qual consta o seguinte:

C) A 07/08/2017, o Autor apresentou um pedido de protecção internacional na Itália, tendo as suas impressões digitais sido recolhidas e inseridas na base de dados EURODAC – cfr. fls. 3 e 4 do PA junto aos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

D) A 23/08/2019, o SEF formulou um pedido de “Retoma a Cargo” da Autor à Itália, ao abrigo do ao abrigo do Artigo 18º, nº 1, al. d), do Regulamento (UE) nº 604/2013 do Conselho, de 26 de Junho – cfr. fls. 29 e seguintes do PA junto aos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

E) No âmbito do pedido de protecção internacional identificado em B), o Autor, em 30/12/2019, prestou declarações, tendo sido elaborada a respectiva transcrição e da qual se extrai o seguinte:


“(texto integral no original; imagem)”



“(texto integral no original; imagem)”

- cfr. fls. 26 a 33 do PA junto aos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

F) A 30/01/2020, o SEF comunicou a Itália que, ao abrigo do disposto no Artigo 25.º, n.º 2 do Regulamento de Dublin, Portugal considerou que as autoridades italianas aceitaram pedido identificado em D) – cfr. fls. 33 do PA junto aos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

G) Em 30/01/2020, o Gabinete de Asilo e Refugiados do SEF elaborou a informação n.º 0217/GAR/2020, da qual se extrai o seguinte:


“(texto integral no original; imagem)”

- cfr. fls. 36 a 40 do PA junto aos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

H) Em 30/01/2020, foi proferida decisão pela Directora Nacional do SEF, no âmbito do processo n.º 2491.19PT, da qual se extrai o seguinte:


“(texto integral no original; imagem)”

I) O Autor foi notificado da decisão identificada em H) a 09/06/2020, na sequência da qual foi elaborado o seguinte documento:


“(texto integral no original; imagem)”

J) Devido à apresentação da presente acção, a Entidade Demandada comunicou às autoridades italianas que as diligências atinentes à transferência do Autor para a Itália ficariam pendentes, ao abrigo do disposto no Artigo 27.º n.º 3 do Regulamento (UE) 604/2013 – cfr. fls. 64 do PA junto aos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;



II.2. De direito

O ora Recorrente pretende a anulação da decisão que indeferiu, por inadmissível, o pedido de asilo formulado e que determinou a sua transferência para a Itália, entendendo existir nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia.

Alega que o SEF não instruiu devidamente o seu processo de asilo e que se lhe impunha averiguar das condições de acolhimento em Itália (país relativamente ao qual são reiteradas informações de organizações internacionais acerca do tratamento desumano e degradante a que são votados os peticionários de protecção internacional).

Vejamos então do mérito do decidido.

No TAC de Lisboa a acção foi julgada improcedente com a seguinte fundamentação:

Compulsado o probatório constata-se que, previamente ao pedido de protecção internacional formulado em Portugal, o Autor esteve na Itália onde apresentou um pedido de asilo [cfr. Itens C) e E) do probatório]. No procedimento do pedido de protecção internacional o SEF procedeu à consulta do sistema EURODAC, tendo verificado a existência de pedido de protecção internacional, formulado pelo Autor, naquele país [cfr. Item C) do probatório].

O SEF ao ter verificado, ao abrigo do Regulamento (EU) n.º 604/2013, concluiu que a Itália era o Estado-Membro responsável pela análise do pedido de protecção internacional desencadeado pelo Autor e, como tal, solicitou a retoma a cargo desta às autoridades italianas, que não tendo recusado, a aceitaram– cfr. Itens D) e F) do probatório.

Razão pela qual, o pedido de protecção internacional apresentado em Portugal foi considerado inadmissível, nos termos do Artigo 19.º -A, n.º 1 alínea a) da Lei do Asilo.

Em face dos factos apurados, conclui este Tribunal que a decisão da Entidade Demandada não merece censura.

Com efeito, e conforme já se deu nota supra, o Regulamento (UE) n.º 604/2013 estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de protecção internacional apresentado num Estado-Membro por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida. Sendo que, de acordo com o Artigo 3.º, os Estados-Membros analisam todos os pedidos de protecção internacional por nacionais de países terceiros ou apátridas no território de qualquer Estado-Membro, inclusive na fronteira ou nas zonas de trânsito. Porém, os pedidos serão analisados por um único Estado-Membro, que será aquele que, de acordo com os critérios enunciados no Capítulo III do Regulamento, designarem como responsável.

Assim, tendo o Autor formulado um novo pedido de protecção internacional junto das autoridades nacionais, o Estado Português, considerando que a responsabilidade pela análise do referido pedido pertence a outro Estado-Membro, não procedeu à sua apreciação, tendo dado início ao procedimento de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de protecção internacional, em conformidade com o disposto nos Artigos 36.º e seguintes da Lei do Asilo.

Nesta sequência, a Entidade Demandada proferiu a decisão objecto da pretensão impugnatória da Autor, no sentido da inadmissibilidade do pedido por si apresentado e da sua transferência para a Itália, ao abrigo dos Artigos 19º-A, nº 1, al. a) e 37º, nº 2, da Lei de Asilo, caso em que, em conformidade com o disposto no Artigo 19º-A, n.º 2, daquele diploma legal, se prescinde da análise das condições de que depende a concessão do estatuto de beneficiário de protecção internacional.

Estabelece o Artigo 3º, nº 2, do Regulamento nº 604/2013, que “Caso seja impossível transferir um requerente para o Estado-Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na acepção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável.”

Com efeito, em derrogação do artigo 3.º, n.º 1, cada Estado-Membro pode decidir analisar um pedido de protecção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força dos critérios definidos no presente regulamento – cfr. Artigo 17º, nº 1, do Regulamento. Donde resulta que, nas situações em que por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante, a Entidade Demandada poderia: i) prosseguir com a análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável para a decisão do pedido formulado; ii) avocar para si, em derrogação do Artigo 3.º e dos próprios critérios estabelecidos no Capítulo III, a competência para conhecer dos pressupostos de concessão do pedido de asilo formulado.

Porém, tal actuação pressupõe que, previamente existam motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante. Sendo que, e como explicita o TJUE, “O artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia deve ser interpretado no sentido de que: - mesmo não havendo razões sérias para crer na existência de falhas sistémicas no Estado-Membro responsável pela análise do pedido de asilo, a transferência de um requerente de asilo no âmbito do Regulamento n.º 604/2013 só pode ser feita em condições que excluam que essa transferência implique um risco real e comprovado de o interessado sofrer tratos desumanos ou degradantes, na acepção desse artigo (…).” (sublinhado nosso) – cfr. acórdão do Tribunal de Justiça de 16/02/2017, proferido no proc. nº C-578/16 PPU.

Ora, no que respeita às condições de acolhimento no Estado-Membro responsável, importa vincar que aquele está vinculado pela Directiva 2013/33/EU, do Parlamento e do Conselho, de 26 de Junho de 2013, a qual estabelece normas em matéria de acolhimento dos requerentes de protecção internacional.

Assim, e em conformidade com a confiança mútua entre os Estados-Membros no âmbito do SECA, existe uma forte presunção de que as condições materiais de acolhimento oferecidas aos requerentes de protecção internacional nos Estados-Membros serão adequadas, com respeito pelo Direito da União e pelos direitos fundamentais. Neste sentido, vejam-se as considerações expendidas no acórdão do Tribunal de Justiça, de 21/12/2011, proferido nos processos apensos nºs C-411/10 e C-493/10

Entendimento que foi vincado muito recentemente pelo TJUE em Acórdão de 19/03/2019, proferido nos apensos C-297/17, C-318/17, C-319/17 e C-438/17, onde se poderá constatar que, “No que respeita, em primeiro lugar, à situação referida no n.° 81 do presente acórdão, importa recordar que o direito da União assenta na premissa fundamental segundo a qual cada Estado-Membro partilha com todos os restantes Estados-Membros, e reconhece que estes partilham com ele, uma série de valores comuns nos quais a União se funda, como precisado no artigo 2.° TUE. Esta premissa implica e justifica a existência da confiança mútua entre os Estados-Membros no reconhecimento desses valores e, portanto, no respeito pelo direito da União que os aplica, bem como no facto de que as respectivas ordens jurídicas nacionais estão em condições de fornecer uma protecção equivalente e efectiva dos direitos fundamentais reconhecidos pela Carta, nomeadamente nos artigos 1.° e 4.° desta, que consagram um dos valores fundamentais da União e dos seus Estados-Membros (Acórdão proferido na presente data, Jawo, C-163/17, n.° 80 e jurisprudência referida).

84 O princípio da confiança mútua entre os Estados-Membros tem, no direito da União, uma importância fundamental, dado que permite a criação e a manutenção de um espaço sem fronteiras internas. Mais especificamente, o princípio da confiança mútua impõe a cada um desses Estados-Membros, designadamente no que respeita ao espaço de liberdade, segurança e justiça, que considere, salvo em circunstâncias excepcionais, que todos os restantes Estados-Membros respeitam o direito da União e, muito particularmente, os direitos fundamentais reconhecidos por esse direito (Acórdão proferido na presente data, Jawo, C-163/17, n.° 81 e jurisprudência referida).

85 Portanto, no quadro do sistema europeu comum de asilo, deve presumir-se que o tratamento dado aos requerentes de protecção internacional em cada Estado-Membro está em conformidade com as exigências da Carta, da Convenção de Genebra e da CEDH (Acórdão proferido na presente data, Jawo, C-163/17, n.° 82 e jurisprudência referida). É esse o caso, nomeadamente, quando é aplicado o artigo 33.°, n.° 2, alínea a), da Directiva Procedimentos, que constitui, no quadro do procedimento de asilo comum estabelecido por esta directiva, uma expressão do princípio da confiança mútua”

A este propósito, sublinhou o TJUE, no que respeita à interpretação a conferir ao Artigo 4.º da CDFUE “(…) para serem abrangidas pelo âmbito de aplicação do artigo 4.° da Carta, que corresponde ao artigo 3.° da CEDH, e cujo sentido e alcance são, portanto, por força do artigo 52.°, n.° 3, da Carta, iguais aos conferidos por essa Convenção, as falhas referidas no número anterior do presente acórdão devem ter um nível particularmente elevado de gravidade, que depende do conjunto dos dados da causa (Acórdão proferido na presente data, Jawo, C-163/17, n.° 91 e jurisprudência referida).

90 Esse nível particularmente elevado de gravidade seria alcançado quando a indiferença das autoridades de um Estado-Membro tivesse como consequência que uma pessoa completamente dependente do apoio público se encontrasse, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais, numa situação de privação material extrema, que não lhe permitisse fazer face às suas necessidades mais básicas, como, nomeadamente, alimentar-se, lavar-se e alojar-se, e que pusesse em risco a sua saúde física ou mental ou a colocasse num estado de degradação incompatível com a dignidade humana (Acórdão proferido na presente data, Jawo, C-163/17, n.° 92 e jurisprudência referida).

91 Como tal, o referido nível não pode abranger situações caracterizadas por uma grande precariedade ou uma forte degradação das condições de vida da pessoa em causa, quando estas não impliquem uma privação material extrema que coloque a pessoa numa situação de tal gravidade que possa ser equiparada a um trato desumano ou degradante (Acórdão proferido na presente data, Jawo, C-163/17, n.° 93).”.

E não poderia ser de outra forma, sob pena de o Sistema Europeu Comum de Asilo se tornar num “Asylum shopping”, em que o requerente de asilo apresenta pedidos de protecção internacional em mais do que um Estado-membro ou escolhe o Estado-Membro onde pretende ver o seu pedido apreciado em detrimento de outros, com o fundamento nas condições de recepção ou de assistência social que cada Estado-Membro tem para oferecer [optando pelo Estado-Membro que ofereça melhores condições]. Não é este, o escopo da concessão de protecção internacional às pessoas que, legitimamente procurem a protecção da União.

Sublinhe que, sem prejuízo, como não poderia deixar de ser, da aplicação integral da Convenção de Genebra de 1951, completada pelo Protocolo de Nova Iorque de 31 de Janeiro de 1967, a qual assegura que ninguém será enviado para onde possa ser novamente alvo de perseguições ou de maus-tratos e ofensas, o Regulamento (UE) nº 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de Junho de 2013, criou critérios objectivos e equitativos quanto à determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de protecção internacional, assegurando, por conseguinte, a igualdade de tratamento de todos os Requerentes e beneficiários de protecção internacional.

Portanto, a menos que se verificassem as circunstâncias supra descritas, a Entidade Demandada não poderia assumir a responsabilidade pela decisão do pedido de protecção internacional formulado pelo Autor na Itália.

E atenta a factualidade provada, inexistem quaisquer indícios da existência de razões sérias para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos Requerente de protecção internacional na Itália, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante, nos termos e na acepção acolhida pelo TJUE e à qual se faz referência supra.

Veja-se que, quando o Autor foi informada de que a competência para decisão do pedido de protecção internacional competia à Itália, uma vez que o Autor havia apresentado lá um pedido antes do pedido apresentado em Portugal, este nada alega, concretiza ou demonstra, mormente quanto ao tratamento e às condições a que esteve sujeito durante o período em que esteve na Itália e que pudessem justificar que Portugal assumisse a responsabilidade pela análise do pedido do Autor – cfr. Item E) do probatório.

Do relato do Autor, ou das informações constantes do processo administrativo, não resulta que as autoridades italianas sejam alheias ou indiferentes às condições dos requerentes de protecção internacional, ao ponto de culminarem, em concreto para o Autor, numa situação de privação material extrema, que não lhe permitisse fazer sequer face às suas necessidades mais básicas.

Assim, não resultando quaisquer elementos do processo administrativo, mormente das declarações prestadas pelo próprio Autor, que indicassem ou indiciassem a existência de motivos válidos que levassem a Entidade Demandada a crer que, existem falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes na Itália, que implicassem o risco de tratamento desumano ou degradante [nas acepções supra referidas], nada mais lhe era exigido, a não ser decidir pela inadmissibilidade do pedido e, por conseguinte pela formulação do pedido de retoma a carga à Itália.[Veja-se nesse sentido decisão recente do TCAS no âmbito do processo n.º 1353/18.0BELSB, de 10 de Janeiro de 2019].

(…).”

Importa, em primeiro lugar, realçar que o Recorrente não questiona a decisão sobre a matéria de facto, com a qual se conformou, pois não impugna qualquer ponto da matéria de facto dada como provada, não pede a alteração dos factos dados como provados, nem questiona que inexistam factos não provados com interesse para a decisão da causa.

Quanto à questão de fundo, importa deixar estabelecido o quadro normativo de referência.

Resulta expressamente da norma contida no art. 37.º da Lei nº 27/08:


Artigo 37.º
Pedido de protecção internacional apresentado em Portugal

1 - Quando se considere que a responsabilidade pela análise do pedido de protecção internacional pertence a outro Estado membro, de acordo com o previsto no Regulamento (UE) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho, o SEF solicita às respetivas autoridades a sua tomada ou retoma a cargo.

2 - Aceite a responsabilidade pelo Estado requerido, o director nacional do SEF profere, no prazo de cinco dias, decisão nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 19.º-A e do artigo 20.º, que é notificada ao requerente, numa língua que compreenda ou seja razoável presumir que compreenda, e é comunicada ao representante do ACNUR e ao CPR enquanto organização não governamental que actue em seu nome, mediante pedido apresentado, acompanhado do consentimento do requerente.

3 - A notificação prevista no número anterior é acompanhada da entrega ao requerente de um salvo-conduto, a emitir pelo SEF segundo modelo a aprovar por portaria do membro do Governo responsável pela área da administração interna.

(…)

De igual modo o Regulamento (UE) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho, que estabelece os critérios e mecanismos para a determinação do Estado-Membro responsável pela análise dos pedidos de protecção internacional apresentados num dos Estados-Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida («Estado-Membro responsável») dispõe:


Artigo 3.º
Acesso ao procedimento de análise de um pedido de proteção internacional

1. Os Estados-Membros analisam todos os pedidos de proteção internacional apresentados por nacionais de países terceiros ou por apátridas no território de qualquer Estado-Membro, inclusive na fronteira ou nas zonas de trânsito. Os pedidos são analisados por um único Estado-Membro, que será aquele que os critérios enunciados no Capítulo III designarem como responsável.

2. Caso o Estado-Membro responsável não possa ser designado com base nos critérios enunciados no presente regulamento, é responsável pela análise do pedido de proteção internacional o primeiro Estado-Membro em que o pedido tenha sido apresentado.

Caso seja impossível transferir um requerente para o Estado-Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável.

Caso não possa efetuar-se uma transferência ao abrigo do presente número para um Estado-Membro designado com base nos critérios estabelecidos no Capítulo III ou para o primeiro Estado-Membro onde foi apresentado o pedido, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável passa a ser o Estado-Membro responsável.

3. Os Estados-Membros mantêm a faculdade de enviar um requerente para um país terceiro seguro, sem prejuízo das regras e garantias previstas na Diretiva 2013/32/UE.


Por sua vez os critérios de determinação do Estado-Membro responsável encontram-se previstos no capítulo III daquele Regulamento (UE) n.º 604/2013, que estabelece a hierarquia dos critérios no artigo 7.º, onde se prevê:

1. Os critérios de determinação do Estado-Membro responsável aplicam-se pela ordem em que são enunciados no presente capítulo.

A determinação do Estado-Membro responsável em aplicação dos critérios enunciados no presente capítulo é efetuada com base na situação existente no momento em que o requerente tiver apresentado pela primeira vez o seu pedido de proteção internacional junto de um Estado-Membro.

2. Para a aplicação dos critérios referidos nos artigos 8.º 10.º, e 16.º, os Estados-Membros devem ter em consideração todos os elementos de prova disponíveis que digam respeito à presença, no território de um Estado-Membro, de membros da família, de familiares ou de outros parentes do requerente, na condição de tais elementos de prova serem apresentados antes de outro Estado-Membro ter aceitado o pedido de tomada ou retomada a cargo da pessoa em causa, nos termos dos artigos 22.º e 25.º, respetivamente, e de os anteriores pedidos de protecção internacional do requerente não terem sido ainda objecto de uma primeira decisão quanto ao mérito.

E prevê ainda o artigo 12.º daquele Regulamento (UE) n.º 604/2013, o seguinte:

1. Se o requerente for titular de um título de residência válido, o Estado- Membro que o tiver emitido é responsável pela análise do pedido de proteção internacional.

2. Se o requerente for titular de um visto válido, o Estado-Membro que o tiver emitido é responsável pela análise do pedido de proteção internacional, salvo se o visto tiver sido emitido em nome de outro Estado-Membro ao abrigo de um acordo de representação conforme previsto no artigo 8.º do Regulamento (CE) n.º 810/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que estabelece o Código Comunitário de Vistos (1). Nesse caso, é o Estado-Membro representado o responsável pela análise do pedido de proteção internacional.

3. Se o requerente for titular de vários títulos de residência ou de vários vistos válidos, emitidos por diferentes Estados-Membros, o Estado-Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional é, pela seguinte ordem:

a) O Estado-Membro que tiver emitido o título de residência que confira o direito de residência mais longo ou, caso os títulos tenham períodos de validade idênticos, o Estado-Membro que tiver emitido o título de residência cuja validade cesse mais tarde;

b) O Estado-Membro que tiver emitido o visto cuja validade cesse mais tarde, quando os vistos forem da mesma natureza;

c) Em caso de vistos de natureza diferente, o Estado-Membro que tiver emitido o visto com um período de validade mais longo ou, caso os períodos de validade sejam idênticos, o Estado-Membro que tiver emitido o visto cuja validade cesse mais tarde.

4. Se o requerente apenas for titular de um ou mais títulos de residência caducados há menos de dois anos, ou de um ou mais vistos caducados há menos de seis meses, que lhe tenham efetivamente permitido a entrada no território de um Estado- Membro, são aplicáveis os n.ºs 1, 2 e 3 enquanto o requerente não abandonar o território dos Estados-Membros.

Se o requerente for titular de um ou mais títulos de residência caducados há mais de dois anos, ou de um ou mais vistos caducados há mais de seis meses, que lhe tenham efetivamente permitido a entrada no território de um Estado-Membro, e se não tiver abandonado o território dos Estados-Membros, é responsável o Estado-Membro em que o pedido de proteção internacional for apresentado.

5. A circunstância de o título de residência ou o visto ter sido emitido com base numa identidade fictícia ou usurpada ou mediante a apresentação de documentos falsos, falsificados ou não válidos, não obsta à atribuição da responsabilidade ao Estado-Membro que o tiver emitido. Todavia, o Estado-Membro que tiver emitido o título de residência ou o visto não é responsável, se puder provar que a fraude ocorreu posteriormente a essa emissão.

Por sua vez, o art. 17.º do Regulamento de Dublin consagra que:


Cláusulas discricionárias

1. Em derrogação do artigo 3.º, n.º 1, cada Estado-Membro pode decidir analisar um pedido de proteção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força dos critérios definidos no presente regulamento.

O Estado-Membro que tenha decidido analisar um pedido de proteção internacional nos termos do presente número torna-se o Estado-Membro responsável e assume as obrigações inerentes a essa responsabilidade. Se for caso disso, informa, por intermédio da rede de comunicação eletrónica «DubliNet», criada pelo artigo 18.o do Regulamento (CE) n.o 1560/2003, o Estado-Membro anteriormente responsável, aquele que conduz o processo de determinação do Estado-Membro responsável ou aquele que foi requerido para efeitos de tomada ou retomada a cargo.

O Estado-Membro responsável por força do presente número deve indicar também imediatamente esse facto no Eurodac em conformidade com o Regulamento (UE) n.o 603/2013 acrescentando a data em que foi tomada a decisão de analisar o pedido.

2. O Estado-Membro em que é apresentado um pedido de proteção internacional e que está encarregado do processo de determinação do Estado-Membro responsável, ou o Estado-Membro responsável, podem solicitar a qualquer momento, antes de ser tomada uma decisão quanto ao mérito, que outro Estado-Membro tome a seu cargo um requerente a fim de reunir outros parentes, por razões humanitárias, baseadas nomeadamente em motivos familiares ou culturais, mesmo nos casos em que esse outro Estado-Membro não seja responsável por força dos critérios definidos nos artigos 8.o a 11.o e 16.o. As pessoas interessadas devem dar o seu consentimento por escrito.

O pedido para efeitos de tomada a cargo deve comportar todos os elementos de que o Estado-Membro requerente dispõe, a fim de permitir ao Estado-Membro requerido apreciar a situação.

O Estado-Membro requerido procede às verificações necessárias para examinar as razões humanitárias apresentadas e responde ao Estado-Membro requerente no prazo de dois meses a contar da data da receção do pedido por intermédio da rede de comunicação eletrónica «DubliNet», criada pelo artigo 18.o do Regulamento (CE) n.o 1560/2003. As respostas de recusa do pedido devem indicar os motivos em que a recusa se baseia.

Se o Estado-Membro requerido aceitar o pedido, a responsabilidade pela análise do pedido é transferida para ele.

Perante este quadro legal e tendo presente a factualidade consignada na sentença recorrida – a qual não vem impugnada, repete-se -, resulta necessariamente a improcedência do recurso. Na verdade, e face ao que vem provado, o disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 19.º-A e os nºs 1 e 2 do artigo 37.º da Lei nº 27/08, não permite sustentar outro entendimento que não o expendido no acto impugnado.

É incontornável ser o Estado Italiano o responsável nos termos do art. 18.º, nº 1, do Regulamento (EU) 604/2013 do Parlamento e do Conselho, pelo que o “novo” pedido por aquele formulado não tem sequer que ser analisado de acordo com o regime supra identificado, devendo as autoridades portuguesas informar Itália da transferência do requerente de asilo. Sendo que o art. 17.º do Regulamento comporta uma faculdade conferida aos Estados Membros de aceitarem a competência para a análise do pedido de protecção internacional, em derrogação do regime geral, quando existam situações excepcionais que o imponham – e só nesses situações verdadeiramente excepcionais, designadamente quando estejam em causa situações de força maior do foro clínico ou por razões humanitárias e por imperativo de não sujeitar o requerente da protecção internacional a tratamento desumano ou degradante (cfr. neste sentido o acórdão deste TCAS de 10.12.2019, proc. nº 1383/19.4BELS, por nós relatado). Ou seja, o processo de transferência deve ser interrompido para averiguar, em regra de excepção, se esta pode significar a sujeição do requerente a tratamento cruel, degradante ou desumano num Estado-membro.

E não há dúvida que nos termos das disposições conjugadas dos artigos 3º nº 1 e 12º nº 2 daquele do Regulamento (UE) 604/2013, os pedidos de protecção internacional devem ser analisados e decididos por um único Estado-Membro (que será aquele que os critérios enunciados no Capítulo III designarem como responsável) competindo a análise do pedido de protecção internacional, caso o requerente seja titular de um visto válido, ao Estado-Membro que o tiver emitido.

Importa salientar, não perdendo de vista o caso concreto, que não se encontra minimamente demonstrado, desde logo, importa dizê-lo, pelo incumprimento do respectivo ónus alegatório, que se verificassem circunstâncias que justificassem, nos termos do disposto no artigo 3º nº 2 daquele Regulamento (UE) 604/2013, que fosse outro o Estado-Membro, e designadamente o Estado Português, o responsável por tal análise e decisão (cfr., em casos idênticos, também, os acórdãos deste TCAS de 19.05.2016, proc. nº 13154/16, e de 14.06.2018, proc. nº 229/18.5BELSB, por nós relatados). Com efeito na p.i. o ora Recorrente nada avança de concreto quanto a circunstâncias/motivos que impedissem a sua transferência para a Itália; o que se repete – aqui de modo ampliado - no recurso interposto.

Como se concluiu nos Acórdãos no processo C-163/17 Jawo e nos processos apensos C-297/17, C-318/17 Ibrahim, C-319/17 Sharqawi e o. e C-438/17 Magamadov:

Um requerente de asilo pode ser transferido para o Estado-Membro normalmente responsável pelo tratamento do seu pedido ou que já lhe tenha concedido protecção subsidiária a menos que as condições de vida previsíveis dos beneficiários de proteção internacional o pudessem expor a uma situação de privação material extrema, contrária à proibição de tratos desumanos ou degradantes”.

No quadro do sistema europeu comum de asilo que repousa no princípio da confiança mútua entre os Estados-Membros, deve presumir-se que o tratamento dado por um Estado-Membro aos requerentes de protecção internacional e às pessoas a quem foi concedida protecção subsidiária está em conformidade com as exigências da Carta, da Convenção de Genebra, bem como da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. E essa máxima cairá nos casos em que este sistema se depare, na prática, com grandes dificuldades de funcionamento num determinado Estado-Membro, de modo que existe um sério risco de os requerentes de protecção internacional serem tratados, nesse Estado, de modo incompatível com os seus direitos fundamentais e, nomeadamente, com a proibição absoluta de tratamento desumano ou degradantes (v. o Acórdão do Tribunal de Justiça de 21 de Dezembro de 2011, N. S. e o. - C-411/10 e C-493/10).

De acordo com a Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia citada, resulta que quando o órgão jurisdicional chamado a conhecer de um recurso de uma decisão de transferência ou de uma decisão que declara um novo pedido de protecção internacional inadmissível dispõe de elementos apresentados pelo requerente para demonstrar a existência do risco de um trato desumano ou degradante no outro Estado-Membro, esse órgão jurisdicional deve apreciar a existência de deficiências, sistémicas ou generalizadas, ou que afectem certos grupos de pessoas. Adianta ainda o Tribunal que tais deficiências só são contrárias à proibição de tratamento desumano ou degradante se tiverem um nível particularmente elevado de gravidade, que depende do conjunto dos dados da causa.

Entendimento vincado pelo TJUE no Acórdão de 19.03.2019, proferido nos apensos C-297/17, C-318/17, C-319/17 e C-438/17. Aliás, proficuamente citado na sentença recorrida.

Ora, no caso concreto, não só não foram apresentados elementos pelo requerente de protecção internacional para demonstrar a existência do risco de um trato desumano ou degradante no outro Estado-Membro, antes pelo contrário, como nem imposições de saúde que impusessem a sua permanência em Portugal (não foram sequer alegadas).

A posição que subscrevemos é, também, a acolhida, entre outros, no acórdão do STA de 16.01.2020, proc. n.º 2240/18.7BELSB, em que estava em questão a retoma a cargo pelo Estado Italiano. Neste acórdão concluiu-se:

I - Apenas em casos devidamente justificados, ou seja, naqueles casos em existam motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes e que tais falhas implicam o risco de tratamento desumano ou degradante, nomeadamente por envolver tortura, é que se impõe ao Estado em causa diligenciar pela obtenção de informação actualizada acerca da existência de risco de o requerente ser sujeito a esse tipo de tratamentos;

II - A imigração ilegal, que ocorre por muitos e variados motivos, visando todos eles a melhoria das condições de vida do imigrante, não se pode confundir simplesmente com a situação do refugiado. Este, que em sentido amplo não deixa de ser imigrante, busca refúgio em país estrangeiro por recear, com razão, ser perseguido no seu país de origem em consequência de actividade exercida em favor da democracia, da liberdade social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana, ou em virtude da sua raça, nacionalidade, convicções políticas ou pertença a determinado grupo social”.

Ou seja, a premissa de base que parte o Recorrente, de que a decisão de transferência do requerente de protecção internacional para o primeiro Estado responsável tem como pressuposto a análise prévia, oficiosa e injuntiva, de que nesse Estado não existem falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado, não tem acolhimento na lei (neste sentido, i.a., o ac. deste TCAS de 13.02.2020, proc. nº 1708/19.2BELSB, por nós relatado).

No caso concreto dos autos, face ao que vem evidenciado, nada mais se impunha ao SEF.

Improcede, deste modo, o recurso nesta parte.

Quanto à questão da situação gerada pela legislação excecional em vigor – o Decreto-Lei n.º 10-A/2020, art. 16º, e Despacho n.º 3863-B/2020, através da qual se deve considerar regular a permanência em território nacional da ora Recorrente, também aqui a sentença recorrida decidiu acertadamente.

Como se afirma na sentença recorrida:

Relativamente ao alegado no Item 44.º da petição inicial, em concreto no que respeita ao regime excepcional criado em resultado da pandemia gerada pela doença COVID-19, implementado pelo Artigo 16.º do Decreto-lei n.º 10-A/2020, e Artigo 1.º do Despacho n.º 3863-B/2020, impõe-se esclarecer que o mesmo estabelece medidas de carácter provisório, e as quais não contendem com os pressupostos de facto e de direito, de que depende a concessão de asilo ou protecção subsidiária; assim como, não contendem com os pressupostos de facto e de direito, dos quais depende a decisão de inadmissibilidade em causa nestes autos.

Dito de outro modo, tais medidas constituem medidas de segurança e de saúde pública, com o propósito de limitar a propagação do vírus Sars-cov-2; o que não significa que, tal obste à tomada da decisão de inadmissibilidade dos pedidos de asilo ou de protecção internacional, nem tão pouco que tal importe a invalidade/ilegalidade das mesmas.

Questão distinta, e que não se coloca nestes autos, e que também não contende com a validade/legalidade da decisão ora impugnada, é a da sua execução; a qual poderá, ou não, em face das medias provisórias adoptadas e em vigor, ser diferida no tempo”.

Com efeito, neste ponto e em bom rigor, nem sequer ocorre legitimidade para o recurso, uma vez que o Recorrente vem questionar a regularidade da permanência em território nacional e o tribunal a quo explicitou que tal matéria se conexiona com a execução da decisão administrativa impugnada, sendo esta, por força da legislação de excepção, diferida no tempo.

Pelo que, em síntese e tudo visto, a decisão administrativa impugnada é a adequada à situação do ora Recorrente enquanto requerente de protecção internacional, sendo válida.

Terá, assim, que negar-se provimento ao recurso, e confirmar-se a sentença recorrida.

O presente processo está isento de custas (artigo 84.º da Lei n.º 27/2008, de 30 de Junho com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 26/2014, de 5 de Maio).



III. Conclusões

Sumariando:

i. Perante a verificação da existência de um pedido de asilo anterior formulado noutro Estado-membro, há que dar início ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de asilo, no qual, no caso concreto, se apurou ser Itália.

ii. Tendo a Itália aceite tal responsabilidade, cabe proferir decisão da respectiva transferência do requerente de protecção internacional, nada vindo invocado que justificasse, nos termos do disposto no artigo 3º nº 2 daquele Regulamento (UE) 604/2013, que fosse outro o Estado-Membro, e designadamente o Estado Português, o responsável por tal análise e decisão.

iii. O Regulamento (UE) n.º 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho, como já sucedia com o Regulamento (CE) n.º 343/2003, que estabelece os critérios e os mecanismos de determinação da responsabilidade da análise dos pedidos de protecção internacional apresentados nos Estados Membros, prossegue dois objectivos essenciais: por um lado, visa garantir um acesso efectivo aos procedimentos de determinação do estatuto de refugiado, sem comprometer a celeridade no tratamento dos pedidos de asilo e assegurando a certeza e segurança jurídicas ao nível da EU; e, por outro lado, visa impedir a utilização abusiva dos procedimentos de asilo, sob a forma de pedidos múltiplos apresentados pelo mesmo requerente em diversos Estados Membros, com o objectivo de neles prolongar a sua estadia, realidade comummente designada como asylum shopping.

iv. Também de acordo com a Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, quando o órgão jurisdicional chamado a conhecer de um recurso de uma decisão de transferência ou de uma decisão que declara um novo pedido de protecção internacional inadmissível dispõe de elementos apresentados pelo requerente, ou que constituam factos notórios, para demonstrar a existência do risco de um trato desumano ou degradante no outro Estado-Membro, esse órgão jurisdicional deve apreciar a existência de deficiências, sistémicas ou generalizadas, ou que afectem certos grupos de pessoas. Ainda assim, de acordo com a mesma Jurisprudência, tais deficiências só são contrárias à proibição de tratamento desumano ou degradante se tiverem um nível particularmente elevado de gravidade, que depende do conjunto dos dados da causa; o que no caso não sucede minimamente, não evidenciado os autos que enquanto residiu em Itália, o requerente de asilo tenha sido sequer sujeito a tratamento desumano ou degradante, nem que o venha a ser.

v. O regime excepcional criado em resultado da pandemia gerada pela doença COVID-19, implementado pelo art. 16.º do Decreto-lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, e art. 1.º do Despacho n.º 3863-B/2020, não contende com os pressupostos de facto e de direito de que depende a concessão de asilo ou protecção subsidiária; bem como não contende com os pressupostos de facto e de direito dos quais depende a decisão de inadmissibilidade em causa nestes autos. O mesmo regime influenciará a execução da medida administrativa determinada, a qual poderá em face das medias provisórias adoptadas e em vigor, ser diferida no tempo.



IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.

Sem custas, por isenção legal.

Lisboa, 12 de Novembro de 2020



Pedro Marchão Marques

Alda Nunes

Lina Costa


O relator consigna e atesta, que nos termos do disposto no art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo art. 03.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento.

Pedro Marchão Marques