Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:12285/15
Secção:CA-2º JUÍZO
Data do Acordão:08/28/2015
Relator:CRISTINA DOS SANTOS
Descritores:FUMUS BONI IURIS INCONTROVERSO, PATENTE E IRREFRAGÁVEL – FUMUS NON MALUS IURIS
Sumário:
1. A qualidade de cognição exigida pelo art° 120° nº l a) CPTA para o fumus boni iuris traduzida na expressão "evidente procedência da pretensão formulada" mede-se pelo carácter incontroverso (que não admita dúvida), patente (posto que visível sem mais indagações) e irrefragável (irrecusável, incontestável) do presumível conteúdo favorável da sentença de mérito da causa principal, derivado da cognição sumária das circunstâncias de facto e consequente juízo subsuntivo na lei aplicável, efectuados no processo cautelar.
2. A apreciação do fumus boni iuris estende-se à aparência de ilegalidade da actuação administrativa alegada pela parte interessada no decretamento da providência como lesiva de um direito que lhe assiste
3. No artº 120º nº 1 b) CPTA, que o critério de apreciação da necessidade da tutela cautelar há-de assentar num juízo sumário de procedibilidade da pretensão, isto porque “a par da urgência no decretamento da providência, justificada pelo periculum in mora há que aferir: estando em causa a paralisação dos efeitos de uma actuação administrativa, o fumus non malus iuris da pretensão do requerente, ou seja, a não manifesta falta de fundamento desta”.

A Relatora,
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:A Associação Portuguesa de Analistas Clínicos, com os sinais nos autos, inconformada com o acórdão proferido pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa dele vem recorrer, concluindo como segue:

1. Em 19.11.2014, a Recorrente instaurou, junto do TAC de Lisboa, uma Providência Cautelar de Suspensão de Eficácia de Normas, por meio da qual requereu a suspensão de eficácia da Portaria n.° 166/2014, de 21 de Agosto, e da Portaria n.° 167/2014, de 21 de Agosto, com efeitos circunscritos ao caso concreto.
2. Com surpresa, a Recorrente veio a ser notificada da Sentença proferida pelo douto Tribunal a quo, em 14,04,2015, ora em Recurso Jurisdicional, nos termos da qual se recusou a concessão da Providência Cautelar e absolveu a Entidade Recorrida do pedido.
3. Quanto ao critério previsto no artigo 120,°, n.° 1, alínea a), do CPTA, entendeu o Tribunal a quo não ser evidente a procedência da pretensão a deduzir na acção principal, sustentando-se, para tal conclusão, em três motivos, com os quais a Recorrente, muito respeitosamente, discorda.
4. Quanto ao primeiro motivo - "esforço feito pela requerente para convencer o Tribunal de que é evidente a procedência da pretensão deduzida, ou a deduzir, na acção principal (esforço que se estendeu por 500 artigos do requerimento, passando pelo pedido de produção de prova testemunhal)" -, a Recorrente demonstra, em primeiro lugar, que não dedicou 500 (quinhentos) artigos à demonstração da verificação/preenchimento do critério em apreço, e, bem assim, entende que o raciocínio do Tribunal é enganador e parece vir convenientemente invocado como fundamento para uma omissão de pronúncia, através do recurso a um argumento falacioso como é o da ausência de evidência da procedência da pretensão com fundamento na extensão de uma peça processual.
5. Em segundo lugar, a Recorrente fez notar que não indicou prova testemunhal com vista à procura de demonstração da verificação deste critério, tendo-o feito, sim, para a demonstração do pressuposto da alínea b}, do n.° 1, do artigo 120.°, do CPTA, o que o Tribunal a quo parece não ter alcançado.
6. O Tribunal a quo inverte a lógica do CPTA - e, assim, faz errada interpretação e aplicação do artigo 120.°, n.° 1, alínea a), do CPTA - pois que considera que se existe um número avultado de vícios, então não é evidente a procedência da acção principal.
7. A generalidade dos vícios invocados são susceptíveis de acarretar a nulidade das Portarias em impugnação, que, sendo a mais alta cominação de ilegalidade, implicava um juízo quanto à evidência da procedência da pretensão a formular na acção principal.
8. O argumento quantitativo - in casu, a dimensão Requerimento Inicial - é, como se sabe, sempre falacioso, uma vez que apenas tem em consideração um único factor (o número total de artigos).
9. Atenta a invocação e espécie de vícios de que padecem as Portarias em apreciação cautelar, se algo havia a decidir era, em contrário, pelo deferimento da Providência Cautelar requerida,
10. Existe, assim, e também, erro de julgamento, que se convoca, e que, por ser procedente, impõe a anulação da Sentença, e sua substituição por decisão que julgue verificado/preenchido o critério/pressuposto previsto no artigo 120.°, n.° 1, alínea a}, do CPTA.
11. O segundo motivo que levou à conclusão da não verificação do pressuposto previsto na alínea a), do n.° 1, do artigo 120.°, do CPTA, prende-se, segundo o Tribunal de 1.aInstância, na "pertinência da resposta dos requeridos, que rebateram, um por um, os argumentos da requerente".
12. Quanto a este concreto motivo/entendimento, existe desde logo nulidade da Sentença por não especificação dos fundamentos de direito que justificam a decisão, nulidade que decorre da alínea b), do n.° 1, do artigo 615.°, do CPC aplicado, ex vi,do artigo 140.°, do CPTA.
13. Ao contrário do que se verifica, cabia ao Tribuna] a quo, neste ponto, explicitar, especificando, os fundamentos de direito que conduziram à decisão de não julgar evidente a procedência da pretensão a formular no processo principal.
14. O Tribunal de 1 ,a instância não se pronunciou, nem de leve, sobre as razões - de direito - pelas quais não é evidente a procedência dos 11 (onze) vidos invocados pela Recorrente, remetendo para uma alegação inexistente da Entidade Requerida e Contra-lnteressada, assim incorrendo em flagrante omissão de pronúncia.
15. O terceiro motivo em que se estribou Tribunal de 1 .a instância para considerar não verificado o pressuposto ora em análise, consubstancia-se numa alegada "complexidade das questões litigadas", que uma vez mais se associa à extensão do Requerimento Inicial de Providência Cautelar.
16. Existe, aqui, também, erro de julgamento, na medida em que, pese embora o conjunto alargado de vícios que foram invocados -11 (onze) - os mesmos revelam-se, no caso concreto, patentes, notórios, visíveis e com forte e intenso grau de previsibilidade de virem a determinar a procedência da pretensão a formular na acção principal.
17. Quanto ao critério previsto no artigo 120.°, n.° 1, alínea b), do CPTA, entendeu o Tribunal a quo não terem sido invocados, nem demonstrados, prejuízos concretos -dos Associados da Recorrente - susceptíveis de permitir ao Tribunal uma pronúncia/apreciação sobre a verificação do critério do perículum in mora.
18. Impõe-se concluir que existe uma contradição insanável entre a decisão de dispensar a prova testemunhal requerida pela Recorrente - para demonstração, precisamente, do critério do perículum in mora -, feita a início da Sentença, e a decisão final de julgar não verificado o pressuposto/requisito do perículum in mora, com fundamento na ausência de elementos de prova bastantes relativamente a esse pressuposto/requisito, nos termos da.alínea c), do n.° 1, do artigo 615.°, do CPC.
19. Acresce, ademais, que, neste ponto, existe errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 118.°, n.° 3, do CPTA, uma vez que, havendo matéria de facto relevante para a procedência da Providência Cautelar requerida - a provar por inquirição de testemunhas -, não podia o Tribunal a quo dispensar a prova testemunhal requerida, ou considerá-la irrelevante (desnecessária), face aos factos que se deram como provados, quando nestes nada se refere quanto aos prejuízos que a própria Sentença admite terem sido invocados.
20. Assim, nestes termos, deve a Sentença de 14.04.2015 ser anulada, ao abrigo do disposto no artigo 662.°, n.° 2, alínea c), do CPC,
21. A Sentença em apreço procede, ainda, a uma errada interpretação e aplicação do artigo 114.°, n.° 3, do CPTA, violando, ainda, o artigo 20.°, da Constituição da República Portuguesa, por interpretação e aplicação de preceitos da lei processual administrativa em violação do Princípio de Acesso ao Direito e do Princípio da Tutela Jurisdicional Efectiva.
22. A Sentença ora em escrutínio surge em absoluta violação do enunciado Princípio da Proibição das Decisões Surpresa, já que, ao não ter sido conferida a possibilidade de a-Recorrente produzir a prova testemunhal requerida,-com vista à demonstração do requisito do perículum in mora, a decisão passa a integrar o leque das denominadas Decisões Surpresa, com que a Recorrente não podia legitimamente contar.
23. A Sentença proferida não era, nem devia ser, previsível para a Recorrente, já que recaiu sobre factos/direito relativamente aos quais não foi produzida a prova (testemunhal) requerida, sendo por isso nula, nos termos do artigo 195.°, n.° 1, do CPC.
24. A decisão recorrida é, ainda, nula, nos termos da aplicação conjugada do disposto nos artigos 3.°, n.° 3, e 195.°, n.° 1, do CPC, pois que o Tribunal a quo não podia ter decidido a verificação/preenchimento do critério da alínea b), do n.° 1, do artigo 120.°, do CPTA, sem que a Recorrente tivesse tido a oportunidade de produzir prova testemunhal sobre a mesma.
25. A omissão de produção da prova requerida pela Recorrente veio a influir de forma clara e determinante, quer no exame, quer na decisão da causa, assim se violando um princípio básico do direito processual, o do contraditório, não se permitindo que ao prxesso sejam trazidos elementos de forma a decidir-se a causa de acordo com as várias soluções plausíveis ao Direito.
26. Sem conceder quanto aos fundamentos de nulidade da Sentença aqui em escrutínio, pelas razões aduzidas supra, caso se entenda que esses fundamentos são improcedentes - o que, sem conceder, de admite por cautela processual e de patrocínio - sempre a Sentença deverá ser anulada, nos termos do artigo 662,°, n.° 2, alínea c), do CPC, ordenando-se a produção da prova requerida pela Recorrente, de acordo com a alínea a), do n.° 3, do artigo 662.°, do CPC.
27. Nestes termos, Deve o presente Recurso Jurisdicional ser considerado procedente, por provado, E, em consequência, ser declarada nula a Sentença proferida pelo Tribunal de 1.a instância,
28. Ou, caso assim não se entenda, ser ordenada a sua revogação com fundamento em erro na interpretação e aplicação das normas jurídicas aplicáveis,
29. Ou, caso assim não se entenda, ser ordenada a sua revogação com fundamento em erro de julgamento,
30. Tudo a determinar a descida dos autos à 1.a instância, para aí se produzida a prova testemunhal requerida, com vista à demonstração dos prejuízos de difícil reparação que advirão para a Recorrente da não suspensão das Portarias em apreço,

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O Ministério da Saúde contra-alegou, concluindo como segue:

1. A douta Sentença recorrida não merece qualquer reparo ou censura;
2. Com efeito, ao contrário do que alega a Recorrente, douta Sentença recorrida fez correcta interpretação e aplicação da lei aos factos e não padece das invocadas nulidades;
3. A douta Sentença recorrida decidiu correctamente que o vasto rol de vícios e ilegalidades assacadas às Portarias, para além de não serem evidentes, transcendem o nível da análise perfunctória que não é susceptível de ser efectuada em sede de providência cautelar;
4. Por isso, o douto Aresto julgou correctamente que no caso em apreço não se verificava o requisito ou critério previsto na ai. a) do n° l do art.° 120° do CPTA, uma vez que a Requerente ora Recorrente não demostrou que o acto suspendendo era manifestamente ilegal e era evidente a procedência da pretensão formulada na acção principal;
5. Assim como decidiu correctamente que não se verificou o requisito ou pressuposto da ai. b) do n° l do art.° 120° do CPTA, porquanto a Requerente ao contrário do que era seu ónus, não alegou especificadamente factos concretos mas antes considerações, opiniões, ilações e conclusões jurídicas e técnicas que não se tratam de factos concretos sobre os quais devesse ser produzida qualquer prova;
6. Por isso, a douta Sentença recorrida, por ter prescindido da prova testemunhal, também quanto a este segmento recursivo não merece qualquer reparo ou censura, não violou o disposto do art.° 118.°, n.° 3, in fine, do CPTA, nem, consequentemente, o direito de acesso aos tribunais e de tutela jurisdicional efectiva consagrado no art.° 20.° da CRP;
7. Porquanto, o citado art.° 118.°, n.° 3, in fine, do CPTA, apenas concede ao juiz a quo o "... poder de ordenar as diligências de prova que considere necessárias.", donde esta norma não só não impõe com impede a produção de provas desnecessárias, sendo que estas redundariam na prática ilícita de actos inúteis que a lei proíbe , conforme resulta do art.° 130.° do CPC ex vi art.° 1.° do CPTA;
8. O que igualmente sucede com o art.° 20.° da CRP cujo direito de acesso à Justiça e à tutela jurisdicional efectiva passa também por uma justiça célere e esta só é possível com a eliminação de actos inúteis, incluindo a produção de prova desnecessária.
9. Nestes termos e nos mais de Direito, deve ser negado provimento ao recurso, antendo-se, em consequência, a douta Sentença recorrida.


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O Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, IP contra-alegou, concluindo como segue:

1. As providências cautelares são acessórias, uma vez que dependem do processo principal, instrumentais, já que a sua finalidade é assegurar a utilidade da acção principal, e provisórias, caducando aquando da decisão da causa principal e proporcionando apenas a satisfação do direito invocado na medida necessária para que se garanta a utilidade da sentença posterior.
2. Para recorrer à providência cautelar, e não simplesmente à acção principal é necessário que exista um perigo que resulte do decurso do tempo que venha tornar inútil a decisão da acção principal.
3. A providência prevista no artigo 120°, n° 1, alínea a) do CPTA é uma providência conservatória, uma vez que o objectivo pretendido pelo requerente será o de manutenção da situação que existia antes do acto que está a impugnar.
4. Beneficia de um regime especial face às restantes providências cautelares, exigindo que o Tribunal conclua facilmente e sem margem de dúvida, que a decisão da acção principal será de procedência do pedido.
5. O ónus da prova do fumus boni iuris cabe ao requerente que tem que provar que o acto é manifestamente ilegal, que aplica uma norma já anteriormente anulada ou que é idêntico a um acto já anteriormente anulado.
6. No caso concreto, a Recorrente que não indicou prova testemunhal com vista à procura de demonstração do critério da ai. a) do n.° 1 do artigo 120° do CPTA, mas sim para a ai. b).
7. Contudo, a Recorrente tinha o ónus de demonstrar a inequívoca existência de quaisquer ilegalidades nas normas cuja suspensão requereu, e tinha que produzir prova nesse sentido.
8. Não só não o fez, como viu a sua argumentação rebatida a toda a linha pelos Recorridos.
9. Uma vez que a Recorrente foi incapaz de demonstrar e provar a existência de quaisquer ilegalidades, ficou arredada a aplicação do critério excepcional da ai. a) do n° 1 do artigo 120° do CPTA.
10. Contudo a ora Recorrente também não logrou demonstrar i) o fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal (periculum in mora);
11. Ficando também por demonstrar iii) que da ponderação dos interesses públicos e privados em presença decorra que os danos resultantes da concessão da providência não se mostram superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, ou que, sendo superiores, possam ser evitados ou atenuados pela adopção de outras providências (proporcionalidade e adequação da providência).
12. Assim o Tribunal a quo, após extensa análise da factualidade em causa, entendeu estar perante matéria bastante complexa.
13. Entendeu ainda o Tribunal a quo que, apesar de deveras extensa a petição apresentada pela agora Recorrente, os argumentos nela espraiados foram rebatidos, um por um, de forma pertinente, quer pelo ora Recorrido, quer pelo Ministério da Saúde,
14. Impossibilitando a evidência da procedência da pretensão a deduzir em acção principal, obstando assim à possibilidade de aplicação do artigo 120.°, n°1 a) do CPTA.
15. Ora, compulsados os autos, verificou-se que a ora Recorrente não logrou demonstrar a produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que visa assegurar no processo principal,
16. Não tendo invocado quaisquer factos concretos que permitissem ao julgador aferir qual a efectiva repercussão, na esfera dos seus associados, das normas que procurava ver suspensas (!)
17. Não indicando sequer, como sublinha o Tribunal a quo "(...) a situação económica líquida actual dos associados da requerente (...)"; "(...) estão todos os associados da requerente na mesma situação? Se não estão, quantos e quais os associados da requerente que correm o risco de fechar portas se não for suspensa a eficácia das Portarias? Qual o peso da genética na actividade e nas receitas de cada um dos associados da requerente?"
18. Estava também impossibilitada a ora Recorrente de demonstrar a existência do "fundado" receio da constituição de uma situação de facto consumado.
19. Sendo altamente improvável que os seus associados venham a sentir os efeitos imediatos das Portarias que a Recorrente quer ver suspensas,
20. Uma vez que o Decreto-Lei n.° 127/2014, de 22 de Agosto - diploma que prevalece sobre as Portaria em questão - mantém válidas as licenças de estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde emitidas ao abrigo de legislação vigente antes da entrada em vigor deste decreto-lei (designadamente Decreto-Lei n.° 279/2009, de 6 de Outubro);
21. Além disso, todos os estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde detentores de licenças emitidas ao abrigo de legislação vigente antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.° 127/2014, de 22 de Agosto, têm um prazo de cinco anos, a contar da data da sua entrada em vigor para se conformar com o regime neste estabelecido;
22. E bem assim, podem ainda solicitar a dispensa do cumprimento de requisitos de funcionamento, nos termos do artigo 21.° do Decreto-Lei n.° 127/2014, de 22 de Agosto (n.08 4 e 5 do artigo 19.° do Decreto-Lei n.° 279/2009, de 6 de Outubro).
23. Pelo que, também não poderia a providência requerida ser decretada com base em "fundado" receio da constituição de uma situação de facto consumado.
24. Assim, não estando preenchidos os requisitos exigidos quer na al. a), ou na al. b) do n.° 1, quer o n.° 2 do artigo 120° do CPTA,
25. Bem andou o Tribunal a quo ao indeferir o seu decretamento e absolver do pedido o Ministério da Saúde.
26. As providências cautelares conservatórias, tal como o adjectivo sugere, visam acautelar o efeito útil da acção principal, assegurando a permanência da situação existente aquando da ocorrência do litígio a dirimir na acção principal.
27. As providências conservatórias têm, pois, por finalidade manter o status quo.
28. Perante a ameaça de um dano irreversível, destinam-se a manter inalterada a situação que preexiste à acção, acautelando tal situação, de facto ou de direito, evitando alterações prejudiciais.
29. Por tudo o supra exposto, mantendo-se o status quo desejado pela Recorrente, a saúde pública é que poderia ser seriamente ameaçada.
30. Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exa. Muito Doutamente suprirá, deve improceder a pretensão da Recorrente, mantendo-se a decisão Recorrida nos seus precisos termos.


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Com substituição legal de vistos pela entrega das competentes cópias aos Exmos. Desembargadores Adjuntos, vem para decisão em conferência – artºs. 36º nºs. 1 e 2 CPTA e 707º nº 2 CPC, ex vi artº 140º CPTA.


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Pelo Senhor Juiz foi julgada provada a seguinte factualidade:

A A Associação Portuguesa de Analistas Clínicos é uma associação representativa das pessoas singulares ou colectivas do sector privado que, no território nacional, sejam proprietárias de laboratórios de análises clínicas/patologia clínica e de investigação biológica ou farmacêutica (doe. 3 junto ao requerimento inicial e cujo teor se dá por reproduzido);
B No Diário da República, 1a série, nº 160, de 21 de Agosto de 2014, foram publicadas as Portaria nºs 166/2014, de 21 de Agosto, e 167/2014, de 21 de Agosto (doe. l e 2 juntos ao requerimento inicial e cujos teores se dão por reproduzidos;
C O Despacho nº 14159/2012, publicado no Diário da República, 2 a série, nº 211, de 31 de Outubro de 2012, e cujo teor se dá por reproduzido, aprovou a tabela de preços a praticar pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, I.P. (INSA, I.P.);
D O INSA, I.P., presta serviços de análise laboratorial a privados;
E Pelo despacho nº 9209/2011, de 18 de Julho, publicado no Diário da República, 2a série, nº 140, de 22 de Julho de 2011, o Ministro da Saúde delegou no Secretário da Saúde as competências nele mencionadas;
F Pelo Despacho nº 1116/2012, de 10 de Maio, foram estabelecidos os pressupostos e os termos da contratação com o sector social e privado (doc. l junto à contestação do INSA, I.P., e cujo teor se dá por reproduzido).



DO DIREITO


Vem a sentença assacada de violação primária de direito substantivo e adjectivo nas seguintes matérias:
1. interpretação e aplicação do artº 120º nº 1 a) CPTA ….. conclusões sob os itens 1 a 16;
2. interpretação e aplicação do artº 120º nº 1 b) CPTA, incorrendo em nulidade por dispensa indevida de prova testemunhal ………………………………….. conclusões sob os itens 17 a 26.


1. summario cognicio; fumus boni iuris em matéria administrativa;

Pela circunstância de as providências cautelares se limitarem a fornecer uma composição provisória que se destina a ser substituída por aquela que resultar da acção principal, relativamente à qual são dependentes em termos de acessoriedade visando garantir a sua utilidade prática, tal implica, primeiro, a distinção de objectos entre o meio cautelar e a acção principal que lhe corresponda.
Isto porque não existe entre o meio cautelar e a acção principal identidade de pedidos nem de causas de pedir, na medida em que “(..) a dependência das providências cautelares do meio principal, pela própria natureza e relativa autonomia das primeiras, não pode equivaler a uma coincidência do direito que se pretende tutelar nem à alegação do mesmo circunstancialismo fáctico integrador da causa de pedir de ambos os meios. Mas implica, pelo menos, que o facto que serve de fundamento ao requerimento da adopção de uma providência cautelar, integre a causa de pedir da acção principal (..)”. (1)

*

É em razão da provisoriedade e instrumentalidade da tutela cautelar que no domínio deste meio adjectivo a lei se limita a exigir a prova sumária da situação de facto (summario cognicio) e a suficiência da mera justificação do direito alegado (fumus boni iuris), circunstâncias que têm por consequência a insusceptibilidade de a decisão proferida em processo cautelar produzir qualquer efeito de caso julgado na acção principal, ou seja, não tem efeitos de caso julgado material erga omnes - cfr. artº 364º nº 4 CPC (ex 383º nº 4). (2)

*

A acessoriedade para além da limitação de eficácia temporal da sentença cautelar subordinada à prolação da sentença no processo principal, tem um segundo vector consequencial que é a sumariedade de cognição efectuada em sede de apreciação dos requisitos de concessão da providência.
O tribunal limita-se a exercer o que se designa por summario cognitio, no sentido de que a apreciação da factualidade carreada para os autos e para efeitos decisórios sobre os requisitos da aparência da existência de um direito e provável ilegalidade da actuação administrativa (fumus boni iuris) faz-se por recurso a um juízo de verosimilhança ou mera previsibilidade e razoabilidade dos indícios.
Sendo que a apreciação dos perigos de retardamento ou infrutuosidade (periculum in mora) se faz em moldes mais exigentes de “fundado receio” diz a lei, isto é, de probabilidade mais forte e convincente da gravidade ou difícil reparabilidade dos danos, salvo se já se tiverem verificado na prática e se pretenda sustar a continuidade de superveniência de novos dados, tal como no tocante à ponderação de interesses contrapostos em presença.
Em sede cautelar administrativa “(..) a apreciação do fumus boni iuris requer não apenas a emissão de um juízo sobre a aparência da existência de um direito ou interesse do particular a merecer tutela, como também da probabilidade da ilegalidade da actuação lesiva do mesmo (..)”(3)
O que significa que a apreciação do fumus boni iuris se estende à aparência de ilegalidade da actuação administrativa alegada pela parte interessada no decretamento da providência como lesiva de um direito que lhe assiste.



2. fumus boni iuris incontroverso, patente e irrefragável- artº 120° n° l a) CPTA;


O artº 120° nº 1 a) CPTA tem como campo de aplicação as situações excepcionais que pelas suas características prescindem da verificação dos requisitos gerais estatuídos em sede de regime geral, de modo que "(..) o seu sentido e alcance é, pois, o de estabelecer um regime especial de atribuição das providências, mediante o qual é afastada, para as situações nele contempladas, a aplicação do regime geral, consagrado nas alíneas b) e c) do n° l e n° 2.

As situações excepcionais contempladas no n° l alínea a) são aquelas em que se afigura evidente ao Tribunal que a pretensão formulada ou a formular pelo requerente no processo principal irá ser julgada
procedente. (..)".
(4)

A cognição cautelar assenta num juízo de probabilidades quanto à existência do direito acautelado, isto é, assenta numa aparência de bom direito, ou fumus boni iuris, fundamento jurídico da provisoriedade de direito da decisão cautelar perante a decisão da causa principal, "(..) a provisoriedade resulta como consequência normal do tipo de cognição que o juiz do processo acessório faz sobre o mérito do quid que é objecto do segundo processo: cognição assente na aparência, já que apenas se exige como grau de prova a fundamentação [mera justificação como meio de prova] (..) é sempre provisória de direito perante o juiz da causa principal, já que os seus efeitos de direito são sempre modificáveis e extintos pelo juiz da causa principal (..) no processo em que é emitida, "a cognição cautelar assenta num cálculo de probabilidades quanto à existência do direito acautelado" (..)" (5)
A qualidade de cognição exigida pelo art° 120° nº l a) CPTA para o fumus boni iuris traduzida na expressão "evidente procedência da pretensão formulada" mede-se pelo carácter incontroverso (que não admita dúvida), patente (posto que visível sem mais indagações) e irrefragável (irrecusável, incontestável) do presumível conteúdo favorável da sentença de mérito da causa principal, derivado da cognição sumária das circunstâncias de facto e consequente juízo subsuntivo na lei aplicável, efectuados no processo cautelar.
Na circunstância dos autos em sede de sentença foi evidenciado que o fumus boni iuris não é patente por carecer de indagação do ponto de vista de facto e de direito em ambas as vertentes da aparência do bom direito invocado pela Recorrente e da ilegalidade da actuação administrativa lesiva desse mesmo direito, logo, a situação não é subsumível na hipótese normativa do art° 120°n°l a) CPTA.
Pelo exposto improcedem as questões trazidas a recurso nos itens 1 a 16 das conclusões.


3. fumus non malus iuris – artº 120º nº 1 b) CPTA;

A providência requerida tem natureza conservatória o que significa, de acordo com o disposto no artº 120º nº 1 b) CPTA, que o critério de apreciação da necessidade da tutela cautelar há-de assentar num juízo sumário de procedibilidade da pretensão, isto porque “(..) a par da urgência no decretamento da providência, justificada pelo periculum in mora, … há que aferir: estando em causa a paralisação dos efeitos de uma actuação administrativa, o fumus non malus iuris da pretensão do requerente, ou seja, a não manifesta falta de fundamento desta; (..)” (6)
Isto é, para dar como verosímil a formulação negativa da aparência do bom direito basta que não seja evidente a improcedência da pretensão de fundo formulada no processo principal. (7)

Relativamente ao pedido de suspensão de eficácia das Portarias 166/2014 e 167/2014 ambas de 21.Agosto, a ora Recorrente sustenta 11 vícios de substância com reflexos no círculo de conteúdo de direitos e interesses dos associados da Recorrente, na medida em que sustenta a exclusão da valência de Genética do âmbito das competências dos laboratórios de patologia clínica/análises clínicas por não permitem a sua cumulação com outras, valência de Genética que passa a estar restrita aos laboratórios de genética médica por decorrência do regime do artº 10º nº 1 da Portaria 167/2014.
Em contrário, os ora Recorridos sustentam que ambas as citadas Portarias estabelecem a abertura e funcionamento dos laboratórios mediante o competente acto de licenciamento da actividade, não impedindo que os laboratórios de patologia clínica/análises clínicas efectuem testes genéticos, ou seja, não restringindo esta actividade no âmbito do licenciamento de laboratórios de genética médica.
Esta complexidade de aplicação normativa conjugada com o pedido de paralização de efeitos das citadas Portarias não se coaduna com a sustentabilidade de um juízo de verosimilhança ou mera previsibilidade e razoabilidade de indícios de facto relativamente à aparência da existência de um direito ou interesse relevante na esfera jurídica dos associados da Recorrente e provável ilegalidade da actuação administrativa (fumus boni iuris) por parte dos Recorridos, antes requer a prolação de um juízo de certeza jurídica, próprio do conhecimento em sede de acção principal.
No caso trazido a recurso em fase de cognição sumária cautelar, se há algo que resulta claro em sede de fumus non malus iuris é que não resulta evidenciada qual vai ser a solução jurídica em sede de acção principal, dada a complexidade de análise requerida no tocante ao bloco normativo aplicável à situação de facto, não limitado ao teor das duas Portarias, mas extensivo aos DL 127/2014, 22.08, revogatório do DL 279/2009, 06.10.
A questão é essencialmente de análise do bloco objectivo de legalidade, ainda que a ilegalidade dos normativos regulamentares exista apenas na situação concreta de alguns dos associados da Recorrente – os mencionados laboratórios impedidos de exercer a valência de Genética -, análise num patamar de complexidade que em sede de decisão jurisdicional de paralização de eficácia das Portarias 166/2014 e 167/2014 ambas de 21.Agosto, requer a prolação de um juízo de certeza jurídica, próprio do conhecimento em sede de acção principal.
Efectivamente, do ponto de vista do direito, a acção, seja a cautelar seja a principal, move-se no domínio da ilegalidade por violação de direitos e interesses legalmente protegidos por infracção de princípios a que a Administração está adstrita no desempenho da sua actividade normativa, o que, do ponto de vista da Recorrente, implica assacar as citadas Portarias de vício de conteúdo, assim requerendo que sejam jurisdicionalmente qualificadas de ilegais. (8)
Dito de outro modo, não se verifica o pressuposto da aparência de ilegalidade da actuação administrativa quanto ao requisito do fumus non malus iuris na formulação dada pelo artº 120º nº 1 b) CPTA, no que respeita ao conteúdo jurídico resultante do artº 10º nº 1 da Portaria 167/2014 em sede de valência de Genética no sentido sustentado pela Recorrente de se restringir aos laboratórios de genética médica.
Pelo exposto, o presente recurso perde sustentação jurídica precisamente no tocante ao requisito cautelar do fumus non malus iuris, artº 120º nº 1 b) CPTA.


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No tocante ao pressuposto cautelar do periculum in mora de acordo com o direito objectivo, para que haja necessidade e fundamento para ordenar jurisdicionalmente a tutela cautelar especificamente requerida tem de verificar-se uma situação de facto consumado ou uma impossibilidade ou dificuldade de reparação do prejuízo, que, em última análise, comprometa os interesses que o Requerente visa assegurar no processo principal de que o cautelar é dependente.
O que significa que o periculum in mora estabelecido pelo legislador não é um “perigo genérico de dano”, mas um perigo qualificado e aferido numa perspectiva funcional, o que significa que “(..) só têm - ou devem ter - relevância os prejuízos que coloquem em risco a efectividade da sentença proferida no processo principal (..)” (9)
Pelo que não assiste razão à Recorrente na questão suscitada nos itens 17 a 26 das conclusões, de nulidade de sentença por dispensa indevida de prova testemunhal em matéria de produção de prejuízos pela demora da acção principal periculum in mora na medida em que a apreciação da questão de fundo no tocante à alegada ilegalidade normativa das Portarias pertence à causa de pedir do processo principal.
O que significa que falece o requisito da probabilidade de existência do bom direito na vertente da eventual ilegalidade do agir administrativo e do periculum in mora, com a consequente improcedência na medida cautelar requerida.

Pelo exposto improcedem as questões trazidas a recurso nos itens 17 a 26 das conclusões.


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Termos em que acordam, em conferência, os Juízes-Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença proferida.

Custas pela Recorrente.
Lisboa, 28.AGO.2015


(Cristina dos Santos) ……………………………………………………..

(Rui Pereira) ………………………………………………………………

(Lurdes Toscano) …………………………………………………………





(1) Ana Gouveia Martins, A tutela cautelar no contencioso administrativo, Almedina/2005, págs. 47/48
(2) Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo processo civil, LEX/1997, págs. 250 e 569.
(3) Ana Gouveia Martins, A tutela cautelar no contencioso administrativo – em especial nos procedimentos de formação dos contratos, Coimbra Editora/2005, pág.43 nota (40).
(4) Mário Aroso de Almeida, Carlos Fernandes Cadilha, Comentário ao CPTA, Almedina/2005, pág. 602.
(5) Isabel Celeste M. Fonseca, Introdução ao estudo sistemático da tutela cautelar no processo administrativo, Almedina/2002, págs. 93/94 e 97/98.
(6) Carla Amado Gomes, O regresso de Ulisses: um olhar sobre a reforma da justiça cautelar administrativa, CJA/39, pág. 9.
(7) Mário Aroso de Almeida, Carlos Fernandes Cadilha, Comentário ao CPTA, Almedina/2005, pág. 609.
(8) Mário Lemos Pinto, Impugnação de normas e ilegalidade por omissão, Coimbra Editora/2008, págs.224-227.
(9) Isabel Fonseca, A urgência na reforma do processo administrativo - Reforma do Contencioso Administrativo, vol. I, Coimbra, 2003, pág. 343.