Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2476/19.3BELSB-S1
Secção:CA
Data do Acordão:09/10/2020
Relator:PEDRO NUNO FIGUEIREDO
Descritores:PRÉ-CONTRATUAL
EFEITO SUSPENSIVO AUTOMÁTICO
GRAVE PREJUÍZO PARA O INTERESSE PÚBLICO
Sumário:I. O levantamento do efeito suspensivo automático do ato de adjudicação de contrato público, previsto no artigo 103.º-A, n.os 2 a 4, do CPTA, depende (i) da sua manutenção implicar um grave prejuízo para o interesse público ou a produção de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos, (ii) e de serem superiores os danos que resultariam da manutenção do efeito suspensivo para os interesses da entidade demandada ou dos contrainteressados por contraponto aos que venham a resultar do seu levantamento para o autor da ação de contencioso pré-contratual, segundo um juízo de proporcionalidade.
II. Recai sobre a entidade demandada e a contrainteressada o ónus de alegar e provar a gravidade do prejuízo para o interesse público e a aludida lesão claramente desproporcionada para os demais interesses envolvidos, em conformidade com a regra decorrente do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil.
III. Se com a suspensão do ato de adjudicação impugnado é possível a continuação da prestação dos serviços em causa no contrato, no caso de segurança e vigilância, ainda que por valores superiores aos decorrentes daquele ato, tal não consubstancia a excecionalidade do grave prejuízo para o interesse público, a que alude o Considerando 24 da Diretiva 2007/66/CE e o n.º 4 do artigo 103.º-A do CPTA.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul
I. RELATÓRIO
Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, E.P.E., e V….., Lda., demandadas por P….., S.A., respetivamente na qualidade de ré e de contrainteressada, no âmbito de ação administrativa urgente de contencioso pré-contratual, vieram requerer o levantamento do efeito suspensivo automático da execução do ato de adjudicação, relativo ao concurso público com a referência ….., para aquisição de serviços de vigilância e segurança humana em oito estabelecimentos e serviços do Serviço Nacional de Saúde, na parte respeitante ao Lote 3, relativo ao Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa.
Notificada, a autora pronunciou-se sobre tais requerimentos, pugnando pelo seu indeferimento.
Por decisão de 22/04/2020, o TAC de Lisboa indeferiu o levantamento do efeito suspensivo automático do ato de adjudicação.
Inconformada, a contrainteressada interpôs recurso desta decisão, terminando as alegações com a formulação das conclusões que de seguida se transcrevem:
“I. Veio a Douta Decisão aqui em crise indeferir o levantamento do efeito suspensivo do ato de adjudicação do procedimento pré-contratual de concurso público com a referência ….., onde está em causa a adjudicação do contrato para aquisição de serviços de vigilância e segurança humana em oito estabelecimentos e serviços do Serviço Nacional de Saúde, na parte respeitante ao Lote 3, relativo ao centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL), fundamentando para o efeito que não existe o preenchimento dos requisitos do n.º 4 do artigo 103.º-A do CPTA.
II. Ora, salvo o devido respeito, no entendimento da ora Recorrente, ficou provado nos respetivos autos de que, não só são particularmente gravosos os prejuízos para o interesse público que decorrem da suspensão dos efeitos do ato de adjudicação no procedimento aqui em questão, como a ponderação dos interesses constantes no n.º 4 do artigo 103.º-A do CPTA, o que impõe obrigatoriamente se impõem o levantamento do efeito suspensivo que automaticamente decorre da impugnação do ato de adjudicação.
III. Entende a Recorrente que a ação administrativa proposta pela Autora carece integralmente de fundamento, os fundamentos elencados pela Autora para peticionar a anulação do ato de adjudicação são vagos e infundamentados, pelo que, a ação proposta pela Autora só poderá ser julgada totalmente improcedente, absolvendo-se, consequentemente, a Entidade Demandada dos pedidos.
IV. De acordo com o n.º 4 do artigo 103.º-A do CPTA, os requisitos do levantamento do efeito suspensivo do ato de adjudicação são os seguintes (i) a existência de um grave prejuízo para o interesse público com o diferimento da execução do ato de adjudicação; ou (ii) a existência de consequências lesivas claramente desproporcionais para outros interesses envolvidos. Ademais, poderá ainda admitir-se que continua a exigir-se, na redação atual do preceito, um juízo de ponderação de todos os interesses envolvidos – o interesse público e o interesse do Autor –, pelo que será necessário que esta ponderação assente sobre os efeitos da manutenção do efeito suspensivo automático em comparação com os efeitos do respetivo levantamento.
V. A Entidade Adjudicante está vinculada ao Princípio da Prossecução do Interesse Público e resulta do alegado por esta que o procedimento pré-contratual sub judice, tem como objetivo uma poupança real no sector da saúde, que irá beneficia as contas públicas e tem subjacente um interesse público relevante, cuja necessidade e aferição resulta do senso comum, em resultado de dados públicos e notórios.
VI. Com a manutenção do efeito suspensivo do ato de adjudicação e, consequentemente, a não execução do contrato, decorrem prejuízos graves para o interesse público na estabilidade financeira e no cumprimento das obrigações pela Entidade Demandada no que se refere às suas contas – prejuízos manifestamente superiores àqueles que possam eventualmente vir a ser sofridos pela Autora no caso de vir a ser decretado o levantamento do efeito suspensivo e o contrato executado – apenas prejuízos particulares, a nível patrimonial, que podem ser ressarcidos (no que não concedemos).
VII. A suspensão da execução do contrato tem também repercussões muito graves a nível económico e financeiro, uma vez que o concurso em causa insere-se na execução de uma política de gestão centralizada de bens móveis e serviços, extensiva às instituições do Serviço Nacional de Saúde, e, consequentemente, a Entidade Demandada tem a função de Central de Compras do Ministério da Saúde e, portanto, tem como objetivo a racionalização das compras de bens e serviços de saúde, com melhor controlo e otimização das despesas e redução de custos, o que está posto em causa face à suspensão do ato de adjudicação.
VIII. Mais se dirá que os sucessivos ajustes diretos à Autora (há mais de 7 anos consecutivos) mais não trará do que vantagens patrimoniais para esta e nunca os seus eventuais e muito incertos prejuízos patrimoniais se podem sobrepor aos interesses públicos que são salvaguardados pelas regras e princípios subjacentes à contratação pública, designadamente o da concorrência que é claramente oprimido pelo procedimento de ajuste direto.
IX. Não poderemos, ainda, deixar de sublinhar que, numa lógica de ponderação, temos de um lado o interesse público e o interesse da aqui Contrainteressada, e do outro, temos, apenas o interesse – não alegado e fundamentado porque a suspensão opera automaticamente – da Autora. E o prejuízo da Contrainteressada será sempre igual e equivalente ao prejuízo da Autora, traduzindo-se na perda de lucro resultante da não adjudicação (no caso da Contrainteressada) e de um mero potencial e eventual direito à adjudicação por parte da Autora!
X. Não podendo ser relevados nesta sede, pelo menos para efeitos de proporcionalidade, os ganhos da Autora com os ajustes diretos a que terá “direito” por força da suspensão do procedimento, uma vez que estes violam grosseiramente as mais elementares regras da Contratação Pública e realização de despesa pública, já que ocorrem, ao arrepio das regras da concorrência, há cerca de 7 anos – cfr. artigo 24 a 26 do Requerimento de levantamento do efeito suspensivo automático da aqui Contrainteressada.
XI. Os interesses públicos em presença não têm apenas natureza e expressão pecuniária, na medida em que há subjacente a sua obrigação de cumprir com as normas impostas pelo legislador à SPMS, EPE, ao contrário de eventuais prejuízos patrimoniais de um concorrente a um concurso público para formação de contrato público de prestação de serviços, pelo que, entende a ora Recorrente que o requisito do grave prejuízo para o interesse público e até para outros interesses envolvidos, estão devidamente provados e elencados no Douto Requerimento apresentado pela Entidade Demandada e pela aqui Contrainteressada, pelo que carece a Douta Decisão de fundamento.
XII. Ao contrário do alegado na Douta Sentença, a Entidade Demandada e a Contrainteressada alegam e provam os seus prejuízos: (i) a Entidade Demandada especifica detalhadamente as consequências de cariz financeiro que a suspensão do contrato desta natureza acarreta e a (ii) obrigatoriedade de racionalização das compras de bens e serviços na saúde fez com que a Entidade Demandada optasse por abrir um procedimento de concurso público e fizesse cessar uma situação de atropelo legal, quando os respetivos serviços têm sido fornecidos pela Autora em primeiro lugar por ajuste direito ao abrigo de acordo quadro, e desde 1 de janeiro de 2018 sem qualquer procedimento pré-contratual formal e sem a respetiva publicidade – cfr. www.base.gov.pt; (iii) os prejuízos para a Recorrente derivados da não execução do contrato, correspondentes ao valor económico do mesmo e (iv) os seus prejuízos referentes às despesas já efetuadas por força da adjudicação (seguro-caução e manutenção de trabalhadores afetos à prestação do serviço adjudicado);
XIII. Pelo que, a manutenção da suspensão, está a produzir elevados prejuízos para a Recorrente, que nem precisam de outra prova, pois resultam das disposições do contrato e das regras de experiência, pois o facto de concorrer ao concurso, cotejado com o seu objeto social, faz depreender uma perda de lucro, o mesmo ou semelhante àquele que possa ser o interesse da Autora.
XIV. Importa ainda referir que, e salvo o devido respeito, ao contrário do entendimento da Douta Decisão aqui em crise, e não obstante o supra exposto, entende a Recorrente que os danos invocados pela própria e pela Entidade Demanda são em larga medida factos notórios que, como tal, não carecem de demonstração por meios de prova.
XV. Por isso, não se pode sufragar a fundamentação da decisão recorrida na parte em que refere que a Entidade Demandada não logrou provar a necessidade imperiosa de prosseguir com a execução do ato impugnado para evitar perigos e obstar a prejuízos qualificáveis como graves ou claramente desproporcionados. Ora, recaindo sobre o interessado no levantamento do efeito suspensivo o ónus de alegar os factos concretizadores do grave prejuízo para o interesse público, em face da alegação realizada no requerimento de levantamento de efeito suspensivo é de entender que lograram a Entidade Demandada e a ora Recorrente proceder à demonstração dos pressupostos de facto e de direito que devem ditar efeito jurídico diferente daquele que resultou por mera aplicação da lei.
XVI. Assim, não pode a aqui Recorrente aceitar a fundamentação de direito da Douta Decisão recorrida no que refere à aplicação dos pressupostos do regime previsto no artigo 103.º-A do CPTA ao caso concreto, uma vez que a nossa jurisprudência tem entendido que “(...) os danos invocados no requerimento de levantamento do efeito suspensivo são em larga medida factos notórios, que, como tal, não carecem de demonstração por meios de prova. (...)” – cfr. Acórdão do Tribunal central Administrativo Sul, processo n.º 1997/17.7BELSB – S1, de 14.06.2018; e ainda nos acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte, processo n.º 02842/18.1BEPRT-S1, de 12.07.2019 e no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, processo n.º 062/18, de 26.04.2018, todos em www.dgsi.pt.
XVII. Assim e face a todo o exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e, em consequência, deve a Decisão recorrida ser declarada anulada e substituída por outra que declare o levantamento do efeito suspensivo do ato de adjudicação, com as demais consequências legais e procedimentais.”
A autora/recorrida apresentou contra-alegações, terminando as mesmas com a formulação das conclusões que de seguida se transcrevem:
“I. A V….. não impugnou o julgamento realizado da matéria de facto, pelo que o único prejuízo que alegou e que foi dado como provado é o de que subscreveu seguro-caução no valor de €283,21.
II. Quanto aos prejuízos que decorreriam para a SPMS, nenhum facto foi dado como provado.
III. Finalmente, também nenhum facto foi dado como provado quanto a prejuízos que poderia sofrer o CHPL — contrainteressada nos autos e entidade adquirente dos serviços postos a concurso — que nem sequer deduziu incidente de levantamento do efeito suspensivo.
IV. No requerimento de levantamento do efeito suspensivo cabe ao requerente alegar e provar factos concretos de que resultassem que o diferimento da execução do contrato aporta lesões ciaramente desproporcionadas para os interesses do contrainteressado ou danos ou prejuízos graves para o interesse público concretamente prosseguido com o contrato a executar; na sua falta, improcede o incidente de levantamento do efeito suspensivo.
V. Certo é que não foram alegados factos suficientes para demonstrar qualquer prejuízo grave para o interesse público ou lesões claramente desproporcionadas para os interesses da V….., pelo que deve o recurso interposto ser julgado improcedente. Subsidiariamente,
VI. Admite-se que o Tribunal a quo não lhes tenha feito referência na sentença recorrida, em face da improcedência da alegação da SPMS e da V….., julgando-os prejudicados, mas no caso de assim não se entender, terá ocorrido uma nulidade por omissão de pronúncia, que se invoca à cautela nos termos e para os efeitos previstos no artigo 615.°, n.° 1, alínea d), do Código de Processo Civil.
VII. O Tribunal a quo não procedeu à inquirição das testemunhas requeridas pela P….. para fazer prova dos prejuízos que alegou, o que redundaria numa omissão de ato que a lei prescreve quando existam factos controvertidos (artigos 89.°-A, n.° 1, e 90.°, n.os 1 a 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos), viciadora da sentença produzida, o que se invoca nos termos e para os efeitos previstos no artigo 195.°, n.° 1, do Código de Processo Civil ou, caso se entenda que o Tribunal considerou que não havia matéria de facto controvertida a carecer de prova testemunhal, incorreu em erro de julgamento, com violação do disposto nos artigos 89.°-A, n.° 1, e 90.°, n.os 1 a 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, e artigos 341.° e 392.° do Código Civil).
VIII. Quando a não promoção da prova requerida sobre os factos alegados e a não referência a eles na sentença proferida resulte de a questão da ponderação de interesses ter ficado prejudicada pela solução dada à verificação da não alegação e prova de graves prejuízos para o interesse público ou de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses, então, caso o recurso interposto venha ser julgado procedente, deverá o Tribunal ad quem promover esse julgamento, nos termos do artigo 149.°, n.os 2 e 4, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, ou determinar a baixa dos autos â primeira instância para tal efeito ou determinar a baixa dos autos à primeira instância para tal efeito, nos termos do artigo 662.°, n.° 2, alínea c), in fine, do Código de Processo Civil”.
*

Perante as conclusões das alegações da recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre aferir do invocado erro de julgamento da decisão recorrida, ao não decretar o levantamento do efeito suspensivo automático. Caso proceda, pretende a recorrida, subsidiariamente, que se verifica nulidade da decisão por omissão de pronúncia e omissão de ato que a lei prescreve.

Dispensados os vistos legais, atenta a natureza urgente do processo, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTOS
II.1 DECISÃO DE FACTO
Na decisão recorrida foram considerados indiciariamente provados os seguintes factos:
a) A Ré ¯ Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, EPE (SPMS) ¯ promoveu o Concurso Público com a refª …..cujo objeto é a prestação de serviços de vigilância e segurança humana em oito estabelecimentos e serviços do Serviço Nacional de Saúde, de entre os quais o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL) ¯ Lote 3 [cfr. PA - ].
b) A abertura do procedimento foi publicada no Diário da República, sob o Anúncio de procedimento n.° 10903/2019, a 11/10/2019, e no Jornal Oficial da União Europeia, sob o Anúncio de concurso 2019/S 199-483687, a 15/10/2019, este último rectificado através do Anúncio de concurso 2019/S 224-550386 - cfr. PA.
c) De acordo com o disposto no art.º 11.º/1 do Programa de Concurso (PC), a adjudicação é feita segundo o critério da proposta economicamente mais vantajosa, nos termos do disposto no art.º 74.º/1/b) do CCP, sendo a avaliação do preço o único da execução do contrato a celebrar – cfr. PA.
d) De acordo com a cláusula 7.ª do Caderno de Encargos (CE), o preço base do Lote 3 é de €332.729,60, repartido entre os anos de 2020 e 2021, sendo que, de acordo com a cláusula 5.º do mesmo CE, o contrato a celebrar finda a sua vigência a 31 de Dezembro de 2021 ¯ cfr. PA.
e) A Autora ¯ Requerida neste incidente ¯ apresentou proposta relativamente ao Lote 3 com o valor total de €323 238,38¯ cfr. PA.
f) Por despacho do Vogal do Conselho de Administração da SPMS de 18 de Dezembro de 2019, foi aprovado o relatório final do júri, e, em consequência, adjudicada a proposta da CI V….. para o mencionado Lote 3, a qual apresentava o preço de €314.180,78 ¯ cfr. DOC 2 junto com a PI e PA.
g) Dessa decisão foi dado conhecimento aos concorrentes através da plataforma eletrónica a 19 de dezembro de 2019 ¯ cfr. DOCS 1 a 3 da PI e PA.
h) Por despacho n.º ….., do Vogal do Conselho de Administração da SPMS, de 26 de dezembro de 2019, a SPMS abriu o procedimento de ajuste direto n.º ….., com vista à adjudicação de serviços de vigilância e segurança para várias entidades — entre as quais o CHLP – acordo e DOCS juntos sob Requerimento (…..) Documento (…..) de 07/02/2020 15:46:19.
i) Actualmente, ao abrigo desse ajuste directo, foi adjudicada a proposta, nesse contexto, apresentada pela Autora ao Lote 3 e esta encontra-se a prestar serviços de vigilância e segurança no CHPL, sob o preço acordado de €41.589,00 (acrescidos de IVA) para o ano de 2020 ¯ acordo e DOC mencionado na alínea anterior.
j) A Ré ¯ SPMS ¯ foi criada pelo Decreto-Lei n.º 19/2010, de 22 de Março, e tem por atribuições a prestação de serviços partilhados específicos da área da saúde em matéria de compras e logística, financeiros e recursos humanos aos estabelecimentos e serviços do Serviço Nacional de Saúde (SNS), tendo por missão, no âmbito dos serviços partilhados de compras e logística, centralizar, optimizar e racionalizar a aquisição de bens e serviços e disponibilizar serviços de logística, possuindo atribuições em matéria de estratégia de compras, procedimentos pré-contratuais, contratação pública, logística interna, pagamentos e monitorização de desempenho ¯ cfr. art.º 3.º/1 e 2 do mencionado Decreto-Lei.
k) Pelo Decreto-Lei n.º 108/2011, de 17 de Novembro, a SPMS passou a exercer em exclusividade a actividade de disponibilização dos serviços partilhados específicos da área da saúde em matéria de compras e logística, financeiros, recursos humanos e tecnologias de informação e de comunicação, assumindo-se como central de compras para o sector específico da saúde ¯ cfr. art.º 4.º do mencionado Decreto-Lei.
l) A Ré ¯ SPMS ¯ reporta uma poupança transaccional respeitante ao ano de 2018, relativamente aos serviços de “Segurança e Vigilância” na ordem dos €896.706, que imputa à decisão de centralização/transversalização dessas mesmas compras, com obtenção de maior competitividade nos preços obtidos ¯ cfr. tabela 10 a págs. 27/28 do “Relatório de Aferição de Poupanças – 2018”, fls. 48/49 do Requerimento (…..) Requerimento (…..) de 20/01/2020 17:01:19.
m) A Contrainteressada, mercê da adjudicação, subscreveu, em Dezembro de 2019, um seguro caução no valor de €283,21 ─ cfr. DOC junto sob Requerimento (…..) Requerimento (…..) de 29/01/2020 12:50:40.
n) A ação subjacente ao presente incidente deu entrada no dia 23/12/2019, conforme registo SITAF.
Não se considerou provado que
1. A CI V….. tenha, desde 31 de Dezembro de 2019, pelo menos, 3 (três) dos seus vigilantes em “stand by”, a aguardar o início da prestação dos serviços inerentes à proposta adjudicada, suportando todos os custos daí decorrentes, não obstante a não prestação de qualquer atividade profissional.
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II2. APRECIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

A questão primacial a decidir neste processo, tal como supra enunciado, cinge-se a saber se ocorre erro de julgamento da decisão recorrida, ao não decretar o levantamento do efeito suspensivo automático.
O efeito suspensivo automático do ato de adjudicação de contratos públicos foi instituído pela Diretiva 2007/66/CE, de 11/12/2007 (Diretiva Recursos), prevendo os respetivos considerandos 22 e 24 o seguinte:
“(22) [P]ara assegurar a proporcionalidade das sanções aplicadas, os Estados-Membros podem permitir que a instância responsável pela decisão do recurso não ponha em causa o contrato ou lhe reconheça determinados efeitos, ou todos eles, caso as circunstâncias excepcionais do caso em apreço exijam o respeito de certas razões imperiosas de interesse geral. Nesses casos deverão, em vez disso, ser aplicadas sanções alternativas. A instância de recurso independente da entidade adjudicante deverá analisar todos os aspectos relevantes a fim de estabelecer se existem razões imperiosas de interesse geral que exijam a manutenção dos efeitos do contrato. (…)
(24) O interesse económico na manutenção dos efeitos do contrato só pode ser considerado razão imperiosa se, em circunstâncias excecionais, a privação de efeitos acarretar consequências desproporcionadas. No entanto, não deverá constituir razão imperiosa o interesse económico diretamente relacionado com o contrato em causa”.
Concretizando estas disposições do direito da União Europeia, veio o artigo 103.º-A do CPTA, com a epígrafe ‘efeito suspensivo automático’ prever o seguinte (redação original do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro, alterada pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro):
“1 - As ações de contencioso pré-contratual que tenham por objeto a impugnação de atos de adjudicação relativos a procedimentos aos quais é aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 95.º ou na alínea a) do n.º 1 do artigo 104.º do Código dos Contratos Públicos, desde que propostas no prazo de 10 dias úteis contados desde a notificação da adjudicação a todos os concorrentes, fazem suspender automaticamente os efeitos do ato impugnado ou a execução do contrato, se este já tiver sido celebrado.
2 - Durante a pendência da ação, a entidade demandada e os contrainteressados podem requerer ao juiz o levantamento do efeito suspensivo previsto no número anterior.
3 - O autor dispõe de sete dias para responder, seguindo-se, sem mais articulados e no prazo máximo de 10 dias, a decisão do incidente pelo juiz.
4 - O efeito suspensivo é levantado quando, ponderados todos os interesses suscetíveis de serem lesados, o diferimento da execução do ato seja gravemente prejudicial para o interesse público ou gerador de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos.”
Como se vê, decorre deste último normativo, que o levantamento do efeito suspensivo automático depende da verificação dos seguintes requisitos:
- a manutenção deste efeito implica um grave prejuízo para o interesse público ou a produção de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos;
- a superioridade dos danos que resultariam da manutenção do efeito suspensivo para os interesses da entidade demandada ou dos contrainteressados por contraponto aos que venham a resultar do seu levantamento para o autor da ação de contencioso pré-contratual, segundo um juízo de proporcionalidade.
No caso, o Tribunal a quo considerou que não se verificavam os apontados requisitos.
Consta do discurso fundamentador da decisão sob recurso o seguinte:
[A] alegação factual da CI é escassa e pouco detalhada quanto aos concretos prejuízos que a suspensão da execução do contrato para si acarreta. E se a alegação é escassa, a prova do alegado é quase inexistente. Com efeito, têm de estar em causa prejuízos decorrentes da suspensão propriamente dita, no momento em que a mesma tem lugar. Assim sendo, não podem relevar quaisquer custos relacionados com o valor do contrato propriamente dito posto que o mesmo não se encontrava ainda a ser executado e os valores a auferir pela CI dependiam de um serviço que não se encontra a prestar e, como tal, em situação normal, não se encontrará a custear.
Com efeito, o único custo suportado inadvertidamente por força do adiamento da execução do contrato é aquele atinente à caução e redunda no módico valor de €283,21 [cfr. factualidade em m)].
Que o mesmo é dizer que os prejuízos supostamente suportados pela CI – na sua maioria alegados conclusivamente e de modo não concretizado - se reconduzem a constrangimentos de natureza económica que não vão além das consequências normais e inerentes ao retardamento da celebração e execução de um qualquer contrato. Pelo que, em si mesma, a sua alegação não configura um prejuízo atendível face ao critério previsto na parte final do art.º 103.º-A/4 do CPTA.
Relativamente aos interesses públicos envolvidos (…) está em causa uma mera perturbação da prossecução do interesse público subjacente à decisão de contratar que, por si só, não é o bastante para assegurar o preenchimento dos requisitos de que o n.º 4 do art.º 103.º-A do CPTA faz depender o levantamento do efeito suspensivo automático da eficácia do acto de adjudicação. Repare-se: toda e qualquer actividade administrativa - e, logo, também a actividade contratal da Ré - se fundamenta na prossecução de um interesse público. Pelo que, qualquer suspensão de um acto de adjudicação praticado no âmbito de procedimentos de formação de contratos públicos tem o condão de perturbar a prossecução de políticas públicas. Mas, esse prejuízo para a prossecução do interesse público foi ponderado pelo legislador – nacional e europeu – quando decidiu que, por regra, o postergaria e assim definiu o regime de suspensão automática dos efeitos do acto de adjudicação.
Ainda, mesmo que se atente na política pública em causa - como apontam a Ré e a Contrainterressada - e se destaque a circunstância de estar em causa uma política de racionalização dos gastos públicos na saúde, a conclusão não se altera. Pois que o que está sujeito a ponderação, para efeitos de decisão deste incidente, não são valores ou interesses, mas antes os danos ou os prejuízos – qualificados como graves (ou claramente desproporcionados) – que, para estes interesses – in casu públicos − decorrerão do não levantamento do efeito suspensivo automático (…)
[C]omo foi reconhecido por todas as partes, a prestação de vigilância e segurança está já assegurada ¯ e desde Janeiro de 2020 ¯ de acordo com ajuste directo cujos preços-base foram igualmente fixados pela Ré [cfr. factualidade em h) e i)].
Daqui decorre que o interesse público ¯ tal como alegado pela Ré ¯ subjacente à decisão de contratar não tem de ser imediatamente satisfeito, sendo possível, sem graves prejuízos para os interesses envolvidos, sustar a execução dos efeitos do acto de adjudicação impugnado. Precisamente porque existem meios alternativos, que a Ré domina, para satisfazer - ainda que, porventura, de forma mais dispendiosa - a necessidade pública inerente à vigilância e segurança do CPHL.
Vale isto por dizer que não se encontra suficientemente alegado e indiciado pela Requerente (Ré) o requisito previsto na parte final do art.º 103.º-A/4 do CPTA.
Contra o citado discurso, sustenta a recorrente, em síntese, o seguinte:
- ficou provado que são particularmente gravosos os prejuízos para o interesse público que decorrem da suspensão dos efeitos do ato de adjudicação;
- a ação administrativa proposta pela autora carece integralmente de fundamento;
- da manutenção do efeito suspensivo decorrem prejuízos graves para o interesse público na estabilidade financeira e no cumprimento das obrigações pela entidade demandada, manifestamente superiores aos que possam vir a ser sofridos pela autora, colocando em causa a racionalização das compras de bens e serviços de saúde;
- os ajustes diretos à autora apenas trazem vantagens patrimoniais para esta e os seus eventuais e incertos prejuízos patrimoniais não se podem sobrepor aos interesses públicos;
- numa lógica de ponderação, o prejuízo da contrainteressada será sempre igual e equivalente ao prejuízo da autora, traduzindo-se na perda de lucro resultante da não adjudicação, não podendo ser relevados nesta sede os ganhos desta com os ajustes diretos por força da suspensão do procedimento;
- a entidade demandada e a contrainteressada alegaram e provaram os seus prejuízos, sendo em larga medida factos notórios que não carecem de demonstração.
Vejamos se lhe assiste razão.
Como já se assinalou, é aplicável ao caso dos autos o regime legal relativo ao efeito suspensivo automático com a alteração decorrente da Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, da qual ressalta, conforme se dá nota na decisão sob recurso, que o n.º 2 do artigo 103.º-A já não remete para os critérios de ponderação do artigo 120.º, n.º 2, do CPTA.
Todavia, mantém-se a exigência da gravidade do prejuízo para o interesse público decorrente do diferimento da execução do ato e da lesão para os demais interesses envolvidos ser claramente desproporcionada.
Tal como se mantém a exigência de um juízo de ponderação de todos os interesses envolvidos, assente numa prognose sobre os efeitos da manutenção / levantamento do efeito suspensivo automático.
E inexiste qualquer razão para divergir do entendimento já antes consensual, quanto a recair sobre a entidade demandada e a contrainteressada o ónus de alegar e provar a gravidade do prejuízo para o interesse público e a aludida lesão claramente desproporcionada para os demais interesses envolvidos, em conformidade com a regra decorrente do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil (cf., a este propósito, Rodrigo Esteves de Oliveira, “A tutela cautelar ou provisória associada à impugnação da adjudicação de contratos públicos”, in CJA, n.º 115, pág. 24, já citado na decisão sob recurso).
Diz a contrainteressada, ora recorrente, ter ficado provado que são particularmente gravosos os prejuízos para o interesse público que decorrem da suspensão dos efeitos do ato de adjudicação.
É patente que tal não ocorre.
Vista a matéria de facto dada como assente, que a recorrente não impugna, em particular releva o seguinte:
- na sequência da instauração da presente ação, a entidade demandada abriu procedimento de ajuste direto, com vista à adjudicação de serviços de vigilância e segurança, no âmbito do qual foi adjudicada a proposta apresentada pela autora;
- a entidade demandada assume-se como central de compras para o sector específico da saúde, tendo reportado no ano de 2018 uma poupança em serviços de “Segurança e Vigilância” na ordem dos € 896.706, que imputa à decisão de centralização/transversalização dessas compras;
- por força da adjudicação, a contrainteressada subscreveu, em dezembro de 2019, um seguro caução no valor de € 283,21.
Releva também que não se provou ter a contrainteressada, desde 31/12/2019, pelo menos, 3 dos seus vigilantes em “stand by”, a aguardar o início da prestação dos serviços inerentes à proposta adjudicada, suportando todos os custos daí decorrentes, não obstante a não prestação de qualquer atividade profissional.
É uma evidência que a suspensão de um ato de adjudicação praticado no âmbito de procedimentos de formação de contratos públicos perturbará sempre a prossecução do interesse público, mas o que importa é aquilatar em que medida tal perturbação ocorre, a fim de saber se é de afastar o regime regra da suspensão automática dos efeitos da adjudicação, a levantar excecionalmente perante a verificação dos apontados requisitos.
Tratando-se, como se trata, de uma prestação de serviços continuada, que não se quer ver interrompida, a perturbação é clara.
Contudo, como se observou em aresto deste Tribunal datado de 09/05/2019 (proc. n.º 601/18.0BELRA-S1, disponível em www.dgsi.pt, subscrito pelo aqui relator), “a mera circunstância de se estar frente a uma prestação de serviços que se pretende efetuada de forma tendencialmente permanente e contínua, não é, só por si, uma razão para se concluir pelo preenchimento do conceito de grave prejuízo para o interesse público. Se assim se entendesse estar-se-ia, nas mais das vezes, a permitir o levantamento do efeito suspensivo automático do ato de adjudicação para todos os fornecimentos que se pretendessem feitos de forma permanente e contínua.”
Por outro lado, no caso concreto, a autora dispunha e dispõe de alternativas para continuar a usufruir dos serviços de segurança e vigilância, que efetivamente continuaram a ser prestados.
Sendo certo que a necessidade de recorrer ao procedimento de ajuste direto para tal efeito, ainda que por valores superiores aos decorrentes do ato de adjudicação, claramente não consubstancia a excecionalidade do grave prejuízo para o interesse público, a que alude o citado Considerando 24 da Diretiva 2007/66/CE e o n.º 4 do artigo 103.º-A do CPTA.
Quanto ao que se vem invocar relativamente ao interesse público na estabilidade financeira e no cumprimento das obrigações pela entidade demandada, foi dada clara resposta na decisão sob recurso, ao notar que a prossecução de uma política de racionalização dos gastos públicos na saúde não releva para a apreciação dos prejuízos, pois é a sua verificação que se encontra sujeita a ponderação.
Já relativamente ao argumento de, numa lógica de ponderação, o prejuízo da contrainteressada ser sempre igual e equivalente ao prejuízo da autora, traduzindo-se na perda de lucro resultante da não adjudicação, não se disputa.
Mas nada nos diz quanto à verificação de graves prejuízos para a contrainteressada ou quanto à sua ponderação.
Nem se vê que tenham sido relevados os ganhos da autora com os ajustes diretos por força da suspensão do procedimento, apenas se assinalando na decisão recorrida que os serviços de segurança e vigilância continuaram a ser prestados por essa via.
Finalmente, mostra-se esvaziado de conteúdo o argumento dos prejuízos constituírem em larga medida factos notórios que não carecem de demonstração, posto que a recorrente não concretiza minimamente quais sejam tais factos.
Que não se mostrando provados, não servem para o propósito firmado de levantamento do efeito suspensivo automático do ato de adjudicação.
Em suma, será de negar provimento ao recurso.
*

III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente.

Lisboa, 10 de setembro de 2020

(Pedro Nuno Figueiredo)

(Celestina Castanheira)

(Catarina Vasconcelos)