Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1889/19.5BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:05/14/2020
Relator:DORA LUCAS NETO
Descritores:ASILO;
REGULAMENTO DE DUBLIN III, RETOMA A CARGO;
ALEMANHA;
PEDIDO JÁ DECIDIDO;
PEDIDO SUBSEQUENTE;
LEI DO ASILO;
PRINCÍPIO DE NON REFOULEMENT.
Sumário:
Existindo já uma decisão tomada por um Estado Membro e tendo sido esta de indeferimento, a retoma a cargo pelo Estado Membro responsável – in casu, Alemanha – cfr. art. 18.º, n.º 1, alínea d), do Regulamento de Dublin III -, é inquestionável, atendendo a que a primeira regra nele estabelecida é a de que os pedidos serão analisados por um único Estado-Membro - cfr. n.º 1 do art. 3.º do Regulamento -, não havendo aqui lugar à apreciação da cláusula de salvaguarda prevista no 2§ do mesmo art. 3.º, por inaplicável, sem prejuízo do dever de apreciar a eventualidade de se estar perante um pedido subsequente, nos termos e nas condições previstas no art. 33.º da Lei do Asilo, e tendo sempre presente o cumprimento, direta e indiretamente, do princípio de non refoulement, ao abrigo do art. 33.º da Convenção de Genebra e art. 47.º, da Lei do Asilo.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

M..., interpôs recurso da sentença do TAC de Lisboa, de 26.11.2019, que julgou a ação administrativa em matéria de asilo por si intentada totalmente improcedente, absolvendo o Ministério da Administração Interna do pedido de anulação da decisão proferida pelo Diretor Nacional do SEF que considerou inadmissível o seu pedido de proteção internacional e ordenou a sua transferência para a Alemanha, bem como do pedido de substituição dessa decisão por outra que considerasse o Estado Português competente para a análise do mérito do mesmo.

As alegações de recurso que apresentou, depois de ter sido proferido despacho ao abrigo do art. 146.º, n.º 4., do CPTA, e em face do que dispõe o art. 7.º do CPTA, que impõe uma interpretação das normas processuais “no sentido de promover a emissão de pronúncias sobre o mérito das pretensões formuladas”, embora não o tenham sido da forma mais adequada, a verdade é que, não sem esforço, o presente tribunal de recurso consegue retirar com uma clareza mínima, alguns fundamentos de impugnação da sentença. Designadamente, no caso em apreço, as conclusões apresentadas permitem identificar as razões da discordância da sentença recorrida e que, na perspetiva do Recorrente, deveriam ter conduzido à conclusão que se verificavam todos os pressupostos de procedência da ação.

Razões pelas quais do mesmo se vai conhecer (1).

Vejamos então o que conclui o Recorrente:

«(…)

8 - À ora recorrida cabe condenação para reconstituir o procedimento de determinação do Estado-Membro responsável pela análise do pedido de protecção internacional [art.º 36.º e ss. da Lei do Asilo] apresentado pelo, ora, recorrente, procedendo à sua instrução cabal que terá de passar por um apuramento junto ao recorrente, das suas circunstâncias pessoais e das situações vivenciadas em Alemanha e porventura pela obtenção de mais dados, sistematizados e actualizados, junto de entidades nacionais e internacionais independentes e acreditadas, sobre o procedimento de asilo e as condições acolhimento dos refugiados e requerentes de protecção internacional em Alemanha para efeitos de determinar se se encontram preenchidos os pressupostos de aplicação da cláusula de salvaguarda constante do art.º 3.º/2 do Regulamento Dublin III relativamente à prefigurada transferência para Alemanha; mais deve aquela apreciar as informações coligidas e decidir de acordo com os critérios expostos, que decorrem da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia em diálogo com o TEDH , uma vez que está em causa aplicação de direito da União, sendo imposta a observância do sentido e âmbito dos direitos fundamentais em causa garantidos pela CEDH.

9 Por todo o exposto, o ora recorrente não se conforma, com a d. sentença proferida pelo Tribunal Administrativo de Circulo de Lisboa, considerando que a mesma decorre de incorrecto enquadramento e interpretação dos factos e do direito, além da carência instrutória, razão pela qual apresenta o presente recurso, com expectativa de sua reforma, para a procedência da Acção Administrativa Especial, com efeitos para:

9.1 - a impugnação do Acto administrativo expresso na Decisão proferida em 09/08/2019 pela Sra. Diretora do SEF-Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, de inadmissibilidade do pedido de protecção internacional pelo Estado Português e transferência do requerente, ora autor, à Alemanha;

9.2 - acolhimento pelo SEF-Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, do pedido de protecção internacional requerido ao Estado Português, provendo o requerente dos benefícios a que tem direito, pelos citados diploma, ou a reconstituição, do procedimento de determinação do Estado Membro responsável, devidamente instruído.» (sublinhados nossos).


O Recorrido, notificado para o efeito, não contra-alegou.

Neste Tribunal Central Administrativo Sul, o DMMP, notificado nos termos e para os efeitos do art. 146.º do CPTA, apresentou pronúncia, em suma, no sentido de ser negado provimento ao recurso (cfr. fls. 178, ref. SITAF).

Com dispensa dos vistos legais, atento o carácter urgente do processo, mas com disponibilização prévia do texto do acórdão, vem o mesmo submetido à conferência desta Secção do Contencioso Administrativo para decisão.

I. 1. Questões a apreciar e decidir

A sentença recorrida, entendeu que «(…) resulta, com meridiana clareza, que a decisão proferida pelo SEF, que considerou o pedido de protecção internacional formulado pelo A. inadmissível nos termos da al. a) do n° 1 do art. 19°-A e do n° 2 do art. 37.° ambos da Lei n° 27/2008, de 30-6, é legal.

O A. alega, contudo, as falhas sistémicas. Quanto a isto, o Tribunal não desconhece a comummente designada “cláusula de salvaguarda” prevista no §2° do n° 2 do art. 3.° do Reg. Dublin. Mas também não desconhece que a jurisprudência dos tribunais superiores tem sido particularmente exigente na aplicação da mesma. (…)

No país em apreço, a Alemanha, não é minimamente conhecido que o sistema de protecção internacional esteja numa situação problemática, que coloque em causa a equidade dos procedimentos de asilo ou que as condições de acolhimento estejam em falência.

(…)

A Alemanha é, de resto, publicamente reconhecida por se disponibilizar, como sucedeu recentemente no passado mês de Setembro, para acolher refugiados da responsabilidade de outros países (política conhecida como de “portas abertas”), por reconhecer publicamente a integração positiva dos refugiados e até a sua importância para a economia alemã (cf “Itália e Alemanha discutem redistribuição de migrantes”, publicado pela Euronews, em 22-9-2019, disponível, em linha, na presente data, em https://pt.euronews.com/2019/09/19/italia-e-alemanha-discutem-redistribuicao-de-migrantes;“Amnesty Internacional Report 2017/2018 - Germany”, publicado pela Amnesty Internacional, em 22-2-2018, e disponível, na presente data, em linha emhttps://www.refworld.org/country,COI,AMNESTY,,DEU,,5a9938faa,0.html;

“Há cada vez mais refugiados a ajudar a economia alemã”, publicada no jornal Público, em 21 -8-2018, e disponível na presente data, em linha, em https://www.publico.pt/2018/38/21/mundo/noticia/ha-cada-vez-mais-reiugiados-a-encontiar-emprego-nia-alemanha-1841631).

(…)

Assim, face aos contornos dos presentes autos e à informação que é veiculada por fontes fidedignas, na presente situação não estão minimamente demostrados, ou sequer indiciados, motivos para aplicação do § 2 do n° 2 do art. 3.° do Reg. Dublin à situação do Autor», tendo, consequentemente, julgado improcedente a ação.

O objeto do recurso é delimitado, em princípio, pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso ainda não decididas com trânsito em julgado – cfr. art.s 635.º, 639.º e 608.º, n.º 2, 2ª parte, todos do CPC (2). E dizemos em princípio, porque o art. 636.º do CPC permite a ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, situação que não se coloca nos autos.

No caso em apreço, cumpre, assim, aferir do erro decisório imputado à sentença recorrida, que in casu, pronunciando-se no âmbito do procedimento especial que vem regulado nos art.s 36.º e ss. da Lei n.º 27/2008, de 30.06 (doravante Lei do Asilo), e art.s 3..º 4.º, 5.º, 18.º e 23.º do Regulamento (EU) n.º 604/2013, de 26.07 (doravante Regulamento DublinIII), relativos à determinação do Estado responsável pela análise dos pedidos de proteção internacional, culminou com uma decisão de inadmissibilidade do pedido, ao abrigo dos art.s 19.º-A, n.º 1, e 37.º, n.º 2, da Lei do Asilo, na seguinte vertente:

a) omissão, na decisão impugnada, de adequada instrução do procedimento que permitisse a ponderação das condições de acolhimento na Alemanha e, bem assim, quanto às condições que, de momento, o sistema de asilo alemão apresenta.

II. Fundamentação

II.1. De facto

Na decisão recorrida foi considerada provada a seguinte factualidade, que não vem impugnada em recurso e que aqui se transcreve ipsis verbis:

«(…)

1. A 19 de Novembro de 2017, o A. formulou pedido de protecção internacional e as suas impressões digitais foram registadas no sistema EURODAC na Alemanha, em Nuremberga, sob a referência D...;

Cf fingerprint form do EURODAC de fls. 4 , questionário de fls. 6 e ss. e auto de entrevista/transcrição de fls. 22 e ss. todas do p.a.

2. O A. apresentou pedido de protecção internacional junto dos serviços do SEF, em Lisboa, no dia 8 de Julho de 2019, declarando junto daqueles ser M..., ser nacional da Guiné e ter nascido a …, em Kindia;

Cf. o questionário de fls. 6 e ss. do p.a. e a declaração comprovativa de apresentação do p.p.i. de fls. 14 também do p.a.

3. Em 19 de Julho de 2019, o A. foi entrevistado, no procedimento originado pelo seu pedido, nos serviços do SEF, tendo previamente sido informado pelo funcionário daqueles serviços de que o Regulamento Dublin estabelece os critérios e mecanismo de determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de protecção internacional apresentado num dos Estados-Membros por um nacional de país terceiro ou apátrida, de que apenas um Estado-Membro é responsável, e de que o pedido do A. seria sujeito a um procedimento especial de admissibilidade e de que este procedimento prevê a possibilidade de o pedido de protecção internacional ser considerado inadmissível quando se se verifique que Portugal não é o Estado-Membro responsável pela análise do pedido de protecção internacional;

Cf. auto de entrevista/transcrição de fs. 22 e ss. do p.a

4. Na entrevista aludida no ponto anterior, o A., perguntado sobre a data em que saiu do seu país de origem ou de que é nacional, respondeu que havia saído a 24 de Janeiro de 2017, e instado a descrever o percurso efectuado desde o país de origem até chegar a Portugal, respondeu, tendo sido lavrado no auto de entrevista a seguinte resposta:

«Saí da Guiné e fui de avião para Marrocos e utilizei o passaporte de outra pessoa. O passaporte ficou com a pessoa com quem viajei e fiquei 6 meses em Marrocos porque estava ferido e com pontos pelo que tive de ficar internado no hospital. Quando saí do hospital um senhor pagou o meu internamento e eu fique a dever-lhe 500 euros. Para poder pagar-lhe ele levou-me para a Argélia para umas obras mas como eu não tinha força, não conseguia trabalhar, porque ainda estava a recuperar ele acabou por me levar para a Líbia para me vender a um árabe. Esse árabe esteve comigo 3 dias para que alguém na Guiné que pudesse mandar dinheiro para lhe pagar. Como nem telemóvel tinha ele acabou por me deixar em Sábrata entregue aos bandidos. Esses bandidos eram miúdos que me bateram mas acabei por ser resgatado pelo pai de um deles que me perguntou se eu era muçulmano. Eu disse que sim e ele albergou-me na sua casa. Fiquei na Líbia cerca de 2 meses, não sei precisar porque passei por muito. Fui de barco para a Itália e cheguei lá a 22/08/2017. Fui para a Sicília e depois fiquei alojado em Venticano num campo de refugiados.

Fiquei lá cerca de 2 meses. Trabalhei no campo nas vindimas para um senhor. Esse senhor ficou com os documentos que as autoridades italianas me deram para poder abrir uma conta bancária.

Esse mesmo senhor disse que tinha trabalho para mim na Alemanha e levou-me para lá de carro. Pagou-me a refeição num restaurante e deixou-me lá dizendo que já voltava, mas desapareceu e nunca mais o vi. O restaurante fechou, fiquei à espera na rua até ao dia seguinte e acabei por dormir a porta do restaurante. O dono do restaurante no dia seguinte chamou a polícia.

A polícia alemã tirou-me as impressões digitais, compraram-me um bilhete e deram-me a morada do campo de refugiados em Estugart onde fiquei alojado.

Saí da Alemanha de autocarro até Paris. Como eu não tinha dinheiro suficiente para vir para Portugal, fiquei em Paris cerca de seis dias. Encontrei uma pessoa a quem expliquei que queria vir para Portugal e ela ajudou-me a completar o dinheiro que me faltava para o bilhete. Vim então de autocarro para Lisboa. E levei cerca de 24 horas.»;

Idem.

5. Perguntado, nessa entrevista, se havia pedido protecção num país da União Europeia, o A. disse que sim, que o havia feito na Alemanha e que o pedido fora recusado;

Idem.

6. O A. foi ainda perguntado, na aludida entrevista, sobre os motivos pelos quais havia solicitado protecção internacional, ao que respondeu, tendo sido lavrada no auto de entrevista a seguinte resposta:

«O motivo é político porque eu apoiava o partido UFDG que é opositor ao presidente da Guiné. Eu era um apoiante ativo do partido e tinha um pequeno bar que os jovens frequentava e onde eu angariava apoiantes para o meu partido. Eu participava nas manifestações e nos eventos que o meu partido organizava. Um dia os apoiantes do partido do presidente vieram e estragaram e destruíram o bar. O meu cunhado disse-me para deixar ficar e convidou-me para ir trabalhar com ele na sua loja. Continuei o meu papel ativo no partido.

No dia 16-08-2016 houve um comício num estádio. Quando terminou, a polícia estava à nossa espera e dispersou-nos com granadas de lacrimogénio e atingiu um colega. Eu vi-o caído e tentei ajudar para o levantar. Então a polícia prendeu-me e levou-me para a esquadra. Como tínhamos os panfletos e sabiam que eu era membro do partido, trouxeram uma caixa com armas e um papel para eu assumir que aquela caixa me tinha sido entregue pelo candidato do meu partido. Eu recusei e por isso bateram-me com violência. Deram- me pancadas na cabeça, partiram-me os dentes, deram-me choques elétricos e bateram-me no joelho tanto que abriu e tive de levar pontos. A pancada foi tanta que desmaiei. Acabaram por levar-me a mim e ao meu colega para um lugar ermo e abandonaram-nos lá.

Os membros do meu partido andavam à nossa procura e encontraram-nos no dia seguinte. Levaram-me para uma clinica para ser tratado e levar pontos. Quando recuperei um pouco, o meu cunhado arranjou-me um passaporte de uma pessoa parecida comigo para eu poder viajar para deixar o país e fugir. (...)

No dia que destruíram o bar, também bateram na minha esposa e nas minhas irmãs mais velhas que lá se encontravam. Os polícias também levaram a minha esposa até ao carro deles para que ela confirmasse que a caixa de armas vinha da nossa casa e também bateram nela e nas minhas irmãs.»;

Idem.

7. Finda a entrevista, foi, de seguida, preenchido um formulário intitulado “Relatório” pelo SEF onde, depois da menção «De acordo com as declarações prestadas pelo requerente (...) e de acordo com as informações recolhidas, conclui-se que o mesmo», e, logo depois, se preencheu no mesmo a quadrícula associada ao seguinte «Apresentou pedido de proteção noutro país da União Europeia Itália REGULAMENTO (UE) N. ° 604/2013 PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 26 de junho de 2013 que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados-Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida - Artigo 18. ° n.° 1)»;

Cf relatório a fls. 30-31 do p.a, quanto à data, decorre do teor e da numeração própria dos documentos: auto de entrevista/transcrição e do relatório.

8. O “Relatório” que antecede foi, no mesmo dia 19 de Julho de 2019, assinado e dado a conhecer ao A., tendo o mesmo, quando, confrontado com o “Relatório”, instado a dizer se tinha algo mais a declarar, respondido, tendo sido registada, no mesmo relatório, a seguinte resposta:

«O que tenho a dizer é que não quero ir para Itália porque já na Alemanha me falaram do regulamento de Dublin, trataram do meu caso, recusaram-no e esgotei as minhas possibilidades porque mandaram-me abandonar o país.»;

Idem.

9. No dia 6 de Agosto de 2019, os serviços do SEF autuaram o pedido do A. formulado em Portugal como “Processo de Determinação de Responsabilidade do Pedido de Protecção Internacional (Regulamento de Dublin) Retoma a cargo”, atribuindo-lhe um número próprio;

Cf autuação de fls. 41 e ss..

10. No mesmo dia 6 de Agosto de 2019, foi remetido pelos serviços do SEF para as autoridades alemãs, por correio electrónico, um designado pedido de retoma, respeitante ao pedido de protecção internacional do A. formulado em Portugal, onde se invoca a ocorrência registada sob o n° D... e a al. d) do n° 1 do art. 18.° do Regulamento (UE) n ° 604/2013;

Cfr e-mail de fs. 42 e formulário de fls. 43 e ss do p.a

11. No ponto 12. do pedido de retoma a cargo aludido no ponto anterior, sobre se o então Requerente havia pedido protecção internacional ou lhe fora reconhecido o estatuto de refugiado, fez-se consignar que o A. havia formulado um pedido de protecção em 19-11-2017, em Nuremberga, que o pedido havia sido recusado, e que o A. não havia deixado o território dos Estados-Membros;

Idem.

12. No dia 8 de Agosto de 2019, deu entrada nos serviços do SEF, ofício das autoridades alemãs, onde declaram aceitar o pedido de transferência do A. feito pelo SEF, em 6 de Agosto de 2019, aludido nos pontos antecedentes, fazendo menção que o pedido era aceite de acordo com o art. 18.°, n° 1, al. d), do Regulamento (UE) n° 604/2013;

Cf. ofício de fls. 47-48 do p.a Cf, quanto à data, também a informação de fls. 50 e ss. do p.a

13. A 9 de Agosto de 2019, foi lavrada por funcionária do SEF, a informação n° 1453/GAR/2019, sobre o pedido de protecção internacional do A., onde se lê, entre o mais, o seguinte:

«(…)

6. Aos 08/08/2019, as autoridades alemãs aceitaram o pedido de retoma a cargo do (a) cidadão (ã), ao abrigo do artigo 18o, N° 1 d), do Regulamento (UE) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de junho (Regulamento Dublin).

(...)

8. A Lei n. ° 27/08, de 30 de junho, (...) que estabelece as condições e procedimentos para a análise dos pedidos de proteção internacional e concessão do estatuto de refugiado ou proteção subsidiária, prevê na alínea a), do n.° 1 do artigo 19°-A que o pedido é considerado inadmissível quando se verifique que está sujeito ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise de um pedido de proteção, previsto no Capítulo IV.

Ainda nos termos do n° 2 do artigo 19-A, nos casos previstos no número anterior deste artigo, prescinde-se da análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de proteção internacional.

9. O procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional encontra-se regulado no Capítulo IV, artigo 36° e seguintes da Lei n. ° 27/08, de 30 de junho, (...), aplicando-se os apenas os procedimentos aqui previstos.

10. Tendo outro Estado tomado a decisão de aceitação da retoma a cargo do requerente de proteção (cf Ponto 6), determinando a sua competência para apreciação e decisão, impõe-se ao Estado português a tomada de decisão de transferência do requerente.

Pelo exposto, e tendo em consideração que os pedidos são analisados por um único Estado, que será aquele que os critérios enunciados no Capítulo III do Regulamento (CE) N° 604/2013 do Conselho de 26 de junho designarem como responsável, propõe-se que a Alemanha seja considerada o Estado responsável pela retoma a cargo, ao abrigo do artigo 18o, N° 1 d) do Regulamento (CE) N.°604/2013 do Conselho de 26de junho.»

Cf informação de fls. 50 e ss. do p.a

14. Sobre a informação mencionada e parcialmente transcrita no ponto anterior, foi redigida pela mesma funcionária do SEF, no mesmo dia 9 de Agosto de 2019, proposta, com o seguinte teor:

«Com base na presente informação, submete-se à consideração superior que, de acordo com o disposto na alínea a) do n.° 1, do artigo 190-A, da Lei n° 27/08, de 30 de junho (...), o pedido de proteção seja considerado inadmissível e se proceda à transferência para a Alemanha do (a) cidadão (ã) acima identificado (a), nos termos do artigo 18°, N° 1 d) do Regulamento (CE) N.° 604/2013 do Conselho, de 26 de junho.»;

Cf proposta de fs. 39 do p.a.

15. Ainda no mesmo dia 9 de Agosto de 2019, foi exarada, no processo de protecção internacional do A., decisão pelo Director Nacional Adjunto do SEF, onde consta, entre o mais, o seguinte:

«De acordo com o disposto na alínea a) do n.° 1, do artigo 19°-A e no n° 2 do artigo 37°, ambos da Lei n. ° 27/08, de 30 de junho (...), com base na informação n.° 1116/GAR/2019 do Gabinete de Asilo e Refugiados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, considero o pedido de protecção internacional apresentado pelo cidadão que se identificou como M...H, nacional da Guiné, inadmissível.

Proceda-se à notificação do cidadão nos termos do artigo 37°, n. ° 3, da Lei n. °27/08 de 30 de junho (...), e à sua transferência, nos termos do artigo 38° do mesmo diploma, para a Alemanha, Estado Membro responsável pela análise do pedido de protecção internacional nos termos do Regulamento (UE) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de junho.»;

Cf. decisão de fs. 55 do p.a.

16. A decisão que se refere e parcialmente se transcreve no ponto anterior foi entregue, juntamente com cópia da informação do SEF n° 1453/GAR/2019, ao A. em 14 de Agosto de 2019.

Cf declaração assinada pelo A. de fls. 56 do p.a.

*

Nada mais foi dado como provado ou não provado com interesse para a decisão da causa.»

*

II.2. De Direito

Do erro de julgamento que é imputado à sentença recorrida ao ter considerado que a decisão impugnada não seria anulável por deficit de instrução quanto às condições existentes na Alemanha no que se prende ao acolhimento dos requerentes de proteção humanitária, tendo presente que o primeiro pedido de asilo formulado pelo Recorrente, que está subjacente à decisão de retoma a cargo para Alemanha, já foi decido, tendo sido indeferido (cfr. factos n.º 11 e 12 da matéria de facto).

Vejamos.

Resulta dos factos n.º 11 e 12 da matéria de facto considerada provada na sentença recorrida o seguinte:

«(…) 11. No ponto 12. do pedido de retoma a cargo aludido no ponto anterior, sobre se o então Requerente havia pedido protecção internacional ou lhe fora reconhecido o estatuto de refugiado, fez-se consignar que o A. havia formulado um pedido de protecção em 19-11-2017, em Nuremberga, que o pedido havia sido recusado, e que o A. não havia deixado o território dos Estados-Membros - Cf e-mail de fs. 42 e formulário de fls. 43 e ss do p.a;

12. No dia 8 de Agosto de 2019, deu entrada nos serviços do SEF, ofício das autoridades alemãs, onde declaram aceitar o pedido de transferência do A. feito pelo SEF, em 6 de Agosto de 2019, aludido nos pontos antecedentes, fazendo menção que o pedido era aceite de acordo com o art. 18.°, n° 1, al. d), do Regulamento (UE) n° 604/2013 - Cf. ofício de fls. 47-48 do p.a.; cf. quanto à data, também a informação de fls. 50 e ss. do p.a.(…)».


Prevê o citado art. 18.º, n.º 1, alínea d), do Regulamento (UE) n° 604/2013 (doravante Regulamento de Dublin III), sob a epígrafe “Obrigações do Estado-Membro responsável”, que o Estado-Membro responsável por força do presente regulamento é obrigado a (n.º 1) retomar a cargo, nas condições previstas nos artigos 23.°, 24.°, 25.° e 29.°, o nacional de um país terceiro ou o apátrida cujo pedido tenha sido indeferido e que tenha apresentado um pedido noutro Estado-Membro (alínea d).

Assim como, logo no n.° 1 do art. 3.° do Regulamento de DublinIII se dispõe que «(...) O pedido de asilo é analisado por um único Estado-membro (…)


Assim, de uma interpretação conjugada das citadas disposições do Regulamento de Dublin III, e face aos factos provados n.º 11 e 12, supra transcritos, imperioso se torna concluir que a Alemanha é/foi o Estado Responsável pela apreciação do pedido de asilo do Requerente, ora Recorrente, desde logo porque já o decidiu.

Perante o que, tendo o Recorrida dado início ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de asilo, que culminou com o apuramento de que essa responsabilidade pertencia à Alemanha (cfr. art. 18.°, n.° 1, alínea d), do Regulamento de Dublin III e art. 37.° n° 1 da Lei do Asilo), e perante a circunstância de o pedido já ter sido decidido pela autoridades alemãs, razão pela qual este Estado Membro aceitou expressamente a retoma cargo do Recorrente (cfr. facto n.º 12 da matéria de facto), podia, numa primeira linha de análise, ser proferido um ato que decidisse pela inadmissibilidade de apreciação do pedido de proteção internacional e que se determinasse a transferência do Recorrente, então Requerente, para a Alemanha, desde logo, porque com a primeira decisão do pedido de asilo se esgota a aplicação do Regulamento de DublinIII, enquanto este visa primacialmente estabelecer «os critérios e mecanismos para a determinação do Estado-Membro responsável pela análise dos pedidos de proteção internacional apresentados num dos Estados-Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida.» (art. 1.º).

De facto, uma das regras basilares do Sistema Europeu Comum de Asilo (SECA), na parte que se prende com a regulamentação da determinação do Estado Responsável pela análise dos pedidos de proteção internacional, é a de que seja apenas um Estado Membro a decidir – cfr. art. 3.º, n.º 1, e art. 18.º, do Regulamento de Dublin III.

Porém, esta conclusão não significa que fora do âmbito de aplicação do Regulamento de Dublin III, o Estado Português possa eximir-se de apreciar a situação em apreço à luz do disposto no art. 33.º da Lei do Asilo, que admite pedidos de proteção internacional subsequentes.

Vejamos em que termos.

O art. 33.º da Lei do Asilo, sob a epígrafe Apresentação de um pedido subsequente, no seu n.º 1, dispõe que «[i] O requerente ao qual tenha sido negado o direito de proteção internacional [ii] pode, sem prejuízo do decurso dos prazos previstos para a respetiva impugnação jurisdicional, apresentar um pedido subsequente, [iii] sempre que disponha de novos elementos de prova que lhe permitam beneficiar daquele direito ou [iv] quando entenda que cessaram os motivos que fundamentaram a decisão de inadmissibilidade ou de recusa do pedido de proteção internacional

Porém, não só o Requerente, ora Recorrente, não formula nenhum pedido de proteção internacional subsequente, nos termos e para os efeitos do citado art. 33.º, pois não invocou novos elementos de prova que lhe permitam beneficiar daquele direito [de asilo ou de proteção subsidiária] – tendo, aparentemente, renovado o que havia sempre invocado, ou seja, o facto de pertencer ao partido UFDG, opositor ao partido que está no Governo, e que, em razão disso, sofreu perseguições, bastando-se depois com a formulação de deveres e direitos genéricos sobre o direito de asilo e de não transferência para a Alemanha atentas as condições que alegou verificarem-se naquele País no que se prende com o acolhimento dos requerentes de proteção humanitária -; nem alegou que tenham cessado os motivos que fundamentaram a decisão de inadmissibilidade – nem podia, face aos factos n.º 11 e 12 da matéria de facto de onde resulta que seu pedido já foi decidido pelas autoridades alemãs - ou de recusa do pedido de proteção internacional. Razões pelas quais não resulta nada dos autos que permita dar por verificados os seus pressupostos.

Acresce que, retornando à Alemanha, e executada que seja a decisão de posterior regresso ao seu País de origem, a Guiné, e tendo presente que o motivo político que o Requerente, ora Recorrente invocou em sede de pedido de asilo foi o de pertencer ao UFDG, partido da oposição nacional, resulta de relatórios internacionais recentes (3), e apesar da existência ainda de alguma violência localizada, que desde a abertura do diálogo político em agosto de 2016, os vários partidos da oposição, dos quais o UFDG é o mais importante, exerceram suas atividades livremente, sendo também referido que os ativistas da oposição não são especificamente sinalizados ou perseguidos pelas autoridades, o que, face a todo o exposto, assegura maior respaldo à decisão de considerar inadmissível o seu pedido de asilo formulado perante as autoridades portuguesas, pois com a mesma não se está, ainda que indiretamente, a violar o princípio de non refoulement dada a inquestionável relevância do mesmo para o Sistema Europeu Comum de Asilo (SECA), conforme resulta da jurisprudência do TEDH, mais especificamente, nos acórdão de 21.01.2011, M.S.S. vs Bélgica e Grécia, Queixa n.º 30696/09, e de 04.11.2014, Tarakhel vs Suíça, Queixa n.º 29217/12..

Patrícia Cabral (4), referindo-se aos citados arestos do TEDH, é particularmente clara na asserção de que «(…) No primeiro, o TEDH construiu o princípio segundo o qual perante a existência de falhas sistémicas que apresentem um risco de violação do artigo 3.º no Estado que seria responsável pela análise de um pedido de asilo, o Estado-Membro onde o requerente se encontra fica impedido de o transferir para esse país. (…) Por fim, no julgamento Tarakhel o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem veio reforçar que esta proteção não se limita a situações de falhas sistémicas, sendo refutada a presunção de cumprimento do artigo 3.º da CEDH sempre que existam razões sérias para crer que a pessoa enfrentaria um risco de tratamento contrário a esta mesma norma.

Os Estados-Membros encontram-se efetivamente adstritos ao nível de proteção mais elevado concedido por decisões como Tarakhel e M.S.S., incorrendo em responsabilidade internacional sempre que tomarem uma posição restritiva que reduza os direitos fundamentais do requerente.

Por parte dos tribunais nacionais, estes deverão sempre optar pela mais ampla proteção conferida pelos instrumentos supranacionais, como principais responsáveis pela aplicação do direito da União e sob pena de violar as suas obrigações internacionais, sujeitando-se aos mecanismos de responsabilidade implementados.» (sublinhados nossos).

Face a todo o exposto, no caso em apreço, consideramos, pois, que existindo já uma decisão tomada por um Estado Membro e tendo sido esta de indeferimento, a retoma a cargo pelo Estado Membro responsável – in casu, Alemanha – cfr. art. 18.º, n.º 1, alínea d), do Regulamento de Dublin III -, é inquestionável, atendendo a que a primeira regra nele estabelecida é a de que os pedidos serão analisados por um único Estado-Membro - cfr. n.º 1 do art. 3.º do Regulamento -, não havendo aqui lugar à apreciação da cláusula de salvaguarda prevista no 2§ do mesmo art. 3.º, por inaplicável, sem prejuízo de, como vimos, se dever apreciar a eventualidade de se estar perante um pedido subsequente, nos termos e nas condições previstas no art. 33.º da Lei do Asilo, e tendo sempre presente o cumprimento, direta e indiretamente, do princípio de non refoulement, ao abrigo do art. 33.º da Convenção de Genebra e art. 47.º, da lei do Asilo.

Porém, nem a transferência para a Alemanha se afigura configurar uma violação a tal princípio, assim como o não configura, conforme melhor se expôs supra, o seu regresso à Guiné.

Nestes termos, improcede o invocado erro de julgamento imputado à sentença recorrida, embora com fundamentos absolutamente distintos.

III. Decisão

Nestes termos e face a todo o exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em:

i) negar provimento ao recurso;

ii) manter a sentença recorrida, embora com distinta fundamentação.

Sem Custas por isenção objetiva (cfr. art. 84.º da Lei nº 27/2008, de 30.06.).

Notifique nos termos habituais, considerando-se que no presente processo, porque urgente, os respetivos prazos não estão suspensos para a prática de atos processuais que possam realizar-se via SITAF (cfr. art. 7.º, n.º 7, alínea a), da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, na redação dada pela Lei n.º 4-A/2020, de 06.04.).

Lisboa, 14.05.2020.



Dora Lucas Neto

Pedro Nuno Figueiredo


Ana Cristina Lameira


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(1) Neste sentido v., pelo seu carácter recente, mas tendo presente a jurisprudência constante do STA no mesmo sentido, Ac. STA de 05.09.2019, P. 01724/18.1BELSB.
(2) Todas as referências a artigos do CPC, salvo indicação expressa, resultam da sua aplicação ex vi art. 1.º e art. 140.º, n.º 3, ambos do CPTA, este último para normas aplicáveis em sede de recurso jurisdicional.
(3) Cfr. Rapport de mission en Guinée, de 7 a 18 novembro de 2017, Mission organisée par l’Office français de protection des réfugiés et apatrides (OFPRA) avec la participation de la Cour nationale du droit d’asile (CNDA), publicado em 2018 – consultado a 08.05.2020 e disponível aqui: http://www.cnda.fr/Ressources-juridiques-et-geopolitiques/Les-rapports-de-mission-pays
(4) In Construção de uma Responsabilidade Europeia Além-Fronteiras, Dissertação de Mestrado, julho de 2015, Faculdade de Direito da Universidade Nova, disponível no Repositório da Universidade Nova, em www.run.unl.pt., pgs. 36 e 37.