Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1982/18.1BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:08/22/2019
Relator:SOFIA DAVID
Descritores:DIREITO DE ASILO;
REGULAMENTO N.º 604/2013, DE 26-06;
ITÁLIA; TRANSFERÊNCIA PARA O ESTADO-MEMBRO INICIALMENTE DESIGNADO COMO RESPONSÁVEL;
FALHAS SISTÉMICAS NO PROCEDIMENTO DE ASILO E NAS CONDIÇÕES DE ACOLHIMENTO DOS REQUERENTES DE PROTECÇÃO INTERNACIONAL; PESSOA VULNERÁVEL;
DOENTE; HEPATITE B.
Sumário:I - Se a responsabilidade pela análise do pedido de protecção internacional pertencer a outro Estado-Membro, incumbe ao SEF dar início ao procedimento especial de determinação do Estado responsável, conforme determinam os art.ºs 37.º a 39.º da Lei n.º 27/2008, de 30-06 e 22.º, n.ºs 1 e 7 do Regulamento (Reg.) n.º 604/2013, de 26-06;
II – O art.º 3.º, n.º 2, do Reg. n.º 604/2013, de 26-06, determina uma verdadeira obrigação legal dos Estados-Membros apreciarem acerca da eventual ocorrência de falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes de protecção internacional, antes de procederem à transferência daqueles para outro Estado-Membro em obediência aos critérios indicados no Capitulo III do Regulamento;
III - Por conseguinte, uma vez apresentado um pedido de protecção, o respectivo Estado-Membro terá primeiramente que aferir, nos termos determinados no art.º 3.º, n.º 1 e no Capítulo III do Reg. n.º 604/2013, de 26-06, qual é o Estado responsável pela apreciação de tal pedido. Sendo identificado como responsável pela apreciação do pedido um outro Estado-Membro, há, então, que avaliar da eventual impossibilidade em proceder à transferência, nos termos do art.º 3.º, n.º 2, 2.º parágrafo, do Reg. n.º 604/2013, de 26-06;
IV – Atendendo às actuais condições de acolhimento em Itália e de acesso a cuidados de saúde pelos migrantes, requerentes de asilo, a transferência do A. e Recorrido para esse Estado-Membro, irá implicar, muito provavelmente, a suspensão ou o termo do tratamento contra a hepatite B, que já iniciou em Portugal, com o consequente, e muito provável, agravamento da sua doença, que poderá evoluir para cirrose hepática ou para cancro no fígado;
V- Nessa medida, a transferência do A. e Recorrido para Itália traz um risco real e comprovado de o A. e Recorrido sofrer um tratamento cruel, degradante ou desumano, na acepção do art.º 4.º da CDFUE, caindo a sua situação, nessa mesma medida, na previsão dos art.ºs 3.º, n.º 2 e 17.º, n.º 1, do Reg. n.º 604/2013, de 26-06;
VI – Verificando-se que, no caso, é impossível transferir o A. e Recorrido para Itália, não podendo ocorrer a retoma a cargo para Itália, o SEF deve prosseguir com a análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III do Reg. n.º 604/2013, de 25-06, a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável, tal como se determina nos arts.º 3.º, n.º 2, 2.º parágrafo, parte final e 7.º do Reg. n.º 604/2013, de 25-06;
VII - Não existindo outro Estado Membro responsável, deve o SEF fazer tramitar e, caso outras razões legais a isso não obstem, deve apreciar o pedido do A. e Recorrido, proferindo decisão
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul
I - RELATÓRIO
O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) interpôs recurso da sentença do TAF de Sintra, que julgou procedente o pedido de anulação do despacho de 12-10-2018, do Directora-Nacional (DN) do SEF - que considerou que o pedido de asilo formulado pelo ora Recorrido era inadmissível e que determinou que a Itália era o Estado responsável pela respectiva retoma a cargo - e que condenou o SEF a admitir, tramitar e, caso outras razões legais a isso não obstassem, a apreciar a pretensão do A., com decisão final.

Em alegações são formuladas pelo Recorrente, as seguintes conclusões: “1.ª Resulta evidente, que a decisão do ora recorrente, foi de encontro às normas legais vigentes em matéria de asilo, mormente, no que respeita ao fazer acionar o mecanismo da Retoma a Cargo, ao qual a Itália está vinculada.
2.ª A sentença recorrida não é consentânea com a jurisprudência nacional e a da E.U, entendendo de forma diferente por, essencialmente se basear num Relatório do CPR, ignorando as demais disposições comunitárias e toda a prova recolhida.
3.ª Efetivamente, não se trata de verificar se o ora recorrente preenche, ou não, as condições para ser considerado refugiado ou beneficiário de proteção subsidiária, mas de reiterar que não impende sobre Portugal nenhum dever de apreciação nos termos do quadro legal supra referido, pelo contrário, está adstrito a proferir vinculadamente a decisão de transferência.
4.ª Em suma, o recorrido expressa a sua integral discordância com a análise e decisão vertida na sentença a quo.”

O Recorrido nas contra-alegações formulou as seguintes conclusões:” A) A decisão de transferência do Recorrido para Itália, em sede de retoma a cargo, resultou da mera verificação da existência, ou não, noutro estado membro, de pedido de proteção internacional anterior;
B) Enquanto entidade/autoridade decisora dos procedimentos administrativos atinentes à concessão de protecção internacional, o Recorrente – SEF – está vinculado à aplicação da lei, de acordo com os imperativos constitucionais, com os tratados e convenções internacionais subscritos por Portugal;
C) A decisão do Recorrente não atendeu, nem sequer analisou como lhe competia, as circunstâncias de saúde, pessoais e concretas do aqui Recorrido;
D) O recorrente não analisou nem ponderou a situação de degradação sistémica na permanência e no tratamento disponibilizado aos requerentes de asilo em Itália;
E) Em consequência da afluência de elevado número de migrantes e requerentes de asilo, as capacidades de acolhimento aos mesmos por parte da Itália tem-se degrado nos últimos tempos, apresentando falhas sistémicas nesse mesmo acolhimento, em especial para requerentes vulneráveis;
F) Por sofrer de graves problemas de saúde, a transferência do Recorrido para Itália, é suscetível de causar-lhe significativo agravamento da doença e das suas condições de saúde;
G) O Recorrido é um requerente especialmente vulnerável;
H) A decisão ora anulada, não respeita os artºs. 3º. e 33º., da CRP, artºs. 5º., 13º. e 14º., da DUDH, artº. 33º., da Convenção de Genebra, e os artºs. 3º., 6º., 18º. e 19º., da CEDH, violando, consequentemente, direitos fundamentais do Recorrido;
I) Andou por isso bem a, aliás, douta sentença recorrida, ao anular a decisão proferida pelo Recorrente, condenando-o a avaliar se o Autor reúne os pressupostos para lhe ser concedido asilo pelo Estado Português.”

O DMMP não apresentou a pronúncia.
Sem vistos, atenta a natureza urgente do processo, vem o processo à conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO
II.1 – OS FACTOS
A sentença recorrida deu como provada a seguinte matéria de facto, que não vem impugnada, pelo que se mantém:
“1. O Autor é natural de FARIM (Guiné/Bissau), onde nasceu em 17/01/1992 – doc. nº 1.
2. Em 6/09/2018 formulou pedido de protecção internacional, tendo indicado “motivos de saúde (Hepatite tipo B”) para abandonar o seu país, doença de que efectivamente sofre – fls. 6 e 7 do p.a. e doc. nº 4 junto com a p.i.
3. No âmbito do procedimento nº 861/18, foi ouvido no dia 8/10/2018, manifestando-se em crioulo, acompanhado de intérprete, tendo sido emitido o Relatório, nos termos seguintes:

Do Relatório consta o seguinte:

4. Com base nas declarações do ora requerente, e após consulta do sistema EURODAC, confirmou-se que o mesmo saiu do seu país de origem aos 15.05.2016, conforme se demonstra, viajou por vários países tais como Senegal, Mali- Burkina Faso, Nigéria e Líbia e, seguidamente, por vários Estados-Membros e por último, fixou-se em Itália onde permaneceu por um ano e um mês aproximadamente de acordo com registos constantes nas bases de dados de impressões digitais, tendo então solicitado protecção internacional em Itália, conjuntamente com a sua família que aí se mantém, até ter decidido viajar por terra, de automóvel até entrar em território nacional – consta do p.a.
5. O Gabinete de Asilo e Refugiados (GAR) do SEF apresentou aos 25/09/2018 um pedido de tomada a cargo às autoridades italianas, ao abrigo do artº 18º n° 1, alínea b) do Regulamento (UE) 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho, tendo ainda aos 11.10.2018 informado as autoridades italianas do prazo deste mecanismo, pois aguardava resposta de Itália ao pedido formulado. Estas não se pronunciaram naquele prazo pelo que, ao abrigo do art° 25º n° 2, do mesmo diploma, a mesmo que a Itália não se pronuncie, a falta de decisão /resposta equivale à aceitação do pedido., ao abrigo do artº 18º n° 1 d) do citado Regulamento, (fls 37 a 38 e 41 do PA).
6. Tendo sido proposto o seguinte:
- consta do p.a.
7. Por despacho do Director Nacional do SEF proferido aos 12/10/2018, nos termos dos art°s 19º-A n° 1 a) e 37º n° 2 da Lei n° 27/2008, de 30/06, na redacção actual, foi o pedido considerado inadmissível e determinada a transferência do requerente para Itália, Estado-Membro responsável pela análise do pedido de Asilo nos termos do citado Regulamento de Dublin, tendo o requerente ora Autor sido notificado desta decisão aos 16 de Outubro de 2018, nos termos seguintes:

8. Por sua vez a Decisão aqui impugnada foi do teor seguinte:

– docs. nº 2 e 3 da p.i.
9. Em relação a Itália, “ A informação disponibilizada por organizações como o European Council for Refugees and Exiles ( ECRE) e os Médicos sem fronteiras (MSF), entre outras, revelam a existência de falhas sistémicas tanto no que respeita ao procedimento de asilo e garantias processuais, bem como na política de acolhimento dos requerentes de asilo(…)” – Parecer CPR, pág. 29, fls. 42 v. dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
10. “O risco de violação dos direitos fundamentais das pessoas retomadas ao abrigo do Regulamento de Dublin tem aumentado com as alterações ao sistema de acolhimento italiano introduzidas pelo Decreto Salvini, que entrou em vigor a 5 de Outubro de 2018 e que piorou o sistema de acolhimento italiano” – Parecer CPR, pág. 41, fls. 48 v, dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
11. “ À semelhança dos seis casos acompanhados na primeira monitorização, nenhum dos 13 indivíduos ou famílias vulneráveis monitorizadas para este segundo relatório DRMP teve acesso a condições de acolhimento adequados à chegada a Itália (…)” - Parecer CPR, pág. 43, fls. 49 v, dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido.

Nos termos dos art.ºs 662.º, n.º 1 e 665.º, n.º 1, parte final, do CPC, acrescenta-se o seguinte facto, por provado:
12 – Com data de 18-10-2018 foi elaborado por médico do Centro Hospitalar de Lisboa, o Relatório médico de fls. 9 dos autos em suporte em papel, que indica que o A. e Recorrido se “encontra em seguimento em consulta de Doenças Infecciosas por Hepatite B crónica e realiza terapêutica dirigida a esta infecção. Necessita de avaliação analítica, imagiológica e clinica, regular”.

II.2 - O DIREITO
A questão a decidir neste processo, tal como vem delimitada pelas alegações de recurso é:
- aferir do erro da decisão recorrida porque não aplicou a legislação e a jurisprudência sobre a matéria, que determinam a obrigação de transferência do A. e Recorrido para Itália.

Na decisão recorrida, após entender-se que o SEF havia procedido correctamente quando “prosseguiu todos os trâmites para chegar à conclusão que o Estado Membro responsável para apreciar o pedido do Autor era a Itália”, julgou-se que, no caso, a decisão do DN, do SEF, de 12-10-2018, que considerou inadmissível o pedido de protecção internacional apresentado pelo A. e Recorrido e que determinou a transferência do mesmo para Itália, por ser o Estado-Membro responsável pela análise do pedido de asilo, padecia de erro nos pressupostos de facto e devia ser anulada, por não ter sopesado a situação fragilizada do requerente, por não ter sido precedida de informação acerca das eventuais condições de risco existentes em Itália e por não ter sopesado a cláusula de salvaguarda incluída no artº 3º do Regulamento (Reg.) n.º 604/2013, de 26-06 (Reg. de Dublin III). Mais se decidiu, no que concerne ao pedido de condenação do SEF à atribuição do direito de asilo ou de protecção subsidiária, que a tramitação administrativa era ainda omissa e remetia para valorações próprias da Administração, o que impossibilitava a correspondente aferição dos pressupostos do Direito pelo Tribunal, pelo que aquela decisão se limitou a condenar o SEF “a admitir, tramitar e, caso outras razões legais a isso não obstem, apreciar a pretensão do Autor, com decisão final”.
Como a seguir explicitaremos, a decisão recorrida está certa, devendo manter-se.
Nessa decisão, para se concluir pela anulação da conduta que vinha impugnada e pela procedência parcial do pedido condenatório, julgou-se da seguinte forma: o “artº 3º do Regulamento (UE) nº 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de Junho de 2013, dispõe o nº 2, segunda parte: Caso seja impossível transferir um requerente para o Estado-Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na acepção do artigo 4º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável.
Caso não possa efectuar-se uma transferência ao abrigo do presente número para um Estado-Membro designado com base nos critérios estabelecidos no Capítulo III ou para o primeiro Estado-Membro onde foi apresentado o pedido, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável passa a ser o Estado-Membro responsável.
Estabelece esta disposição a chamada CLÁUSULA DE SALVAGUARDA (anteriormente “ Cláusula de soberania”), sobretudo a partir da decisão do TJUE de 21/12/2011 no caso “N.S.”1, prevendo-se expressamente que quando haja falhas sistémicas no sistema de asilo do Estado para que o requerente deva ser transferido, havendo o risco de ser desrespeitado o direito absoluto do requerente a não ser sujeito a penas ou tratamento cruéis, degradantes ou desumanos, não pode haver lugar à transferência do requerente ainda que os critérios de DUBLIN se achem cumpridos, como é o caso dos autos.
In casu, e conforme resulta do probatório, o requerente, sendo pessoa fragilizada por motivos da sua doença (cf. nº 2 do probatório) corre efectivamente o risco de sofrer tratamento degradante ou desumano, na acepção do artº 4º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia2, tal como resulta do Parecer da CPR nos autos
(…) Ora, comprovado que o Requerente se encontra numa situação vulnerável, por ser portador de hepatite, corre o risco de lhe acontecer como no citado caso de um homem portador de VIH que não encontro tratamento adequado em Itália.
Pelo que, nesta parte, a decisão impugnada não passa pelo crivo da citada cláusula de salvaguarda, no caso em apreço.
Aliás, nem sequer sopesou tal Cláusula.
Em consequência, merece, nesta parte, provimento a pretensão do Autor, devendo a decisão impugnada ser anulada por erro nos pressupostos de facto – não sopesou a situação fragilizada do requerente, por força da doença que sofre, não se informou das eventuais condições de risco do país competente, neste caso, a ITÁLIA, não sopesou a cláusula de salvaguarda incluída no artº 3º do Regulamento EURODAC (Reg. UE nº 604/2013), pelo que, deve ser anulada.
(…) o pedido de condenação à prática do acto devido envolve valorações próprias do exercício da função administrativa, no preenchimento dos pressupostos e conceitos indeterminados que constam da Lei do Asilo (Lei nº 27/2008), nomeadamente, nos artigos 3º a 7º.
Assim sendo, e porque a tramitação administrativa, sendo omissa quanto a esta matéria, impede a recolha de elementos para que o Tribunal possa apreciar esta pretensão do Autor, não pode o tribunal pronunciar-se quanto a esta questão.
No entanto, e face à anulação da decisão de indeferimento impugnada nos presentes autos, pode o Tribunal explicitar as vinculações a adoptar pela Entidade Administrativa aqui Demandada na sequência desse juízo anulatório, ficando esta obrigada a admitir o procedimento iniciado pelo Autor e, a final, a decidir sobre o seu pedido de concessão (ou não) de protecção internacional, se a tanto nada mais obstar.”
Como já assinalamos, acompanhamos a decisão recorrida.
Conforme os factos provados, não impugnados neste recurso, o A. e Recorrido formulou em 06-09-2018, um pedido de protecção internacional, invocando “motivos de saúde (Hepatite tipo B”)”.
Iniciada a instrução do procedimento, verificou-se que o A. e Recorrido já tinha pedido a protecção internacional em Itália. Nessa sequência, foi pedida às autoridades italianas a retoma a cargo do A., nos termos previstos no art.º 22.º, n.ºs 1 e 7, do Reg. n.º 604/2013, de 26-06.
Conforme decorre dos factos 7 e 8 da decisão recorrida, o pedido de protecção internacional foi considerado inadmissível e foi determinada a transferência (a retoma a cargo) do A. e Recorrido para Itália – cf. art.º 19.º-A, n.º 1, al a), e 20.º, n.º 1, 37.º, n.º 3, da Lei n.º 27/08, de 30-06 e art.º 18.º, n.º 1, al. d), no Reg. n.º 604/2013, de 25-06.
Tal conduta do SEF decorreu nos termos do preceituado nos art.ºs 37.º a 39.º da Lei n.º 27/2008, de 30-06 e 22.º, n.ºs 1 e 7 do Reg. n.º 604/2013, de 26-06, que determinam que se a responsabilidade pela análise do pedido de protecção internacional pertencer a outro Estado-Membro, incumbe ao SEF dar início ao procedimento especial de determinação do Estado responsável, que, por seu turno, faz suspender o procedimento destinado à concessão da requerida protecção internacional até que seja proferida uma decisão final naquele (sub)procedimento especial – cf- art.º 39.º da Lei n.º 27/2008, de 30-06.
Entretanto, caso as autoridades do Estado-Membro requerido aceitem a retoma a cargo, por força dos art.ºs 26.º n.º 1, do Reg. n.º 604/2013, de 26-06, e 37.º, n.º 2, da Lei n.º 27/2008, de 30-06, o Director do SEF terá de considerar inadmissível o pedido de protecção internacional formulado, nos termos do art.º 19.º, n.º 1, al. a), 19.º-A e 20.º da Lei n.º 27/2008, de 30-06, determinando, apenas, a transferência do requerente para o Estado-Membro responsável pela respectiva análise – cf. art.º 38.º da Lei n.º 27/2008, de 30-06.
Tal como decorre do texto da Proposta de Regulamento, o regime reformulado pelo Reg. n.º 604/2013, de 26-06, visava “melhorar a eficácia do sistema e, por outro, garantir que as necessidades dos requerentes de protecção internacional sejam globalmente contempladas no procedimento de determinação de responsabilidade”.
Nessa mesma medida, aquando da indicada Proposta discutiu-se a revisão das cláusulas de "soberania" e "humanitária", propondo-se a sua aglutinação num mesmo Capítulo, apelidado de "cláusulas discricionárias", com uma interpretação mais restritiva do que aquela que veio a ser realmente consagrada no Reg. n.º 604/2013, de 26-06, designadamente nos seus art.ºs 3.º, n.º 2, 16.º e 17.º (cf. o indicado texto, em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=celex:52008PC0820R(01; cf. também o art.º 15.º, do Reg. N.º 343/2003, de 18-02-2003. Cf., ainda, sobre o assunto, COSTELO, Cathryn - Dublin-case NS/ME: Finally, an end to blind trust across the EU? A&MR, Jurisprudentie-artikel. [Em linha]2 (2012) 83–92. [Consult. 9 jul. 2019]. Disponível em WWW:URL:http://www.ejtn.eu/Documents/About EJTN/Independent Seminars/Asylum Law Seminar 12-13 December 2013/CostelloNSMENote2012.pdf. BROUWER, Evelien - Mutual trust and the Dublin regulation: Protection of fundamental rights in the EU and the burden of proof. Utrecht Law Review. [Em linha] 9:1, V.9 (2013) 135–147. [Consult. 9 jul. 2019]. Disponível em WWW:<URL:file:///C:/Use eMENDES, Sara Ribeiro - A Cláusula de Soberania do Regulamento Dublin III à Luz do Princípio da Confiança Mútua entre os Estados-Membros da União Europeia [Em linha]. [S.l.]: Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, 2016 [Consult. 9 jul. 2019]. Disponível em WWW:URL:http://hdl.handle.net/10362/20441).
Portanto, face à actual redacção dos art.ºs. 3.º, n.º 2 e 17.º, n.º 1, do Reg. n.º 604/2013, de 26-06, se se verificar que existem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes de protecção internacional, num dado Estado-Membro, que impliquem um risco de tratamento desumano ou degradante na acepção do art.º 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), tornando impossível a transferência do requerente de protecção, ainda que tal Estado-Membro seja o responsável pela análise do procedimento de asilo face às regras de competência do indicado Regulamento, aquele mesmo pedido deve manter-se a ser analisado pelo Estado-Membro onde foi posteriormente apresentado, que prossegue na análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III do Regulamento e, eventualmente, com a própria instrução e apreciação do pedido de protecção (cf. também os art.ºs 31.º e 32.º do Reg. n.º 604/2013, de 26-06).
O afastamento da discricionariedade dos Estados nas situações em que existe o sério risco de ocorrerem falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes de protecção internacional tem sido densificado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) e pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).
Tal ocorreu no Ac. do TEDH no Ac. K.R.S. c. Reino Unido, n.º 32733/08, de 02-12-2008 (consultável em https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22itemid%22:[%22001-90500%22]}), M.S.S. c. Bélgica e a Grécia, n.º 30696/09, de 21-01-2011 (consultável em https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22itemid%22:[%22001-103050%22]}), Sharifi e Others c. Itália e Grécia, n.º 16643/09, de 21-10-2014 (consultável em https://hudoc.echr.coe.int/eng-press#{%22itemid%22:[%22003-4910702-6007035%22]}), ou no Ac. do do TJUE N. S.c. Secretary of State for the Home Department e M. E. e o. C.Refugee Applications Commissioner, n.ºs C411/10 e C493/10, de 21-12-2011 (consultável em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN-PT/TXT/?uri=CELEX:62010CJ0411&from=PT), em que se discutia a transferência de requerentes de protecção internacional para a Grécia.
Exigindo a análise das condições de acolhimento atendendo à situação específica do requerente de protecção, também se pronunciou o TEDH no Ac. Tarakhel c. Switzerland, de 04-11-2014 (consultável https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22itemid%22:[%22001-148070%22]}).
No recente Ac. do TJUE C-163/17 Jawo, de 19-03-2019 (consultável em http://curia.europa.eu/juris/celex.jsf?celex=62017CJ0163&lang1=pt&type=TXT&ancre=), este tribunal decidiu que “O artigo 4.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a tal transferência do requerente de proteção internacional, a menos que o órgão jurisdicional chamado a conhecer de um recurso da decisão de transferência conclua, com base em elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados e por referência ao nível de proteção dos direitos fundamentais garantido pelo direito da União, que esse risco é real para o requerente, pelo facto de que, em caso de transferência, este se encontraria, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais, numa situação de privação material extrema.”
Igualmente, o TJUE no Ac. C. K., H. F.,A. S. c. Eslovénia, P. C-578/17 PPU, de 16-02-2017, decidiu o seguinte:” 1) O artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento (UE) n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados-Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, deve ser interpretado no sentido de que a questão da aplicação, por um Estado-Membro, da «cláusula discricionária» prevista nessa disposição não é regulada unicamente pelo direito nacional e pela interpretação que dela faz o Tribunal Constitucional desse Estado-Membro, mas constitui uma questão de interpretação do direito da União, na aceção do artigo 267.o TFUE.
2) O artigo 4.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia deve ser interpretado no sentido de que:
– mesmo não havendo razões sérias para crer na existência de falhas sistémicas no Estado-Membro responsável pela análise do pedido de asilo, a transferência de um requerente de asilo no âmbito do Regulamento n.o 604/2013 só pode ser feita em condições que excluam que essa transferência implique um risco real e comprovado de o interessado sofrer tratos desumanos ou degradantes, na aceção desse artigo;
– em circunstâncias nas quais a transferência de um requerente de asilo, que apresenta uma doença mental ou física especialmente grave, implica um risco real e comprovado de uma deterioração significativa e irremediável do estado de saúde do interessado, essa transferência constitui um trato desumano e degradante, na aceção do referido artigo;
–incumbe às autoridades do Estado-Membro que deve proceder à transferência e, se for caso disso, aos seus órgãos jurisdicionais dissipar quaisquer dúvidas sérias quanto ao impacto da transferência no estado de saúde do interessado, tomando as precauções necessárias para que a sua transferência se realize em condições que permitam salvaguardar de maneira adequada e suficiente o estado de saúde dessa pessoa. No caso de, tendo em conta a especial gravidade da doença do requerente de asilo em causa, a tomada dessas precauções não ser suficiente para assegurar que a sua transferência não implicará um risco real de um agravamento significativo e irremediável do seu estado de saúde, incumbe às autoridades do Estado-Membro em causa suspender a execução da transferência do interessado, e isso enquanto o seu estado de saúde não o tornar apto a essa transferência; e,
– se for caso disso, se se aperceber de que o estado de saúde do requerente de asilo em causa não poderá melhorar a curto prazo, ou de que a suspensão do processo durante um longo período comporta o risco de agravar o estado do interessado, o Estado-Membro requerente pode optar por analisar ele próprio o pedido do interessado, utilizando a «cláusula discricionária» prevista no artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 604/2013.
O artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 604/2013, lido à luz do artigo 4.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, não pode ser interpretado no sentido de obrigar, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, esse Estado-Membro a aplicar a referida cláusula” (in http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?docid=187916&doclang=PT).
É comumente assinalado que quer a cláusula de soberania que decorre do art.º 3.º, n.º 1, quer as cláusulas discricionárias do art.º 17.º do Reg. n.º 604/2013, de 26-06, encerram hoje, face à jurisprudência que foi sendo desenvolvida pelo TEDH e pelo TJUE, uma margem de discricionariedade reduzida.
Entende-se, assim, no que se refere ao art.º 3.º, n.º 1, do citado Regulamento, que a discricionariedade ali contemplada acaba por ser afastada pela obrigação constante do n.º 2 daquele preceito legal, que determina um verdadeiro dever legal dos Estados-Membros apreciarem acerca da eventual ocorrência de falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes de protecção internacional, antes de procederem à transferência daqueles para outro Estado-Membro em obediência aos critérios indicados no Capitulo III do Regulamento (cf. neste sentido, COSTELO, Cathryn - Dublin-case, op. cit., pp. 87-88; BROUWER, Evelien - Mutual trust and the Dublin regulation: Protection of fundamental rights in the EU and the burden of proof. Utrecht Law Review. [Em linha] 9:1, V.9 (2013) 135–147. [Consult. 9 jul. 2019]. Disponível em https://www.researchgate.net/publication/256046172_Mutual_Trust_and_the_Dublin_Regulation_Protection_of_Fundamental_Rights_in_the_EU_and_the_Burden_of_Proof/link/5ac7bb74a6fdcc8bfc7fdb93/download, pp. 144-146. OLIVEIRA, Andreia Sofia Pinto de - Direito de Asilo. Em Tratado de Direito Administrativo Especial. Coord. OTERO, Paulo; GONÇALVES, Pedro. 1.ª ed. Coimbra: Almedina, 2017, pp. 104-109).
Neste sentido também militam os considerandos 17 e 19 do Reg. n.º 604/2013, de 26-06, quando indicam o seguinte: “(17) Os Estados-Membros deverão ter a possibilidade de afastar a aplicação dos critérios de responsabilidade, em especial por razões humanitárias e compassivas, a fim de permitir reunir membros da família, familiares ou outros parentes, e de analisar um pedido de proteção internacional que lhes tenha sido apresentado, ou a outro Estado-Membro, mesmo que tal análise não seja da sua responsabilidade nos termos dos critérios vinculativos previstos no presente regulamento.
(…)(19) A fim de garantir a proteção efetiva dos direitos das pessoas em causa, deverão ser previstas garantias legais e o direito efetivo de recurso contra as decisões de transferência para o Estado-Membro responsável, nos termos, nomeadamente, do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. A fim de garantir o respeito do direito internacional, o direito efetivo de recurso contra essas decisões deverá abranger a análise da aplicação do presente regulamento e da situação jurídica e factual no Estado-Membro para o qual o requerente é transferido.”
Por conseguinte, uma vez apresentado um pedido de protecção, o respectivo Estado-Membro terá primeiramente que aferir, nos termos determinados no art.º 3.º, n.º 1 e no Capítulo III do Reg. n.º 604/2013, de 26-06, qual é o Estado responsável pela apreciação de tal pedido. Sendo identificado como responsável pela apreciação do pedido um outro Estado-Membro, há, então, que avaliar da eventual impossibilidade em proceder à transferência, por existirem motivos válidos para crer que, naquele Estado, há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento, que impliquem o risco de tratamento desumano e degradante. Tal obrigação é, depois, passível de apreciação pelos Tribunais Nacionais, em sede de recurso, que se mantém obrigados a determinar o afastamento das regras previstas no Reg. n.º 604/2013, de 26-06, caso se confirme a invocada situação de violação dos direitos fundamentais do requerente de protecção internacional, caso este seja transferido para o Estado-Membro inicialmente responsável pela apreciação do pedido.
Na situação em apreço, está comprovado que o A. e Recorrido, requerente de protecção internacional, sofre de hepatite B crónica (cf. factos 2 e 12). Conforme o Relatório Médico referido em 12. dos factos provados, o A. e Recorrido está a ser medicado em Portugal e “necessita de avaliação analítica, imagiológica e clinica, regular”.
Tal como resulta indicado no Relatório médico junto aos autos e decorre das regras da experiência - constituindo tal facto presunção judicial, conforme art.ºs 349.º e 351.º do Código Civil (CC)
- a indicada doença de que o A. e Recorrido padece requer a manutenção do tratamento que lhe foi ministrado, sob pena de se agravar e poder fazer perigar a vida do doente.
Tal como se explica no site do SNS 24, “na hepatite B crónica, a terapia antiviral está muitas vezes recomendada, atingindo-se o controlo do vírus na grande maioria dos casos. Embora não cure a infeção, tem o potencial de reduzir ou até mesmo reverter a lesão do fígado, prevenindo complicações a longo prazo. No entanto, nem todos os doentes com hepatite B crónica necessitam de tratamento imediato, recomendando-se, nestes casos, vigilância a longo prazo.
No tratamento da hepatite B existem vários medicamentos antivirais disponíveis. Uma vez iniciado o tratamento é necessário acompanhamento médico regular para monitorização da eficácia, vigilância de efeitos secundários e deteção de resistências à terapêutica.
O transplante hepático pode ser a única alternativa de tratamento em indivíduos com hepatite B crónica e cirrose hepática avançada ou cancro do fígado em estádios precoces.” (in https://www.sns24.gov.pt/tema/doencas-infecciosas/vhb/).
Portanto, o Recorrido encontra-se doente, com uma doença crónica, que exige a manutenção de um tratamento que já foi iniciado em Portugal. Atendendo à doença de que padece o A. e Recorrido, também deverá manter-se sob vigilância médica, de forma contínua e a médio e longo prazo. Por esta razão, por sofrer de uma doença crónica, grave, que requer um acompanhamento médico a médio e longo prazo, o A. e Recorrido deve ser considerado uma pessoa vulnerável.
No caso em apreço nestes autos, ficou igualmente provado que relativamente à Itália se verificam motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes de protecção internacional. Da mesma forma, ficou assente na matéria fáctica dada por provada e não impugnada neste recurso que o “risco de violação dos direitos fundamentais das pessoas retomadas ao abrigo do Regulamento de Dublin tem aumentado com as alterações ao sistema de acolhimento italiano introduzidas pelo Decreto Salvini, que entrou em vigor a 5 de Outubro de 2018 e que piorou o sistema de acolhimento italiano” (cf. factos 9. a11).
O relatório do Centro Português de Refugiados (CPR), constante dos autos, colige toda uma série de informações veiculadas por outros relatórios, estudos e notícias, oriundos de sites oficiais, de organizações humanitárias e de meios de comunicação social, que relatam a situação vivida em Itália, no que concerne ao acolhimento de refugiados.
As fontes ali indicadas são, entre outras, a Human Rights Watch, o Danish Refugee Council, o European Database of Asylum Law, do UN Office of the High Commmissioner for Human Rights, o European Council on Refugees and Exiles, a Amnistia Internacional e os Médicos sem Fronteiras.
Quanto a limitações e falhas no tratamento de pessoas vulneráveis e doentes, são indicados naquele relatório do CPR, por remissão para um outro relatório disponível no site do Danish Refugee Council, Swiss Refugee Council, situações que estavam a ser monitorizadas de requerentes de protecção internacional que não tiveram acesso a centros de acolhimento e abrigos – que obrigaram os requerentes de protecção a dormir na rua – de não adequação das condições existentes naqueles centros e abrigos às necessidades especiais dessas pessoas, assim como, relativas á verificação da falta de cuidados médicos especializados (cf. fls. 43 e 44 do relatório do CPR).
O relatório do CPR reporta também um relatório da autoria dos Médicos sem Fronteiras, datado de 08-02-2018, que indica haver “pelo menos, 10.000 pessoas excluídas do sistema de acolhimento (…) com acesso limitado ou sem acesso a necessidades básicas e a cuidados médicos”, assim como, refere que as limitações introduzidas pela Lei n.º 80/20144 e confirmadas pela Lei n.º 48/2018, deixaram de permitir o acesso ao Serviço Nacional de Saúde a quem não tenha uma habitação registada e que os cuidados primários prestados aos migrantes têm sido delegados a organizações humanitárias privadas, que não conseguem passar receitas de medicamentos comparticipadas pelo Estado, com custos acrescidos por essa via (cf. fls. 58 e 64 a 66 do Relatório do CPR).
O indicado relatório dos Médicos Sem Fronteiras, que pode ser consultado em teor integral em https://www.msf.org/italy-migrants-and-refugees-margins-society (“Out of Sight. Asylum seekers and refugees in Italy: informal settlements and social marginalization. [Em linha]. Medecins sans Frontieres. [Consultado em 09-07-2019].) é um documento detalhado e completo, que identifica claramente a existência de falhas de acesso ao sistema de saúde pelos requerentes de protecção internacional em Itália – cf. especialmente pp. 2, 14 e 20-23, do referido relatório.
O relatório do Danish Refugee Council (Mutual trust is still not enough - The situation of persons with special reception needstransferred to Italy under the Dublin III Regulation [Em linha]. Danish Refugee Council [Consultado em 09-07-2019]. Disponível em https://drc.ngo/media/5015811/mutual-trust.pdf) consultado em texto integral refere, também, detalhada e completamente a indicada falta de apoio na saúde para migrantes indocumentados. Neste relatório é expressamente mencionada a existência de uma situação monitorizada de um requerente de asilo com hepatite B que não teve a necessária protecção na saúde quando estava em Itália (cf. pp. 13, 14, 17 e 28).
As deficiências e falhas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes de protecção internacional são igualmente reportadas em diversos relatórios e estudos de acesso livre na Internet, como por exemplo, no relatório: “Responses to mixed migration in Europe Implications for the humanitarian sector. Network Paper. John Borton and Sarah Collinson. [Em linha]. Humanitarian Practice Network (HPN), n.º 81, Dez. 2017 [Consultado em 09-07-2019]. Disponível em https://odihpn.org/wp-content/uploads/2017/12/NP-81-web-file.pdf.
Essas falhas e deficiências são igualmente apontadas, muito especificamente para os casos de hepatite verificados entre os refugiados em Itália não documentados, nos seguintes trabalhos: “Limited access to hepatitis B/C treatment among vulnerable risk populations: an expert survey in six European countries” - Abby M. Falla, Irene K. Veldhuijzen, Amena A. Ahmad, Miriam Levi, and Jan Hendrik Richardus [Em linha]. [Consultado em 09-07-2019]. Disponível em https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5444238/; “Access to treatment for chronic hepatitis B/C among undocumented migrants, asylum seekers and people without health insurance in six European countries” - Abby Falla Veldhuijzen A Ahmad.M Levi JH Richardus. [Em linha]. European Journal of Public Health, Volume 23, Issue suppl_1, 1 October 2013 [Consultado em 09-07-2019]. Disponível em ckt124.094, https://doi.org/10.1093/eurpub/ckt124.094).
Tal como ficou assente no facto 10. da decisão recorrida, resulta expresso em diversos relatórios, estudos e noticias, que após o “Decreto Salvini”, que entrou em vigor em 05-10-2018, as condições de acolhimento em Itália agravaram-se consideravelmente, sobretudo para os migrantes não documentados.
Estas circunstâncias relativas ao agravamento das condições dos migrantes em Itália, são hodierna e frequentemente divulgadas em diversas notícias, acessíveis a qualquer um, vg., através das noticías seguintes: “Itália endurece política migratória e reduz proteção humanitária”, em https://www.dw.com/pt-br/it%C3%A1lia-endurece-pol%C3%ADtica-migrat%C3%B3ria-e-reduz-prote%C3%A7%C3%A3o-humanit%C3%A1ria/a-45620843; “Itália Adota Lei Linha Dura para a Imigração”, de 13-12-2018, em https://pt.gatestoneinstitute.org/13411/italia-lei-imigracao; ou New Italy government vows to deport thousands of migrants who fled conflict, de 03-06-2018, em https://www.scmp.com/news/world/europe/article/2149007/new-italy-government-vows-deport-thousands-migrants-who-fled.
Nessa mesma medida, as circunstâncias políticas, de pressão migratória e de acolhimento a migrantes, existentes em Itália, são factos notórios, porque do conhecimento geral, sendo realidades facilmente acessíveis a qualquer cidadão mediamente informado, à Administração, designadamente ao SEF, ou a este Tribunal - cf. art.º 412.º, n.º 1, do CPC.
A prolação do “Decreto Salvini”, associado ao actual quadro político de Itália e à pressão migratória que continua a impender sobre este país, faz crer que as indicadas condições de acolhimento aos migrantes e requerentes de protecção internacional se mantenham deficitárias e cada vez mais debilitadas. Estas circunstâncias podem ser presumidas pelas regras da experiência comum, constituindo presunção judicial – cf. art.ºs. 349.º e 351.º do Código Civil (CC).
O conjunto de circunstâncias fácticas antes indicadas deve entender-se fundado em elementos objectivos, fiáveis e actualizados, por se reportarem a um conjunto alargado de informações, provenientes de diversas origens, que incluem organizações internacionais credíveis. Tais informações, em alguns casos, materializam-se em relatórios e estudos que se apresentam completos, pormenorizados, precisos, credíveis e imparciais.
Em conclusão, neste contexto fáctico, há que concluir que a transferência do A. e Recorrido para Itália, face às condições de acolhimento que aí ocorrem, irá implicar, muito provavelmente, a suspensão ou o termo do tratamento contra a hepatite B, que já iniciou em Portugal, com o consequente, e muito provável, agravamento da sua doença, que poderá evoluir para cirrose hepática ou para cancro no fígado.
Atendendo às situações que vêm relatadas acerca das condições de acolhimento em Itália e do acesso a cuidados de saúde pelos migrantes, requerentes de asilo, a transferência do A. e Recorrido para Itália implicará que nesse país não terá acesso à continuidade do tratamento que já iniciou em Portugal, assim como não terá acesso a acompanhamento médico a médio e longo prazo relativamente ao seu estado de saúde.
A hepatite B é uma doença grave, que sem tratamento médico pode evoluir com alguma facilidade para uma situação muito grave, sendo que em última instância, sem tratamento, pode ser causa de morte. Ou seja, se o A. e Recorrido não mantiverem os cuidados médicos que permitam o seu tratamento, pode ver a sua situação de saúde deteriorar-se significativa e irreversivelmente.
Assim, a referida transferência do A. e Recorrido para Itália traz um risco real e comprovado de o A. e Recorrido sofrer um tratamento cruel, degradante ou desumano, na acepção do art.º 4.º da CDFUE, caindo a sua situação, nessa mesma medida, na previsão dos art.ºs 3.º, n.º 2 e 17.º, n.º 1, do Reg. n.º 604/2013, de 26-06.
Logo, a Administração, designadamente o SEF, no caso, teria afastar a aplicação do regime dos art.º 3.º, n.º 1, 18.º, n.º 1, al. d), no Reg. n.º 604/2013, de 25-06, 19.º-A, n.º 1, al a), e 20.º, n.º 1, 37.º, n.º 3, da Lei n.º 27/08, de 30-06 e que fazer actuar a cláusula de salvaguarda do art.º 3.º, n.º 2, 2.º parágrafo, do Reg. n.º 604/2013, de 25-06, considerando que é impossível transferir o A. e Recorrido para Itália, por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento, que implicam o sério risco de tratamento desumano e degradante, na acepção do art.º 4.º da CDFUE.
Nessa consonância, porque no caso não pode ocorrer a retoma a cargo para Itália, o SEF deve prosseguir com a análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III do Reg. n.º 604/2013, de 25-06, a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável, tal como se determina nos arts.º 3.º, n.º 2, 2.º parágrafo, parte final e 7.º do Reg. n.º 604/2013, de 25-06.
Não existindo outro Estado Membro responsável, o SEF deve fazer tramitar e, caso outras razões legais a isso não obstem, deve apreciar o pedido do A. e Recorrido, proferindo decisão final (cf. em sentido próximo, o Ac. do TCAS n.º 2240/18.7BELSB, de 06-06-2019, no qual se manteve a decisão judicial que determinava ao SEF para instruir um pedido de protecção internacional com informação actualizada sobre as condições de acolhimento dos refugiados em Itália).
Em suma, há que confirmar a decisão recorrida, porque a mesma está certa, claudicando o presente recurso.

III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam:
- em negar provimento ao recurso interposto, confirmando a decisão recorrida;
- sem custas por isenção objectiva (cf. art.º 84.º da Lei nº 27/2008, de 30-06).
Lisboa, 22 de Agosto de 2019
(Sofia David)
(António Vasconcelos)
(Mário Rebelo)