Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:774/13.9BELRS
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:12/06/2017
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:PROVA
ATIVIDADE PROBATÓRIA
NACIONALIDADE
LIGAÇÃO EFECTIVA
Sumário:I - A produção da prova (de factos) em juízo tem o seguinte iter em geral: (1º) indicação dos meios de prova dos factos relevantes, meios normalmente previstos no CC; (2º) concreta produção da prova (de acordo com a lei processual); (3º) análise e valoração ou avaliação da prova pelo tribunal de acordo com a prudente convicção do juiz e/ou de acordo com as forças probatórias previamente fixadas na lei (artigo 607º/5 do CPC e artigos 358º, 371º e 376º do CC); (4º) alegações finais, em regra; (5º) fixação dos factos provados e não provados (de acordo com a lei de processo).

II - Só após tais fases ou subfases é que (6º) o juiz aplicará as regras gerais, especiais ou excecionais sobre o chamado “ónus” da prova, de que tratam, nomeadamente, os artigos 342º ss do CC.

III - A figura plasmada nos artigos 342º/1/2 e 343º/1 do CC não é dirigida às partes, é uma regra de decisão jurisdicional que fixa as consequências negativas que decorrem para a parte em virtude da falta de demonstração dos factos-fundamento substantivos da pretensão ou exceção em causa; por isso é que (i) este “ónus” objetivo ou material da prova condiciona, naturalmente, (ii) a iniciativa da prova, bem como (iii) o ónus de alegação dos factos essenciais ou principais; mas, quanto ao juiz, o “ónus” objetivo da prova só o orienta após a produção e a valoração da prova, como se confirma pelo teor dos artigos 411º, 413º e 414º-1ª parte do CPC atual.

IV – “É evidente que não seria compreensível que a atribuição da nacionalidade portuguesa prescindisse de uma ligação efetiva à comunidade nacional, de indagar da existência de uma ligação efetiva à comunidade nacional, que sempre deve ser condição da aquisição da nacionalidade” (Rui Moura Ramos, in Estudos em Homenagem a Mário Esteves de Oliveira, pp. 968 e 969).

V - Na ação administrativa de oposição à aquisição de nacionalidade portuguesa, a propor ao abrigo do disposto nos arts. 9.º, alínea a) e 10.º da Lei n.º 37/81, de 3 de outubro [Lei da Nacionalidade] na redação que lhe foi introduzida pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de abril, cabe ao Ministério Público o ónus de prova dos fundamentos da inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional (Acs. de UJ do STA nº 3/2016 e nº 4/2016).
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL:

I - RELATÓRIO

MINISTÉRIO PÚBLICO intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa ação administrativa de oposição á aquisição de nacionalidade portuguesa contra

ÂNGELA …………………….., casada, de nacionalidade brasileira, nascida em ltapetininga, São Paulo, República Federativa do Brasil, residente na Rua ………………o, n.º 86, ………, ……………………………….., Brasil.

O referido tribunal veio, a final, a prolatar a decisão ora recorrida, absolvendo a demandada do pedido.

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Inconformado com tal decisão, o MP interpôs o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

1. Diferentemente da antecedente lei (Lei n.º 37/81, na redação da Lei n.º 25/94) - a qual previa como fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa a não comprovação, pelo interessado, da ligação efetiva à comunidade nacional - a nova Lei da Nacionalidade e respetivo Regulamento deixaram de fazer menção a essa "não comprovação", mas tão-só à inexistência de ligação à comunidade nacional.

2. Por força do disposto no artigo 57.º, n.º 1, do Regulamento da Nacionalidade, o interessado continua, no entanto, a ter necessidade de «pronunciar-se sobre a existência da ligação efetiva à comunidade nacional», depreendendo-se que será a partir dessa pronúncia que o conservador poderá aquilatar da existência/inexistência de ligação à comunidade nacional.

3. Pode, pois, dizer-se que ria ação de oposição à aquisição da nacionalidade – como ação de simples apreciação negativa destinada à demonstração de inexistência de ligação à comunidade nacional -, compete ao Requerido a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga.

4. No caso em apreço, a Requerida não logrou realizar essa prova, isto é, não conseguiu demonstrar que se encontra inserida na comunidade nacional.

5. Na verdade, apenas ficou demonstrado que reside no seu país de naturalidade, Brasil, não se vislumbrando que tenha um contacto consistente com a comunidade cultural, social e económica portuguesa.

6. E o facto de ter contraído casamento com um cidadão português, só por si, desprovido de outras provas, não é meio suficiente para demonstrar a sua ligação efetiva à comunidade nacional.

7. Com efeito, contrariamente ao pressuposto na sentença recorrida, o casamento da Requerida com um cidadão português não pode, por si só, à luz do regime vigente, ser tido como elemento constitutivo da sua ligação à comunidade nacional, sob pena de ser inútil o preceito contido na alínea a) do art.º 9° da L.N.

8. Se se entendesse de outro modo, ficaria praticamente neutralizado o direito do estado português de deduzir oposição à aquisição da nacionalidade e por esta via.

« Texto no original»

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A recorrida contra-alegou.

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Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

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DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO:

Os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido e respetivos fundamentos, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso (cfr. artigos 144º/2 e 146/4 do CPTA, 5º, 608º/2, 635º/4/5, e 639º do CPC/2013, “ex vi” artigos 1º e 140º do CPTA), alegação que apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas. Sem prejuízo das especificidades do contencioso administrativo (cf. J. C. VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa – Lições, 15ª ed., pp. 411 ss; artigos 73º/4, 141º/2/3, 143º e 146º/1/3 do CPTA).

Por outro lado, nos termos do artigo 149.º do CPTA, o tribunal “ad quem”, em sede de recurso de apelação, não se limita a cassar a decisão judicial recorrida, porquanto, ainda que a revogue ou a anule (isto no sentido amplo utilizado no CPC), deve decidir o objeto da causa apresentada ao tribunal “a quo”, conhecendo de facto e de direito, desde que se mostrem reunidos nos autos os pressupostos e condições legalmente exigidos.

As questões a resolver neste recurso - contra a decisão recorrida - estão identificadas no ponto II.2, onde as apreciaremos.

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II - FUNDAMENTAÇÃO

II.1 - FACTOS PROVADOS segundo o tribunal recorrido

A. A Ré nasceu em ………………… São Paulo, Brasil, no dia 28 de novembro de 1959 (Certidão de Nascimento junta a fls. 12 dos autos do processo físico e cujo teor se dá por reproduzido);

B. É filha de José …………… e de ………...

C. No dia 22 de outubro de 1982, em ……………….. São Paulo, Brasil, contraiu casamento com Roberto ……………. (Assento de Casamento ………………. do Consulado Geral de Portugal em São Paulo, junto a fls. 21-22 dos autos do processo físico e cujo teor se dá por reproduzido);

D. Titular do Assento de Nascimento n.º …………………. do Consulado Geral de Portugal em São Paulo, Brasil, junto a fls. 14-15 dos autos do processo físico e cujo teor se dá por reproduzido;

E. No dia 3 de abril de 2012 foi registada a entrada na Conservatória dos Registos Centrais Declaração para Aquisição da Nacionalidade Portuguesa nos termos do art.º 3º da Lei n.0 37/81, de 3 de outubro, assinada pela Ré (fls. 11 dos autos do processo físico, cujo teor se dá por reproduzido);

F. Na qual a Ré assinalou, com interesse para a decisão, entre outras, as opções, "Ser casado com nacional português há mais de três anos" e "Tem ligação efetiva à comunidade portuguesa" (Declaração cit.);

G. Juntou, com interesse para a decisão, além dos documentos acima referidos, os assentos de nascimento n.0s ……….. do ano de 2009, 2320/2006 e …………. do Consulado Geral de Portugal em São Paulo, Brasil, dos filhos do casal, Patrícia ……………., Letícia …………………. e Roberto ………………., respetivamente (fls. 23-24 e 46-47 e 48-49, respetivamente, dos autos do processo físico, cujos teores se dão por reproduzidos) e fotocópias de jornais/publicações contendo notícias sobre o "Grupo Resinas Brasil" (fls. 39 a 44, cujos teores se dão por reproduzidos) bem como de uma carta dando conta da existência de familiares do cônjuge da Ré em Lisboa, Pinhel e Porto e de amigos do casal em Portugal (fls. 28-29 dos autos do processo físico, cujo teor se dá por reproduzido).

H. Com base na Declaração referida em E) e F) foi instaurado na Conservatória dos Registos Centrais o Processo n.0 13089/12 (Despacho da Conservadora-Auxiliar de 13 de fevereiro de 2013, junto a fls. 57-58 dos autos do processo físico e cujo teor se dá por reproduzido);

I. Cuja certidão foi mandada remeter ao Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal, sob invocação do art.º 10º da Lei n.0 37/81, de 3 de outubro, na redação da Lei Orgânica n.0 2/2006, de 17 de abril (Despacho cit.).

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II.2 - APRECIAÇÃO DO RECURSO

Tendo presentes as alegações, cumpre-nos apreciar o seguinte contra a decisão recorrida:

- Erro de direito quanto á existência de uma presunção legal a favor da ré, não ilidida pelo autor;

- Erro de direito, por a sentença ter considerado que a ré nada tinha de provar.

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Na decisão jurisdicional, o tribunal, no pressuposto da existência prévia de lei no sentido lato do artigo 1º/2/1ª parte do Código Civil português, procede a várias operações consecutivas, relativas à correção externa e à correção interna da sua decisão: (1ª) a obtenção legal racional da premissa menor da sentença, isto é, da factualidade relevante e integrante da previsão das disposições legais em causa; (2ª) a interpretação jurídica prescritiva das fontes de direito objetivo, de acordo com os artigos 9º e 10º do Código Civil (1), orientada pela Constituição (em que o tribunal deve ter particular contenção na utilização do delicado argumento teleológico-objetivo, devido aos artigos 3º/3, 111º/1, 203º e 204º da Constituição), para a obtenção da premissa maior da sentença, que são as normas jurídicas a aplicar, o direito objetivo aplicável ao caso concreto; e, finalmente, (3ª) a escolha racional-prática da solução que, no estrito espectro das possibilidades reveladas pelo direito objetivo efetivamente aplicável, (i) seja aceitável de um ponto de vista jurídico-racional e (ii) possa ser generalizável para casos análogos futuros (cf. artigos 2º, 13º e 202º ss da Constituição e artigos 9º ss do Código Civil).

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Passemos, assim, à análise do mérito do recurso.

1 - Do erro de direito quanto à existência de uma presunção legal a favor da ré, não ilidida pelo autor

1.1.

Estamos ante uma ação administrativa como previsto nos artigos 9º/a), 25º e 26º da LN e 14º, 41º ss, 56º/1/2-a) e 57º a 60º do DL que contém o RN.

O TAC, considerando ser esta ação uma das previstas no artigo 10º/3-a) do CPC (já que é evidente que o autor MP não pede a condenação do réu, nem a autorização para uma mudança na ordem jurídica existente) e no consabido artigo 343º/1 do CC, viu-se “obrigado” a recorrer ao consabido artigo 344º/1 do CC, para poder “desonerar” o interessado em adquirir a nacionalidade portuguesa.

Ora, uma presunção (legal) é uma ilação - fáctica - que a lei tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido. O facto assim tirado fica adquirido/provado no processo, sem mais (cf. artigos 349º e 350º do CC).

No caso presente, em que o TAC afirma ser esta uma ação de simples apreciação negativa (com o que concordamos, mas que o STA já desmentiu nos seus Acs. de UJ nº 3/2016 e nº 4/2016, STA (2), que aponta para que o pedido feito pelo MP tem natureza constitutiva – vd. o artigo 10º do CPC, ex vi artigo 1º do CPTA), não existe qualquer presunção legal de factos (?) tendentes a que o interessado esteja ab initio integrado efetivamente na comunidade nacional.

Uma vez mais se confundiu facto presumido com conceito jurídico eventualmente preenchido. Uma confusão, aliás, paralela à que se estabelece frequente e incorretamente entre a presunção legal e a dispensa de prova (sobre esta, cf. LEBRE DE FREITAS, Introdução…, 4ª ed., p. 180 nota 62).

A presunção legal (um quase meio de prova … de factos, claro está; uma etapa no iter probatório) de que fala o TAC não está prevista em nenhum texto legal e não pode ser “construída” como fez o TAC.

Com efeito, a construção desta presunção legal pelo TAC padece de uma ilogicidade, de um raciocínio circular ou falacioso, dialético no sentido pejorativo dado por Kant.

É que o direito substantivo - a necessária base de um direito ou interesse discutido numa ação - exigiria do estrangeiro apenas, segundo o TAC, ser casado há mais de 3 anos com um português (facto constitutivo do interesse exercitado junto da A.P.), querer ser português (facto constitutivo do interesse?) e afirmar vaga ou conclusivamente que tem uma ligação efetiva à comunidade nacional portuguesa (facto constitutivo do interesse?); daí decorrendo que a lei presumiria tal integração efetiva.

Ora, esta conclusão (da presunção legal por um tribunal) (de que facto?) seria afinal o mesmo que ser casado há mais de 3 anos com um português, o que é desmentido pelas normas legais que exigem do interessado que afirme a integração efetiva a fim de, supostamente, a A.P. ir investigar – não se sabe bem aonde - o contrário da “prova documental” apresentada pelo interessado.

Caso contrário, essas normas legais (v.g. o artigo 57º/1 (3) do DL que contém o RN) seriam pura inutilidade e o legislador seria um autor irracional (cf., porém, o artigo 9º/2/3 do CC), fazendo então o tribunal de legislador. Qual seria a razão de ser da exigência feita no artigo 57º/1 do DL que contém o RN?

O TAC, por outro lado, parece confundir a iniciativa instrutória ou probatória com o “ónus” da prova, um erro muito comum, mas conducente a processos kafkianos e a julgamentos injustos e indesejados pela racionalidade e segurança jurídica da teoria das normas, teoria subjacente às regras de julgamento da causa previstas nos artigos 342º e 343º do CC (cf. assim os Acs. deste TCA-S de 10-03-2016, p. nº 12843/15, e de 19-05-2016, p. nº 12987/16; e, i.a., LEBRE DE FREITAS, Introdução…, 4ª ed., 2017, p. 42 notas 34 e 36 e pp. 179 ss).

O TAC, contraditoriamente com a sua tese de que se trata de um pedido de simples apreciação negativa (com que temos de concordar), fala ainda em “direitos do autor” (do MP), mas aqui o MP não tem direitos materiais, está, sim, a agir por imposição legal para aferir da veracidade de uma afirmação feita por um estrangeiro junto da A.P. portuguesa.

Outra contradição na tese do TAC é a de que a suposta presunção legal a favor do requerente da nacionalidade portuguesa - por via do casamento com um português – incluiria ou dependeria da inverificação de algum dos fundamentos de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa.

Portanto, nesta questão o recorrente tem razão.

Não há qualquer presunção legal de um facto a favor da ré.

1.2.

É ainda de referir RUI MOURA RAMOS, “As recentes alterações ao direito português da nacionalidade”, in Estudos em Homenagem a Mário Esteves de Oliveira, 2017, p. 955, nota 60, p. 962, nota 79 parte final, p. 968, p. 969 e p. 971. Neste texto, o autor é menos exagerado do que algumas teses que o citam nesta sede.

Citando agora o autor referido (em que se suportam as teses de que (i) a causa de pedir desta ação seriam factos que integrem o conceito impeditivo de “inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional” portuguesa (em vez de factos que integrem o conceito constitutivo de “ligação efetiva à comunidade nacional” portuguesa), (ii) cujo ónus de alegação fáctica e (iii) cujo “ónus” objetivo da prova caberia ao MP), transcrevemos o seguinte:

“É evidente que não seria compreensível que a atribuição da nacionalidade portuguesa prescindisse de uma ligação efetiva à comunidade nacional”; (…) indagar da existência de uma ligação efetiva à comunidade nacional, que sempre deve ser condição da aquisição da nacionalidade” (pp. 968 e 969).

Cf. ainda o Ac. deste TCA-S de 18-11-2010, p. nº 6919/10, e o Ac. deste TCA-S de 11-06-2015, p. nº 12086/15.

2 - Do erro de direito, por a sentença ter considerado que a ré nada tinha de provar

Esta questão é compósita e complexa.

Costuma começar-se pelo fim, pelo chamado “ónus” da prova. Mas, vejamos melhor, começando pelo início.

2.1.

A produção da prova (de factos) em juízo tem o seguinte iter em geral:

(1º)-indicação dos meios de prova dos factos relevantes, meios normalmente previstos no CC;

(2º)-concreta produção da prova (de acordo com a lei processual);

(3º)-análise e valoração ou avaliação da prova pelo tribunal de acordo com a prudente convicção do juiz e/ou de acordo com as forças probatórias previamente fixadas na lei (artigo 607º/5 do CPC e artigos 358º, 371º e 376º do CC);

(4º)-alegações finais, em regra;

(5º)-fixação dos factos provados e não provados (de acordo com a lei de processo).

Só após tais fases ou subfases é que (6º) o juiz aplicará as regras gerais, especiais ou excecionais sobre o chamado “ónus” objetivo da prova, de que tratam, nomeadamente, os artigos 342º ss do CC.

É, na verdade, não um verdadeiro ónus, mas uma regra de julgamento do direito e da causa, com uma indicação acessória para a parte do que é necessário para convencer o tribunal sobre a legitimidade jurídica material da sua pretensão, regra a que se poderá chamar de “ónus objetivo, material, semipleno e imperfeito da prova”.

Mas, complementemos, contextualizando o exposto.

As partes (i) têm um ónus (verdadeiro) de impulso processual (artigo 3º/1 do CPC, ex vi artigo 1º do CPTA), (ii) são elas que definem faticamente o litígio (cf. o ónus da alegação – artigo 5º/1 do CPC, ex vi artigo 1º do CPTA) e (iii) são elas que assinalam os limites da sentença (artigos 608º/2, 609º/1 e 615º/1-d)-e) do CPC, sem prejuízo das especificidades constantes do CPTA como a do artigo 95º/3).

Depois, temos que incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos essenciais (nucleares alegados pelas partes; complementares; e concretizadores) e aos instrumentais (artigo 411º do CPC); e, ainda, que o tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi -las, sem prejuízo das disposições que declarem irrelevante a alegação de um facto, quando não seja feita por certo interessado (artigo 413º do CPC).

Como se vê, o “ónus” da prova, hoje, ao contrário do Direito Romano e da época liberal anterior ao século XX, é algo de objetivo e material, sendo “apenas” um comando dirigido ao juiz sobre como ele deve, a final, resolver o litígio, tendo presente as normas de direito material em que a parte baseia a sua pretensão ou a sua exceção.

Outra forma de dizer isto é a utilizada nos artigos 342º/1/2 e 343º/1 do CC, em que o acento tónico é posto na natureza in concreto dos factos-fundamento (como em Itália, desde CARNELUTTI [1879-1965], CALAMANDREI [1889-1956] e GIAN A. MICHELLI [1913-1980],) e não na natureza in concreto das normas-fundamento (como na Alemanha, desde LEO ROSENBERG [1869-1963] até hoje).

Para tal, o Direito prevê regras, umas mais gerais, outras especiais e até algumas excecionais, para orientarem a resolução da questão de direito e da pretensão (ou exceção) a partir da natureza que, no caso concreto, têm as normas-fundamento da pretensão ou da exceção (utilizando a terminologia própria do Direito alemão desde LEO ROSENBERG, em vez da terminologia não normativa do artigo 2697º do CC italiano, copiada para o artigo 342º/1/2 do CC português).

Cabe aditar ao exposto, não um ónus, mas sim uma realidade processual assente na natureza das coisas e na lógica ou racionalidade: é a conveniência de cada parte ter a iniciativa da prova dos factos que a favorecem, a que impropriamente se pode chamar de “ónus de iniciativa preponderante da prova” (vd. o artigo 411º do CPC).

É que, hoje, e desde o início do século XX (cf. as obras de LEO ROSENBERG e de SCHWAB sobre a carga da prova), ter o “ónus da prova” significa apenas que é aconselhável ter a iniciativa da prova, a fim de evitar a consequência desfavorável da falta de prova dos factos favoráveis (LEBRE DE FREITAS, Introdução…, 4ª ed., p. 42 nota 34). O que se compagina com o previsto nos cits. artigos 411º e 413º do CPC.

Portanto: a figura plasmada nos artigos 342º/1/2 e 343º/1 do CC não é dirigida às partes (há muito que morreu o ónus subjetivo da prova), é uma regra de decisão jurisdicional, que fixa as consequências negativas que decorrem para a parte em virtude da falta de demonstração dos factos-fundamentos substantivos da pretensão ou exceção em causa.

Por isso é que (i) o “ónus” objetivo ou material da prova, cit., condiciona naturalmente (ii) a iniciativa da prova, bem como (iii) o ónus de alegação dos factos essenciais ou principais.

Mas, quanto ao juiz, o “ónus” objetivo ou material da prova só o orienta após a produção e a valoração da prova, como se confirma pelo teor dos artigos 411º, 413º e 414º-1ª parte do CPC (aliás, a 2ª hipótese do artigo 414º parece-nos inútil e deslocada, se ali ónus da prova for o mesmo que no artigo 342º do CC).

Finalmente, referimo-nos acima a “figura plasmada nos artigos 342º/1/2 e 343º/1 do CC”, porque, se traduzirmos os nº 1 e 2 do artigo 342º do CC (cuja linguagem é de inspiração italiana) para a linguagem lógico-normativa-material da teoria das normas de ROSENBERG (vd. o Ac. deste TCA-S de 10-03-2016, p. nº 12843/15, e as obras estrangeiras e nacionais aí mencionadas), o nº 1 do artigo 343º do CC é desnecessário, pois o significado deste nº 1 já resulta da regra ínsita nos nº 1 e 2 do artigo 342º.

Cf. ainda VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Adm., 15ª ed., pp. 453 ss.

Portanto, a questão resolvida pelos artigos 342º e 343º/1 do CC só releva, aqui como nos outros processos, depois de apurados/adquiridos os factos pelo tribunal, sob a égide dos importantíssimos artigos 411º ss do CPC. E não “a priori”, a não ser em termos de bom senso e conveniência das partes.

2.2.

Ora, no caso presente, a prova feita desembocou nos factos acima transcritos. Teremos de qualificar e ou valorar tais factos, uma vez que há conceitos indeterminados a preencher.

O que se tem de apurar, agora, a final, é se, tendo presentes os cits. Acs. de UJ do STA nº 3/2016 e nº 4/2016, aquela factualidade provada se integra ou não no conceito indeterminado “inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional” portuguesa. Cf., porém, RUI MOURA RAMOS, op. e loc. cits., onde o autor utiliza a contraparte positiva do conceito.

Na dúvida ou na certeza de que a factualidade não se integra no conceito indeterminado de pendor negativo cit., decide-se contra a parte interessada (é isto o “ónus” objetivo ou material da prova); parte essa que, segundo o STA, é o MP e não a ré.

É uma tarefa jurisdicional de concretização. E de ponderação.

Assim, e à luz da cit. jurisprudência do STA, a matéria de facto alegada e provada supratranscrita – para que remetemos - não nos permite considerar facticamente preenchida a condição de procedência da ação que é o conceito jurídico indeterminado de natureza negativa referido na al. a) do artigo 9º da LN (cf. assim o referido nos os Acs. deste TCA-S de 02-02-2017, nos p. nº 13518/16, p. nº 2814/13… e p. nº 210/15…).

Diferente seria se o autor tivesse concretizado faticamente o que genericamente afirma nos artigos 9, 10 e 12 da p.i., até porque nem houve contestação.

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III - DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os juizes deste Tribunal Central Administrativo Sul em, negando provimento ao recurso, julgá-lo improcedente, confirmando o decidido embora com muito diferente fundamentação.

Sem custas.

Lisboa, 06-12-2017


Paulo H. Pereira Gouveia, relator

Catarina Jarmela

Conceição Silvestre


(1) Enunciados normativos cujo melhor lugar seria a Constituição.
(2) Na ação administrativa de oposição à aquisição de nacionalidade portuguesa, a propor ao abrigo do disposto nos arts. 9.º, alínea a) e 10.º, da Lei n.º 37/81, de 3/10 (Lei da Nacionalidade), na redação que lhe foi introduzida pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17/04, cabe ao Ministério Público o ónus de prova dos fundamentos da inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional.

(3) Quem requeira a aquisição da nacionalidade portuguesa, por efeito da vontade ou por adoção, deve pronunciar-se sobre a existência de ligação efetiva à comunidade nacional e sobre o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo anterior.